ELDORADO XXI_20170209_Expresso {entrevista} [pt]

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O novo documentário de Salomé Lamas “Eldorado XXI” estreia-se esta quinta-feira nas salas portuguesas. Vasco Baptista Marques entrevistou a realizadora Apesar dos seus 29 anos de idade, Salomé Lamas é já um dos valores seguros do cinema português. A sua nova longa-metragem documental (“Eldorado XXI”, que esta quinta-feira estreia comercialmente nas salas nacionais) viaja até à cidade mais alta do mundo: a de La Rinconada, que se situa 5100 metros acima do nível do mar, nos Andes peruanos. Nela, aquilo que a câmara de Salomé Lamas encontrou foi uma realidade de extrema pobreza, mais precisamente: a dos homens e mulheres que acorrem à cidade para trabalhar numa das suas muitas minas de ouro ilegais, na esperança de assim dizerem adeus à sua miséria. Falámos com a cineasta a respeito das inúmeras questões que o seu filme levanta. Como surgiu a ideia de fazer um documentário sobre os mineiros que vivem e trabalham na cidade mais alta do mundo? No final de 2012, o Luís Urbano [o diretor da produtora O Som e a Fúria, com a qual a cineasta tem vindo a colaborar] pediu-me que lhe apresentasse um projeto para uma curta-metragem de ficção. Na primeira reunião que tivemos a esse respeito, aquilo que eu lhe disse – num tom muito assertivo, mas com a cara de quem não sabe fazer bluff – foi: “leva-me à Rinconada e eu trago-te um filme”. É óbvio que, para além disso, lhe apresentei também uma série de teorias altamente barrocas sobre o local (suportadas por facts and figures tirados da internet), e a ideia de fazer uma docuficção improvisada, onde, em tese, seguiríamos uma personagem que primeiro nos apresentaria à sua família, que depois nos daria a conhecer a região… Mas, como havia tantas incógnitas na equação, acho que ficou claro para a produção, desde o princípio, que estávamos a investir num projeto que poderia perfeitamente não vir a resultar em nada. Quanto à sua estrutura, o filme divide-se em duas partes bem distintas: uma primeira dominada por um plano fixo de 57 minutos (onde se retrata a marcha dos mineiros pela montanha acima ou abaixo), e uma segunda constituída por uma série de episódios que, num registo mais clássico, expõem o dia a dia daquela comunidade. O que a levou a montar o filme desse modo? Na realidade, quando eu regressei do Peru, pus a hipótese de fazer dois filmes, em vez de um só. Mas, o Luís Urbano disse-me logo: “acho que deves ir para casa e pensar melhor sobre o assunto”. Percebe-se: por esses

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dias, ele estava a distribuir “As Mil e uma Noites”, que foi um filme que se desdobrou em três. Não havia vontade nenhuma de reincidir num esquema desses – ainda por cima, com um filme que, à partida, colocava ainda mais problemas de distribuição (desde logo, porque eu não sou o Miguel Gomes). Assim, o mais justo foi criar aquele falso díptico, composto por diferentes unidades de sentido e de medida. De medida? Sim. Este filme tem um lado métrico: estamos sempre a medir os corpos em relação à paisagem. A questão da escala está presente de princípio a fim. Voltando àquele plano de 57 minutos… De onde vem ele? Durante a minha primeira estadia em La Rinconada, fui muitas vezes a La Compuerta, que é a via de acesso às minas que se vê nesse longo plano inicial. Nessa altura, gravei um plano de 20 minutos que, em termos de enquadramento, é quase igual ao que está no filme. Esse plano foi, de resto, aquele que eu utilizei no “Mount Ananea”, uma instalação que, no ano passado, foi apresentada no Museu de Serralves, e que constitui uma espécie de estudo preparatório para a primeira parte do “Eldorado XXI”. Quando, um ano mais tarde, regressei ao Peru, quis logo fazer um master digital dessa peça. Filmei então ao final do dia, no momento em que se dá uma mudança de turno (convém notar que, ali, as minas trabalham 24 horas por dia). Seja como for, aquilo que nesse plano se vê é uma marcha de morte, que é também uma marcha de esperança. E parece-me que ele ilustra bem a maneira como eu quis abordar aquele espaço: tentando colocar o máximo possível no pouco que se mostra. Nesse plano, a imagem e o som não são sincrónicos: a marcha dos mineiros é comentada, em off, por histórias pessoais que foram recolhidas noutro momento. E a própria banda de som se vai transformando: de início, ouvimos apenas vozes, mas, a certa altura, começamos a ouvir também em fundo os sons dos locais a partir dos quais elas nos falam. Como foi feito esse trabalho sonoro? Construímos uma espécie de manta de retalhos, composta por testemunhos de figuras arquetípicas daquela comunidade, por excertos de programas das rádios locais… Trata-se de uma faixa sonora que vai em crescendo de intensidade, e tornando-se cada vez mais barroca, para criar os quartos que aquelas vozes habitam. De forma a fazer isso, recorremos a sons diegéticos que foram gravados nos espaços que veremos na segunda parte do filme, mas usámos também um conjunto de sons que não pertencem àquele universo. Percebo que isso possa ser uma afronta para quem defende uma aproximação estritamente etnográfica ao real, mas esse não é o meu método. Enfim, na etnografia há duas posições: a do going native e a do n ot going native, a que nos diz que nós também fazemos parte do mundo estranho no qual nos infiltramos, e a que nos diz que não fazemos. Esta última posição é a minha: eu sei que não sou nem nunca quis ser dali. Aliás, aquilo que me interessa no cinema de não ficção é justamente a estranheza: poder projetar-me numa realidade para a qual eu represento um corpo estranho, e ver como essa fricção pode gerar a possibilidade de um filme. Que cuidados deve um documentário ter, quando interroga uma realidade tão precária como a dos mineiros de La Rinconada? Estamos em face de uma comunidade que, de um ponto de vista ético, é muito difícil de abordar. E, embora nunca me tenha passado pela cabeça a hipótese de fazer ali um filme de campanha ou um drama social, isso não significa que eu não tenha tido dúvidas (tive-as, na verdade, desde o princípio) acerca do melhor modo de lidar com aquela realidade. Estou ciente de que esta coisa de fazer cinema de não ficção é um trabalho sujo: trata-se, no fundo, de transformar histórias privadas para as colocar em praça pública. Isso implica a responsabilidade de quem filma e de quem mostra, não apenas para com os representados, mas também para com o espectador. Pela parte que me toca, tentei ser o mais clara e honesta possível com as pessoas que filmei, colocando todas as cartas em cima da mesa, e dizendo: «a minha proposta é esta». Como foi feito o contacto com os mineiros que, no filme, contam as suas próprias histórias de vida? Fomos aproximando-nos aos poucos das pessoas. Mas, não foi fácil: sobretudo, porque a comunidade está farta da maneira como os média a têm pintado. Tivemos de explicar que o nosso posicionamento era completamente diferente. Para além disso, estamos a falar de pessoas imersas num quotidiano duríssimo, para as quais um filme

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não é nada: como é evidente, elas tinham coisas muito mais importantes para fazer. Que outros projetos tem já alinhavados para o futuro? Deixando de lado o “Coup de Grâce” – uma curta-metragem de ficção que, no próximo dia 13, será estreada no Festival de Berlim –, tenho um filme chamado “Extinção”, que está em fase de pós-produção. Foi rodado na Transnístria, na Bulgária e na Moldávia, entre 2014 e 2015, e lida uma vez mais com uma situação de fronteira. É uma obra que, de uma forma muito abstrata, se debruça sobre questões de identidade política e nacional na Europa de leste do pós-União Soviética. Estou também a trabalhar num projeto no Médio Oriente: estive no Líbano em Agosto do ano passado, em processo de casting e de repérage. Existe também o convite que me foi dirigido pela Andreia Pinto Correia, que é compositora, no sentido de elaborar a parte audiovisual de um monodrama, que será feito a partir da adaptação de um livro do biólogo Claudio Campagna. Enfim, este ano de 2017 já está todo calendarizado.

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