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Ramiro (António Mortágua) em frente do seu “estabelecimento instável” onde ele atira setas à divina providência...
Ramiro, um coração generoso É a história de um R rapaz de Lisboa, alfarrabista de profissão e poeta tímido nas horas vagas, metido consigo próprio mas disposto a ajudar os outros: eis o novo filme de Manuel Mozos
TEXTO FRANCISCO FERREIRA
QQQQ RAMIRO De Manuel Mozos Com António Mortágua, Madalena Almeida, Fernanda Neves (Portugal) Comédia dramática M/12
amiro é um daqueles tipos que só não querem que o chateiem. Não conhecemos grande coisa do seu passado nem tardamos a perceber que ele prefere viver com o seu cão, o “Ortigão”, em vez de partilhar vida com Patrícia, a namorada. Alfarrabista de Lisboa, frequenta à distância o meio literário da cidade e torce o sobrolho ao pretensiosismo de certos autores descarados que se vendem na TV. Pensa certamente nos poemas que escreveu e que ele continua teimosamente a guardar na gaveta, longe do prelo. Na loja, negócio que já foi parra que deu uva e que ele mantém orgulhoso, mostra aos clientes, que não são muitos, um trato fino e cordial, mas também faz cara feia e despacha uns quantos para a Fnac quando não reconhece neles uma afinidade de gosto. Esse não é o caso da adolescente de barriga que, logo no início, lhe pergunta se ele tem os “Lusíadas contado às grávidas”(!). Ramiro não se embaraça com tal pedido (ainda para mais esgotado), nem perde a réplica: “Mas tenho o ‘Moby Dick’!”. O diálogo acaba com um “manual do IRS”, as personagens
parecem sorrir com o absurdo do que acabam de dizer e nós sorrimos com elas. Sorrimos daquela coloquialidade forjada que, apesar disso, não deixa de ser uma coisa ‘muito cá de casa’ — e que o cinema português (pesem embora as diferenças entre os dois realizadores) nunca mais se atreveu a filmar com esta dignidade e graça desde o desaparecimento de César Monteiro. “Ramiro” foi escrito para Mozos por Mariana Ricardo e Telmo Churro e o que é curioso é que, conhecendo-o, o Ramiro do título (que António Mortágua interpreta) parece ter sido moldado à imagem do cineasta. Não se trata de uma biografia ficcionada. “Acontece que a Mariana e o Telmo conhecem-me, gostam dos meus filmes”, contou-nos Mozos há dias na noite da antestreia em sala, “e escreveram uma personagem com características que eventualmente se podem colar a mim. Eles assumiram isso. Eu li o argumento, não me importei, pelo contrário, achei bonita esta ideia de fazer um filme sobre um tipo que se parece comigo. Pedi-lhes para não exagerarem, porque o Ramiro é o Ramiro e o
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Manuel é o Manuel. Mas é verdade que gosto daquelas profissões, daqueles locais, daquele mundo um bocado encapsulado em que a personagem vive e que, para mim, continua a ser o presente. O Ramiro tem umas pechas, não sabe escrever em computadores, não percebe nada do IRS. Mas é um tipo que lá se vai safando, por enquanto. Temos certas semelhanças.” Voltemos à tal menina grávida e que entra na loja de Ramiro quando o filme começa. Chama-se Daniela (Madalena Almeida), foi educada pela avó, a Dona Amélia (Fernanda Neves). Daniela julga ser órfã de pai e mãe, mortos num acidente: foi o que lhe contaram. Ramiro, descobre-se depois, assumiu ser o seu encarregado de educação quando a Dona Amélia teve um AVC. Em torno do protagonista gravitam outras personagens, os amigos José, Vicente, Fernando, a já referida namorada Patrícia (Sofia Marques). Ramiro conhece-os desde sempre naquele bairro lisboeta em vias de extinção onde o café da esquina ainda existe paredes-meias com a agência funerária. Se o tom — já se percebeu