Diário do IndieLisboa: a estreia visceral de Lucrecia Martel mag.sapo.pt/cinema/atualidade-cinema/artigos/diario-do-indielisboa-a-estreia-visceral-de-lucrecia-martel Roni Nunes
April 29, 2018
Dia de filmes cheios de calor. Com uma estreia visceral de Lucrecia Martel, que figura na secção “Herói Independente” deste ano e inscreveu o seu nome na história do cinema argentino do século XXI. E algures no nada também foi parar o organizador do "Desolation Center", um conceito de festival que dá nome ao filme e que mistura punk, rock e experiências alucinantes. O domingo traz também muitos filmes da Competição – entre os quais o romeno "Pororoca", o irlandês "The Missing Thing" e o francês "Les Garçons Sauvages". O pântano da oligarquia rural Calor, bêbados e animais mortos juntam-se num simbólico “pântano” na obra de estreia de Lucrecia Martel, "La Ciénaga", que em Portugal se chamou precisamente "O Pântano". Em 2001, esta realizadora de uma longínqua Salta, cidade de 600 mil habitantes no extremo Noroeste argentino, logrou dar uma contribuição decisiva para a implantação do Novo Cinema Argentino no circuito internacional. Na produção, obteve os préstimos de Lita Santic, também responsável pela estreia de Pablo Trapero dois anos antes com “Mundo Grua”. La Ciénaga é uma pequena localidade que efetivamente existe; mas também significa pântano, nome simbólico mais do que apropriado para aquilo que segue. Martel pinta as tonalidades deste retrato de família com uns pouquíssimos planos iniciais: os copos, a floresta, o animal na lama, a piscina suja e, principalmente, um bando de adultos completamente inertes. Quando Mecha (Gabriela Borges) cai, acusando os efeitos do álcool e cortando-se com alguma gravidade, serão as adolescentes que dormitavam dentro da casa a surgirem em seu socorro. Neste ambiente de decadência mórbida, mais ninguém consegue fazê-lo. O filme não tem uma história propriamente dita e vão-se interligando, aparentemente ao “calhas”, acontecimentos fortuitos, uns mais importantes do que outros e o onde é o próprio quotidiano que pode fornecer os maiores perigos. Mecha tem uma prima, Tali (Mercedes Morán), que se inscreve entre as típicas “pessoas comuns” do universo de Martel – uma provinciana de classe média baixa que inveja a prima “rica” e só diz banalidades. Mas também tem outra finalidade: a ideia de família “normal”. Esta, obviamente, é um mito; há adolescentes em plena pulsão sexual (Leonora Balcarce), pela carência e o desejo homossexual (Sofio Bortolotto), há o seu irmão mais velho (Juan Cruz Bordeu) um “engatatão” que vive com a ex-amante do pai, há Isabel (Andrea López), uma criada tratada como tal (“índia carnavaleira”, acusam), num papel crucial. E, sempre, muitas e ruidosas crianças. 1/3