"Filmo para que se veja como é terrível o presente" {Entrevista}

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ZAMA ENTREVISTA

LUCRECIA MARTEL REALIZADORA

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Quando em gaiata corria à solta por casa, na companhia dos sete irmãos, sob o bafo húmido da província de Salta, no noroeste montanhoso da Argentina, os pais como a avó materna hipnotizavam-na com histórias para adormecer. As siestas de infância têm a sua aparição evidente no argumento de “O Pântano” (2001), a sua primeira longametragem, para a qual é sabido ter levado memórias de família. Mas a inspiração nas narrativas que se contam e se escutam com um olho aberto e outro fechado, num

estado de apneia semelhante à imersão numa piscina, encontram uma ponte directa com a forma cinematográfica nessa como em qualquer das restantes longas-metragens de Lucrecia Martel: “A Rapariga Santa” (2004), “A Mulher sem Cabeça” (2008), “Zama” (2017). Em Abril passado, o festival IndieLisboa exibiu-as em conjunto com cinco curtas-metragens escolhidas pela realizadora argentina (quatro realizadas no período de oito anos que separam “Zama” da precendente longa, além de “Rey Muerto”, de 1995). Uma

“Filmo para que se veja como é terrível o presente”


de uma imaginação que é a nossa neste momento. Costuma-se contar o passado como se tivéssemos sobre ele uma visão absolutamente precisa. Mas a história latinoamericana é também bastante inventada, apenas ficou registada uma parte dos acontecimentos. Não se sabe como foi assimilada a colonização por quem estava antes desta a viver no continente indígena.

retrospectiva antecipando a estreia comercial de “Zama”, em sala pela distribuidora O Som e a Fúria (co-produtora portuguesa do filme), e no contexto da qual o festival atribuiu in loco o corvo de “Herói Independente” a Martel. Ocasião para a conversa que se segue e através da qual serpenteámos entre grandes e pequenas narrativas, a arte de as transmitir, subverter ou contornar. AISHA RAHIM

Em Zama revisita o passado colonial latino-americano de um ponto de vista diferente da História que veicula, por exemplo, nos livros escolares. Através dos mecanismos da

ficção, do artifício, leva-nos a uma outra realidade ou verdade. Como vê a relação entre História e cinema? Para o cinema não há uma grande diferença entre a História e a ficção científica. E por isso o cinema é uma via interessante para pensar sobre a História no geral. Que diferença significativa existe entre fazer um filme épico ou de época e fazer um filme de ficção científica? Nenhuma. Ambos implicam o mesmo nível de hipóteses sobre o passado e sobre o futuro. Quando se cria um guarda-roupa para um filme de época, mesmo procurando referências, está-se a inventar. Num filme sobre o futuro, o vestuário costuma ser visto mais facilmente como fruto da nossa imaginação, mas trata-se sobretudo

Interessa-lhe um trabalho de escavação da parte do cinema? Penso que não se pode fazê-lo porque houve um esforço violento para fazer desaparecer a História. A arqueologia não vai encontrar o que foi apagado. Para mim o interessante é visitar o passado com a mesma liberdade com que a ficção científica visita o futuro, porque essa é a única forma de, quiçá, chegarmos a outro pensamento. Abrir hipóteses sobre como pode ter acontecido. Em vez de dizer “eu investiguei e foi assim, assim e assim”, o que seria para mim uma postura bizarra. Como quando Mel Gibson fez “A Paixão de Cristo” em aramaico, querendo fazer-nos crer que aquilo era verdade. Quando o cinema o que tem de interessante é justamente não ir em busca da verdade mas sim de pensar, pensar de uma forma mais crítica e menos complacente. Num filme com colonos e colonizados, não parece optar por uma visão dicotómica, a preto e branco. Diria que o filme não se trata de uma crítica ao colonialismo mas antes de uma desconstrução do mesmo no presente. Não me propus fazer um filme crítico em relação ao colonialismo, estou de acordo com o que diz. E, por isso também, não sei se reparou, a Igreja quase não aparece no filme. Porque todas as

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visões que há na América Latina sobre a colonização colocam as responsabilidades ou na Igreja ou nos Europeus. E o que tinha de interessante o livro de “Zama “[escrito por Antonio di Benedetto e do qual o filme é uma adaptação] era que, em vez de dizer “ah, os que vieram de fora nasceram neste desastre”, trata dos que estavam aqui [no continente latinoamericano] e já nasceram aqui e ainda assim continuam a sentir-se ou a pensar em si mesmos como estrangeiros, ao mesmo tempo que vendo como estranhos outros homens que nasceram no mesmo continente mas que são indígenas. É esta a loucura da colónia. Não ter pertença a nenhum lugar, nem com o continente onde estás a viver nem com o outro que não viveste porque ainda não tinhas nascido.

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Os planos recheiam-se de situações ligeiramente cómicas, ligeiramente inesperadas, mas nunca claramente irónicas. Algo da ordem do absurdo. Esse humor de fala tem que ver com o seguinte: qualquer argentino que veja “Zama", é inevitável que se identifique com este conflito de a Argentina pensar-se a si mesma como europeia, quando é um país cuja população é mais de 60 por cento indígena. A Argentina faz um enorme esforço para não projectar esta imagem indígena e mestiça. Como recebeu uma enorme emigração europeia, muita gente da Espanha e Itália pensa na Argentina associando-a a emigrantes seus parentes. Como é possível que, duzentos anos depois de se tornar independente,

a Argentina se pense a si mesma ainda desta forma? É inacreditável. Não se pode falar criticamente da colónia como se ela já não existisse. As pessoas mais pobres do nosso país são da comunidade indígena. A nossa forma de ver o país e a nossa economia dependem sempre do que se passa no resto do mundo. Não temos uma economia sã, pensada para o país, mas sim uma economia frágil em função do que se passa fora. Toda a América Latina, não só a Argentina. Para mim é importante filmar sem cair em lugares comuns como o de dizer “vejam quão terrível era a colónia”, “ai, que tremendo foi o passado”. Filmo para que se veja “como é terrível o presente”. Continuamos na mesma, sem nos sentirmos parte daquele continente.


No filme expõe, mais do que o sofrimento dos colonizados, o daqueles que trabalham para a ficção colonial. Estamos perante um homem, um funcionário, que se limita a estar em vez de ser. Exacto. Essa é outra contradição enorme. Imagine a felicidade minúscula que deve ser entrar num lugar, destroçar tudo o que há e fundar a sua própria cidade e cultura. Nada pode ser feliz se há outra gente que não o é. Querer-se que essa felicidade pequena seja uma grande coisa faz-te viver uma vivência miserável. Isso é uma coisa que se passa no meu país hoje. Para nos alegrarmos é preciso ser-se menos mesquinho. A classe média vive agarrada aos seus privilégios e benefícios, deixando um monte de gente fora disso. Isso não é felicidade, é conformar-se com algo

de pequeníssimo. Entrar nos seus filmes é como fazer parte de uma orquestra ou de uma companhia de dança numa busca constante de desarmonia. Usando uma expressão de A Rapariga Santa, “um rádio mal sincronizado”. Nada nos deixa quietos, tranquilos. Falámos do que distingue cinema de História. Gostaria de saber o que para si distingue o cinema das outras artes. Isso parece-me fundamental em tudo o que seja narrativo: se alguém está a ler um livro, a ver um filme, a ouvir uma música, e não está um pouco inquieto, é provável que não lhe surja nenhum pensamento. Um pensamento não é só intelectual. É uma coisa física, no corpo. E a mim parece-me que

toda esta cultura complacente, em que sais da sala do cinema com uma satisfação que te faz esquecer no dia seguinte do que viste – uma dessas satisfações imediatas como a das comédias românticas – não foste além do argumento e do tema do filme. No cinema está-se o tempo todo imerso num mundo sonoro e visual. Se uma pessoa não aproveita essa oportunidade para pensar sobre o mundo, perdese algo de muito interessante da existência. Se a literatura e o cinema servem para afirmar apenas o que já existe, então não servem para nada. Para mim esse cinema a que chamamos mais de mainstream, o que faz é afirmar o status quo, ser indulgente com a pequena porção do mundo que desfruta de tudo, que tem os benefícios de cidadão, os benefícios da pele branca, os benefícios da classe


média ou média alta, uma parte minúscula do mundo. Faz com que te sintas satisfeito com o mundo como ele está. Politicamente, isso é uma atitude muito conservadora. Uma comédia romântica é do mais conservador que há. A única coisa que importa quando vês um filme com Jennifer Aniston e Tom Hanks – não faço ideia se fizeram um filme juntos, é um exemplo – é se a situação de amor vai funcionar ou não. Tudo o resto, em que trabalham, se o que fazem é um trabalho honesto, todas as perguntas sobre a existência, desaparecem. Então, não digo que isso não deva existir – pode existir – mas se essa forma narrativa é o único modelo narrativo existente, imposto ao resto do mundo de uma forma muito forte e violenta, se o cinema se reduz a isso, perde-se a oportunidade de gerar alguma distorção sobre a realidade, ou seja, a possibilidade de a podermos transformar. Não é tanto “vou-te contar como deveria ser o mundo”, mas mais duvidar da nossa percepção do mundo. Isso pode ser o cinema. Referiu o corpo, questão central nos seus filmes, onde a dor física pode ter várias leituras. Em Zama, camadas evidentemente políticas. Lembrando de que falamos de cinema, a arte dos fantasmas, onde uma mulher pode, por exemplo, andar “sem cabeça”... Um truque com o qual se pode levar a cabo coisas tão terríveis como a colonização é o de se separar a ideia de tempo da de corpo. O pensamento cristão despreza o corpo, colocando o sentido da tua vida no final de uma linha cronológica: o céu, o paraíso. Ora, durante todo esse percurso tens de aguentar a dor, a pobreza; a recompensa está no final. Essa estrutura de colocar tudo no futuro é o que permite submeter as pessoas, fazer com que aguentem o

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que não se pode suportar. A cultura da esperança é muito perigosa e no Ocidente temo-la no sangue. Nesse sentido, o feminismo fez uma inversão muito forte. Sem dúvida é o pensamento que mais transformou a humanidade nos últimos anos. Situar-se no corpo para pensar, que é exactamente o contrário do que a Igreja fez, que foi separar a pessoa do seu sofrimento físico que é presente. O tempo do corpo é o tempo onde todo o passado e presente estão juntos. No corpo o passado são as recordações. Se uma memória te dá felicidade, dá-te felicidade agora. Eu tenho esta visão e é muito difícil que essa visão não esteja no filme, porque a tenho. Quando olho para Zama vejo alguém sobre quem pairam

razões superiores. Alguém cujas vontades só poderão ter lugar no fim da sua própria época, da sua própria realidade… Uma ideia, muito de ficção, do filme, era a de que todas as personagens, mais do que “Zama”, sabiam o que se estava a passar. Até os mensageiros sabiam mais do que “Zama”. O que a levou a estudar cinema? E o que ficou consigo desse período escolar em Buenos Aires? Não pude verdadeiramente estudar cinema. Comecei numa escola de cinema de animação muito pequenina [Avellaneda Experimental] e depois entrei numa escola pública de cinema [Escuela Nacional de


Experimentación y Realización Cinematográfica] numa época em que havia uma crise económica e uma hiper-inflacção parecidas às de agora. Essa escola pública não tinha o básico, não havia câmaras, não havia aulas, não havia material. Entre 1988 e 92, toda a gente dessa geração e da seguinte que quis fazer cinema teve de ser auto-didacta e contar com os amigos. Existe outra forma de fazer cinema senão sendo autodidacta? Hoje existem escolas de cinema. Mas para fazer cinema, aprendes as técnicas em 4 meses. O mais difícil para realizar um filme é ter uma visão do mundo. Isso podes ter com qualquer curso ou educação auto-didacta. Não é necessário ir à Universidade Columbia, até pelo

contrário, não sei… Quando amigos meus me pedem conselhos para os seus filhos que querem estudar cinema, eu digo-lhes que escolham uma área qualquer que lhes dê uma formação – arquitectura, medicina, literatura, filosofia, História, qualquer coisa – e que façam cursos de cinema pequenos: aprender a usar fotografia, cursos ligados à narrativa... O mais difícil e mais importante é ter uma perspectiva. Disse que uma das maiores motivações para filmar é a conversa. Sobre o que vai conversar nas duas masterclasses, em Lisboa e no Porto, perante quem talvez também se queira sentir motivado a filmar? O que digo nas conversas [com o público] é muito literal: muitas

das estruturas narrativas vêm da conversação, da narrativa oral, não da narrativa escrita ou do que se tornou uma estrutura mainstream. As estruturas narrativas que se impuseram de forma hegemónica a mim não me servem para contar. Porque me colocam numa posição muito conservadora em relação à realidade. E como o que me diverte é colocar em dúvida a realidade... Sirvo-me muito mais da oralidade. Tratam-se de estruturas menos rígidas, mais débeis. A deriva, a desordem no relato. Uma conversa que vai e que vem. Que não contém um objectivo ou um propósito, como o discurso de um político que está a seguir um guião escrito. Como uma conversa de famíia. Quando se fala ao telefone. Vaise de um tema para outro tema, passeando livremente.

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