Crítica: "Mariphasa" (2017)

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Não é fácil entrar em "Mariphasa", embora seja ainda mais difícil abandonar a segunda longa-metragem realizada por Sandro Aguilar. É um espectáculo fantasmagórico, que intriga, irrita, hipnotiza, frustra, prende as emoções e compele os sentidos e as sensações a aguçarem-se, mesmo quando nem tudo é claro ou não recebe explicação. Parco em diálogos, é um pesadelo em formato cinematográfico, onde as sombras consomem a luz, o design de som exacerba o mistério, a violência e a instabilidade que percorrem diversas situações do filme e os intérpretes transformam-se praticamente em figuras espectrais que se movem por um limbo no qual o pessimismo e a desesperança parecem a palavra de ordem. A fotografia de Rui Xavier contribui para esta atmosfera de malaise, seja através das cores escuras que sublinham o tom semelhante a um pesadelo de "Mariphasa", ou à utilização precisa da iluminação. Note-se quando encontramos a luz a praticamente retirar a vivacidade dos corpos dos personagens, quase a transformá-los em figuras espectrais, ou as situações em que o calor proveniente da iluminação reforça a inquietação ou o maior fervor emocional. No início do filme encontramos um investigador a salientar junto do seu interlocutor que procura a Mariphasa Lupina Lumina, "uma estranha flor que só cresce no Tibete e que dizem tirar a sua energia da lua", bem como que os guias dizem que o vale que procura "está cheio de demónios" e que "Os lobisomens atacam instintivamente aquilo que mais amam", com estas falas a remeterem quer para o estranho e tenso ambiente que envolve o enredo, quer para a ténue faceta de ficção-científica da fita. Diga-se que este é um dos raros trechos da obra em que encontramos uma troca de diálogo fluída, ou Sandro Aguilar não preferisse que o lado lacónico dos personagens sobressaísse. Por um lado, essa decisão contribui para adensar o mistério em volta destes elementos. No entanto, em alguns momentos torna-se claro que precisamos de um pouco mais de informação, de uma base que não nos deixe completamente à solta. O que também é uma das qualidades de "Mariphasa", em particular, deixar-nos a vaguear pelo seu interior, enquanto nos tornamos em fantasmas que acompanham os personagens e circulamos pelos mesmos espaços que estes. Um desses personagens é Paulo (António Júlio Duarte), um indivíduo atormentado pela morte da filha. Este trabalha como segurança nocturno num complexo industrial desactivado e dorme em casa de Luísa (Isabel Abreu) e do filho. Temos ainda a presença de Filipe (Albano Jerónimo), um vizinho do trio, ou de Nuno (João Pedro Bénard), um indivíduo desiludido com a sua entidade patronal, ou a professora (Luísa Cruz) da filha do protagonista, uma mulher que reforça a estranheza que envolveu morte da petiz. António Júlio Duarte insere um tom contido e angustiado ao seu Paulo. Diga-se que quase todos os personagens que nos são apresentados contam com a sua dose de solidão e tormentas, inclusive Filipe, com Albano Jerónimo a incutir uma personalidade 1/2


transgressora, emocionalmente instável e algo violenta a este caçador. Nem sempre ficamos a conhecer bem estas figuras, nem esse parece ser o objectivo de Sandro Aguilar. O cineasta prefere colocar-nos perante alguns fragmentos da vida destes elementos, sejam estes situações completamente banais ou trechos menos comuns. Note-se o episódio em que somos colocados perante a poesia violenta da destruição de um veículo, ou o sonoro ladrar de um cão que atormenta e acompanha Filipe. "Mariphasa" balanceia assim por uma corda instável. Tanto ameaça cair para o lado demasiado vago e impenetrável como descer com classe para o lado mais hipnotizador e perceptível, enquanto mexe com os nossos sentidos. Para essa capacidade de tocar em algumas cordas do nosso âmago muito contribui a já mencionada impenetrabilidade que cansa e desafia, bem como a já sugerida fotografia de Rui Xavier, ou o trabalho de som de Miguel Cabral e Tiago Matos, ou a incapacidade de termos uma percepção total dos cenários por onde os personagens vagueiam. É nesse balanceamento constante entre o imperceptível e o discernível, a luz e a sombra, o silêncio e o barulho, a razão e a loucura, a violência e a brandura, a acção e a apatia, que Sandro Aguilar mantém "Mariphasa", com o cineasta a deixar-nos perante uma obra simultaneamente estimulante e frustrante, que surge como uma experiência cinematográfica que não se esquece com facilidade. No final, descobrimos que somos os investigadores do início do filme e efectuámos uma expedição a este mundo cinematográfico inseguro, de equilíbrios instáveis e sensações fortes.

Título original: "Mariphasa". Realizador: Sandro Aguilar. Argumento: Sandro Aguilar. Elenco: António Júlio Duarte, Albano Jerónimo, Isabel Abreu, João Pedro Bénard.

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