Viver com os indígenas krahô mudou a vida e o cinema de dois realizadores tsf.pt/cultura/interior/amp/viver-com-os-indigenas-kraho-mudou-a-vida-e-o-cinema-de-dois-realizadores10669831.html
Cinema2019-03-14 14:10 Estreia esta quinta-feira o novo filme de João Salaviza e Renée Nader Messora. "Chuva É Cantoria Na Aldeia Dos Mortos" venceu o prémio especial do júri na secção "Un Certain Regard" em Cannes.
foto DR Henrique Ihjãc Krahô tem 15 anos, é casado e tem um filho bebé. É um dos indígenas krahô do norte do Brasil que surge em "Chuva É Cantoria Na Aldeia Dos Mortos", uma produção luso-brasileira que já esteve presente em dezenas de festivais em todo o mundo. Os realizadores João Salaviza e Renée Nader Messora à conversa com a jornalista Cláudia Arséni O filme, entre o documentário e a ficção, conta a história de Ihjãc que perdeu o pai há um ano e desde essa altura que tem pesadelos, visões e chamamentos e começa a transformar-se em xamã. No entanto, rejeita esse caminho e decide afastar-se da aldeia e ir para a cidade dos brancos. O filme ganhou o prémio especial do júri na secção Un Certain Regard do Festival de 1/3
Cannes, no ano passado, e também recebeu os prémios de melhor obra de ficção e melhor fotografia no Festival de Cinema de Lima, no Peru. Foi o Prémio Especial do Júri do Festival Internacional de Cine Mal del Plata, na Argentina, e foi duplamente premiado no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro (Melhor Realização e Melhor Fotografia). Em entrevista à TSF, Renée Nader Messora revela que o nome já existia antes do próprio filme, quando um dia na aldeia ouviu uma mulher que "estava contando da aldeia dos mortos e como era essa aldeia, e no momento ela falava alguma coisa como 'quando os espíritos vão andando, aquilo vai fazendo um barulho, barulho da chuva chegando, a chuva é a cantoria dos mortos'. A gente falou muito sobre como era bonito aquilo, as imagens que essa ideia trazia". Para os realizadores interessa pouco a designação do filme, que está entre o documentário e a ficção, e João Salaviza confessa que durante as rodagens nunca se preocuparam com isso e que "o cinema, desde os primórdios, transcende estas categorias". "É verdade que o nosso filme tem um fundo totalmente real, mas ao mesmo tempo há uma narrativa que vem de uma história real que nós trabalhámos e transformámos em material de cinema. Mas o filme, no fundo, é uma junção de imensos registos e abordagens", acrescenta o cineasta.
Os dois realizadores viveram entre os indígenas krahô durante nove meses e a rodagem foi ganhando contribuições dos próprios protagonistas. "Era muito, muito raro que a gente impusesse alguma rotina. Todo o tempo que a gente estava na 2/3
aldeia, filmando situações na aldeia, obrigatoriamente tinha que seguir o ritmo da comunidade", revela Renée Nader Messora. João Salaviza admite que esta experiência mudou a sua forma de olhar o mundo e até de fazer cinema. "O nosso passado, a nossa herança histórica, filosófica judaicocristã, não nos libertamos dela por decreto, mas claro que todo o tempo que temos passado na aldeia nos faz estar muito mais conscientes hoje de alguns automatismos intelectuais e emocionais que temos perante determinadas realidades. Nesse sentido, há uma série de questionamentos que hoje faço. Por exemplo, para eles é um absurdo a nossa relação com a matéria, com a natureza, com os recursos". Questionados sobre se é preciso desmistificar a presença indígena no cinema, quase sempre do lado dos vilões ou simples caricaturas, Renée Nader Messora lembra que em Cannes, o ator Benicio del Toro, após entregar o prémio especial do júri na secção Un Certain Regard elogiou a forma como tinham filmado o luto e como o filme mostra que há temas universais. "Quando a gente abre a possibilidade para esse olhar, acho que pode haver uma mudança de consciência e aceitação de que há outras culturas que tratam as coisas de formas não exatamente como nós, mas é maravilhoso que o mundo seja um lugar múltiplo e que permita a existência de todos esses olhares". Quanto a futuros projetos, João Salaviza admite que "este filme, na verdade, foi um ponto de rutura não só na forma como eu penso o cinema, e a Renée também acho eu, mas um ponto de rutura de perceber que não me interessa mais encontrar modelos de produção de cinema em que a vida e a produção de um filme estejam totalmente desligadas. Isso aprendi com os krahô. Para mim o trabalho não tem de ser o centro da minha existência e fazer um filme desta maneira não é exatamente um trabalho, é uma questão de vida, é uma questão de vivência, de aprendizagem, de partilha. E, portanto, eu sei que depois deste filme, eu vou querer continuar a estar perto dos krahô, com a Renée, e só me vai interessar filmar quando for possível um encontro entre o nosso quotidiano e os modos de fazer cinema... mas o cinema não tem que ser mais importante do que tudo o resto". Cláudia Arsénio
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