João Salaviza e Renée Nader Messora falam do novo filme sabado.pt/gps/palco-plateia/cinema/detalhe/joao-salaviza-e-renee-nader-messora-falam-do-novo-filme
Cinema
Entrevista à dupla de realizadores sobre Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, filme rodado a dois, sem equipa técnica, durante nove meses, em terras indígenas do Norte do Brasil e que é uma ficção sobre a realidade dos índios krahô
Disseram-lhes que não era possível duas pessoas sozinhas fazerem um filme no mato e que não era possível filmar em 16 mm, estando a milhares de quilómetros do laboratório de São Paulo onde a película seria tratada. "Afinal, o que nos diziam ser impossível, não só se revelou viável como tornou tudo muito mais rico, mais próximo da realidade", explica João Salaviza, sentado num dos sofás do Cinema São Jorge, em Lisboa, sobre Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, estreado a 14 de março, depois de ter passado por mais 50 festivais internacionais, incluindo Cannes, onde recebeu o prémio especial do júri Un Certain Regard. O filme conta a história de Ihjãc, um jovem indígena krahô que sofre com pesadelos desde que perdeu o pai, cujo espírito certo dia o visita. Ihjãc tem de organizar um ritual fúnebre que ponha fim ao luto e permita ao espírito do pai viajar para a aldeia dos mortos. Em vez disso, acossado pelos maus sonhos e receando transformar-se num xamã, Ihjãc foge para a cidade mais próxima. 1/4
ver vídeo Sentada ao lado de João Salaviza está Renée Nader Messora, a cineasta brasileira que correalizou Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos e que já tinha sido assistente de realização na longa de estreia dele, Montanha (2015), antes de partilharem não só uma outra ideia de cinema expressa neste filme passado numa aldeia de índios krahô (a aldeia da Pedra Branca), no Norte do Brasil, como também um ideal de vida a dois – ou a três, sendo pais de uma bebé. "O ponto de partida foi a história real de um menino com a mesma idade do Ihjãc [o protagonista], que começou a sentir-se fraco e acreditava que iria morrer se ficasse na aldeia, porque estava sob efeito de um feitiço", aponta Renée, que já desde 2009 passava temporadas com os krahô, usando som e vídeo como "ferramenta de registo de um povo e de tradições que se estão perdendo".
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O que levou Salaviza a deixar para trás a malha urbana e os miúdos de Lisboa que filmou em Montanha e nas premiadas curtas Arena (2009), Rafa (2012) ou Cerro Negro (2012), para fazer uma longa-metragem entre indígenas, sem atores profissionais nem estrutura de produção (excluindo Vítor Aratanha, responsável de som e residente permanente na aldeia)? "Aconteceram várias coisas ao mesmo tempo", responde Salaviza. "Por um lado, Montanha é um filme que surge no culminar de uma pesquisa e interesse temático e formal de uma relação com a cidade e a adolescência, ligado a uma angústia e solidão juvenil que andava a filmar desde a minha primeira curta. Do ponto de vista dos meios e dos modos de produção, havia uma estrutura que comecei a sentir cada vez mais como uma armadilha", responde. Por muito prazer que lhe desse mostrar os filmes numa sala de cinema e poder discutilos com o público, Salaviza sentia que tinha de haver outra forma de fazer filmes. "Quando tudo o que eu queria era ficar fechado no quarto a filmar os miúdos, a passar tempo, a tentar aproximar-me das relações de intimidade que se estavam a construir no filme, e fazer disso matéria de cinema, percebi que isso entrava em conflito com a estrutura de produção, que eu próprio propus." Então, outro caminho se impôs: "Eu e a Renée sempre fomos muito amigos, mas tudo mudou depois da rodagem [de Montanha]. Passámos a ser um casal e foi com a Renée que fui à aldeia pela primeira vez, sem o objetivo de filmar, apenas para limpar a cabeça e me afastar do processo de filmagens de Montanha e me preparar para essa outra odisseia que foi a pós-produção." Após três viagens, de entre dois e quatro meses, Salaviza e Renée voltaram para filmar. A rodagem durou nove meses, o tempo necessário para que se evidenciasse um desejo de cinema, "não num sentido artístico, mas no sentido das relações vitais e quotidianas que 3/4
iria permitir", diz, sublinhando: "Ao mesmo tempo estava a tentar perceber como é que quero viver a vida daqui para a frente, com ou sem cinema."
O argumento adapta uma história real e os intérpretes, não atores, fazem deles mesmos. No entanto, estão a representar. "Não há aqui uma lógica convencional de tentar fazer um filme que depois se tenta enfiar na vida de uma aldeia, mas precisamente o contrário", refere Salaviza. Houve, inclusive, uma espécie de casting, como explica Renée: "Tínhamos um menino na cabeça, mas ele não queria saber. Ao mesmo tempo o Ihjãc ia aproximando-se de nós, até que começámos a olhar para ele como hipótese." Fique claro, porém, que este não é um filme sobre os índios krahô - não é um documentário nem habita na interseção da ficção com o real, território que o cinema português tem sabido tratar (em As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, ou A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho, por exemplo). "Também não é ficção pura, é outra coisa", assume Salaviza. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos tem a linguagem e os códigos do cinema do autor - e, nisso, não se afasta muito da sua obra. O que é diferente é o resultado: "É um encontro entre os meus desejos de cinema, e os da Renée, e um outro mundo que filmámos", resume o realizador.
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