O Império Melancólico de Ivo M. Ferreira [PT]

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CULTO ENTREVISTA

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O IMPERl,O MELANCOLICO DE IVO M. FERRE IRA '

cabo sempre por voltar à minha chegada a Macau em 1994, às primeiras imagens e sensações, que foram tão fortes que me ficaram para sempre." A região faz parte ela matriz ele Ivo M. Ferreira e é a ela que o realizador volta em Hotelfmpério, a sua quarta longa-metragem e sucessora ele Cartas ela Guerra, ele 2016 - uma história ele amor e um retrato ela Guerra Colonial, que nasce entre as linhas ela correspondência além-mar ele António Lobo Antunes e ela mulher. O novo filme estreou no fim elo ano pa sacio no Festival Pingyao Crouching Tiger Hiclclen Dragon. Em maio, chega à terra-natal cio criador e estreia-se no lnclie-Lisboa. A Macau cio Hotel Império é, em simultâneo, a Macau ele hoje, a Macau que Ivo encontrou quando lá chegou há 25 anos e é tantas outras que ainda poderão existir. É, enfim, "uma coleção" de problemas, ambiência , nostalgias sem época. "Quis perder a noção cio tempo, para reivindicar um aspeto que é muito comum aos meus filmes, que é tratar sempre deste império melancólico português", conta-nos Ivo. m império ele que Maria, protagonizada por Margarida Vila- ova (que logo ao início ouvimos cantar, em traje ele fadista, sobre desamor e esperança), é a maior herdeira. Com o pai 1

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veU10 e débil, o farelo ele manter um hotel em decadência cai sobre os seus ombros. Vemos a erosão ela cidade e elas suas gentes associada à e peculação imobiliária e à proliferação cios casinos, o jogo e a prostituição como novos traços identitários ela região e personag ns em negação, prisioneiras ele um tempo e ele wn espaço longú1quos - quiçá incapazes ele um adeus clefLnitivo a uma Macau que não é a mesma desde 1999, data em que se deu a transferência ela soberania ele Portugal para a China. "A estas per onagens, custa-Uies o facto ele ter acabado wna época áurea. 1ós temos aquela tendência para algum saudosismo acerca de tempos e sítios da nossa vicia pessoal. Mas muito mais cio que os sítios, às vezes omos nós que acabamos por mudar." faria aparece-nos, no início cio filme, como uma das últimas re istentes, disposta a quase tudo para não deixar o hotel (ou a vontade cio pai) cair. Mas a mulher que vemos nos segundos finais ela trama é outra. "Qual?", perguntamos. É uma Maria livre elas correntes do passado ou uma Maria vergada pelo sistema que não poupa a arraia-miúda? "Então e o que é que tu achas?", devolve-nos Ivo, num esboço ele sorriso. "Tu podes decidir o que queres para ela. Se ela fica, se ela parte. Mas Macau é e vai continuar a ser assim: são muitos os que chegam, muitos o que partem." (E não o é só na grande tela ou no imaginário ele Ivo - no ano 2018, a região registou menos ele 650 mil habitantes e mais de 35,8 miLilões ele turistas.) Pelo meio, o tempo continua.

E La não é a primeira vez que assistimos à dupla Ferreira-Vila-Nova no grande ecrã (e, este ano, no pequeno também). Margarida, com quem o realizador esteve casado clw'anLe mais de 10 anos, está gravada N a Escama elo Dragão, nas Cartas ela Guena, no Equinócio, no Sul. Mas, no Hotel Império, não é só protagonista, é a razão ela narrativa. "Este filme, em específico, foi muito feito para a Margarida. Para Macau, mas para ela também. Houve uma altura em que ela disse que, se calhar, não voltaria a ser atriz, que até ia tirar um curso ele educadora ele infância. E achei que era giro fazer wn filme lá e pô-la a representar em chinês." Foi desafiante, mas não foi impossível. Margarida teve aulas, foi acompanhada por um coach e, no final, acabou a dobrar e corrigir apenas duas pequenas falas, revela Ivo. "Ela é uma ótima atriz."

A sul da sombra

"Tu não eras assim, a não acreditar em nada." "Mas eu acredito. Acredito na dieta mediterrânica, acredito nos sinais ela estrada, acredito na luz elétrica, em coisa assim." O cético é o protagonista Humberto. E é à citação dele que Ivo recorre para no mostrar que a série Sul, que realizou e com estreia em Setembro na RTPl, não é um policial qualquer. "Não é protagonizado por um grande herói. É um policial melancólico", explica. Rimo-nos. Estamos ele volta ao império melancólico. "Mas, ele ta vez, a culpa não foi minha", rebate. O argumento, escrito por Edgar Medina e Guilherme Mendonça, já vinha talhado assim.



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atores maravilhosos neste pequeno país", atira. E, nesse leque, há atores conhecidos da televisão, outros que vêm ele grupos de teatro, do orte, do Sul, com "contextos ·e energias diferentes."

"O

CINEMA

TEM UM FILTRO MUITO SIMPLES: É UMA Um admirável mundo novo 'INTERPRETAÇÃO Um filme ele 450 minutos. É assim que Ivo DE UMA IDEIA, olha para Sul. Diz entender (e aceitar) as diferenças que existem no desenrolar ela NÃO TEM QUE

No entanto, não deixa de admitir que o protagonista entra na categoria ele personagens que lhe interessam - gente descontente, que viveu a revolução e que se entristeceu com o rumo que as coisas tomaram. A trama é aparentemente simples: Humberto, um inspetor da Polícia Judiciária, "niilista e socialmente incapaz" (a quem Adriano Luz empresta as feições), investiga o aparecimento cio cadáver de urna mulher num cais, com Lisboa e a (ainda quente) crise financeira corno pano ele fundo. O policial noir de 10 episódios está em fase de pós-produção. "Quando sair daqui vou a correr para fechar a cor do terceiro ou do quarto episódio", avisara-nos Ivo logo no Ínício da conversa. Um par de polícias, um pastor evangélico, uma desempregada e um marginal. São estas as figuras a que somos apresentados no primeiro episódio ele 45 minutos. Não serão as únicas. Do pequeno ladrão aos grandes banqueiro , há um espectro imenso ele personagens - são 120 os atores que participam na série - , inspiradas em, estereótipos sociais e bem portugueses. Mas nenhuma personagem se resume a uma conotação moral - "Detesto a narrativa cios pobrezinhos, cios maus e dos bons", confessa Ivo - , e nenhuma é somente o estereótipo em que se inspira. Todas têm uma dimensão psicológica e humana forte, garante o realizador. "Constróis uma personagem com alicerces num arquétipo, mas não o segues. Tiras-lhe umas deficiências, acrescentas-lhes outras. Trais os preconceitos que temos. Porque o estereótipo não tem grande utilidade, iliba-no apenas ele pensar na viela, no mundo, nas pessoas." Ivo Canelas, Margarida Vila- 1ova, Afonso Pimentel e Jani Zhao são alguns elos nomes de um elenco que, admite, o deixa "muito orgulhoso". "Acho que temos 34 GQPORTUGAL.PT MAIO 2019

narrativa numa série. Mas nada lhe tira da cabeça que, quando está a filmar, está a filmar um filme. 1ão divide o pensamento em episódios nem o encolhe para servir ao pequeno ecrã. "Lembro-me ele quando a minha mãe comprou wna televisão. Vfamos à segunda-feira um bocadinho. Mas eu nunca fui muito aficionado." 1em hoje o é. "A televisão tem um problema: quer imitar a realidade, quer reportar à realidade. Mas, às vezes, já nem sei se é a viela que e faz como a novela em vez de a novela se fazer como a viela. E o cinema tem um filtro muito simples: é uma interpretação ele uma ideia, não tem de ter nada a ver com a realidade, não é para isso que serve." Talvez seja esse wn cios motivos pelos quais Ivo não tem televisão em casa. Um projetor faz a vez da caL a mágica e há sempre um computador por perto, para ver o telejornal ou outro conteúdo especffico. Por isso, não nos surpreende quando admite não ter grandes referências ao nível ele séries televisivas, confessa. Mas nem por isso está a leste do mundo. Conta-nos que viu Narcos e que achou interessante como "com algw11 sucesso, se retratou Pablo Escobar", como se pegou "numa personagem que é detestável, que é um assassino, que é um traficante ele droga e se pôs as pessoas a torcerem por ele".

TER VER

NADA QUE COM A

REALIDADE� NÃO É PARA ISSO QUE

SERVE"

leste momento, adianta, até está co1 dois trabalhos biográfico em mãos. o parente distante cio cinema já não lh mete medo: "É muito difícil pegar na vid das pessoas. Se queremos contar tucl1 acabamos a não contar nada. E, a ess nível, a estrutura ele série, pela sua exte1 são, funciona bem."

Fascínio pela falha

Ainda não tinha saído cio Hotel Império e j a semente de urna nova longa germinav; Projecto Global é o seu nome. O título poc ser recente, mas a ideia já tem mais qL idade para ter barbas. "Talvez tenha sid

V O N T A D E DE FUGIR PARA SUL

"Eras mesmo capaz de ir para sul?", pergunta Alice a Humberto. A questão chega-nos logo no início do primeiro episódio, depois de Alice contar ter visto uma reportagem sobre um americano que largou tudo e foi viver para o meio do nada. "Desde miúdo, quando estás chateado com algo pensas 'Eu quero é fugir daqui, é desta que nunca mais ninguém me vê " ' , explica Ivo M. Ferreira. "A ideia de Sul está muito ligada a isso, à ideia romântica de deixar tudo para trás e ir para o calor." A maioria de nós não o conseguiria fazer. Na série, Humberto, responde sem aparentes dúvidas: "Claro que sim."


esquerda, Hotel mpério, a quarta longa-

metragem de Ivo M. =erreira. À direita, a série ,ui, do mesmo realizador ! com argumento de :dgar Medina e Guilherme Aendonça.

a minha primeira ideia para um rume, em criança. Porque assisti a algumas pessoas a serem presas e a saú·em da prisão e fiquei muito curioso sobre a razão que as LinJ,a levado até lá." O tema? As Forças Populares 25 de Abril (FP-25), urna organização armada clandestina de extrema-esquerda, que esteve em atividade entre os anos 80 e 86, geralmenLe esquecida pelos manuais escolares. Há dois anos que a investigação se alonga, com a colaboração do historiador Francisco Bairrão Ruivo. Em princípio, este verão, o füme fica escrito. Ânüno não falLa. "São histórias menos contadas e eu esLou com muita vontade de as contar. Este é um projeLo que me é muito querido e no qual andavam a par a minha vontade fílmica e a minha vontade de perceber o que se tinha passado com estas pessoas." ideia não é l'azer uma cronologia ou w11 retrato das maiores personalidades das FP-25. É, sim, contar a história de urna série ele pessoas que estavam desconLentes com o sistema político. Com uma trama de amor pelo meio. "Acho que é uma história fascinante, até pelas personagens que vivem na clandestinidade e que decidem viver uma outra vida para, bem ou mal e estando ou não ele acordo com os procedimentos, tentarem construir um mundo melhor." Mais uma vez, Ivo propõe-se mergulhar numa memória da História portuguesa a partir do espaço íntimo das personagens e, inevita velmente, a partir ela sua própria intimidade. J á nas Carta.s da Guerra, o ponto ele partida cio realizador fora ouvir a mulher, Margarida Vila-Nova, a ler ao bebé por nascer uma elas cartas ele amor que António Lobo Antunes escrevera a partir ele Angola. Desta senda, temos as memórias cio menino ele Ivo a atiçarem-lhe a curiosidade e a paixão aduJLa pelas falhas humanas a agarrá-lo ao projeto que, segundo o mesmo, ainda levará pelo menos um par de anos até chegar às salas. Ternos tempo. Ainda nem fizemos check-out do hotel. •

UMA SÉRIE NEGRA NUM PAÍS SOALHEIRO

A série Sul "nasce com uma grande paixão pelo noir" aliada à vontade de se fazer "um 'filme' português e lisboeta" - "Porque isso não tem nada de negativo. Lisboa é uma cidade super sexy para se filmar", assegura o realizador. "A grande questão que se pôs foi: como é que poderia sernoire soalheiro ? " Descobriram, pouco depois, que o que procuravam já tinha sido apelidado "noir mediterrânico", género com cores mais quentes e que recorre ao sol para a criação de contraste. A.11da asslffi, a amb:ênc,a inicialmente desejada sofreu alterações, confidencia entre risos. "Queríamos usar o calor ce agosm em Lisboa '.1as quando começámos a filmar, estava um frio de morte. E eu disse ao produtor: 'Ó Ec;gar, a r..a!:a \-Z: 5 a r a ;:mtar, a fingir que está a suar. Não vai dar."' Abafou-se a coisa à r,esma, mas não literalmem:e Err.:S.::er-=--. -os ·..,m País abafado pela crise, pela troika, por banqueiros". MAIO 2019 GQOQRTUGALPT 35


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