Um cineasta entre dois continentes expresso.pt/cultura/2019-05-05-Um-cineasta-entre-dois-continentes
Jorge Leitão Ramos Há mais de vinte anos que vive entre Macau e Lisboa, entre a Ásia e a Europa, mas ainda teve tempo para ir até África, de onde nos trouxe, em 2016, o filme que melhor o notabilizou — esse “Cartas da Guerra” que Ivo M. Ferreira foi buscar às cartas de Lobo Antunes e que Sandro Aguilar montou de forma perfeita. Agora está de volta com “Hotel Império”, realizado em Macau, que o IndieLisboa apresentou ontem e que já na próxima quinta-feira estreia nas salas portuguesas, e também com “Sul”, uma série para a RTP de que o Indie vai desvelar os dois primeiros episódios na reta final do festival (sexta, Culturgest, 21h30) e que chegará aos pequenos ecrãs lá para setembro. Macau não é lugar de que o cinema português se tenha abeirado muito, menos ainda na perspetiva que Ivo M. Ferreira enceta, em tom que o próprio realizador caracteriza de “fim do Império, pessoas que não acreditam que há um ciclo que acabou”: um pai decadente que vegeta num velho hotel decrépito de que é proprietário e que a filha tenta aguentar contra toda a 1/3
razoabilidade, resistindo ao ímpeto de uma especulação imobiliária muito pressionante. Ela é, ao mesmo tempo vítima, e “cúmplice da situação. Mas não consegue sair dali, por alguma razão está amarrada ao pai, àquele lugar. Foi um dos temas que quis tratar, por que razão estamos adormecidos na nossa vida, por que razão não conseguimos tomar conta dela”. O realizador partiu das suas próprias experiências. “Peguei um bocado nas minhas memórias, de quando cheguei a Macau em 1994, peguei em histórias que li sobre Macau nos anos 60 e fiz um filme com qualquer coisa de intemporal, embora tenha a ver com algo de muito atual, a destruição da paisagem urbana. A ideia de que os portugueses se foram embora e os chineses estragaram aquilo tudo é uma narrativa absurda, porque foi durante a Administração chinesa que se repararam edifícios, que se repôs a calçada à portuguesa. A destruição do centro da cidade, do porto interior e de outros sítios icónicos da cidade ocorreu sobretudo durante o domínio de Portugal e ocorre desde os anos 50. O que está a acontecer agora é uma continuidade do que se passou antes, evidentemente com muito mais dinheiro, com muito mais jogo”. Convém lembrar a dimensão do negócio do jogo em Macau que supera largamente o jogo em Las Vegas (“oito ou nove vezes mais, o que é algo de incrível para uma cidade com aquele tamanho”). E o mais surpreendente é que, contrariando a ideia feita de que o grande volume de dinheiro do jogo vem das slot machines, “em Macau, 60 a 70% do jogo declarado vem dos high rollers, dos grandes apostadores em salas fechadas, fora dos olhares do público”. O filme não fala de jogo, mas de salas fechadas fala bastante. “Fala do que se vê e do que está atrás das paredes, das portas dos quartos, de sítios que nós não percebemos. Em Macau há sempre essa ideia de coisas que escapam à nossa compreensão, a língua, a cultura, tudo. O que eu quis no filme não foi descobrir ou desnudar Macau, mas voltar à ideia inicial da minha chegada e abrir algumas portas e algumas janelas e ver o que está lá. É uma Macau inventada por mim” — porque o filme é uma ficção e, numa ficção, o realizador faz o que quiser — “mas é, também, uma Macau que existe”. É um mundo de tráficos, de negócios obscuros, um mundo onde se pisa toda a gente para se erguer mais um edifício gigantesco no meio de um bairro tradicional, “mas é uma realidade que também ocorre aqui, em Portugal, desde sempre que ouço histórias de edifícios a que foi largado fogo para se construir algo em seu lugar, é quase um clássico”. “Hotel Império” é uma verdadeira coprodução, foi feito com dinheiro e apoios públicos e privados de Portugal, da China e de Macau, atores dos dois continentes, equipa mista também. No elenco, confessa Ferreira, o mais complicado foi conseguir que atores baseados em Hong Kong — incomensuravelmente mais caros que em Portugal — aceitassem trabalhar pelos preços a que a produção podia chegar. E também não foi fácil encontrar um ator que sendo chinês “não tivesse feições muito carregadas” para permitir ser credível enquanto filho de português. A escolha acabou por cair em Rhydian Vaughan, euro-asiático nado no País de Gales mas trabalhando muito nas cinematografias chinesas. Como homem que fez pontes entre Macau e instâncias da China e de Hong Kong, o realizador confessa-se muito grato a Norman Wang, parceiro usual de Wong Kar-Wai, que lhe abriu muitas portas e se tornou produtor associado de “Hotel Império”. O filme vai ser distribuído na China, mas o cineasta não sabe de
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que forma. E lembra que, na China há mercado para muita coisa — incluindo cinema português. Ivo lembra-se de, há mais de dez anos, ver cópias piratas em DVD de filmes de Pedro Costa ou de João César Monteiro à venda naquele país. “Sul” é de outra natureza. “É uma ideia de Edgar Medina [também coargumentista de “Hotel Império”] que pretendeu fazer um policial negro mas profundamente lisboeta — há quem lhe chame um Med noir. Ele desenvolveu a ideia com Guilherme Mendonça, e mais tarde com Rui Cardoso Martins e foi com grande prazer que aceitei entrar no projeto que sinto muito como sendo também sendo meu. A partir do momento em que comecei a trabalhar nos argumentos e na escolha dos atores e dos décors, apropriei-me do filme e, curiosamente, com muito mais liberdade. Às vezes, num projeto que é nosso desde o princípio, a pessoa escreve uma cena, anda com ela tanto tempo e acha-a tão importante que, depois, não tem discernimento para a descartar, para dizer ‘está bem, isto era muito giro, mas, neste décor e com este ator, não está a funcionar’ — e mudar tudo e, com isso, ganhar um novo entusiasmo”. Lembro que é a primeira vez que Ivo M. Ferreira faz televisão, mas logo ele atalha: “Eu não fiz televisão, eu fiz um filme enorme — com 450 minutos. Sempre foi assim que o pensei. É claro que é diferente, não se pode pôr uma carta no bolso de um personagem aqui e esperar que, três semanas depois, alguém tire a carta de lá. As métricas são diferentes”. Mas tudo é cinema? Com dois episódios visionados, “Sul” parece muito sólido, a fazer jus a uma nova fase de ficção na RTP de que “Sara” e “3 Mulheres” foram exemplo. Mas Ivo M. Ferreira já está com outro trabalho em maturação. Chama-se “Projeto Global”, é um filme sobre as FP-25 e há que desejar-lhe muita sorte e tino. Com um tema desses, bem precisa.
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