Ivo M. Ferreira: "somos um pouco ingratos com Macau" c7nema.net/entrevista/item/50928-ivo-m-ferreira-somos-um-pouco-ingratos-com-macau.html Jorge Pereira
Depois de Cartas da Guerra, Ivo M. Ferreira visita Macau neste Hotel Império, uma obra visualmente cuidada e primorosa onde a questão da identidade tem um papel central. Conhecedor de Macau, Ivo Ferreira - que tem um passaporte e nome chinês - faz uma viagem sentida que o próprio admite sintetizar a sua ligação e observação do território ao longo de duas décadas. Estivemos à conversa com o cineasta, que nos deu alguns detalhes sobre o projeto que se encontra atualmente nas salas nacionais. Como nasceu este Hotel Império? Qual foi a sua génese? Existe um lado quase de síntese de uma experiência de passar por Macau ao longo de vinte anos. Há um lado que procurou as primeiras impressões, as primeiras curiosidades, as coisas que não percebemos, que estão atrás das janelas, paredes, nas quais temos sempre a sensação que alguma coisa se passa. Por outro lado, esta é também uma síntese dos meus primeiros filmes que fiz por lá. Foi lá que fiz o meu primeiro filme, o Homem da Bicicleta. (...) o projeto veio numa altura em que estamos com as Cartas da Guerra financiadas pelo ICA, com interesses de coprodução 1/4
internacional. Mas depois vem o governo, a ministra e não há nada. Na altura, a minha esposa, a Margarida [Vila-Nova] estava bastante desiludida com o que se passava na sua vida de atriz. Sempre me fascinou a ideia da dupla vida. Quando estou em Macau rapidamente penso em filmar, quase como se pudesse ter dois nomes. Eu tenho nome oficial chinês [Ivo mostranos o seu passaporte]. Nesse sentido, é quase como experimentar uma outra vida, muito ligada ao noir, a filmes dos anos 70 asiáticos. É daí que vem esta ideia, destas memórias de quando cheguei. Para além disso,o filme também é de alguma maneira distópico, pois podem surgir coisas que li nos anos 60 e 70. Recortes de jornais, etc. O Hotel Império é a síntese disso tudo. Por outro lado, e trabalhando, acho que somos um pouco ingratos com Macau.
Ingratos? Em que sentido? Que as observações que se fazem são muito "clichéticas". E eu queria usar o cliché para o subverter. O nome inicial do filme era Cliché, mas mais tarde fui ao festival de Xangai e disseram que a tradução para chinês era [Ivo diz uma palavra impossível para nós decifrar]. Apesar de muito enraizado em Macau, esta é uma história universal, de alguém pressionado a sair da sua "casa". Podia até ser agora no Bairro Alto. Sim e até antes. Nos anos 90 arderam os edifícios ao pé do Mahjong. Sim, podemos ver nesse nível. Há questões que têm a ver com a identidade de Macau, mas como dizes, podia facilmente ser adaptado a qualquer lado. Aborda a destruição do espaço urbano. Por um lado, o que tem graça - salve seja - é o facto de haver essa erosão [urbana] muito 2/4
rápida e muito clara que agrupa pessoas e ideias na questão identitária. Se essa [erosão] fosse mais leve, a [afetação de pessoas e ideias] não chegava a acontecer. Uma das coisas que reparei é que filma muitas vezes as suas personagens em Macau através de corredores, janelas, etc. Como se Macau fosse algo próximo, mas igualmente distante? É precisamente essa ideia. De entrar nesse mundo. Quis trabalhar o lado labiríntico, tanto com os movimentos da câmara como com o próprio hotel e com as ruas de Macau. Como se nesse percurso tentasse entrar em algumas portas que habitualmente estão fechadas. E queria que esse percurso fosse sentido também. Daí vem aquilo que falas do [trabalho de] câmara. Como é que foi a escolha dos atores, particularmente do Rhydian Vaughan? A [escolha] da Margarida foi fácil. Ela era atriz, era a minha companheira e estava quase a querer desistir de ser atriz na época e ir para educadora de infância, ou assim. Por isso, a escolha foi fácil. E foi um filme também um bocadinho escrito para ela. O Rhydian Vaughan foi complicado até o conhecer. Houve um casting? Houve. Uma estrela de Hong Kong ganha mais ou menos o mesmo que o orçamento de um filme inteiro, mas a minha ideia era procurar atores de cinema fantástico e independente. Vi muito bons, mas não podiam ter traços chineses muito marcados, para o pai deles [no filme] poder ser português. Foi o Norman Wang - que é o braço direito do Wong Kar-Wai e é selecionador/consultor de Berlim, Pusan e Xangai - que um dia me falou dele. Olha, este é o Rhydian, que se casou. Como tem sido a reacção ao filme? Tem sido muito boa, mas foi particularmente comovente em Macau. Quando se fala de Macau existe uma tendência de dizer sobre os filmes que são sobre Macau. Cada um tem a sua Macau e por isso eu estava muito cauteloso. Esta é a minha Macau. Protegi-me logo nesse aspeto, mas curiosamente as reacções foram excecionais, particularmente na elite intelectual. (...) Esta história é sempre verdadeira. Podia ser nos anos 60, 70. O facto de ter este lado distópico e de ser credível em vários tempos torna o filme ainda mais sobre nós e sobre Macau. Por tal, foi bastante especial. Fiquei francamente feliz com a sessão que foi no festival.
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Tivemos mesmo que mudar de local, pois inicialmente e sessão teria quatrocentos e tal lugares e acabou nas oitocentas pessoas. Para mim era muito importante entregar o filme a Macau.
A cinematografia, como trabalhou, especialmente as cenas à noite? É um lado que eu gosto muito, captar aqueles neons, que têm comprimentos de onda muito específicos. A própria humidade e uma espécie de sensação que está tudo meio "colado", embora o ambiente não seja de calor. Por outro lado, quis trabalhar a questão do labirinto. O que se trabalhou com a Susana Gomes [Diretora de Fotografia], e como não podemos lutar contra a cidade, pois esta tem luz pública muito específica, que eu não gosto muito de alguns tons de amarelo, foi usar a mesma luz para depois retirar no pós-produção. Ou seja, retirar o que não gostavamos e manter aquilo que gostamos. Para além da série Sul, tem novos projetos? O próximo chama-se Projeto Global, é um filme sobre as FP-25.
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