O polo português aponta de novo a Locarno Que atração distinta é esta entre o nosso cinema e o festival suíço? Foi o que perguntámos à diretora Lili Hinstin. Locarno selecionou este ano os novos filmes de Pedro Costa, João Nicolau, Basil da Cunha e José Filipe Costa. Os três primeiros — cifra jamais vista! — estão na competição pelo Leopardo de Ouro. Começa a 7 de agosto
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TEXTO FRANCISCO FERREIRA
a passada quarta-feira, Locarno anunciou que “Vitalina Varela”, de Pedro Costa, “Technoboss”, de João Nicolau, e “O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha, vão competir pelo Leopardo de Ouro da 72ª edição do festival suíço. É uma abundância jamais registada pelo cinema português na secção máxima deste ou de qualquer outro grande festival internacional. O filme de Basil, lusodescendente nascido na Suíça,
é ‘tecnicamente’ helvético, mas teve produção executiva contratada em Portugal (Terratreme), foi rodado na Reboleira, Amadora, onde o cineasta trabalha há uma década, com atores e técnicos portugueses, e não há — esclarecido o assunto — motivo para não o incluirmos aqui. Além destes, “Prazer, Camaradas!”, novo documentário de José Filipe Costa (autor de “Linha Vermelha”, 2012), será exibido fora de concurso. São excelentes notícias para o cinema português, que não tem dentro de portas a audiência que merece — e este facto é um paradoxo: a sua repercussão e reconhecimento internacionais, acentuados nesta última década, são extraordinários. Não disse um dia César Monteiro de Manoel de Oliveira que o país “era demasiado pequeno para ele”?
Lili Hinstin, diretora de Locarno
“Já não me lembro quem do meu comité o assinalou”, contou-nos a francesa Lili Hinstin, nova diretora de Locarno, “certo é que nos divertimos a pensar na ideia de que o cinema português tem o melhor ratio de qualidade do mundo face à quantidade de filmes que produz. É um país com uma cinematografia
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riquíssima apesar das dificuldades de financiamento que enfrenta, mas o que é financiado é excecional se comprado com outros países europeus muito mais ricos.” Hinstin ocupou-se ao longo de seis anos do Festival de Belfort, substituindo agora Carlo Chatrian (que rumou à Berlinale) na direção do festival suíço. “Com estranheza, pois este tem sido um território fértil para Locarno, não selecionámos este ano qualquer curta portuguesa mas estamos bem servidos de longas. É curioso: quando penso no cinema português, noto que os cineastas reconhecidos do país — e isto vem do tempo de Oliveira, Paulo Rocha ou César Monteiro —, ao contrário do que acontece em França ou Itália, são todos cineastas radicais, com uma voz única, incomparável,
RETO ALBERTALLI/AFP/GETTY IMAGES
Aspeto da Piazza Grande, em Locarno, durante o festival de cinema
Américo Silva e Miguel Lobo Antunes em “Technoboss”, de João Nicolau
mesmo entre eles próprios. Este ‘portuguesismo’ reivindica uma liberdade que Locarno procura. Mas também uma grande diversidade: os filmes portugueses que vamos mostrar este ano não poderiam ser mais diferentes uns dos outros.”
“VITALINA VARELA”, DE PEDRO COSTA
“No Quarto da Vanda” entrou no concurso de Locarno em 2000, “Cavalo Dinheiro” em 2014, e foi neste último que conhecemos Vitalina Varela. O novo filme de Pedro Costa centra-se, diz a sinopse, nesta mulher “cabo-verdiana, de 55 anos, que chega a Portugal três dias depois do funeral do marido. Há mais de 25 anos que Vitalina estava à espera do seu bilhete de avião”. Em 2014, Pedro Costa contou em entrevista que Vitalina “vem de sonhos e de projetos antigos: filmar a chegada de uma mulher cabo-verdiana a Lisboa que vem ver o marido. Imaginar a sua primeira noite na cidade, sem ele. Sempre me comoveu esta história de um tipo que passa anos e anos de sacrifício e perdição para juntar dinheiro para trazer a família sem o conseguir. Comecei a trabalhar com a Vitalina pouco tempo depois da sua própria chegada a Lisboa, pouco tempo depois da morte do marido dela, que se chamava Joaquim”. E disse mais: “Vitalina não é um fantasma. É uma mulher (...) que ainda não conseguiu obter uma autorização de residência neste país hipócrita e ingrato (…). A Vitalina são todas as mulheres que estão ou estiveram naquela situação. Que ficaram para trás, que ficaram esquecidas, que ficaram à espera. Todas as mulheres que não chegaram a tempo (...). Alguém que nos vem falar de um tempo de vergonha e de promessas não cumpridas. Eu acho que a Vitalina é o tempo. É a carta. A juventude e o sonho dos jovens amantes separados. É a voz
Michael Spencer em “O Fim do Mundo”, de Basil da Cunha
de uma mulher fiel neste tempo de traição e morte.” Lili Hinstin, por seu lado, fala de “um filme extraordinário, com uma construção capaz de chegar ao realismo mais puro e direto e uma banda som que dá uma pulsação exultante a um universo completamente trágico. É um filme de uma beleza bruta, de cortar a respiração, com uma forma de abstração muito pura, menos mental que a de ‘Cavalo Dinheiro’, e que desta vez me fez pensar muito numa relação com o cinema de Fritz Lang.”
“TECHNOBOSS”, DE JOÃO NICOLAU
A terceira longa de João Nicolau traz-nos Luís Rovisco, “sexagenário divorciado, que espera em breve cessar as suas funções de diretor comercial da empresa (...). Espera sentado, a maior parte das vezes ao volante e a cantar sobre o que lhe vai passando à frente (…). É senhor de uma bagagem que lhe permite escapar de forma sempre airosa às armadilhas que a tecnologia, os colegas e um misterioso
patrão ausente parecem semear-lhe pelo caminho.” O protagonista é Miguel Lobo Antunes, ex-diretor e programador cultural no CCB e na Culturgest e que, depois de se aposentar, aos 70 anos, descobre aqui uma improvável carreira de ator e um papel debutante. Entre outras coisas, canta. Contou Hinstin que aquela é uma “personagem maravilhosa que se sente inadequada ao mundo, pelo corpo e pelo espírito, porque não vive à mesma velocidade do tempo social. 'Technoboss' é o melhor filme de João Nicolau, uma espécie de fantasia muito romântica e, em simultâneo, com uma gravidade muito profunda que critica o contemporâneo e o progresso, mas jamais com saudosismo.”
interpretam. E aí encontramos “Spira, 18 anos. Após oito numa casa de correção, volta ao seu bairro, onde vivem a família e os amigos. Mas nem todos estão contentes com o seu regresso e um dos mais antigos traficantes de droga da zona faz-lhe compreender que ele não é benvindo, sob a ameaça dos bulldozers que vão destruindo um bairro condenado à demolição”, conta a nota de intenções. “Decidimos que não teríamos filmes suíços a concurso se eles não fossem bons”, acrescentou a diretora, “e felizmente surgiu ‘O Fim do Mundo’, que é tão português, e com um diálogo muito forte com o tempo em que vivemos”.
“O FIM DO MUNDO”, DE BASIL DA CUNHA
Em 1975, na pós-revolução do 25 de Abril, “Eduarda, João e Mick viajam da Europa do norte para trabalhar nas cooperativas das herdades ocupadas em Portugal. Como muitos outros, vêm ajudar nas atividades rurais e pecuárias, dar consultas médicas, aulas de planeamento familiar, mostrar filmes de educação sexual e participar nos bailes tradicionais (…).” Lili Hinstin, que adorou este novo documentário de José Filipe Costa, encontrou “um filme extremamente divertido, muito inteligente no seu dispositivo, em que o documentário assume com liberdade a forma do reenactment para explorar uma questão histórica. ‘Prazer, Camaradas!’ produz um curto-circuito temporal, pois leva pessoas que estão hoje na casa dos 60 anos a reinterpretar os tempos utópicos que viveram durante a juventude.” b
O cineasta luso-suíço dá seguimento a “Até Ver a Luz”, de 2013, com um novo filme de novo focado na Reboleira e em personagens ainda mais jovens, baseadas numa realidade que diz respeito aos atores que as
“PRAZER, CAMARADAS!”, DE JOSÉ FILIPE COSTA
72º FESTIVAL DE LOCARNO Vitalina Varela no filme homónimo de Pedro Costa
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Decorre de 7 a 17 de agosto www.pardo.ch