Entrevista com Catarina Wallenstein e Isabél Zuaa: a ferida aberta do colonialismo c7nema.net/entrevistas/item/87523-entrevista-com-catarina-wallenstein-e-isabel-zuaa-a-ferida-aberta-docolonialismo.html 3 de setembro de 2020
Realizado por Filipe Bragança e coproduzido pela lusitana O Som e a Fúria, o filme tem um enredo passado entre Portugal, o Brasil e Moçambique. A história começa na América do Sul, onde o cineasta Fernando (Higor Campagnaro) perambula com as suas questões existenciais assombrado por fantasmas do passado materializados nas heranças do avô e no bizarro artifício surrealista do “monstro amarelo” que dá nome ao filme. Em Moçambique entra em cena Catarina (Isabél Zuaa), narradora em “ off” da história, e o seu “bando” de vingativos “produtores” de pedras preciosas (interpretados por Lucília Raimundo e Matamba Joaquim) que arrastam Fernando para uma jornada em Lisboa. Na capital da antiga “metrópole”, ele envolve-se com Susana (Catarina Wallenstein), a rica herdeira de um comerciante de jóias.
Isabél Zuaa no Festival de Locarno
O périplo por esses três espaços permite a Filipe Bragança, dentro do seu gosto particular por um estilo alegórico, surrealista e frequentemente cómico, deambular pelo tema do colonialismo – um dos mais presentes da contemporaneidade. De uma certa 1/3
forma e, mesmo evitando esquematismos, o trio de protagonistas personaliza, aqui e ali, alguns aspetos simbólicos destes três países no que concerne a relações históricas entre Metrópole e ex-colónias. Neste sentido, Fernando assume algumas das características do Brasil contemporâneo – uma nação em profunda crise de identidade, assombrada por um passado com o qual não consegue lidar (o das diferentes misturas raciais, por exemplo) e conduzida rumo ao abismo pelo populismo messiânico. “As terras africanas foram extorquidas por países europeus que continuam ricos” Em terras africanas, Fernando conhece Catarina, líder de um pequeno grupo que não simpatiza particularmente com aquele rapaz branco caído por ali de “para-quedas”. Conforme analisa Isabél Zuaa, “o brasileiro interpretado pelo Higor não é sincero, ele mente até no seu próprio nome. Ele é branco e estrangeiro e as memórias da Catarina em relação a esse biótipo não são as mais positivas”, diz. A este ponto, ele serve como alavanca para levar o grupo até à “metrópole” (Lisboa) com um certo espírito de “cruzada” – carregando aquilo que sempre faltou aos europeus, as pedras preciosas. “As terras africanas sempre foram ricas em matériasprimas valiosas e extorquidas pelos vários países europeus que continuam ricos até hoje”, analisa a atriz angolana. Enquanto isso, o trio que Catarina lidera é constituído “personagens que vivem no Grande Hotel da Beira (Moçambique), em condições subhumanas e que procuram sobreviver nos reflexos de uma colonização, exploração e massacre sobre territórios e povos de forma violenta, sem moderação, sem constrangimento que deixaram marcas até hoje”.
Catarina Wallenstein 2/3
“É a Europa das transações comerciais, dos herdeiros e das tradições…” Já a relação de Fernando com Susana é menos marcada pela coação e evoca frequentemente padrões de sensualidade. Em algum ponto, também ela tem alguns traços do Portugal metropolitano. “De facto, se por um lado Fernando, o protagonista, faz um caminho como um Brasil sem linguagem e em crise de identidade, Susaninha, a minha personagem, seria mais a alegoria de um Portugal, de uma Velha Europa”, acredita Wallenstein. “É a Europa das transações comerciais, dos herdeiros e das tradições, apetrechada arranjada e composta, conservada na conveniente falta de memória que lhe permite, aparentemente inabalável, manter as relações sem conversar sobre os assuntos”, avalia. E que relação desenvolve ela com Fernando? “Susaninha, no seu romance com Fernando, fica fascinada pelo imaginário exótico e tropical com que a Europa sempre fantasiou. De alguma forma, é um fetiche obsoleto meio ridículo do viajante aventureiro buscador de riquezas que a atrai”. Portugal e o colonialismo: o peso da ditadura O debate sobre a questão colonial tem vindo a ganhar novo fôlego em Portugal, não sem encontrar resistência por parte dos conservadores. Para Catarina Wallenstein, Portugal ainda não sabe lidar com o seu passado colonial e as consequências dele: “Não vamos melhorar tirando o debate de cima da mesa. Acho que os conservadores tem medo desse debate porque ainda não se olhou de frente para outra herança: a do peso de uma ditadura que nos ensinou através do tempo que no medo e no silêncio se segue em frente”. A África e o colonialismo: feridas longe de estarem saradas Isabel Zuaá entende que o debate sempre existiu e, “ para muitos corpos, nunca houve o privilégio de não pensar sobre elas numa perspetiva crítica. Hoje em dia existem outros corpos, outras pessoas que têm pensado estas questões pela primeira vez, um privilégio”. No que concerne ao cinema, a atriz entende que este também “ é responsável pela imagética da história única que durante muito tempo se baseou em ‘factos históricos’ na perspetiva de quem os relatou, silenciando outras narrativas e estereotipando experiências”. Assim, “o filme como objeto artístico não tem pretensão de trazer soluções, mas levanta essas questões, colocando uma lupa em feridas que ainda estão longe de ser saradas”.
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