Dois filmes são melhores que um publico.pt/2021/08/13/culturaipsilon/entrevista/dois-filmes-sao-melhores-1973640 Jorge Mourinha
Cultura-Ípsilon Exclusivo Entrevista
Filme de circunstância para contornar o confinamento, variações despreocupadas sobre um tema: à sombra de Erice, Resnais e Hong Sang-soo, os Diários de Otsoga que Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes inventaram juntos com uma equipa de amigos e fiéis faz agora um ano chegam a sala.
“Este filme é como um parêntesis. Um instantâneo daquele tempo que vivemos. E agora vou mergulhar num outro filme, sobre o qual já estava a trabalhar mas que vou retomar, que por acaso também é sobre o tempo.” Estamos já no fim de quase uma hora de conversa quando Maureen Fazendeiro explica porque é que Diários de Otsoga não é “representativo” do seu cinema — duas curtas que circularam por festivais, Motu Maeva (2014) e Sol Negro (2019), e uma primeira longa, As Estações, à beira de iniciar rodagem. Imediatamente antes, tínhamos perguntado a Miguel Gomes, ponta-de-lança global do cinema que hoje se faz em Portugal, se a economia de meios deste filme rodado num mês num décor único com pequenos elenco e equipa de amigos poderia ser uma reacção à “desmesura” do seu filme anterior, o mui badalado tríptico das Mil e Uma Noites (2015). Ou, porque não, também dos dois projectos que tem neste momento em suspenso: Selvajaria, adaptação livre de Os Sertões de Euclides da Cunha (que implicou um longuíssimo trabalho de escrita de argumento e que se encontra em pausa devido ao conturbado momento da produção de cinema no Brasil), e Grand Tour, argumento original inspirado por uma viagem de “volta ao mundo” (interrompida quando a pandemia fechou as fronteiras).
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A resposta do realizador não é menos peremptória: “Isso tem a ver sobretudo com a ideia que ficou [nas pessoas] das Mil e Uma Noites, e [quanto aos outros] que é preciso aguardar por esses filmes para perceber que tipo de desmesura é que existe neles, se é que existe. É prematuro porque eles não existem. Mas os Diários de Otsoga não têm menos ambição do que as Mil e Uma Noites. São, apenas, outra coisa.” “Já não temos doze anos de idade, não é? Por isso não vamos entrar numa espécie de transe colectivo de felicidade hippie. O filme tem o seu lado leve, obviamente, e mesmo hedonista: tentar recuperar qualquer coisa da alegria de estarmos juntos, de filmar a natureza, de nos divertirmos também. Mas há qualquer coisa também, acho eu— ou pelo menos foi assim que o sentimos —, de triste” E que “outra coisa” são os Diários de Otsoga, que chegam às salas portuguesas no dia 19 depois de uma estreia publicitadíssima na Quinzena dos Realizadores de Cannes, do lançamento comercial em França no final de Julho e da ante-estreia no Curtas Vila do Conde (onde o casal falou ao Ípsilon)?
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Diários de Otsoga Realização: Maureen Fazendeiro, Miguel Gomes Actor(es): Crista Alfaiate, Carloto Cotta , João Nunes Monteiro São uma invenção espontânea de Maureen Fazendeiro (Paris, 1989) e Miguel Gomes (Lisboa, 1972), que desde 2015 partilham cinema e vida, e que são pais de uma menina nascida no final de 2020. São uma reacção aos primeiros tempos da pandemia: a “invenção de uma maneira de se poder fazer um filme numa altura em que quase não era possível fazer filmes,” nas palavras dela, uma “inversão dessa questão do distanciamento social, uma reconexão social” nas palavras dele. Um filme sobre o tempo, e sobre a relação com o tempo, que vai “das estrelas cadentes ao tempo dos mamutes”, rodado de 1 a 22 de Agosto mas narrado de 22 para 1 de Agosto. E assinado a meias porque “tínhamos de dar o exemplo, de partilhar a realização” de um filme feito em clausura num casarão de Sintra. Uma ficção “sobre a experiência de intimidade que é fazer um filme”, mas cujas cenas “reproduziam o que tinha acontecido ou tinham uma base em qualquer coisa que aconteceu ou que suspeitávamos que estava à beira de acontecer”. É tudo muito mais simples do que parece, acreditem.
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Como é fazer um filme a dois? Miguel Gomes — Basicamente é preciso negociar. Há uma cena em que se vê um confronto entre o realizador e a realizadora: ela quer adaptar um livro do Pavese e o realizador quer filmar um tractor. É uma questão de negociação, de estar disponível para aceitar as propostas do outro. Mas não acho que tenha sido muito difícil. Achámos que devíamos começar nós próprios por dar o exemplo e partilhar a realização. Não é um filme completamente meu, se calhar há ali coisas que eu não teria feito assim, imagino que a Maureen também não… Há uma vontade de tentar chegar ao encontro de duas sensibilidades que são diferentes, apesar de tudo. Em termos práticos, o que é que cada um trouxe ao outro? MG — Toda a arquitectura do filme é um bocadinho mais minimalista do que em filmes meus anteriores. Há muitas variações, rimas, cenas que se repetem, que eu acho que vem um bocadinho da Maureen. Ela apresentou-me os filmes do Hong Sang-soo, por exemplo. Maureen Fazendeiro — E o Hong Sang-soo foi importante para este filme, mesmo não sendo uma referência óbvia. Mas este filme foi mesmo colectivo, no sentido em que, como era baseado muito na improvisação, o mais importante era confiar em todos. Havia poucas cenas escritas, e as que havia foram escritas a partir de improvisação.
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Foto O filme, com a equipa e os realizadores a aparecer em frente à câmara, tem a ver com isso: é basicamente uma ficção sobre essa experiência de intimidade que é fazer um filme
Qual foi o ponto de partida? MF — O primeiro dia em que saímos de casa depois de dois, três meses de confinamento, para irmos jantar a casa da Crista Alfaiate, que é nossa amiga e que já tinha entrado nas Mil e Uma Noites. O namorado dela é o Rui Monteiro, que nunca trabalhou em cinema, e faz desenho de luz para teatro. Naquela noite, comentámos que era muito difícil para os artistas terem alguma visibilidade sobre o futuro, porque não havia apoios do governo, tanto as rodagens como as peças estava tudo cancelado. MG — Havia um concurso para a Netflix, não é? MF — E foi nessa noite que decidimos fazer um filme todos juntos, os quatro que ali estávamos. Para fazermos este filme, era preciso fecharmo-nos numa casa com uma equipa e actores protegidos da situação: inventar uma maneira de se poder fazer um filme numa altura em que quase não era possível, com aquilo que estava à nossa volta.
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Foto Diários de Otsoga sãouma invenção espontânea de Maureen Fazendeiro (Paris, 1989) e Miguel Gomes (Lisboa, 1972), que desde 2015 partilham cinema e vida, e que são pais de uma menina nascida no final de 2020. São uma reacção aos primeiros tempos da pandemia Anna Costa
MG — O que decidimos foi fazer uma espécie de “segundo confinamento”, mas com o que nos faltou no primeiro e que era basicamente estar com os outros. O filme, com a equipa e os realizadores a aparecer em frente à câmara, tem a ver com isso: é basicamente uma ficção sobre essa experiência de intimidade que é fazer um filme. Filmámos uma equipa de cinema a fazer um filme porque é isso que fazemos. Eu e a Maureen estamos a fazer personagens. Eu sou o realizador, ela é a realizadora, os outros são os técnicos, que por acaso têm as funções que de facto fazem durante o filme... mas isso era para obedecer honestamente à verdade daquilo que se estava a passar, sendo que era sempre uma ficção sobre aquilo que estava a acontecer enquanto fazemos o filme. Essa ideia de filmar uma equipa ao trabalho tem qualquer coisa de ético: mostrar o que se passa por trás da câmara e não apenas à frente. MF — Na verdade são dois filmes: a primeira parte, três pessoas [Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Marques] a construírem um borboletário, e a segunda, pessoas a fazer um filme. Mas ambas são a mesma coisa: pessoas a juntarem-se para fazer alguma coisa.
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Porquê um borboletário? MG — A Maureen propôs a dada altura e pareceu-me uma ideia muito bonita.
Foto Diários de Otsoga chega às salas portuguesas no dia 19 depois de uma estreia publicitadíssima na Quinzena dos Realizadores de Cannes, do lançamento comercial em França no final de Julho e da ante-estreia no Curtas Vila do Conde
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MF — Não foi muito pensado. Na primeira semana, ficámos sozinhos na casa com a Mariana [Ricardo, co-argumentista] à procura de elementos, a explorar a casa, que era muito grande, que tinha móveis e roupas de várias gerações de uma família grande. Tinha sido uma quinta de criação aviária, estava cheia de gaiolas, o que era estranho para um filme que tinha a ver com o confinamento. Sabíamos que queríamos filmar uma construção, e foi a ver essas gaiolas que veio a ideia do borboletário. E da mesma maneira dava um marcador de tempo: estudámos logo quanto tempo é que demora uma borboleta a nascer, encomendámos casulos e fizemos nascer as borboletas na rodagem. MG — Não pensámos assim quando estávamos a fazer o filme, mas quando estávamos a montar percebemos que as cenas são variações sobre o mesmo motivo: como é que as pessoas conseguem viver juntas umas com as outras, viver e trabalhar, como é que é o tempo de cada um, as vontades de cada um, e o tempo colectivo de todos, as vontades de todos.
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Como se estivessem a construir uma utopia comunitária? MG — Sim. E repara que naquela altura precisa começavam a aparecer muitos filmes… enfim, pessoas que pegavam no telemóvel e filmavam-se em casa. Certamente haverá algumas obras-primas nesse lote, não sei, mas para dizer a verdade a maior parte dos casos pareciam-me bastante aborrecidos. O nosso filme é quase uma reacção a essa maneira de pensar “como é que o cinema pode captar este momento”, mas tentando corrigir algumas coisas que nos estão a fazer falta, e por isso decidimos inventar um confinamento paralelo, alternativo, que vai de encontro àquilo que estás a dizer sobre a utopia.
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Mas há também uma certa auto-irrisão: é uma utopia de brincar, não há certeza que vá muito longe... MG — Já não temos doze anos de idade, não é? Por isso não vamos entrar numa espécie de transe colectivo de felicidade hippie. O filme tem o seu lado leve, obviamente, e mesmo hedonista: tentar recuperar qualquer coisa da alegria de estarmos juntos, de filmar a natureza, de nos divertirmos também. Mas há qualquer coisa também, acho eu— ou pelo menos foi assim que o sentimos —, de triste. Aquele plano da Crista a regar as flores logo ao princípio do filme é bonito, parece que ela está numa floresta imensa, no meio da natureza. Mas ao mesmo tempo sabemos que se abrirmos o plano ela está numa gaiola... Acho que existe uma tensão no filme entre esse lado de alegria, de uma possível comunhão de um confinamento alternativo, ali todos a inventar um filme, mas ao mesmo tempo estamos fechados.
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MF — Mesmo pouco, o mundo exterior está presente. Até porque está ausente — não escondemos que lá fora continua uma pandemia, e portanto sabemos que é uma bolha que não vai durar para sempre. Acho que estávamos a atravessar um momento muito pesado, e a resposta ao peso do momento era a leveza. MG — Embora também seja verdade que, apesar da reacção maioritária ao filme ter sido mais sentir a alegria daquela comunidade utópica ali fechada, também há outro tipo de reacções. Às tantas começámos a pensar que o filme estava a funcionar como um espelho de como cada um viveu o seu próprio confinamento. Já houve pessoas que nos disseram que o filme tinha uma tristeza e uma melancolia, e às vezes uma tensão. Na sua cronologia, o filme faz o momento da criação colectiva de um filme: uma série de pessoas que se juntam e começam a trabalhar sobre o projecto, e aquilo vai focando e escondendo o resto. Queríamos que o filme tivesse esse movimento, o importante era estarmos juntos com os outros.
Foto Anna Costa
No ecrã, a narrativa corre de trás para a frente, do dia 22 para o dia 1. No entanto, à medida que vamos avançando, percebemos que a história pode ser lida nas duas direcções, de trás para a frente como da frente para trás, sem alterar o resultado... (ambos) — Exactamente. É pensado? MF — É pensado, porque sabíamos desde o princípio que íamos filmar na ordem cronológica, do dia 1 ate ao dia 22, e montar ao contrário. Mesmo não tendo sido um filme feito com um argumento, houve uma estrutura e um movimento desenhado antes da entrada dos actores na casa, com a Mariana. Tínhamos um quadro — que vemos no filme — que tinha ideias de cenas e colunas, uma coluna por dia, e sempre que uma cena vinha integrar as colunas líamos sempre para a frente e para trás. Os dois filmes tinham sempre de existir, o da rodagem e o da montagem, o que vemos e o que o espectador vai recompor quando vê. Essa dimensão de exploração do tempo fez-me pensar no cinema do Victor Erice. MG — Há um marmelo, não é? 9/10
Para lá disso, no próprio trabalho sobre a imagem. MF — O Mário Castanheira tinha feito a imagem de uma das rodagens das Mil e Uma Noites, e eu gosto muito do trabalho nele nos filmes do João [Nicolau]. MG — Aqueles dias naturais, um bocado Rohmerianos, com os 16mm e aquele contraste maravilhoso entre as sombras e a luz, onde um vento faz abanar as folhas das árvores e é um acontecimento, é uma coisa super-orgânica, e o Mário fez isso maravilhosamente... Mas sim, o Erice é alguém muito importante para nós e que trabalha a ideia do tempo. Há outro realizador que é muito importante para mim e para ti também, Maureen, o Alain Resnais, que trabalhou também obsessivamente estruturas que tinham a ver com o tempo. Porque de facto não conseguimos enganar a mente humana. Estamos habituados a viver a linearidade temporal— mesmo sabendo que o filme está a andar para trás, é impossível deixarmos de o ver da forma como ele se apresenta e ver uma progressão nisso. E obviamente demos uma ajudinha para que o filme possa funcionar das duas maneiras. Se podemos fazer dois filmes, um virtual na cabeça do espectador, outro que se desenrola no ecrã, tanto melhor. Dois filmes é melhor que um, e eu ainda tenho esperança que exista para lá um terceiro. Ainda não o descobri mas acho que anda por lá...
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