Cinema - Onde está o Público? [PT]

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Cinema ) de Campion, não se impõe qualquer relação visceral entre as personagens. A América é demasiado grande, o cinema e as personagens petrificam-se, não se encontra neles uma paisagem íntima. Ao longo destas convulsões, a crítica de cinema tem sido chamada à responsabilidade. Nós, suplemento Ípsilon, em particular. “Ignore-se o streaming”! Mas como? Não se fala de cinema? Há filmes em sala que são mais “televisivos” do que alguns títulos do streaming... “Não se classifiquem esses filmes no quadro de estrelas” — é que, entretanto, decidimos considerar o cinema independentemente de onde ele estivesse. Mas tudo se resume ao jogo das estrelas? Temos aqui um caso: O Discípulo, de Chaitanya Tamhane, e a sua proposta de levar o espectador a viajar pelo interior dos planos, experimentando a caminhada encantatória do tempo. Foi das mais belas coisas deste ano. Continua a sê-lo. Chaitanya é um cineasta de tour de forces, mas não há nada de exibicionista no seu cinema. Tudo se passa silenciosamente. Essa é uma admirável coerência que deve ser assinalada em relação às suas duas longas (antes de O Discípulo houve Court). A sala é o espaço natural para a fruição deste filme, que é prelecção filosófica e história de aprendizagem: um intérprete de raga dividido entre a aspiração ao sublime e a banalidade da vida. Mas foi o streaming que o trouxe até nós. Devemos estar-lhe agredecidos? Devemos castigá-lo?

O cinema português mimou-nos: Metamorfose dos Pássaros de Catarina Vasconcelos e O Movimento das Coisas de Manuela Serra

8 | ípsilon | Sexta-feira 24 Dezembro 2021

ONDE ESTÁ O PÚBLICO?

Luís Miguel Oliveira

E

uforia não foi propriamente a palavra de ordem para o ano cinematográfico de 2021, como não terá sido para mais nada. A pandemia, que fomenta a vida doméstica e uma cultura de imagens vistas em écrans caseiros, não criou, mas agudizou (ou revelou, com a clareza de uma TAC), a depressão do cinema em sala, condenado a avanços e recuos, retiradas abruptas de cartaz, adiamentos sine die, planos sempre incertos e às vezes desfeitos, sob a pressão das plataformas de streaming e de um grande (ou pequeno) público que cada vez mais parece disponível apenas para os grandes acontecimentos, sejam eles comerciais ou, digamos, autorísticos. Para perguntar “onde está o cinema?” no princípio da terceira década do século XXI tem que se perguntar também “onde está o público?”, e esta pergunta é bicuda, ninguém sabe muito bem onde ele está, se calhar já não há um “público” no sentido clássico (uma entidade colectiva com expectativas entendíveis e, portanto, atendíveis), apenas uma quantidade de indivíduos atomizados, a peneirar cada um por si o interminável entulho das netflixes e afim. Vexata quaestio dos nossos dias, aliás, sobretudo para a crítica de cinema, frequentemente atacada, com graus diferentes de agressividade, por prestar atenção aos filmes que vão directamente para as plataformas, e assim “trair” o cinema em sala. Mas, que fazer, se alguns dos melhores filmes do ano — O Discípulo, Identidade, O Poder do Cão, The Velvet Underground — passaram por cima das salas? Fingir que não existem? Não sabemos ainda onde tudo isto vai dar (embora seja mais ou menos previsível), mas fazemos nossas as palavras de Camille Nevers, crítica do Libération, sobre este assunto: “criticar os poucos críticos que restam em vez de criticar os milhões de espectadores que se estão nas tintas é ‘kill the messenger’”. Ou em vez de criticar o cinismo de gente (Scorsese ou David Fincher vêm ao espírito) que fala compungidamente da “sala” e ao primeiro prato de lentilhas assina contratos de exclusividade com as plataformas. Ou dizer que foi o próprio cinema a preparar isto a partir do momento em que se converteu em massa ao digital, da produção à exibição — a questão da “natureza” deixou de se pôr, não há nenhuma contradição em ter objectos digitais a serem difundidos em meios digitais. As salas deixaram de passar aquilo que só elas podiam passar — a película — e a partir daí a tormenta começou a desenhar-se no horizonte. Este relativo caos, vamos agora falar de coisas boas, também propicia certos acontecimentos, arriscados, ao nível da distribuição, esticando um bocadinho as fronteiras do que se entende por “cinema de estreia” (normalmente, questão de “actualidade”), e estendendo-as para um conceito de retrospectiva. Alguns dos melhores momentos do cinema em sala durante 2021 foram os quatro filmes de Hong Sang-soo (apenas um deles, A Mulher que Fugiu, era “actual”, os outros já tinham alguns anos em cima) que estrearam, pela Midas, no princípio do ano, e, com o ano a acabar, os três filmes japoneses de “mestres desconhecidos” dos anos 1950 que a The Stone & the Plot trouxe às salas — a

Alguns dos melhores momentos do cinema em sala foram os quatro filmes de Hong Sang Soo (apenas um deles, A Mulher que Fugiu, era “actual”)

Undine, de Christian Petzold

que se acrescenta as periódicas operações da Leopardo no Nimas, que há anos vem cultivando esta sobreposição da estreia e da retrospectiva. Num “videoclube” de um canal do cabo estreou outro filme em atraso, As Noites Brancas do Carteiro, de Konchalovsky (um filme de 2014), e assinalamo-lo porque é um belíssimo filme, mas também porque é uma estreia de modos tão insólitos (e com tudo para passar despercebida, o que é outro problema das tvs e das plataformas: tanta coisa que ali “entra” para ficar escondida, quase nos escapava, por exemplo, Identidade, a bela estreia de Rebecca Hall). A lista dos “dez melhores” está aqui ao lado, não vale a pena gastar espaço a justificá-la. Antes, aproveitá-lo para mencionar títulos que ficaram fora dela: Cry Macho, do mais livre dos cineastas americanos (todos os cineastas de 91 anos são livres), Clint Eastwood; Três Andares, de Nanni Moretti; France, de Bruno Dumont, Caros Camaradas! (outro dos três Konchalovsky estreados este ano...); e a surpresa, aquela sensação de pisar território desconhecido e imprevísivel, do Fabian de Dominik Graf (sobretudo a primeira hora).

1. A Mulher que Fugiu Hong Sang-soo 2. Undine Christian Petzold 3. O Discípulo Chaitanya Tamhane 4. The Card Counter Paul Schrader 5. As Coisas que Dizemos as Coisas que Fazemos Emmanuel Mouret 6. Funeral de Estado Sergei Loznitsa 7. A Metamorfose dos Pássaros Catarina Vasconcelos 8. Mães Paralelas Pedro Almodóvar 9. Diários de Otsoga Miguel Gomes/Maureen Fazendeiro 10. Intimidade Rebeca Hall


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