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O que é que se passa em “Diários de Otsoga”? Constroem um borboletário, limpam uma piscina, dão banho aos cães, fazem uma festa, andam num trator... É algo a desdenhar? Claro que não, o que se deve evitar é a espera de coisas que ele não tem nem anuncia
Um mês depois de Cannes e da sequente estreia nos cinemas franceses, chega o novo filme de Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro, rodado em regime de clausura no verão passado texto Jorge Leitão Ramos Tomemos uma cena, para abreviar razões. Vai “Diários de Otsoga” a meia jornada e, em volta de uma mesa, juntam-se o realizador Miguel Gomes, a argumentista Mariana Ricardo e os três atores-atores (leia-se: os três atores a quem o filme deu personagens de atores), Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro. Os comediantes, sobretudo pela voz de Crista Alfaiate, parecem um pouco perdidos quanto aos personagens, e tanto Gomes como Mariana Ricardo tentam serená-los, sem adiantar algo de substancial que responda à inquietação dos intérpretes. No fundo, as tarefas desempenhadas e a desorientação dos atores correspondem ao que deles se espera, dizem, está tudo bem. QQ DIÁRIOS DE OTSOGA De Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes
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Com Crista Alfaiate, Carloto Cotta, João Nunes Monteiro (Portugal) Comédia M/12 A cena é filmada de uma forma muito básica. A câmara está fixa, enquadra o grupo em plano geral imutável, toda a mise en scène aponta para uma sensação documental, um acontecimento não previamente escrito a ser captado por um olhar neutro, sem ponto de vista. A realidade apanhada ao vivo. Eis que, sem pedir licença, uma das empregadas encarregadas das refeições da equipa de filmagens entra em campo, passa entre a câmara e as pessoas que falam. Sentimos que se acentua o que poderíamos chamar a intromissão do real, um reforço para o efeito de verdade. Só que, de súbito, a câmara inicia uma panorâmica, abandona a cena, segue a empregada e (na minha memória de uma única visão do filme) até o som entra num processo de afastamento. E o espectador — se não for cego, distraído ou falho de entendimento — percebe duas coisas em simultâneo: 1. A câmara, afinal, tem um ponto de vista; 2. A ausência de mise en scène era um logro. É como se se gritasse uma declaração de princípios: tudo o que está neste filme é lá posto por alguém, nada é por acaso. Ao que eu poderia acrescentar que, embora haja nele elementos de acaso, uma escolha posterior à filmagem e a arquitetura que a montagem cria acabam por tornar esses elementos voluntários. Pego nesta cena para começo de conversa porque a creio definidora de um processo de trabalho. A panorâmica que desmonta a hipótese de objetividade da cena é o que poderíamos chamar um truque, uma trouvaille, um coelho que se tira da cartola para criar um aaahhh! na audiência? É. Mas é bem visto, é engenhoso, não soa a facilidade, não configura recurso de última hora para fechar um fragmento narrativo que não parece resolver-se. Acontece que todo o filme se apresenta nessa onda. Com um projeto de grande fôlego para rodar — “Selvajaria”, coprodução internacional juntando financiamentos de Portugal, França, Brasil, China e Grécia — e a pandemia de covid-19 a impedi-lo de o concretizar, Miguel Gomes empreendeu uma obra de recurso no verão de 2020. “Diários de Otsoga” é uma obra estival, simpática, arguta, aérea, não isenta de humor — com nada para dizer e que diz essa ausência de uma forma sorridente sem pretensõese A quatro mãos, com a sua parceira de vida (Maureen Fazendeiro) como correalizadora, congregou esforços de duas empresas produtoras (O Som e a Fúria e Uma Pedra no Sapato), juntou uma pequena equipa técnica e três atores, testou toda a gente e, em regime de clausura, numa casa encontrada para o efeito, filmou em película (16 mm, cor) “Diários de Otsoga”. Não tinham argumento, história para contar, apenas cúmplices, um punhado de ideias, algum financiamento e um calendário que convinha ocupar — afinal de contas, os três painéis de “As Mil e Uma Noites” estrearam-se em 2015 e não é bom estar demasiado tempo ausente dos areópagos. Acabaram por fazer um filme sobre o ato de fazer um filme.
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Havia, entretanto, uma ideia como gazua para arrombar a resistência possível do espectador quando ele se apercebesse de que a fita não respondia à sua vontade natural (‘conta-me uma história’, não é o que pedimos quando entramos numa sala de cinema?): uma cronologia invertida, o filme começa no dia 22 e vem para trás até ao dia 1, daí o peculiar título, ‘Otsoga’ sendo, evidentemente, ‘Agosto’ escrito ao contrário. É um dispositivo interessante porque, por exemplo, quando vemos terçar argumentos sobre uma questão das filmagens, já vimos a sua solução, num esquema que nos dá a sensação de sabermos mais do que eles, o que, de novo, não é autêntico, antes o resultado de um processo cinematográfico. No cinema nada é verdadeiro, Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro passam o tempo a lembrar essa certeza lapalissiana, enquanto fingem que nos querem convencer do contrário. Todavia, para lá de um punhado de cenas em que se discutem problemas referentes à rodagem, o que é que se passa em “Diários de Otsoga”? Constroem um borboletário, limpam uma piscina, nela mergulham, dão banho aos cães, fazem uma festa, andam num trator, bebem demais, evocam Pavese, apanham fruta, há um beijo fugaz, sentem o verão e acontecem momentos em que tudo aquilo lembra cintilações pontilhistas, respirações renoirianas (da pintura e do cinema). Hervé Aubron, o crítico dos “Cahiers du Cinéma” que escreveu na sequência da estreia mundial do filme na Quinzena dos Realizadores, de Cannes, e da sua imediata distribuição em sala, logo em julho, em França (dezenas de ecrãs, dos quais seis em Paris), titulou o seu texto “Des jeux nés sur l’herbe”. Trocadilho faceiro para uma obra ligeira e sem alardes onde acontecem muitas coisas, deveras nada acontecendo. É o resultado natural de um certo entendimento do cinema. Desde o princípio da sua atividade como realizador, logo nas curtas-metragens, que Miguel Gomes vem exibindo um muito particular gosto pela ideia de jogo, no sentido de ato de brincar, tal como as crianças o praticam. Há uma vontade de ‘pregar partidas’, de nos levar ao engano, um prazer infantil no ‘faz de conta’ (lembram-se dele mascarado de turbante em “As Mil e Uma Noites” — que virou imagem de marca?) que instala um clima lúdico, certamente feliz, mas também irrisório. Quer isto, então, dizer que “Diários de Otsoga” é algo a desdenhar? Claro que não, o que se deve evitar é a espera de coisas que ele não tem nem anuncia. Trata-se de uma obra estival, simpática, arguta, aérea, não isenta de humor (veja-se a discussão final com Vasco Pimentel, evocando uma outra intervenção sua, também em registo de ironia, de comédia branda, em “Aquele Querido Mês de Agosto”) — com nada para dizer e que diz essa ausência de uma forma sorridente e sem pretensões. Para lá de um vivaz esvoaçar, espreme-se, torce-se, dá-se a volta e não há mais. Só que, sem pressagiar muito, não origina desapontamentos, o espectador não pode gritar que é gato quando esperava que fosse lebre, porque desde o plano inicial (a mergulhar raízes em “A Cara que Mereces”, a longa-metragem inaugural de Gomes) que nada assevera suculências de maior. A futilidade em que este filme se deixa embalar — impulsionada por doses pantagruélicas de autocomplacência — é assumida e sem disfarce.
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Estamos longe, muito longe, do brilhantismo de “Tabu”, o cume provisório da obra de Miguel Gomes que, depois da ousadia esgarçada de “As Mil e Uma Noites”, precisa de outro esteio firme. “Diários de Otsoga” não lho dá, nem prometia, esperemos que seja “Selvajaria” a assegurar arrimo.
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