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Ci ne ma

Rita e Sara, teenagers, um palmo acima da Terra João Nicolau fez um filme muito bonito sobre a natureza volátil da adolescência e o tempo das primeiras paixões. Com os pés em Telheiras e o pensamento algures na Melanésia: “John From” TEXTO FRANCISCO FERREIRA

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As amigas Rita (Júlia Palha) e Sara (Clara Riedenstein) no topo do prédio do bairro lisboeta de Telheiras, onde vivem, e a progressiva transfiguração de Rita que, ao apaixonar-se, entra em contacto com cultos da Oceânia. Dois momentos de “John From”, de João Nicolau (à dir.)

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ita penteia-se, desembaraça os cabelos, longos e loiros, e o “Reveille” da sua t-shirt vermelha, ao espelho, lê-se invertido — está ela mesmo ‘acordada’, ou imersa nos seus pensamentos? No início, não se passa grande coisa naquele dia de calor e de férias de verão. O sol está a pino e Rita refresca os pés na varanda do seu apartamento de Telheiras. No sofá, faz um zapping desinteressado, o pai chega do trabalho. Depois, a noite cai e ela “vai lá abaixo” ter com a amiga Sara. É então que, no primeiro choque temporal do filme, sabemos que, naquela tarde, ela atirou um “não me apetece” a um rapaz com quem ela poderia ter ido para a cama. Creio que Rita e Sara nunca nos dirão ao certo a idade que têm, a sinopse diz 15 anos. Não é só isso que não nos dizem, de resto: elas gostam de guardar segredos e manter rituais, enquanto trocam mensagens em papelinhos que vão escondendo no elevador do prédio em que vivem. Chamam-se uma à outra “Paulo Rodrigo”. Mais tarde, surgirão sonhos de technicolor e de ‘Carmen Miranda’, delírios de latitudes longínquas, de Kikori (!) — cadenciados pela banda sonora original de João Lobo, excelente. Cultos religiosos, fenómenos sobrenaturais, mas também oráculos inventados a partir de nomes de canções de um iPod, e que podem separar o azar da fortuna. Dir-me-ão que este não é ‘assunto sério’, que não tem caução social, dilema identificável, que lhe falta história e responsabilidade, fatalidade, destino ou, para nem pedir tanto, que o ‘dramazinho’, o enredo, o ‘tricot’, não têm um compromisso temático. Pois digo-vos que, escapando olimpicamente de tudo aquilo, é precisamente para este território de ‘areias movediças’ que é a adolescência — vejase aquela festa teen a ser filmada a partir de um congelador cheio de garrafas de cerveja... —, para essa fase de esperas e dúvidas em que não sabemos exatamente o que fazer ao tempo, que este “John From” com sinceridade nos leva — e é o que de mais comovente João Nicolau filmou até hoje. Ele que escreveu que “nada é tão feroz como o coração de uma menina” e que nos disse há dias que “a adolescência não é uma


FOTOGRAFIA TIAGO MIRANDA

coisa estanque, antes algo que nos acompanha, por vezes até ao caixão”. A acendalha de tudo isto? Nicolau recebe-me novamente na esplanada de um café em Telheiras onde já tínhamos falado há uns anos da sua longa anterior, “A Espada e a Rosa”. Que argumento começou ele por escrever com a irmã, Mariana Ricardo (conhecemola tanto da música, dos Pinhead Society, dos München, dos Silence is a Boy, e as bandas não ficam por aqui, como do cinema, pois é coargumentista e atriz dos filmes de Miguel Gomes)? Por fim, que filme realizou depois ao dirigir Júlia Palha e Clara Riedenstein (Rita e Sara), duas raparigas que vão tão bem em “John From” “e que são tão diferentes na vida” (acrescentou o realizador), elas que não tinham qualquer experiência de interpretação? “A acendalha foi a paixão amorosa. A sua lógica, ou a falta dela. E as transformações que a paixão nos provoca. Foi por isso que ambientei o filme na adolescência e no bairro em que vivo desde 1985, Telheiras. No filme, o bairro é uma personagem. Tem uma linguagem definida e própria, em termos arquitetónicos e cromáticos. Este é provavelmente o bairro de Lisboa em que os edifícios estão mais longe uns dos outros, facto que acentua o isolamento da Rita. Interessava-me mostrar isso, as ruas vazias, por isso rodámos em agosto, em tempo de férias. Mas filmar aqui, nestas ruas — e além da relação afetiva que tenho com elas — também foi uma maneira de me conseguir desembaraçar de tudo o que fui descobrindo que era acessório. Pelo caminho, fui ‘matando’ personagens. Delimitei cada vez mais o espaço. Restringi-me ao essencial.” Estamos perante a história de uma família lisboeta, pai (Adriano Luz), mãe (Leonor Silveira) e filha adolescente, igual a tantas outras? “John From” não é de todo sobre isso, até porque os progenitores são quase caricaturas. “Aliás, o pai e a mãe, dois papéis ingratos”, avança Nicolau, “estão no filme para mostrarem que o filme não é sobre eles.” “John From” fala então da amizade de Rita e Sara? Também não, é mais do que isso. É que, às tantas, um novo vizinho, Filipe (papel de Filipe Vargas), homem adulto e, supomos, pai divorciado, dá à costa naquelas paragens, despertando a atenção de Rita. Filipe é fotógrafo e vai montar, numa associação local, uma pequena exposição sobre a

Melanésia. E uma coisa puxa a outra: quando se descobre apaixonada por Filipe (“que tem a vantagem de ser um homem bom”, diz Nicolau), Rita começa a forçar encontros com o homem que ela ama (talvez sem saber ainda muito bem o que é isso), primeiro numa cena de hipermercado que é de tirar o fôlego, depois numa reunião de condóminos permeável ao humor e em que “eu queria que os vizinhos parecessem todos aliens” (Nicolau dixit). Resultado: é em Rita e Filipe que reparamos e é esse o casal que vamos aprender a aceitar. “Nos filmes anteriores”, disse Nicolau, “as minhas personagens criavam regras para conseguirem viver no mundo. Mas em ‘John From’, procurei antes uma transformação das regras. Nunca fiz filmes autobiográficos mas só agora senti que me tirei do centro, procurando uma geração que não é a minha. Fiz um casting de 90 raparigas que ainda viviam em casa dos pais, e com uma idade indefinida, dos 12 aos 20 anos, até encontrar a Júlia e a Clara. Pela primeira vez, procurei uma protagonista feminina. Acho que ganhei com a escolha.” E o título, “John From”? Como chega ele, entre uma canção de Lily Allen e uma janela do Google? O cineasta conta aquilo que o seu filme aborda também: que há na Oceânia um culto chamado “John Frum”, corruptela de “John From America”, em voga nas ilhas Vanuatu. Nicolau descobriu-o com Mariana Ricardo num momento em que ambos andavam a ouvir música daquela região do Pacífico. “Não é invenção nossa! Aliás, gostava de filmar esse culto, talvez numa perspetiva mais etnográfica, tal como o fiz em ‘Calado Não Dá’ [1999], o meu primeiro filme, rodado em Cabo Verde. Para já, a Melanésia fica um bocadinho longe. Ainda não a conheço. Mas hei de lá chegar...” b

QQQ JOHN FROM De João Nicolau Com Júlia Palha, Clara Riedenstein, Filipe Vargas, Adriano Luz, Leonor Silveira (Portugal) Drama M/12

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O CINEMA DÁ O QUE A VIDA TIRA

A FREIRA E O PECADO Rose Pacatte tem uma cara redonda, diria até bonacheirona, se o sufixo não fosse desgraciosamente aumentativo. Rose tem essa cara saudável e sorridente que eu já disse e umas brancas mãos papudinhas. É, perceberam bem, uma / MANUEL gordinha luminosa. E ficam S. FONSECA agora a saber que Rose Pacatte é freira. Americana e católica. Rose gosta de cinema, como só os católicos gostam de cinema. Há no católico um gosto pantagruélico pela iconografia: os santinhos, as pagelas, os altares, a pintura, os frescos, as esculturas, os baixos-relevos nas fachadas das catedrais, as ornamentadas gárgulas… A vida do católico é de uma obscena relação com a imagem, das procissões de pendões e pálio, dos andores com S. Jorge a trinchar o dragão, até ao presépio a que os fiéis ajoelham para beijar o pé nu do Menino Jesus. Rose está a dois passos de Spielberg ou de James Cameron. Vive em Culver City, uma das aldeias de L.A. Dirige, com cinefilia de Scorsese, o Centro das Paulinas para os estudos dos media. E apresenta ciclos de cinema, como se fosse um João Bénard de saias. Perdão, de hábito. Vou ser franco. Apesar da minha abundante simpatia por ela, temo que a irmã Rose venha a fazer menos pelo cinema do que fizeram as incendiadas proibições da velha Legião Católica de Decência, que, à bruta, reagia à intrínseca salacidade do cinema. Parafraseando “O Que Fazem Mulheres”, desse Camilo que nunca viu filmes, mas sabia tudo de intriga e romances, “aquilo sim, eram proibições”. Quando a Legião Católica proibiu “The Outlaw”, as dúvidas dissiparam-se: Jane Russel tinha contracções que Nossa Senhora nunca teve e as palhas em que ela aconchegava o deleite do seu corpo não eram as palhinhas do presépio. Se não viram, vejam, por favor, com olhos cristãos. E vejam também “Baby Doll”. Não é só o filme fazer justiça ao título, é também a forma como, na displicente cama, Carroll Baker chupava o seu próprio polegar. Proibição, ah pois! E era só ver polegares a ir ao cinema. Hoje, o “Osservatore Romano” aplaude “Spotlight”. Ontem — uns bons ontens lá atrás — proibia “La Dolce Vita”, de Fellini. Hoje, aprova o mau cinema de boas intenções. No passado, condenava o bom cinema de más intenções. Este vale de lágrimas em que vivemos não ganha nada com isso. Há lá maior virtude do que um bom pecado! b manuel.s.phonseca@gmail.com Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia


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