JOHN FROM_Malogro

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QQQ JOHN FROM De João Nicolau Com Júlia Palha, Clara Riedenstein, Filipe Vargas (Portugal) Comédia M/12

O que cativa em “Verdade” é o processo de inquérito que as personagens suportam durante a primeira metade do filme

Malogro E mbora Vanderbilt se estreie aqui na realização, o seu nome é-nos familiar: cruzámo-nos com ele no “Zodiac” de Fincher, onde vinha creditado como coprodutor e argumentista. Ora, como “Zodiac”, “Verdade” assume a forma de um procedural, adaptando o livro onde uma antiga produtora do programa jornalístico “60 Minutos” (Mary Mapes/Blanchett) dá conta do caso que haveria de redundar no seu despedimento da CBS. A história (que o filme narra em flashback) remonta a setembro de 2004, isto é: às vésperas das eleições presidenciais que opuseram Bush e Kerry. Estando na posse de informações que apontam para a existência de ‘irregularidades’ no serviço militar de Bush, Mary decide aprofundar o caso, formando para isso uma equipa de investigação composta por quatro elementos. Trata-se de uma galeria de figuras meramente decorativas e/ou funcionais, que o texto acorrenta a diálogos que primam apenas pela sua rigidez (aqui como no “CSI”, as personagens falam sobretudo para nos informarem acerca do sentido dos seus gestos). Seja como for, o que cativa em “Verdade” não são as personagens,

mas — como no “Spotlight” de McCarthy — o processo de inquérito que elas suportam durante a primeira metade do filme, num incessante esforço para localizar fontes. Desse trabalho, o que resulta? A descoberta de uma série de papéis assinados por um oficial do exército, que, a serem autênticos, provariam que Bush moveu influências políticas para não ir parar ao Vietname. Subsistem dúvidas quanto à fiabilidade dos materiais recolhidos (os peritos dividem-se a esse respeito), mas a antecipação do prazo para a exibição da reportagem convida Mary a avançar, a despeito das reticências. Poucas horas decorreram desde a transmissão da peça, e já Mary e a sua equipa se veem a contas com uma chuva de condenações (oriundas, em primeira linha, de blogues prórepublicanos). Entre elas: a de que os documentos parecem ter sido criados em Microsoft Word, não podendo assim remontar ao fim dos anos 60. As críticas à investigação suscitarão uma auditoria interna da CBS, que — a fazer fé no que Vanderbilt nos dá a ver —, prova que, à data da exibição da reportagem, Mary não estava

segura da solidez dos documentos e fontes que usou. Estamos perante um facto que o filme aproveitará, não para forjar a história de uma débâcle jornalística, mas, pelo contrário, para propor a apologia (quando não a canonização) de uma jornalista com culpas no cartório, forçando as personagens a articularem inflamados discursos sobre a natureza da sua função que, misteriosamente, fazem tábua rasa dos seus próprios erros. Tudo se passa como se, num movimento esquizofrénico, o filme reproduzisse o malogro que descreve, montando um caso a favor de Mary que não tem pernas para andar. E, nesse gesto, “Verdade” acaba por demonstrar o que menos queria: que o desejo de provar o óbvio pode ser traído pelos passos dados para prová-lo. / VASCO BAPTISTA MARQUES

QQ VERDADE De James Vanderbilt Com Cate Blanchett, Robert Redford, Dennis Quaid (Austrália/EUA) Biografia/Drama M/12

E 74

Segunda longa de João Nicolau, “John From” faz-nos aterrar de paraquedas num bairro dos subúrbios de Lisboa (o de Telheiras), para nos convidar a seguir as férias de verão de uma adolescente de 15 anos (Júlia Palha, impecável). Neste quadro, a primeira coisa que salta à vista é o modo como, pelo minimalismo da narrativa e pela duração distendida dos planos, o filme consegue devolver-nos o dolce far niente dos verões da adolescência. É de facto ‘assim’ que nos lembramos deles: como um tempo bruto, despido de acontecimentos notáveis, que convida a imaginação a preencher os espaços deixados em branco pela modorra do quotidiano. Transportada pelo seu desejo de ficção, a protagonista inventará — logo no primeiro plano — uma piscina na sua varanda, e é a partir dela que começará a imaginar um romance com um dos moradores do seu prédio: um fotógrafo bastante mais velho (Filipe Vargas), que irá expor o seu trabalho sobre a Melanésia no centro comunitário do bairro. Este investimento passional transfigura o imaginário da rapariga e, com ele, o décor do filme, que, lentamente, se vai abrindo ao fantástico (com avestruzes à solta pelas ruas de Telheiras, com reuniões de condóminos interrompidas por nuvens de nevoeiro carpenterianas...), num movimento onde a realidade começará a ser indiscernível da ficção, até acabar por se fundir com ela. No entanto, o que é verdadeiramente notável é a forma como o filme insiste em manter-se sempre fiel ao universo da sua protagonista, fazendo-nos acreditar nele a despeito da sua absoluta inverosimilhança. A missão estava longe de ser fácil, mas João Nicolau cumpriu-a de maneira exemplar, oferecendo-nos no processo um belíssimo filme de verão. / V.B.M.


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