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Introdução Afetos bregueiros
Introdução
Afetos bregueiros
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O termo “música brega” é contraditório em qualquer contexto. Evoca divergências: quem chama a música de brega? Quem se diz ouvir música brega? Quem assume fazer música brega? Quem detrata a música brega? O termo “brega” e, portanto, “música brega” carrega, em si, contradições culturais. Aciona disputas de gosto, de classe, de gênero, de raça. Encena lugares, situações, corpos. Quase sempre corpos subalternos. Possivelmente abjetos. Corpos outros. Possíveis.
Este livro é uma tentativa de pensar o brega produzido em Pernambuco, entre duas décadas, no final dos anos 1990 e parte dos anos 2000, como um conjunto de tensões, dissensos culturais, negociações e performances que formaram parte da cultura musical, sobretudo, da capital pernambucana. Sem receio algum em afirmar: a extensa produção de música brega é parte fundamental e significante para o entendimento dos atravessamentos pelos quais a cidade do Recife passou – e passa. Geograficamente, culturalmente, politicamente.
Os textos que aqui estão reunidos foram produzidos de forma dispersa, entre os anos de 2005 e 2016, quando comecei a me interessar pela música brega, ocupando o cargo de editor dos suplementos culturais do jornal Folha de Pernambuco (um veículo jornalístico voltado, originalmente, para as camadas populares) e também durante a minha formação entre o mestrado em Letras (UFPE) e o doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Paralela a esta atividade, eu ministrava aulas nos cursos de Comunicação em diversas universidades da Região Metropolitana do Recife e, inevitavelmente, era interpelado pela música em conversas,
bares e ruas da cidade.
A música brega, reparem, nunca esteve formalmente na minha partitura de pesquisas, no entanto, constantemente, eu era interpelado por questões que vinham deste gênero musical: seja no tocante à sexualização das letras, às disputas estéticas entre subgêneros musicais, à trajetória de artistas das periferias do Recife e, sobretudo, às referências sempre presentes de um imaginário pop na forma com que cantores e cantoras do brega comentavam sobre seus processos de criação e expressão.
Vez ou outra, portanto, era instigado a escrever sobre a música brega do Recife na Folha de Pernambuco, entrevistar artistas, passar tardes fazendo ensaios fotográficos com eles, criar pautas. As pautas que, certamente, mais me instigavam eram aquelas em que transformávamos cantoras de brega em divas pop. Fizemos de Dany Miller, então vocalista da banda Lolyta, a “Beyoncé do Brega”. Dayane, vocalista da Frutos do Amor, a emancipada “Mariah Carey do Brega”. Michelle Melo, da banda Metade, a “Madonna do Brega”, expandiu-se e foi parar na Rede Globo, entrevistada por Regina Casé.
O contato com estes artistas foi me fazendo perceber sistemas produtivos de música profundamente efêmeros, simples, caseiros, ao mesmo tempo, de uma singular potência comunicacional, de adesão e largo espectro de público. Percebi também um processo particular de celebrização que emergia nos contextos de periferia, passava pelos programas da televisão local e também pelos sites de redes sociais e me fazia enxergar a formação de ídolos nas periferias, em geral, de classes populares, que, rapidamente, eram alçados à esfera do
“star system” pernambucano.
Neste contexto, era possível que um morador do bairro de Nova Descoberta, na periferia do Recife, se transformasse num ídolo, aparecesse na televisão, começasse a trilhar uma carreira artística como cantor de brega e que seus vizinhos se orgulhassem por morar naquele bairro, ao lado de um artista. Este imaginário povoou – e ainda povoa – as periferias recifenses e fez emergir uma certa noção de que a cultura seria uma forma de sujeitos aparecerem como celebridades num contexto periférico, narrativa que funcionou – e funciona – como base de políticas públicas e culturais nos mais diversos países (no Brasil, em países da América Latina, África, entre outros).
O sistema produtivo da música brega em Pernambuco sempre me interessou porque, a partir dele, é possível discutir os agentes de produção, ambientes, estéticas, corporalidades e o consumo das classes populares – e seus atravessamentos – e posterior chegada em outros ambientes, notadamente, os bairros mais abastados da cidade e as boates e festas “descoladas” do Recife. Faço aqui um recorte: “música brega do Recife”. Essa ênfase na produção urbana é oriunda de uma disposição geográfica capaz de abarcar a Capital e sua Região Metropolitana como importantes eixos produtivos deste gênero musical e sua disseminação por todo o estado de Pernambuco.
Sabemos que este recorte não abarca, por exemplo, a importante produção de música brega existente em cidades da Zona da Mata Norte de Pernambuco, onde os maiores expoentes são cantores como André Viana e Kelvis Duran,
e todo o seu sistema produtivo – no entanto, é sintomático reconhecer que o eixo de criação, gravação e disseminação da música brega se dá maciçamente no Recife – cabendo ao interior de Pernambuco funcionar como um importante circuito de shows e espetáculos.
Este livro reúne, portanto, textos, rascunhos de pesquisa, anotações jornalísticas e minha própria memória em torno de fatos e seus desdobramentos. Vários destes textos foram publicados em versões mais curtas em congressos e revistas científicas da área de Comunicação e Música, quando, a partir da resposta que fui tendo de pesquisadores das inúmeras áreas (da Antropologia, passando pela História e a Sociologia, além, logicamente da Comunicação), fui amadurecendo questões, endossando certos pontos de vista, questionando outros. Pela própria trajetória dos textos, é possível perceber uma série de (re)enquadramentos, novas perspectivas. O primeiro artigo acadêmico que produzi sobre o brega foi redigido em 2012 e apresentado no X Congresso da Associação Internacional para Estudos da Música Popular (IASPM) – Rama Latino-Americana, em Córdoba (Argentina) e se chamou “Quando a ‘Piriguete’ encontra o ‘Cafuçu’: Divas e ‘Gangstas’ nas Encenações Performáticas no Tecnobrega do Recife”.
Percebam que eu ainda chamava o Brega de Pernambuco de Tecnobrega – questão que amadureci quando visitei Belém do Pará, por duas vezes e, em contato com as festas de Aparelhagem e as pesquisas em torno de artistas como Gaby Amarantos e Gang do Eletro, fui percebendo duas tradições e histórias distintas. O Tecnobrega e seu contato com os ritmos
caribenhos e com a estética das equipes de Aparelhagem e o Brega recifense com a música de seresta, o forró eletrônico, o próprio Tecnobrega paraense e matrizes do funk carioca.
A partir das críticas e do debate gerado no evento, publiquei uma versão semelhante a este texto apresentado em Córdoba, agora sob o título “Conveniências Performáticas num Show de Música Brega: Espaços Sexualizados e Desejos Deslizantes de Piriguetes e Cafuçus” na revista Logos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, já reconhecendo o Brega como gênero musical e apontando para um debate em torno da sexualidade e das performances de flerte e pegação nas festas. Continuei a tentar entender os espaços das festas bregueiras, uma vez que, como indica Fernando Fontanella (2007), o brega é a música do corpo e do triunfo da dança. Reconhecia que minha experiência era muito diferente quando eu apenas ouvia a música brega e quando ia para os locais. Foi por isso que, em 2014, preparei o paper “O Corpo Alcoolizado como Performance: Andanças Cambaleantes numa Festa de Música Brega” para apresentar no XI Congresso da Associação Internacional para Estudos da Música Popular (IASPM) – Rama Latino-Americana, em Salvador (Bahia). Dessa vez, parti para tentar compreender mais detidamente as perspectivas performáticas dos frequentadores das festas, acionando a bebida alcóolica como agenciamento de corpos. Esses três artigos formam a base do Capítulo 4: “Quando a Piriguete encontra o Cafuçu”.
Concomitantemente, fui percebendo mudanças substanciais no consumo da música brega a partir das redes sociais, blogues e da cultura da mobilidade, o que me levou a escrever o texto
“Piriguetes e Cafuçus Digitais: Apropriações, Performances e Poéticas ‘Orkutizadas’ no Brega Recifense”, para debater no VI Simpósio Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber), em Novo Hamburgo (Rio Grande do Sul), em 2012. Desenvolvi mais tópicos, ampliei o espectro das lógicas de midiatização, incluindo também a televisão e o videoclipe como importantes ambientes/produtos ligados à cultura brega e esta é a configuração do Capítulo 5, “Bregueiros Digitais”.
Apareciam novas questões ligadas à música brega – digitalização, “orkutização”, diferença – mas também elitização, disputas periferia x centro, Zona Norte x Zona Sul. O brega chegava à classe média do Recife, que fruía destas expressões de forma carnavalizada, humorística, problemática. Mas, e se pensarmos que o humor e o Carnaval deixam vestígios no corpo e no cotidiano? Redigi, então, o artigo “As Conveniências do Brega” para integrar o livro Cenas Musicais, editado por Jeder Janotti e Simone Pereira de Sá. A partir da noção de “conveniência cultural” de George Yúdice, tentei pensar o brega como uma série de enlaces e disputas dentro das culturas, turvando lugares estanques sobre “quem se apropria”, “quem é apropriado”. A base desta reflexão está contida no Capítulo 3, “Economias Estéticas do Brega”.
Quando eu achava que não escreveria mais sobre o brega, eis que recebo o convite de Carlos Gomes, editor da revista Outros Críticos, para redigir um texto que julguei ser provocativo sobre Política e Arte pensando um certo silenciamento da musicalidade bregueira pelas políticas culturais do Estado de
Pernambuco e do Município. Daí surgiu a base do Capítulo 1, “Incômodos e políticas da música brega”, cuja versão reduzida discuti no V Congresso Internacional de Comunicação e Consumo (Comunicon), em São Paulo, em outubro de 2016. Por fim, o texto “Recife não é Belém: Brega não é Tecnobrega”, que resulta do Capítulo 2 deste livro, apresentei também uma versão reduzida no Congresso da Intercom – Região Nordeste, em Caruaru, em julho de 2016.
Os textos carregam diferentes perspectivas metodológicas. Algumas eminentemente críticas e analíticas, a partir de teorias e conceitos debatidos em textos acadêmicos e “usadas” com a finalidade de iluminar questões em torno dos fenômenos da música brega; outras de cunho essencialmente pragmático, de campo, revisitando uma longa tradição das pesquisas em cenas musicais, em contextos comunicacionais específicos. Como os textos que fui escrevendo apresentam diferentes metodologias, quis respeitar a gênese deles e também me coloquei numa espécie de deriva metodológica, que pode resultar pouco uniforme, “racional”, mas admito ter uma inclinação pelos indicativos mais afetivos e processuais das análises comunicacionais.
Do ponto de vista metodológico, acho que este livro apresenta uma espécie de homenagem ao professor Micael Herschmann e seu pioneiro estudo sobre o funk carioca nos anos 1990, quando, numa singular atividade autorreflexiva, Micael tanto apresentava seu objeto – os bailes funk que seduziam o olhar de um Brasil fascinado e horrorizado pelos arrastões – quanto, ao se colocar como dentro/fora deste objeto, explicitava os
limites de sua leitura. Ainda lembro quando li, nos corredores do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, então estudante de Jornalismo, “O Funk e o Hip Hop Invadem a Cena” (2000), de Herschmann, um pouco surpreso, um pouco instigado, com a possibilidade de pluralizar as vozes na Academia.
Confesso que o maior desafio nesta obra é dar unidade a textos que foram acadêmicos, mas também jornalísticos, tentando negociar com aspectos teóricos, mas não esquecendo a riqueza do empírico. Fui percebendo que meus textos sobre o brega que começaram leves, humorísticos até, foram se tornando mais políticos – frutos de reflexões de nosso tempo e também do meu próprio reconhecimento nas expressões do brega. Frequentemente recebo telefonemas de colegas jornalistas, estudantes, pesquisadores, para dar entrevistas sobre o brega pernambucano, novos fenômenos, novos artistas. Percebo que o gênero musical está enraizado na cultura local e também nos afetos e na memória dos pernambucanos.
Não me proponho aqui a contar a história do brega, nem fazer perfis dos artistas (embora ache importantíssimo), mas tento pensar o brega como ponto de partida para uma série de questões de ordem político-cultural. O título do livro, o verso “Ninguém é perfeito e a vida é assim”, cantado pelo Conde do Brega, é um convite à reflexão em torno das imperfeições culturais, das assimetrias do bom gosto, daquilo que não é cartesiano. “Eu não gosto do bom gosto/ Eu não gosto do bom senso”. Elitismo me entedia. O brega me aproxima das gentes. Do cotidiano de riso e horror. Do centro e da periferia. O brega é o deslize. A dobra. “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”,
me disse o cantor. E, perdoem, eu acreditei.
Em Piedade, Jaboatão dos Guararapes.
edição ampliada outros outros críticos críticos
Ensaio fotográfico Chico Ludermir