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Capítulo 7 Bregafunk, racialização do brega

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Bregafunk, a racialização do brega

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Enquanto o Recife suava no escaldante verão précarnavalesco de 2018, a cantora pop Anitta postava stories na rede social Instagram de suas férias numa gélida estação de esqui, quando, quase como num susto, aparece reencenando (e “carregando” no sotaque “nordestino”) o prólogo do videoclipe “Envolvimento”, de MC Loma e as Gêmeas Lacração. “Ô, minha irmã, eu tô aqui esperando um úbi (uber), tô desesperada, num tenho dois real no bolso”, diz Anitta em vídeo. “Oxi, eu num sei o que fazer”, ênfase no “oxi”.

Corta.

“Você não me dá uma carona até ali embaixo não?”, diz Anitta, que usa um capacete de esqui e traja um pesado casaco de neve. “Eu dou um beijinho”, neste momento, vemos Anitta conversar com alguém que está fora do quadro da imagem. Corta para a cantora carioca dublando os primeiros versos da canção que seria o “hit do Carnaval” daquele ano: “Envolvimento diferente eu ensino a vocês...”.

No dia seguinte, 1 de fevereiro de 2018, veículos de mídia, portais de celebridades, perfis de fofocas que cobrem a música brega estampam a façanha: “Anitta grava stories imitando MC pernambucana”. A MC pernambucana em questão era Paloma Roberta Silva Santos, a MC Loma, que junto a duas primas gêmeas seriam o grupo MC Loma e As Gêmeas Lacração. A exposição de MC Loma e

as Gêmeas Lacração para os (na ocasião) 30 milhões de seguidores do Instagram de Anitta dá início a um processo de ultravisibilidade para a jovem artista pernambucana, mas sobretudo para o conjunto de artistas agrupados sob o rótulo do Bregafunk, gerando um processo de nacionalização da música brega de Pernambuco (SOARES e BENTO, 2020) que ocorre em meio à intensificação das trocas materiais, estéticas e simbólicas através das redes sociais digitais.

Dois processos comunicacionais são fundamentais para o entendimento das dinâmicas envolvendo a consagração de MC Loma e as Gêmeas Lacração através do videoclipe “Envolvimento” e centrais no espraiamento e popularização do Bregafunk no Brasil: os sistemas de recomendação das redes sociais digitais e a formação de redes sócio-técnicas envolvendo atores sociais humanos e não-humanos em contextos digitais. Antes da cantora Anitta imitar e, portanto, apresentar MC Loma e as Gêmeas Lacração para seus seguidores, as meninas já tinham sido recomendadas pelo youtuber Felipe Neto semanas antes: “Achei o hit do Carnaval”, bradava o influenciador digital ao se referir e “reagir” à precariedade estética presente no videoclipe da canção “Envolvimento”.

O episódio que catapulta MC Loma e as Gêmeas Lacração ao estrelato é um típico fenômeno de viralização em rede social acoplado a partir de lógicas de recomendação

de influenciadores e figuras “notáveis” na internet. Os ecossistemas de mídia se alteraram, fazendo com que formas mais consagradas e longevas de mídias como a televisão e o rádio passassem a disputar espaço com a ampla oferta de conteúdos da internet. Com um detalhe: grande parte dos conteúdos digitais dispostos nas plataformas de vídeo e em redes sociais digitais (o videoclipe “Envolvimento” e a “reação” de Felipe Neto dispostos no Youtube e os stories de Anitta no Instagram) é produzido fora de sistemas formais de mídia. Improviso, coloquialidade e inusitado passam a ser importantes valores destes conteúdos em ampla circulação em rede.

“Envolvimento” não só foi o hit do Carnaval do ano de 2018 como apresentou ao mercado brasileiro as batidas metálicas do Bregafunk. Naquele ano, a partir do sucesso da canção “Envolvimento”, as atenções do mercado e de produtoras de músicas pop periféricas (PEREIRA DE SÁ, 2019) se voltaram para Pernambuco. Uma semana depois da exposição maciça em redes digitais, MC Loma e as Gêmeas Lacração assinam contrato com a Start Music, produtora e gerenciadora de carreiras artísticas com sede em São Paulo.

Em poucos dias, gravam uma versão “turbinada” do videoclipe “Envolvimento” com a produtora Kondzilla, detentora, na ocasião, do terceiro maior canal de todo Youtube, com mais de 60 milhões de inscritos. O status de gravar um videoclipe para a Kondzilla e de “assinar”

com a gravadora Start Music, ambos notáveis por investir maciçamente em artistas de funk, sitou o Bregafunk como parte integrante da narrativa do funk, ou seja, sua entrada no mainstream brasileiro foi atravessada por uma série de comparações com o principal gênero musical “nascido” nas periferias do País.

Principalmente nos grandes veículos de mídia, MC Loma era constantemente chamada de “funkeira”30, evidenciando zonas classificatórias que apagam a terminologia “brega” ao vincular a cantora a um gênero musical. O trânsito de ocupação de playlists em plataformas de áudio (como o Spotify) também evidenciou uma zona turva em que se localizou o Bregafunk na ocasião de sua nacionalização. Quando a faixa “Envolvimento” ocupou a primeira posição das “As 50 mais virais” do Spotify, em fevereiro de 2018, ela se encontrava em playlists de Funk.

Só uma semana depois, a principal plataforma de consumo de música em streaming no Brasil criou uma playlist específica intitulada Bregafunk – e que trazia a imagem de MC Loma e as Gêmeas Lacração ilustrando a capa da referida playlist. Mais do que apontar equívocos ou evidenciar “erros”, o interesse aqui é perceber como estes mal-entendidos sobre os percursos das primeiras canções de Bregafunk reiteram tanto a hegemonia do funk como cancioneiro pop periférico brasileiro, quanto mostram uma série de marcações e apagamentos de outras expressões que circundam o gênero musical. Sobretudo aquelas vindas, por exemplo, de regiões fora do Sudeste, como o Nordeste do Brasil – que era o caso do Bregafunk.

Em fevereiro de 2018, outro famoso personagem já amplamente

conhecido no contexto de Recife emerge em destaque nacional. Alef Pereira, o Dadá Boladão, ganha reportagem no portal Kondzilla como aquele que vai “apresentar” o Bregafunk para públicos mais amplos, sendo apontado como “o cara que está construindo uma ponte sólida entre o som de Recife e São Paulo, sem deixar de perder o seu estilo próprio”31. Aquele ano foi inteiramente dedicado às negociações, contratações, tensões e deslocamentos de artistas do Bregafunk de Pernambuco para São Paulo. Como aponta Bento (2018), a intensidade de intercâmbios entre produtoras paulistas e artistas pernambucanos fez emergir uma série de “novidades” mercadológicas derivadas do Bregafunk, criando ora acentos mais românticos (como no “batidão romântico”), ora criando conexões mais evidentes com a cultura pop e a música eletrônica (como no “brega rave”).

O que o processo de consagração do Bregafunk revela é a aparição de dois processos sobre a produção e o consumo de música brega em Pernambuco. De um lado, a jovialização do cancioneiro bregueiro, a partir da conexão estética e sonora com o funk; de outro, a emergência de uma dinâmica que chamaremos de racialização da música brega, ou seja, o reconhecimento do protagonismo de artistas negros e negras e também sobre processos de silenciamento racial que integrou parte da história da música brega em Pernambuco.

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