Revista Pacs 30 anos

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2016

instituto pacs 30 anos




APRESENTAÇÃO Texto de Instituto PACS Ilustrações parte da identidade visual do Instituto

Integração latino-americana construída a partir do sul, articulações em torno da economia solidária e fomento à auto-organização de movimentos populares são alguns dos campos pelas quais o Pacs circula ao longo de 30 anos. Esta revista os celebra e rememora

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O Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) nasceu em 1986. No contexto da agenda econômica neoliberalizante, passamos a produzir pesquisas e práticas que apontavam para a necessidade de construir políticas socioeconômicas alternativas à lógica da rentabilidade a qualquer custo. Para nós, a vida sempre esteve acima do lucro. Por essa razão, fomos pioneiras/os na luta pela integração dos povos do Cone Sul e nas propostas de uma economia democrática e a serviço dos setores populares. Fomos ainda uma das instituições fundadoras dos movimentos de comércio justo e economia solidária no Brasil. Atuamos a partir de um tripé: Informação e Educação; Incidência sobre os centros de poder; e Inovações

na práxis do Desenvolvimento e da Democracia. Em nossa trajetória, construímos em prol de políticas alternativas para a economia do mundo, da América do Sul, do Brasil e do Rio de Janeiro, onde estamos sediadas/os. Nosso maior desafio tem sido difundir a ideia de que alterações pontuais no “modelo de desenvolvimento” econômico vigente não trazem soluções para os graves problemas econômicos e sociais de nosso país e de nosso continente. O caráter capitalista “mercadocêntrico” e concentrador desse modelo reduz desenvolvimento a mero crescimento ilimitado do consumo e da produção, ignorando os limites da natureza. Isso marca nossas sociedades com graves injustiças sociais e nos faz conhecidas/os como o “continente campeão da desigualdade” no mundo.

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Desenvolvemos pesquisas, trabalhos de assessoria local e construção de redes e articulações pautados pelo fortalecimento da população que vive do próprio trabalho, e pela necessidade de outro “modelo de desenvolvimento” econômico – endógeno, soberano, participativo, solidário e sustentável. Portanto, em vez de um capitalismo utópico e reformado, trilhamos em direção a um futuro que supere os traços desiguais e injustos que permanecem caracterizando nossas sociedades do Cone Sul da América Latina. Vivenciamos tempos de angústia para quem luta por justiça social no Brasil. Nós nascemos do processo de redemocratização, e agora nos vemos denunciando o golpe que levou Michel Temer ao poder. Esse golpe vem se concretizando na entrega dos nossos bens nacionais; e em retrocessos nos direitos de trabalhadores/as, mulheres,

população LGBT, estudantes, servidoras/es. Somos contra a PEC 241 – que agora vai à votação no Senado como PEC 55 – e todo o caminho de retrocesso que ela representa. Continuamos a acreditar na nossa capacidade de resistir, criar e se reinventar. O que aprendemos? Em que erramos? Quais nossos acertos? Que apostas deram certo? O que a conjuntura atual fala sobre um ciclo político iniciado há 30 anos? Num cenário de golpe, como afinamos as estratégias? Pensando essas questões, convidamos você a navegar por memórias de lutas, resistências e conquistas, registradas em reportagens, artigos, entrevistas e imagens a seguir. Fora Temer. Boa Leitura.

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SUMÁRIO

1986


1. Trabalho e Militância entrevista

Marcos Arruda: “Vivi a realidade do terrorismo de Estado” 06

reportagem

A cabeça na economia política e o coração nas ruas

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opinião

Berta Cáceres vive, de Joana Emmerick

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2. De lá pra cá da América entrevista

Fátima Mello: “O Pacs dialoga com vários mundos”

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reportagem

Pacs na construção da integração regional

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opinião

A luta contra o pagamento da dívida no Cone Sul, de Beverly Keene

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Linha do tempo

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gráfico

2016

3.

A teoria aliada à prática

entrevista

Sandra Quintela: “A dimensão ampla de análise do Pacs traz grande aprendizado”

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reportagem

Combater o capital e semear alternativas

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opinião

Economia Solidária como alternativa e crítica ao capitalismo, de Shirley A. A. Silva

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4.

Auto-organização na Zona Oeste

entrevista

Silvia Baptista: “A nossa união modifica as coisas”

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reportagem

De, para e entre mulheres

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opinião

UBUNTU: eu sou porque nós somos, de Marina Ribeiro

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Imagem: รกrea interna do escritรณrio do Pacs, anos 1990. Foto: Arquivo Pacs


1. trabalho e militância O Brasil estava mergulhado na redemocratização quando o Pacs abriu suas portas. A inspiração para a criação do Instituto vem dos anos de exílio e da vasta experiência em educação popular de Marcos Arruda


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en tr evi sta

Marcos Arruda

Socioeconomista, educador popular, noólogo e fundador do Pacs Iara Moura e Janaína Pinto Imagens: Arquivo Pacs

Marcos, se você pudesse dar um nome a sua profissão que não seja um nome que esteja aí, que nome você daria? Vou ter que ser muito criativo porque ninguém faz isso. Poderia dizer que sou um noólogo. Que tal essa? [Risos]. O que é um noólogo? Há um grande autor que admiro muito, Teilhard de Chardin. Ele é geólogo e místico, e conseguiu integrar ciência e espiritualidade. Ele percebeu que o problema da Igreja é o conceito do Divino completamente separado da vida, da matéria, da nossa existência. Inventaram um ser que está lá fora vigiando as pessoas. Ele diz assim: “Pela ciência, o que posso chamar de Divino é o princípio de vida que empurra a evolução sempre mais além, e que está em nós, em cada um, na natureza, no universo inteiro. Uma espécie de alma da matéria, alma viva – o princípio vital, que cria e sustenta a vida, mantém a evolução, permite que ela avance a partir dos seus potenciais, e, ainda por cima, tende a uma crescente convergência, à união”. Isso mudou minha cabeça lá nos anos 1960. E ele tem um conceito que vai além da biosfera. Existe a geosfera, a biosfera e a noosfera. A noosfera é a esfera do ser humano, um ser noético, capaz de projetar antes de fazer as coisas acontecerem, de 15


sonhar e depois atuar sobre si próprio e sobre o mundo para tornar real o que começa como sonho. A religião esteve presente no começo da sua caminhada e até hoje algumas agências parceiras do Pacs são partes de instituições religiosas. Como foi a influência religiosa da sua família? Eu vinha de uma família conservadora que tinha membros das Forças Armadas. Na frente da minha casa, estava o Morro de Santa Marta. Cresci ali defronte, na rua Sorocaba. As empregadas lá de casa vinham dali. A favela ainda era pequena. Eu nunca questionei porque elas moravam ali e porque eram pobres e tinham que trabalhar para nós. Fui pra faculdade com a convicção de que o comunismo era terrível, cortava a liberdade, acabava com os direitos das pessoas. Era preciso impedir que ele virasse governo, a todo custo. Quando estava na faculdade, entrei para a JUC, Juventude Universitária Católica. A JUC foi uma grande influência para eu entender criticamente o mundo. Como foi a decisão de ir trabalhar em

fábricas? Eu já vivia em São Paulo e militava na Ação Popular... Passei dois anos como metalúrgico. Esse tempo tá relatado num capítulo do livro Educação para uma Economia do Amor, da Editora Ideias&Letras. E como essa experiência operária colaborou para a trajetória do noólogo? A experiência na fábrica foi muito dura. Eu tinha um horário absurdo. Era uma empresa transnacional alemã, três mil operários. A jornada era de 12 horas por dia, seis vezes por semana, com frequentes horas-extra. A gente vivia exausto. O dinheiro que ganhava só dava pra três semanas de comer e se transportar para o trabalho. Depois, a gente passava a comprar fiado a comida e a acordar uma hora mais cedo pra ir pra fábrica a pé. Isso em São Paulo, a maior cidade da América Latina. Sem falar no trabalho político que era ajudar a organizar a base sindical, pesquisar e compartilhar os direitos dos operários e encontrar formas, numa época de ditadura, de não ser reconhecido como alguém de fora, que tinha facul-

Marcos Arruda e Nora Cortinãs, da Madres de Plaza de Mayo / Foto: arquivo Pacs

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dade... Tinha também a convivência com os companheiros, debates, discussões, trabalho educativo fora do espaço da fábrica. Era muito esforço e muito sofrimento pra pouco resultado. Depois, tive uma complicação no pulmão, devido ao ar muito poluído da minha seção na fábrica, tive que diminuir as horas de trabalho, e logo a empresa me mandou embora. Como foi pra você ter esse tipo de relação com o trabalho? Foi uma revolução maior ainda. Lembro que eu pensava: “Cadê os donos da fábrica, que usufruem do dinheiro que nós fazemos para eles? Moram na Alemanha! Eu e meus colegas nunca o vimos. E eles lá, ganhando o dinheiro que nós produzimos pra eles!” Fui percebendo: “Caramba, esses companheiros operários são heróis, lutam cada dia para manter a família e ainda vão ao sindicato, sofrem riscos, alguns são presos, torturados, e quando são libertados voltam pra fábrica, porque não têm outra escolha”. Quando fui preso como operário, tive escolha. Estou aqui até hoje, não tive que voltar pra fábrica. Você foi demitido por causa do problema pulmonar e, quando estava procurando um novo trabalho como operário, foi preso. Nesses nove meses em que ficou nas mãos do Estado ditatorial, você pensou em desistir? O que rondou os pensamentos enquanto esteve lá? Primeiro o sentimento: pleno terror. Vivi a realidade do terrorismo de Es-

tado. Durante nove meses, fui levado à tortura apenas duas vezes, mas a ameaça era diária e permanente. O pensamento era: “Como é que vou resistir sem entregar ninguém?”. No dia seguinte ao da minha prisão pela Operação Bandeirantes, em São Paulo, eu muito estourado pela tortura, fui colocado num banheiro onde já havia uns quatro outros presos. Lá encontrei um médico trotskista que me conhecia. Ele panfletava na porta da minha fábrica, e a gente conversava. Então ele senta na tampa da privada e me fala: “Marcos, o que eu faço pra aguentar a tortura?”. Essa pergunta me fez teorizar o que eu tinha vivido. Eu disse: “Primeira coisa, se você não tiver um amor aqui [aponta para o coração] e não aqui [aponta para a cabeça]... Um amor pelos teus companheiros operários, pela classe trabalhadora. Não a classe abstrata, mas pessoas que você conhece, que você admira, respeita e ama. Se você não tiver esse amor, vai ser difícil aguentar. Porque o compromisso racional é muito fraco. Vem um monte de tentações racionalizantes na hora: ‘Se você sobreviver, vai poder continuar na luta, então faça tudo pra sobreviver, não importa o quê’. Isso quer dizer entregar outros. E aí é que deve vir uma contra ação que vem daqui de dentro, que diz: Você não pode entregar ninguém. E, se você morrer, outros vão continuar’. É mentira do torturador que a minha guerra acabou. Não há a minha guerra! A guerra não é minha! É do povo brasileiro; é do povo do mundo contra toda opressão. Eu não posso achar que

“...se você não tiver um amor aqui [aponta para o coração] e não aqui [aponta para a cabeça]... Um amor pelos teus companheiros operários, pela classe trabalhadora. Não a classe abstrata, mas pessoas, que você conhece, que você admira, respeita e ama. Se você não tiver esse amor, vai ser difícil aguentar. Porque o compromisso racional é muito fraco...”

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a minha morte acaba tudo. Esse trabalho interior é dificílimo se você não tiver esse combustível amoroso te alimentando”. Essa foi a primeira coisa que eu falei pra ele. Como você avalia o resultado da Comissão Nacional da Verdade? Ali [estamos no quarto de Marcos, ele aponta para a estante de livros que ocupa boa parte da parede] tem dois volumes do relatório da Comissão Nacional da Verdade, e aquele é o livro dos mortos e desaparecidos [um livro grosso, de capa dura, aberto no meio da prateleira próxima ao chão, onde está o tapete de yoga]. Ele está aberto na página do meu amigo que desapareceu no Araguaia, o Pedro Alexandrino de Oliveira. Eu prezo imensamente o trabalho da Comissão! Lamento que a Dilma só tenha dado dois anos, porque é um trabalho gigantesco, pesquisar os milhares de perseguidos, presos, mortos pela ditadura. A Comissão devia ter status permanente, pois são milhares de pessoas a pesquisar. Tentamos ajudar de todo jeito. Ofereci o meu caso, que era emblemático, e estou até hoje conectado com esse trabalho. Acho terrível que o governo Temer tenha emasculado a comissão: substituiu a maioria dos membros e praticamente anulou seu mandato. É um sinal a mais do quanto o governo golpista de Temer é, de fato, uma ditadura civil. É certo que ele tem militares sendo preparados para intervir em qualquer necessidade. Sempre que quiserem reprimir as manifestações críticas ao governo, eles vão botar as polícias e os militares na rua. Estou muito apreensivo com a situação. Você pode falar um pouco sobre a diferença entre catequização do proletariado e educação popular de emancipação? Essa é uma das coisas mais caras pra nós do Pacs. A ideia de que não somos

protagonistas, líderes da luta dos trabalhadores. Nós somos um apoio. O intelectual orgânico, como diz Gramsci, é aquele que está integrado no organismo social e que ajuda a pensar a realidade, para que os atores da transformação, que são os trabalhadores e trabalhadoras, atuem. Ao mesmo tempo, como cidadãs e cidadãos, nós do Pacs também somos trabalhadoras e trabalhadores. Na época [do nascimento do Pacs], adotávamos a ideia de que o operário assalariado seria a liderança, mas o capitalismo estava mudando. Eu, lá atrás, já vinha falando com a CUT: “É preciso se abrir para um outro campo de militância, procurar construir outra economia, com cooperativas, associações”. E a resposta de alguns dirigentes, até no governo Lula, era: “Não, isso não pode ser. Quando o operário vira dono de empresa, ele vira burguês”. Uma cooperativa é um lugar onde o dono da empresa trabalha. Ele não é um capitalista. Ele é um trabalhador no controle do seu instrumento de trabalho. Isso é uma libertação. Isso criou grandes debates dentro da CUT, até eles aceitarem entrar no movimento de Economia Solidária. O grande objetivo do trabalho do Pacs é ajudar os trabalhadores e as trabalhadoras, e todos aqueles que se relacionam conosco, a se tornarem sujeitos do seu desenvolvimento como pessoa e como coletividade. Eu não sou o empoderador de ninguém. Como dizia o Paulo Freire sobre educação: ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho, nós nos educamos em comunhão. Essa é a grande lógica da ação libertadora. O eixo da educação é o educando e não o educador. O educador é um mero apoio, instrumento, guia, mas tudo depende do educando. Toda a sua autoconstrução depende dele e dela. Isso tem marcado o nosso trabalho com

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educação popular desde os anos 1980. Quem observa o trabalho do Pacs sabe que existe uma centralidade muito grande na dimensão econômica. Na caminhada, surgiram alguns conceitos que foram desenvolvidos a partir da prática. Quais conceitos você diria que são mais caros ao Pacs? As esferas micro, meso e macro formam um conjunto conceitual importante. A ligação e a interdependência entre elas orientam nosso trabalho educativo e político. Por isso a gente continua ligado à América Latina – temas continentais, integração regional, solidariedade entre os povos – ao debate sobre a crise de civilização e aos desafios da transição para uma civilização qualitativamente superior. Outro ponto é entender que o conceito de desenvolvimento como apenas crescimento econômico é muito empobrecedor. Crescimento é uma coisa, desenvolvimento é outra. Você cresce até os vinte anos e então para de crescer. O que sobra? Continuarmos nos desenvolvendo, no plano qualitativo. Por que com o país tem de ser diferente? Tem que ser assim também. Crescer até um certo ponto, depois manter o bom viver de todos e desenvolver o que é peculiarmente humano, as grandes qualidades do ser humano: comunicação, sentimento, emoção, afeto, amor, beleza, arte. É pra isso que nós estamos aqui. O resto é meramente a nossa dimensão animal. Trabalhar só para sobreviver é o que faz um tigre caçando. Nós também estamos caçando até hoje. Por isso frei Betto diz: “A nossa sociedade é tão atrasada que ainda estamos na luta pelos nossos meros direitos animais”. Ainda estamos nesse nível. Então, o nosso objetivo é romper a escravidão do trabalho que o capitalismo fecha em torno de nós, e ganhar a liberdade

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de desenvolver o que é especificamente humano. Esse é o grande objetivo da luta econômica: é ela viabilizar a libertação de todos e todas para nós chegarmos a essa etapa realmente humana de existência na Terra. 30 anos depois da fundação do Pacs, o que você tem a desejar pro aniversariante? Tem várias respostas pra essa pergunta. A primeira e mais importante: gostaria que o Pacs um dia não precisasse mais existir, porque ele existe só em função desse caminho de libertação. Se a gente, um dia, chegar ao grande objetivo que é o povo consciente e dono do seu próprio caminhar histórico e do desenvolvimento dos potenciais que ele carrega em si em harmonia com o meio natural, nós não vamos precisar mais fazer o que fazemos. Esse é o primeiro desejo: que o nosso povo e a nossa América Latina libertem-se, e que nós deixemos de ser necessários. Segundo: enquanto existe essa realidade, gostaria que o Pacs continuasse por mais trinta anos, pelo menos, e que, cada vez mais, conseguisse ampliar recursos materiais e humanos pra realizar esses objetivos que nós temos. Também gostaria que o Pacs, cada vez mais, percebesse a profunda complementaridade entre transformação social e transformação pessoal. Acho que isso ainda não está sedimentado entre nós. Ainda há um espírito de militância muito pra fora. Às vezes, perde-se de vista que o empoderamento para o desenvolvimento é tanto de cada uma e cada um de nós, como sujeitos, quanto de todas as classes trabalhadoras, de todos os povos.


“Crescimento é uma coisa, desenvolvimento é outra. Você cresce até os vinte anos e então para de crescer. O que sobra? Continuarmos nos desenvolvendo, no plano qualitativo. Por que com o país tem de ser diferente? Tem que ser assim também. Crescer até um certo ponto, depois manter o bom viver de todos e desenvolver o que é peculiarmente humano, as grandes qualidades do ser humano: comunicação, sentimento, emoção, afeto, amor, beleza, arte. É pra isso que nós estamos aqui”.


r e po rtage m

A cabeça na economia política e o coração nas ruas Filhas do exílio e da América Latina, as práticas do Pacs costuram a investigação dos grandes temas econômicos desde abajo, com uma presença ativa nas lutas cotidianas cariocas, brasileiras, latino-americanas e mundiais


Janaína Pinto Imagens: Arquivo PACS

O envolvimento com as conjunturas e os eventos da vida política É uma presença cotidiana no Pacs desde o começo. Em 1986, fomos a favor de uma Constituição cidadã; hoje somos contra o golpe de 2016. O engajamento com as ruas é evidente, a partir dele nascem parcerias e diretrizes

No dia 24 de setembro de 1986, nascia o Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). O Rio de Janeiro e o Brasil estavam em plena campanha eleitoral para governos estaduais. Um periódico carioca de grande circulação trazia capa cheia de intrigas políticas. Leonel Brizola, então governador fluminense, subia no palanque, imitava de maneira pitoresca um gato angorá e dizia que era o Moreira Franco, enquanto apoiava a candidatura de Darcy Ribeiro. O país como um todo vivia a redemocratização pós-ditadura e as expectativas pela nova Constituição. Era um apelo urgente semear uma compreensão ampla da participação popular na construção da nova Carta Magna brasileira, e as pessoas envolvidas com o Pacs não apenas sentiam o aceno do momento histórico como também trabalhavam em prol dele no dia a dia. O professor universitário e militante da Pastoral Operária Percival Tavares da Silva convive com o Instituto desde aqueles tempos e lembra: “Uma nova Constituição era uma bandeira dos movimentos sociais desde antes das Diretas Já. Só que nós queríamos uma Constituição com caráter participativo, não fazia sentido ser feita pelos mesmos homens. A nossa briga era para estarmos envolvidos no processo”. Pensando nisso, tanto a Pastoral quanto o Pacs integraram o Movimento Popular Constituinte e elaboraram cartilhas estimulando a Pesquisa do Pacs/Pries analisou as dívidas externas de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai (Série Materiales de discusión, V. 3).


A construção de outra economia é alicerce da ação do Pacs há três décadas participação da população na elaboração da Carta. A Constituição de 1988, vigente ainda hoje, foi promulgada em 5 de outubro, mas o trabalho pela democratização do país segue relevante e sob constante ameaça. Para além da conjuntura, quem detém o poder? 30 anos atrás, os jornais estavam também apinhados de notícias sobre dívida externa brasileira, concessões de empréstimos, estados endividados. As instituições bancárias – e o palavreado que lhes é característico – protagonizavam as notícias sobre economia política na grande mídia. No entanto, as engrenagens que sustentam o modelo econômico e político dominante trabalham para além das manchetes dos jornais e exigem olhar aguçado e constante atenção. Elas vitimizam populações inteiras e sequer convivem diretamente com o resultado da acumulação predatória de poder e dinheiro que desempenham. Uma das tarefas do Pacs é ficar de olho nelas. Assim, a primeira pesquisa empreendida pelo Instituto foi sobre o sistema financeiro do país: quem detinha o poder das finanças nacionais naquele momento histórico? Toda a equipe se viu empenhada na investigação, e

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logo o Sindicato dos Bancários se interessou por conhecer o trabalho. Depois, o esforço inicial acabou levando a outra questão: a imensa quantidade de terras brasileiras que eram posse dos bancos. Então, foi a vez do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vir atrás de uma parceria. Com a confiança estabelecida, o Pacs seguiu desempenhando o papel que foi fundado para cumprir: prestar assessoria a protagonistas da luta social movimentos, sindicatos, pastorais, coletivos, comitês, redes, associações. Marcos Arruda, socioeconomista, educador popular e fundador do Pacs, rememora: “Em 1987, a CNBB [Conferência Nacional de Bispos do Brasil] se juntou com algumas igrejas protestantes e mandou uma delegação à Alemanha para discutir dívida externa brasileira, desenvolvimento e capital alemão. Eles pediram assessoria nessa viagem. Lá fui, com uma delegação de igrejas cristãs. Foi importantíssimo eles nos terem para questionar as autoridades alemãs”. Um ano depois, saía o primeiro ensaio publicado pelo Pacs, sobre a evolução da dívida brasileira desde os governos da ditadura empresarial-militar. Nele, assuntos recorrentes nas páginas de jornais eram tratados de maneira


1998: equipe do Pacs em visita a Cooparj Cooperativa de Parafusos

aprofundada e divulgados para a sociedade, com uma perspectiva crítica e um compromisso com a possibilidade e a necessidade de mudança social. A prática se perpetua até hoje: os estudos impressos e digitalizados são distribuídos e lançados algumas vezes por ano (Leia mais sobre o assunto na seção três). Desde abajo y adentro A busca pela articulação internacional, principalmente latino-americana, começou a partir da própria fundação do Pacs (Leia mais sobre o assunto na seção dois). Ela foi a responsável por inúmeras correspondências, viagens e campanhas continentais. Também é ela quem permite uma visão ampliada e informada dos grandes temas – dívida pública, transnacionais, acordos comerciais interestatais. O diálogo com grandes movimentos sociais e instituições reconhecidas

nacionalmente – como foi o caso da CNBB, do MST e de tantos outros – também faz 30 anos este ano. Todo o panorama construído por essas conexões potencializa e pluraliza o tipo de assessoria prestada pelo Pacs. Mas existe ainda outro exercício realizado pelo Políticas Alternativas: o de procurar se envolver na construção de outro tipo de produção de riqueza. Isso porque, se uma das tarefas é estar de olho em como funciona o moinho compulsivo do capital, desenvolver as pesquisas, sistematizar as descobertas e espalhá-las entre agentes sociais de luta; a outra, o reverso da mesma moeda, é tão ou mais importante. Pouco antes da metade dos anos 1990, à medida que parcerias com movimentos sociais começaram a dar frutos, a confiança entre Pacs e grupos populares de territórios periféricos da cidade do Rio de Janeiro começou a

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Fórum Social Mundial 2003, Porto Alegre Foto: arquivo Pacs

ser construída através da escuta atenta, da perseverança e da educação popular libertária. Educação popular, do cafezinho ao megafone Autonomia é uma palavra muito prezada por aqui. Antes mesmo de o Pacs começar, já se desenhavam os princípios que lhe orientariam a prática pedagógica. Se movimentos sociais, organizações populares autônomas, sindicatos etc. são protagonistas da luta social, as pessoas que lhes prestam assessoria não sobem no palco, não detêm a verdade, nem deixam de ser, elas mesmas, educandas. O sentido do trabalho é semear, construir junto, viabilizar. Para fazer acontecer, o que não falta é trabalho. A educadora popular e atual coordenadora-geral do Instituto Sandra Quintela resume assim: “É pedagógico varrer o chão de onde você

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dará palestra. É importante a conexão com a materialidade da vida, porque senão a gente esquece que ela existe”. Para estimular autonomia, fundamental é lembrar como cultivar a existência, desde os mínimos detalhes. Então, em 1984, Marcos Arruda já estava com o pessoal da Oposição Sindical Metalúrgica, no Vale do Aço, em Minas Gerais, procurando propagar autogestão. O seminário era sobre análise de conjuntura, mas ele não estava ali para desenhar um esquema do que fosse isso. Em vez disso, o educador passou adiante a metodologia usada por ele mesmo para analisar a conjuntura. A ideia era que o pessoal fizesse a própria análise, e tomasse decisões sobre o que a leitura apontava como ações cabíveis para o futuro. Mais de três décadas depois, cenas semelhantes se repetem. Em 2015, Sandra Quintela e Paula Máiran, pre-


sidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro, seguiram a mesma cartilha em fala durante o Seminário Olhares Feministas sobre a Economia Política e o Mundo do Trabalho. De que é feita a democracia? A maneira como foram conduzidos os trabalhos da constituinte brasileira foi o resultado de anos de construção política de movimentos sociais pela democratização do país. O Diário da Constituinte era um boletim em vídeo que passava todos os dias na TV Nacional – uma emissora de televisão brasileira que transmitia o sinal da Radiobrás em Brasília – durante o período das reuniões em torno da nova Constituição. Na primeira edição do programa, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), convidou toda

a população do país a participar da construção da Carta Magna. As nove comissões e as 24 subcomissões da Assembleia receberam emendas propostas por entidades sociais, a maioria das quais não foi atendida. Entretanto, alguns direitos – como a licença -maternidade de 180 dias – passaram. Essa vitória das mulheres, por exemplo, foi resultado de uma movimentação de fora da Constituinte, que conseguiu mais do que as 30 mil assinaturas necessárias para fazer propostas populares à redação constitucional e levou suas demandas à ANC. No entanto, nem só de uma Constituição com participação popular se faz democracia real. A batalha pelo julgamento e reconhecimento dos atos de tortura e assassinato realizados pelo Estado ditatorial empresarial-militar passou muitos anos para começar a dar frutos.

A educação popular é a maneira de o Instituto se aproximar de territórios que têm muito a ensinar

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A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída pelo governo do Partido dos Trabalhadores (PT), em 2012, foi o começo de uma reparação histórica que ainda tem muito por andar, sob pena de repetirmos outra e outra vez a mesma cartilha autoritária. Marcos Arruda colaborou com a CNV pelos dois anos de atividade dela e, embora reconheça o avanço que ela representou no contexto brasileiro, lamenta ainda não conseguirmos levar adiante os julgamentos: “Na Argentina, no Chile, no Uruguai, todo mundo

foi preso. Até ditador morreu com 80 e tantos anos, preso em casa. E nós aqui? Nenhuma palavra sobre o crime que foi o golpe, os crimes da ditadura”.

Relatório produzido pelo Pacs/Pries sobre o banco Bradesco e a dívida social e ecológica. Foto: arquivo Pacs

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art i go

Berta Cรกceres vive Nossos corpos sรฃo nossos territรณrios, os primeiros espaรงos onde precisamos ter nossos direitos respeitados em uma democracia


Joana Emmerick, coordenadora adjunta do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul

Às vésperas do dia oito de março de 2016, dia internacional de luta das mulheres, deparamo-nos com a terrível notícia do assassinato de Berta Cáceres Flores, em Honduras. Bertita, como era chamada pelas/os companheiras/os, era uma liderança indígena, feminista, defensora da terra, da água e dos direitos dos povos. Base contundente na resistência ao golpe de Estado sofrido pelo ex-presidente Manuel Zelaya, em 2009, denunciava a mão imperialista dos Estados Unidos e o avanço de suas bases militares na região. Berta vivenciava e denunciava os retrocessos na garantia de direitos frente ao avanço da direita e seus projetos de morte na América Latina. Grandes corporações transnacionais adentrando, a cada dia, por este solo sagrado, com a anuência dos Estados, expropriando vidas e sonhos. Corajosamente, gritou aos quatro ventos a relação

entre a ofensiva extrativista e a crescente militarização dos territórios em Abya Ayala; fazia-o sempre ressaltando que a violência inerente a esses processos é também sexista e racista. Mas, nesses casos, os impactos sobre a vida das mulheres permanecem ainda silenciados. O protagonismo feminino nas frentes de luta também. Quantas lutadoras resistem aos grandes projetos de morte que avançam dia após dia na América Latina e na periferia global? Lutadoras incansáveis, invisibilizadas posto que se movimentem nas agruras e nos subterrâneos da disputa por controle dos territórios. Para vermos esses impactos precisamos compreender uma dimensão do todo que envolve as vidas no cotidiano. A conformação das condições de vida cotidianas de quem habita os territórios. Cotidiano é o que fazemos todos os dias para viver e sobreviver: é o que

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Na imagem: Berta Cáceres Crédito: http://bertacaceres.org/portada/

comemos, a água que bebemos, o trabalho da casa e da rua, as filhas e filhos que cuidamos, a horta que plantamos, a casa em que moramos, os trajetos que fazemos, as relações sociais em que nos inserimos. É o transporte para casa, é o casamento, o amor, o sexo. Cotidiano é onde nos situamos, como sujeitas de corpo, mente e espírito. Socialmente as mulheres são responsabilizadas pelos cuidados, protagonizando a cotidiana garantia de produção de vida. E, não à toa, estão na linha de frente de tantas dessas batalhas. Berta Cáceres era e é todas nós. Bertita era uma grande liderança, reconhecida internacionalmente, protegida por uma série de organizações de direitos humanos. Ainda assim, ela não foi assassinada em um comício, em uma passeata, como tantas figuras públicas, masculinas, na história. Berta foi assassinada em sua casa, em sua cama. Lugar onde tantas outras Bertas são violentadas e assassinadas todos os dias. Há uma forte mensagem embutida em seu assassinato, ela é direta e é entendida desde nosso sentir feminista. A violência contra nossos territórios é mais uma expressão da violência sobre nossos corpos. A violência contra nós, mulheres, é resultado da correlação de forças no quadro de disputas por con-

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trole territorial. No final de 2015, Francisca das Chagas Silva, mulher negra, quilombola, lutadora do campo e sócia do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Miranda do Norte, no Maranhão, foi brutalmente assassinada com sinais que deixavam claro, à nós, mulheres, uma mensagem de subjugação sexual. Um mês antes de ser assassinada, Francisca, margarida, marchava pelas ruas de Brasília junto a tantas outras flores, trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, além das trabalhadoras das cidades, que ocupavam as ruas demandando um processo de desenvolvimento democrático, com garantia de igualdade, liberdade, autonomia e justiça. Nilce de Souza Magalhães, Nilcinha, era pescadora, ribeirinha, militante pelo Movimento dos Atingidas/os por Barragens (MAB) em Rondônia e desapareceu semanas depois do assassinato de Francisca Margarida. Desapareceu de sua casa, enquanto cozinhava o almoço e lavava a roupa. Dois assassinatos ocorridos em territórios disputados pelo capital. Um no contexto da mineração/siderurgia, em Honduras. Outro no contexto das hidrelétricas, no Brasil. Projetos absolutamente fálicos, pelo simbólico masculinista que mobilizam em sua


Socialmente as mulheres são responsabilizadas pelos cuidados, protagonizando a cotidiana garantia de produção de vida. não à toa, estão na linha de frente de tantas batalhas sociais imponência e na finalidade de suas atividades. Grande parte dos produtos resultantes da atividade mineradora/ siderúrgica, por exemplo, é destinada a alimentar a guerra contra povos que resistem, como a arma que matou Berta. Tais atividades implicam impactos concretos na vida das pessoas nos territórios que usurpam – fortalecimento das redes de exploração sexual e infantil, do tráfico de mulheres, desarranjo do tecido social cotidianamente costurado pelas mulheres, expropriação de terra e saberes, precarização e destruição de formas alternativas de produção de vida, entre outros. Sua instalação se dá em territórios que apresentam altíssimos índices de violência urbana e contra as mulheres, especificamente. Esses são apenas exemplos de como um grande projeto de desenvolvimento “feminiza” o território para seu controle, subjugando todas as forças e expressões históricas que o conformavam e gerando um efeito em cadeia de subordinações. Os corpos das mulheres e outros corpos feminizados estão implicados, esses corpos vão sendo

marcados. Berta Cáceres, Francisca das Chagas Silva, Nilce de Souza Magalhães, tantas outras que alçaram voo, pelas outras que seguem marcando caminhos. Suas lutas, nossas lutas, não serão em vão. Carregamos no sangue a urgência. Uma urgência histórica. A sociedade nos impôs sermos “guardiãs” da terra e da vida – todos os dias lutando pra alimentar sua gente, ter um teto sob o qual dormir, garantir sua saúde, seu bem estar, água pra beber, pra se banhar – não imaginavam a radicalidade que isso nos imporia, necessariamente. Radical é raiz, o que sustenta caules e troncos, mesmo que invisibilizada. As raízes são fundamentais na definição dos sentidos em que crescem as folhas e as copas das árvores, sustentam também sua milenar resistência. É preciso apropriar-nos dessa força para avançar. Aconteça o que acontecer, valerá a pena. Basta de violência e dominação sobre nossos corpos e nossas vidas. Somos todas companheiras.

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Imagem de bandeira produzida pelo Comitê Popular de Mulheres da Zona Oeste - RJ em homenagem à memória de Berta Cáceres




Imagem: campanha contra a Alca, Brasil, 2004. Foto: arquivo Pacs


2. De lá pra cá da América O sol comum é a bandeira que une desejos de justiça, do México à Terra do Fogo. As dores, desigualdades e opressões unem os povos de todo o continente em gritos de denúncia e sonhos de alternativas solidárias


e n trevi sta

Fátima Mello: “O Pacs dialoga com vários mundos” Assessora de Direitos Humanos da Anistia Internacional. Janaína Pinto Imagens: Arquivo pessoal

O Pacs nasceu logo no final de um período de ditaduras militares latino-americanas, e a formalização de redes continentais aconteceu posteriormente, ao longo da década de 1990. Durante o período totalitário do continente, já existiam articulações continentais de solidariedade? Tudo que a gente fez depois tem muito a ver com o campo unitário de luta que se construiu durante as ditaduras. No caso brasileiro, formou-se uma frente ampla contra o regime. Depois, a gente soube desdobrar essa unidade em frentes mais plurais. Diante do golpe que sofremos, hoje precisamos voltar a olhar para a articulação que fizemos durante e depois da ditadura. Como se deu a formalização dessas redes, a partir da década de 1990? No Brasil, os anos 1980 foram muito marcados pela Constituinte. Foram

criadas várias emendas populares para a criação da Constituição de 1988, que agora está sendo desmontada. Foi um período de muita mobilização e articulação entre diferentes forças sociais para conseguir um marco de direitos. Nos anos 1990, o neoliberalismo passou a exercer hegemonia muito forte na nossa região, e a gente começou a perceber que havia uma luta regional comum; em especial, quando começou a construção da Alca, mas também o Nafta [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio] e a OMC [Organização Mundial do Comércio]. Em 1997, a gente criou a Aliança Social Continental, que juntava diversas forças sociais das Américas – do Canadá ao Uruguai. Naquele momento, iniciamos o processo de luta continental, que foi muito inspirador. A Aliança Social Continental, junto com o Jubileu Sul, a Cloc [Coordenadora Latino-America-

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na de Organizações do Campo] e várias outras forças constituíram um bloco unitário, a Campanha Continental contra a Alca, e nós saímos vitoriosos. Foi uma luta muito dura, mas a gente conseguiu juntar todo mundo. Existiam fortes expressões da campanha dentro dos territórios de atuação das entidades articuladas. Desde esse momento inaugural, o Pacs foi um ator central, não só na campanha continental, como na Brasileira. Ele foi articulador, produtor de conteúdo e ponte entre as diversas forças sociais. Aliás, o Pacs sempre teve essa característica de dialogar com vários mundos: ONGs, movimentos sociais, partidos, movimento sindical. Quais os maiores desafios de trabalhar em prol da integração dos povos no contexto brasileiro? São muitos, mas acho que o central é conseguir discutir o modelo de desen-

volvimento levando em consideração as injustiças ambientais. Uma coisa é dizer: a gente precisa ter crescimento econômico para gerar e distribuir renda. Outra é dizer: a gente precisa de crescimento econômico para distribuir – nisso, todo mundo concorda – mas não em prejuízo de amplos setores da sociedade brasileira, que sofrem os impactos desse modelo. Os partidos que deram sustentação à luta [pela distribuição de renda] desde os anos 1980 não conseguem, no Brasil, trazer esse debate; ao contrário do que acontece em outros países na América do Sul, como Equador e Bolívia. As esquerdas [que chegaram à presidência] desses países discutem a questão do petróleo, a exploração da natureza, as injustiças ambientais, a expropriação das populações indígenas e camponesas. Até porque essas populações são muito centrais na condução

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do processo político nesses países. No Brasil, nunca houve governo nacional com hegemonia da esquerda; as esquerdas que atuaram no governo nacional brasileiro, durante o chamado ciclo progressista na América Latina, têm muita resistência a esse debate. Isso divide nosso campo. Nesse ponto, também o Pacs desempenha um papel central, porque procura decodificar o debate e dialogar com as diferentes visões. Grandes temas como o combate à dívida, atuação predatória de transnacionais e à violência estatal ainda são caros na pauta das atuações de redes latino-americanas. Você diria que, ainda hoje, combatemos o imperialismo? Temos que manter nossa reflexão centrada no anti-imperialismo, mas precisamos superar as dificuldades de muitos setores de aceitar que a luta anti-imperialista tem de estar combinada com as lutas contra injustiças sociais e ambientais. Por exemplo, no caso dos Brics e a discussão sobre a presença do Brasil na África; quem faz a luta anti-imperialista, olha e pensa: nossa articulação é com a China, é a possibilidade de a gente criar uma força contra-hegemônica de verdade.

Mas, se você olha o que os chineses estão fazendo nos territórios – não só aqui no Brasil, mas na América do Sul toda e em vários países da África, você pensa: pra ser uma alternativa contra -hegemônica, tem de ser em relação ao imperialismo, mas também ao capital transnacional e aos impactos que ele tem nas populações que estão sendo expulsas e expropriadas. É um desafio manter a luta anti-imperialista – e acho que no próximo período ela será crucial, mas é preciso combiná-la à luta contra o que temos visto de impactos nefastos das alternativas anti-imperialistas sobre a dinâmica dos territórios em luta. O que você observa que as dinâmicas desses lugares têm sinalizado? Vamos observar dois setores brasileiros: mineração e agricultura. Esses territórios têm dito: “O lugar do Brasil na aliança com a China como fornecedor de matéria-prima – minério de ferro, soja – é impossível como alternativa para nós”. Há toda uma articulação dos afetados pela mineração e dos movimentos sociais do campo contra o avanço dos grandes projetos da soja, do eucalipto, da cana, etc. O Brasil, inclusive, acabou exportando


esse modelo de grandes projetos agrícolas para países na África, em especial Moçambique, o que coloca os povos afetados em uma luta conjunta. O que esses territórios estão dizendo é que as alternativas precisam nascer das lutas deles. Os movimentos sociais no campo já têm uma proposta de alternativa, formada ao longo de décadas de luta: a agroecologia. O Brasil pode oferecer um outro modelo agrário pro mundo. Para isso, é preciso romper a combinação de uma estrutura agrária colonial – que vem das sesmarias e que reflete sobre a bancada ruralista do Congresso Nacional uma lógica do século XVI – com a cadeia transnacional do agronegócio – do século XXI. A articulação que hoje o agronegócio brasileiro

tem com as grandes transnacionais da indústria alimentícia e com o capital financeiro é absurdo. É tudo junto e misturado: Bradesco, Monsanto, Bayer... Eles precisam da terra concentrada na mão de poucas pessoas, como é a do Brasil. Aqui, quase metade da terra está na mão de 1% de proprietários. É isso que faz do Brasil esse horror e que massacra as populações nos territórios! Por isso são muito necessárias as alianças com quem vive nos territórios, são deles que saem as alternativas e são eles que sinalizam quando o desenvolvimento não está funcionando.



r e po rtage m

Pacs na construção da integração regional Pautando o “não” ao pagamento de dívidas, às transnacionais e às áreas de livres opressões, o trabalho o Pacs é “suleado” pelo chão da América Latina, na construção de lutas que gritam lá e cá


Thiago Mendes Imagens: Arquivo PACS

Conta a milonga Los Hermanos, do argentino Atahualpa Yupanqui, que temos tantos irmãos que não é possível contá-los. A fraternidade latina que se espalha por vales, montanhas, pampas e à beira-mar do continente é a de um povo “com mãos quentes”, “com um horizonte aberto que está sempre mais ali, e essa força por buscar”. “Por isso a amizade”, explica o compositor no meio da canção. O Instituto Pacs, que leva o Cone Sul no nome de nascimento, surge do ideal de integração dos povos do continente colonizado pelos ibéricos, marcado pela ocupação que deixou uma dívida histórica de pobreza e desigualdade. Tudo nasceu de um encontro entre quatro economistas exilados em Paris


Na imagem: movimentos sociais fazem protesto contra a Alca em frente ao Copacabana Palace no Rio de Janeiro em 2004

O estudo “Os Grandes Grupos Econômicos e a Terra” revelou o grau crescente de concentração do controle da terra e dos recursos públicos destinados à agricultura no Brasil por parte dos grupos bancários/financeiros e de empresas nacionais e transnacionais

para estudos de doutorado. Os economistas reunidos, todos homens, sugeriram criar as bases de um Programa Regional de Investigações Econômicas e Sociais para o Cone Sul da América Latina. Um nome grande, do tamanho dos ideais para a democracia, que voltava a brotar. A parceria regional do Pacs com o Pries/Cone Sul se manteve formalizada até novembro de 1995. Pesou na ruptura uma série de divergências entre os membros do Programa, principalmente por causa do ingresso institucional dos membros em partidos políticos, no caso dos outros países. O caminho tomado pelo Pacs foi o de seguir independente. Suleando lutas Sem escritório próprio até 1987, o Instituto buscou guarida jurídica no Centro de Estudos, Pesquisa e Planejamento (Cenpla), presidido, à época, por Waldo César. A sistemática inicial do trabalho consistia no contato com as entidades de trabalhadores/as mais combativas nos quatro países. Procurava-se a construção de formas alternativas de poder, centradas nas mulheres e nos homens que vivem do seu trabalho; a pesquisa sobre os temas de maior significado para a classe trabalhadora; e a divulgação dessas pesquisas na forma de publicações, seminários, cursos, artigos e entrevistas. A palavra-chave de interesse de pes-

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quisa, até o fim da década de 1980, era “poder”. Ou melhor, entender que atores, valores, interesses, instrumentos de ação e persuasão, propostas e estratégias estavam por trás do poder – fosse o estabelecido, fosse o alternativo. Foi assim desde o primeiro estudo publicado: Os Grandes Grupos Econômicos e a Terra. Muitos dos temas de pesquisa, incidência e educação popular vigentes até hoje no Pacs acompanham o Instituto desde o seu nascimento. É o caso dos debates em torno da dívida pública, das transnacionais e dos tratados regionais. Tanto é que data de 1988 a primeira pesquisa sobre o endividamento externo realizada pelo Instituto. 12 anos depois, em 2000, o Instituto ajudou a promover um plebiscito popular sobre o tema. Além da dívida, o Pacs também sempre acompanhou com olhares críticos os projetos de “integração comercial” das Américas – como o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Aliança de Livre Comércio das Américas (Alca), além da atuação da Organização Mundial do Comércio (OMC) no continente. Em contraposição a isso, apostou de maneira persistente na formação de redes populares continentais – como a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais (RB), a Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip) e a Rede Jubileu Sul. “Nossa capilaridade continental


O financiamento inicial para o Pries foi dividido entre os quatro países. Os recursos eram tão escassos que, em 1987, o Pacs empregava apenas Marcos Arruda e Artur Cícero de Araújo, então formando em Ciências Sociais e Políticas. O salário de Marcos era dividido com Artur. Não havia dinheiro sequer para a compra de material de informática

se deve muito aos temas trabalhados. O tema da dívida é internacional, o dos tratados de livre comércio, como a Alca, também”, avalia Sandra Quintela, educadora popular e atual coordenadora-geral do Pacs. Dessa interação, veio a força para estar ombro a ombro com instituições de países vizinhos na formação da Aliança Social Continental, cujo objetivo era combater em todo o hemisfério o projeto imperialista. “Não à Alca! Outra América é possível!” era o lema da articulação. Sob o olhar atento da Aliança, estava o “tripé do imperialismo”: tratados de livre comércio, privatizações, transnacionais; dívida pública, capital financeiro, bancos; e militarização da segurança, criminalização dos movimentos sociais. Outras articulações de destaque foram as Cúpulas dos Povos das Américas – evento paralelo realizado sempre durante o encontro oficial dos presidentes do continente – e as discussões em torno da criação do Banco do Sul – na luta por uma arquitetura financeira internacional mais justa e equitativa. América Latina e Caribe são aqui No Brasil, a Campanha Nacional contra a Alca promoveu um plebiscito popular, entre os dias um e sete de setembro de 2002. Mais de 98% dos mais de 10 milhões de votantes disseram não ao tratado. Além da articulação nacional e estadual, o Pacs teve papel funda-

mental nos comitês locais, com atuação nos bairros de Botafogo, Humaitá, Santa Teresa e na região de Jacarepaguá. Nas duas consultas populares – Dívida e FMI, em 2000, Alca, em 2002 – foi possível estabelecer interconexões concretas com temas de dimensão macro socioeconômica e a prática junto às bases, o que viabilizou a interação micromeso-macro que sempre caracterizou a estratégia de trabalho do Pacs. Trabalhar entre as dimensões significa, muitas vezes, desagradar posições hegemônicas, mesmo entre movimentos sociais. Foi o caso da ocupação militar do Haiti por meio da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), em 2004. “O movimento mais hegemônico não queria que a gente criticasse o Brasil, porque era melhor o Brasil do que os marines americanos. Só poucos, como o MST e o PSTU mantiveram posição crítica à ocupação militar brasileira no Haiti”, relembra Sandra Quintela. Em 2005, o Pacs participou da visita ao País, tendo liderado a comitiva brasileira de movimentos e organizações sociais. A dissidência, entre movimentos, quanto à ocupação militar do Haiti e a reafirmação, por parte do Pacs, da solidariedade com o povo haitiano continuam até hoje. O Instituto apoia manifestações contrárias à militarização do Haiti e corrobora o paralelo traçado entre a Minustah e as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP) no Rio.

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A ligação do Pacs com o Pries/CS durou até novembro de 1995, quando Marcos escreveu uma carta anunciando o desligamento formal da parceria regional

No tema das transnacionais, o acompanhamento das injustiças ambientais perpetradas por empresas como a Vale esteve no foco da crítica ao modelo de desenvolvimento empreendida pelo Pacs. Antes de mais nada, em 1997, o Políticas Alternativas foi contra a privatização da estatal, em meio ao processo de entrega do patrimônio nacional vivido durante a década de 1990. Já em 2007, o Pacs esteve nas plenárias da Assembleia Popular Nacional, preparatórias do Plebiscito Popular sobre a declaração de nulidade da privatização da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Participou diretamente da campanha nas ruas e durante o próprio plebiscito. Em 2009, com a internacionalização das atividades mineradoras da companhia, ajudou a compor a Articulação Internacional de Atingidos e Atingidas pela Vale, ativa até hoje. “O Pacs trabalha com uma questão que poucas organizações trabalham, que é a América Latina. Ele atua e se sente como uma instituição de perfil latino-americano. Isso é fundamental para quem quer pensar o desenvolvimento e o financiamento ao desenvolvimento”, aponta Magnólia Said, do Esplar, Centro de Pesquisa e Assessoria, com sede em Fortaleza. Para Beverly Keene, da rede Jubileu Sul Américas, as discussões encampadas pelo Pacs têm contribuído muito para provocar um debate aprofundado dos problemas vividos pelos povos do conti-

nente. “Desejo ao Pacs o que desejo aos povos da América Latina: que possamos seguir construindo uma visão juntos e juntas desde os diversos povos, desde a diversidade de culturas, de histórias. Que possamos seguir construindo futuros juntos, reconhecendo que necessitamos dessa crítica profunda para poder nos situar e para poder traçar estratégias comuns e coletivas de transformação dessa realidade”, resume Beverly. A utopia da integração latino-americana permanece no DNA do Pacs, nas análises de conjunturas, nas denúncias às transnacionais na sede da ONU, nas reuniões de articulações das redes, e também no trabalho de chão, quando as mulheres se unem no calçadão de Campo Grande, na Zona Oeste, para celebrar o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, a cada 25 de julho. Que os sonhos de integração prossigam tendo como textura “a espuma branca da latinoamérica” y el cielo como bandera.

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art i go

A luta contra o pagamento da dívida no Cone Sul Somos contra o pagamento do que não devemos e queremos assegurar o “nunca más” às humilhações


ARTIGO

Somos credores, não devedores: A luta contra o pagamento da dívida no Cone Sul Beverly Keene, Diálogo 2000/Jubileo Sur Argentina Imagem: Arquivo Pacs

N

ão é por acaso que o Pacs nasce em plena crise da dívida, saindo das ditaduras civil-militares que assolaram o Cone Sul para começar a compreender o que significavam e significam as ditaduras financeiras. Sua vida institucional – para não falar das vidas particulares de todos e todas que integram o Instituto – tem sido marcada por essa dívida, pelas dívidas que seguem sendo cobradas ilegalmente aos povos, aos países dependentes do Sul e à natureza. Nossa relação vem crescendo nesse mesmo contexto: buscando criar e fortalecer articulações entre os povos em luta não só contra o pagamento do que não devemos, mas, também, para assegurar o “nunca más” às humilhações e as tão necessárias reparações de todas as dívidas – sociais, ecológicas, democráticas, de gênero, com a infância, com todos os nossos direitos – que seguem acumulandose com os verdadeiros credores: os povos, nós mesmos, a Pachamama, o presente e o futuro. No final dos anos 1980, o Pacs se envolveu nos primeiros tribunais populares contra uma dívida, que já estava asfixiando a incipiente democratização. No Brasil, como em Argentina, Peru, Uruguai e tantos outros lugares, as organizações e os movimentos populares denunciavam com força as origens fraudulentas de uma dívida cujo pagamento significava, e significa, fome, desemprego, exclu-


são, e toda classe de condições e perdas. O Pacs se esforçou para incluir o artigo na nova constituição brasileira, ainda não cumprida, que previa a instalação de uma auditoria da dívida herdada. Um exemplo para toda a região. Começamos a nos conhecer, eu e o Pacs, através do Programa Regional de Investigações Econômicas e Sociais (Pries), do qual eu fazia parte, representando o Serviço Paz e Justiça (Serpaj). Na Argentina, estávamos trabalhando os impactos da aplicação brutal do Consenso de Washington e da dívida originada dele. Nesse contexto, começamos a unir forças, embora esporádicas, vendo nos tratados dos povos firmados no Rio, em 1992 – sobre dívida externa e dívida ecológica, entre outros – alguns primeiros frutos. Foi também um momento para avançar em outras lutas e articulações regionais, recordando especialmente a Campanha Continental 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular e a Assembleia do Povo de Deus, abrindo sempre novos horizontes de esperança e construção conjunta. Porém, foi na década de 1980 do século XX – consumada amplamente como a década perdida em toda nossa região, quando os processos de reestruturação econômica financeirizada avançaram a toda velocidade rumo a novas crises de dívida e de vida, baseadas em ajustes, empobrecimento, exclusão, desregulação e privatizações impostas pela ditadura financeira – que a partir de diversos movimentos, povos, atores populares, começamos a dar passos mais firmes na articulação imprescindível de planos concretos de luta. Com Sandra Quintela e Marcos Arruda, para não nomear a tantas outras

pessoas, marcamos presença no primeiro encontro latino-americano e caribenho do Jubileu (Tegucigalpa, janeiro de 1999) e, a partir dali, unirmos forças regionais em apoio ao tribunal popular contra a dívida (Rio de Janeiro, abril de 1999) e, antes do fim do ano, no lançamento da rede tricontinental Jubileo Sur (Gauteng, África do Sul, novembro de 1999). Foi nesse mesmo marco, potencializado pelo impulso dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais, que foi sendo construída a Campanha Continental Sim à vida, não à Alca, à dívida e à militarização, outro exemplo de luta onde o Pacs esteve presente de maneira imprescindível, no Brasil, no Cone Sul e em outros lugares, sempre colocando a cabeça, o corpo, na tão necessária articulação para potencializar a unidade. Estes são apenas fragmentos de um mosaico em pleno processo, que requer todas as cores e todas as formar para alcançar a beleza, a harmonia, a força do mundo que queremos, que necessitamos e que sabemos possível. Neste exército, confiamos, sem dúvida, que o Pacs seguirá aportando em todas as suas dimensões.

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nossa história

1986 A fundação do Pacs Com sede no Rio de Janeiro, o Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul foi fundado em 1986, como a parte brasileira do Programa Regional de Investigações Econômicas e Sociais para o Cone Sul da América Latina (Pries). A aliança se manteve até 1995.

Sempre na companhia de tantas pessoas, entidades e movimentos, algumas das lembranças do Políticas Alternativas

1995

1988 Publicação do “Prometeu Acorrentado.” O primeiro ensaio do Pacs sobre a dívida brasileira veio a público ao mesmo tempo em que as demais pernas do Pries lançavam estudos semelhantes sobre os respectivos cenários nacionais. A pesquisa analisou a evolução do endividamento brasileiro de governo a governo e como ela se deu de maneira ilegítima e ilegal.

Criação da RBIFM No contexto do Seminário Banco Mundial e BID no Brasil: perspectivas de ação para a sociedade civil, acontecido em Brasília, as cerca de 40 pessoas participantes decidiram pela criação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais. A participação do Pacs no Seminário envolveu a coordenação de uma das sessões.

1998 Economia solidária e Educação popular O Pacs foi pioneiro na discussão de socioeconomia solidária no Brasil. Desde 1998, passamos a publicar uma série de livretos dedicada às práticas e reflexões sobre desenvolvimento local, cooperativismo autogestionário e popular, redes de economia solidária e outros eixos transversais. O conjunto de livretos é a série Semeando.


1999

Tribunal da Dívida Externa O Tribunal contou com a participação de 1.200 pessoas do Brasil e de vários outros países. O encontro julgou o caso brasileiro da dívida externa e reforçou a campanha do Jubileu 2000 em favor do cancelamento da dívida dos países empobrecidos e mais endividados.

2000

2005 Comitê Social do Pan Em abril de 2005, o Pacs e outras entidades – associações de moradores, unidades acadêmicas e grupos de esportistas – criaram o Comitê Social do Pan. O grupo foi criado com a intenção de intervir criticamente na implementação dos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro.

Encontro de Mendes Foi realizado o Encontro Brasileiro de Cultura e Socioeconomia Solidárias, em Mendes (RJ), com 80 participantes de todo o Brasil, entre os dias 11 e 18 de junho de 2000. O Pacs foi uma das entidades organizadoras do evento, durante o qual foi criada a Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária.

2000 Plebiscito das dívidas A equipe do Instituto participou da campanha educativa mobilizadora anterior ao Plebiscito, além do recolhimento e da contagem de votos no município do Rio. As urnas foram instaladas em paróquias, sindicatos, escolas e associações comunitárias, a fim de ouvir a opinião da população brasileira sobre a continuidade de comprometimento de 65% do orçamento para satisfazer credores internacionais.

2005

Assembleia Popular Pacs participa da 1ª Assembleia Popular em Brasília. A articulação nasceu com o objetivo de construir um processo político de democracia direta. Com a presença de 8.000 pessoas, a assembleia elaborou o texto: O Brasil que queremos. Assembleia Popular Mutirão por um Novo Brasil.


2006 I Encontro de Economia Feminista Desafiado pela Rede Economia e Feminismo a tratar das questões feministas sob uma perpectiva da economia política, o Pacs construiu o I Encontro de Economia Feminista. Dois anos antes, já havia começado a realizar anualmente o curso Mulheres e Economia.

2008 TKCSA – sem licença para operar, com permissão para poluir O estudo TKCSA – impactos e irregularidades na Zona Oeste do Rio de Janeiro lançaou um olhar crítico sobre os impactos da implantação da siderúrgica instalada em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, desde 2007. A companhia funcionou sem licença de operação por seis anos.

2010 Pacs participa do I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale Foram muitas as denúncias relatadas durante o I Encontro Internacional dos Atingidos pela Vale. Delas surgiu o Dossiê dos Impactos e Violações da Vale no Mundo, uma compilação de praticamente todos os casos que foram levados ao Rio de Janeiro por trabalhadoras/ es, além de representantes de movimentos e de comunidades.

2012

Cúpula dos Povos A Cúpula dos Povos foi um evento paralelo à Rio+20 organizado por entidades da sociedade civil e movimentos sociais de vários países. O Pacs participou ativamente da construção do evento. Dentre as atividades, ajudou a construir o Rio+Toxico, uma visita a empreendimentos “tóxicos” no Rio de Janeiro; dentre eles, a TKCSA.


2013

Caravana Agroecológica e Cultural da Região Metropolitana do Rio de Janeiro Em três dias de atividades, agricultoras/es, associações de produtoras/es rurais, organizações e estudantes estiveram envolvidos em visitas a experiências de agricultura urbana e periurbana, em atividades culturais e feiras, assim como na promoção de espaços para o debate sobre as questões de conflito ambiental e territorial na cidade.

2014 Curso Mulheres e Economia completa dez anos A Economia é política e deve estar nas mãos das mulheres. Como esse mote, em 2004, nasceu o Curso Mulheres e Economia, uma proposta do Pacs de educação popular e exercício de autogestão para empoderamento de mulheres nos temas da Economia Política e do Mundo do Trabalho. Para marcar a década, foram produzidos um vídeo documentário e uma cartilha partilhando as histórias e experiências acumuladas.

2013 Feira Agroecológica da Freguesia A Feira Agroecológica da Freguesia levou nove meses para ser construída e foi cria de muitas mãos, inclusive de mulheres do Pacs. Tudo foi negociado coletivamente: desde o preço dos produtos, passando pela organização das barracas, até o regimento interno.

2016

2016 Olimpíadas - Jogos da exclusão No contexto dos Jogos Rio 2016, o Pacs integrou a construção do Comitê Popular Copa e Olimpíadas e produziu materiais de educação popular analisando as violações cometidas em nome dos jogos. O boletim Rio de Gastos analisou o investimento público nos Jogos. No mesmo ano, o Instituto lançou o livro Atingidas – histórias de vida de mulheres na cidade olímpica.




Imagem: Encontro Nacional de Trocas, 2004


3. A teoria aliada à prática Nos bastidores da luta, o Políticas Alternativas aliou grandes temas ao contato direto e continuado com territórios periféricos da cidade


entrevi sta

Sandra Quintela: “A dimensão ampla de análise do Pacs traz grande aprendizado” coordenadora geral do Pacs Janaína Pinto e Thiago Mendes Imagem: Anette Alencar

O papel do Pacs mudou ao longo dos 30 anos? A instituição já procurou, em algum momento político, ser protagonista? Nós sempre tivemos esta visão: os movimentos sociais, as organizações de base precisam estar na vanguarda de qualquer luta, eles são os protagonistas. É a visão na qual o Marcos insiste e eu, como coordenadora atual, absorvo completamente. É a nossa visão política. Como foi a construção da Sandra como pessoa e como educadora dentro do Pacs? Imagina, eu sou uma nordestina, alagoana, mulher, economista. Claro que agora, com 52 anos, é mais fácil. Tem vantagem! Parece que a gente fica mais forte, e as pessoas têm que respeitar pela própria postura que a gente assume. Mas, imagina, eu com 25-30 60

anos, nesses espaços internacionais e nacionais, debatendo… Não foi fácil. Só muita garra e muita convicção. Eu sou apenas um elo de uma cadeia muito maior na história. Só de luta das mulheres tem pelo menos 800 anos de história, desde quando queimaram a gente nas fogueiras como bruxas. Então, eu me sinto parte dessa cadeia histórica, minha tarefa é não deixar morrer a chama. Por isso, eu não sou nada e, ao mesmo tempo, tudo. Continuar o esforço, ser o elo, manter a chama é um trabalho muito importante. Ter essa visão ajudou muito e ainda ajuda na minha construção individual como sujeita revolucionária coletiva. Agora, obviamente, não foi fácil. Você já tinha essa percepção de ser um elo da corrente histórica antes de 1995 [quando entrou para o Pacs]? Sim, sempre pensei isso, mas a vivên-


cia intensifica, né? O Pacs foi pra mim uma grande escola. Sou militante há muitos anos, eu já tinha o enraizamento na luta, mas a dimensão mais ampla de análise do Pacs foi um grande aprendizado. O Marcos pra mim foi uma pessoa fundamental na construção desse eu. Ele é uma pessoa visionária, tem muito a dimensão dos cenários futuros, mas também é uma pessoa muito, muito, muito amorosa e libertária. Ele sempre me deu asas, apostou muito no meu trabalho, não questionava negativamente minhas decisões e sempre apontava para dimensões mais amplas das questões tratadas. Isso foi muito importante na construção da minha confiança pessoal. Foi muito importante ter ombro a ombro uma pessoa que eu admiro e que é uma referência de compromisso, seriedade, carinho, respeito e amor. Quando você chegou ao Pacs, a instituição estava saindo de uma fase de prestar assessoria a sindicatos para ir para uma pauta mais voltada para economia solidária. Como aconteceu essa mudança? É correlação de força, é política. O Pacs é bom de apontar tendência, então a gente aposta no nosso faro. A discussão do desenvolvimento do Rio de

Janeiro hoje, que tá na boca de várias pessoas, é um exemplo. Quando a gente começou essa discussão, em 2006, ninguém tinha uma análise complexa sobre os polos de “desenvolvimento” industrial – Baía de Sepetiba, Baía de Guanabara, Porto do Açu e a interligação desses complexos. Nós não ficamos esperando a agenda chegar, observamos o movimento da sociedade e nos perguntamos para onde ele vai. Nos anos [19]90, entraram em cena de maneira muito forte os movimentos sociais – a luta pela terra e a movimentação em torno de políticas públicas. Também começaram a aparecer governos populares, com as iniciativas de geração de emprego e renda, que a gente sempre problematizou, porque não gerava nem emprego nem renda. Então a gente se envolveu com essas novas movidas, e os sindicatos foram saindo de cena. Com o governo do Fernando Henrique, eles levaram muita porrada e praticamente passaram a ser espaços de formação profissional. Isso aos poucos retirou os sindicatos da pauta de articulação política mais ampla. Estivemos com eles em outros momentos depois dos anos 1980, mas já em plataformas amplas, por uma causa comum, não mais como antes, quando prestávamos assessoria a eles. Já no fi61


nal dos anos 1990, nós começamos a acompanhar a expansão da cidade em direção à Zona Oeste. Ali estava e está a fronteira de especulação imobiliária, crescimento industrial, densidade demográfica. Nós vimos que era uma região estratégica onde se trabalhar, ainda mais quando nenhuma instituição parecida com a gente trabalhava com aquela região naquele momento. O Pacs discute desenvolvimento do capitalismo internacional, capital financeiro, dívida pública, tratados de livre comércio, etc. Tudo isso se materializava no nosso território também. A chegada da TKCSA, em 2005, trouxe muito essa reflexão. Inclusive, um dos primeiros atores a denunciar a atuação da siderúrgica foi o antigo Comitê Popular da Alca da Zona Oeste. Durante a campanha que nós fizemos contra a Alca, formaram-se mais de 100 Comitês Populares no país – o da Zona Oeste do Rio de Janeiro era muito ativo. Não é por acaso que foi justamente ele que virou o Comitê em Defesa do Ambiente e dos/as Trabalhadores/as e que denunciou primeiro a siderúrgica. Tem a ver diretamente com a Alca, porque era o tratado que propunha o poder das transnacionais e dos capitais privados sobre os territórios e os/as trabalhadore/as. O debate da Alca foi um debate sobre imperialismo, que foi feito nos territórios do Rio de Janeiro. O trabalho com mulheres entrou no Pacs por mais de uma frente. O trabalho de assessoria ao movimento da Marcha Mundial de Mulheres foi o primeiro contato do Pacs com a agen-

da feminista? Mais ou menos. A gênese do Curso Mulheres e Economia, por exemplo, foram oficinas realizadas pelo Pacs sobre mulheres e o mundo do trabalho no contexto da Marcha. O eixo da MMM é “Violência e Pobreza”. Pobreza naturalmente leva a um debate da economia, foi por essa brecha que nós entramos – divisão sexual do trabalho, trabalho reprodutivo, trabalho produtivo, desemprego, desigualdades salariais, questões relacionadas às mulheres no mercado de trabalho. Foram muitas oficinas no contexto durante e depois de participar ativamente da Marcha [o Pacs participou da Marcha de 2000 a 2007]. Dessas oficinas pontuais nasceu o curso, em 2004. Nós já participávamos da Rede Economia e Feminismo, a REF. Ela nos desafiou a montar um curso de economia feminista e foi assim. Está aí o curso, vivo e pujante até hoje. Eu fico besta com a força desse curso, ele é muito forte. E para o futuro, quais as perspectivas de trabalho? Talvez uma entrada maior nas questões da juventude, porque já está acontecendo uma procura e nós temos que dar uma resposta a isso. E a questão do combate à privatização dos espaços públicos. Nós combatemos muito a privatização das empresas públicas, e agora é uma privatização dos territórios, muito mais do que só empresa e serviço. É muito grave.

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r e po rtage m

Combater o capital e semear alternativas O encontro entre as dimensões da macroeconomia e da vida concreta, cotidiana, que se vive com o pé no chão, nos territórios


Iara Moura Imagens: Arquivo PACS

Vito Giannotti, sindicalista e comunicador popular, fundador do Núcleo Piratininga de Comunicação, defendia em suas andanças nos espaços do fazer político o que ele acreditava ser um dos principais imperativos da esquerda: a necessidade de se comunicar bem, de aliar teoria e prática e conseguir fazer com que todo ser humano compreendesse os mecanismos que determinam a opressão e a injustiça social. Para o comunicador, enfático em seus gestos largos e voz firme que ainda ecoam pela memória daquelas/es que seguem em marcha, a emancipação passa pela necessidade de fazer com que o pensamento crítico seja transmitido ao maior número de pessoas possíveis. E como fazê-lo? Ao longo dos 30 anos de existência, o Instituto Pacs atuou em diversos temas. Um eixo em comum determinava a ação em torno dessas temáticas: a educação popular como caminho de difusão de informação e de transformação da realidade. O desafio de difundir as grandes pautas dos manuais de Economia no dia a dia daqueles e daquelas que fazem a história é ainda hoje o guia da atuação de diversas organizações, entidades, partidos e movimentos de esquerda em todo o mundo. No Brasil, os temas relativos ao uni-

verso do desenvolvimento – palavra que entrou de vez no vernáculo dos jornais e das ruas a partir do governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) – eram foco principal das pessoas que almejavam outra realidade para a sociedade brasileira, marcada por enormes disparidades sociais. Um ano antes da fundação do Pacs, em 1985, 35% de todas as famílias e 41% de todas as pessoas (53,2 milhões de brasileiros/as) viviam em condições de pobreza. Naquele ano, 50% das pessoas mais pobres detinham 13% da distribuição pessoal da renda, ao passo que 1% retinha 14,4% do total dos rendimentos[1]. Diante dessa realidade, os governos militares e os que se sucederam à abertura política apostavam num modelo de desenvolvimento centrado na exportação de commodities e numa política econômica que assegurava a transferência de recursos nacionais para o estrangeiro através do pagamento da dívida externa. A principal aposta econômica do Estado brasileiro eram os chamados megaprojetos: construção de hidrelétricas, hidrovias e rodovias para atrair o investimento estrangeiro. Como herança do chamado desenvolvimentismo, após os anos 1970, tem-se: maior endividamento externo; avanço do capital mul-

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Oseas Quintanilha, pescador de Santa Cruz, é voz ativa na resistência às violações cometidas pela TKCSA

tinacional no País; maior desigualdade social; piora na distribuição de renda e concentração da propriedade rural; descontrole da inflação; e queda dos investimentos. É essa herança que irá marcar a economia brasileira ao longo dos anos 1980. A dívida externa total do Brasil, em 1988, alcançou a cifra de US$ 114,6 bilhões, representando quase um terço do total da dívida latino-americana - US$ 401,5 bilhões, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). Prometeu acorrentado “A dívida externa brasileira, por ter sido constituída fora dos marcos legais

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nacionais e internacionais, e sem consulta à sociedade, por ter favorecido quase exclusivamente as elites em detrimento da maioria da população, e por ferir a soberania nacional, é injusta e insustentável ética, jurídica e politicamente”. Este foi o veredito do Tribunal da Dívida Externa. Realizado em 1999, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, o encontro reuniu mais de 1200 pessoas do Brasil e de diversos outros países em rechaço ao pagamento da dívida externa. À época, o suposto débito do Brasil para com os credores estrangeiros estava na casa dos US$ 235 bilhões. O governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso apressava-se


em demonstrar seu temor aos credores, em sua maioria do Banco Mundial: somente de 1994 a 1998 foram pagos cerca de 126 bilhões, ao ponto de que “quase todos os novos contratos estarem destinados ao serviço da própria dívida, configurando um círculo vicioso de endividamento”, explica outro trecho do veredito. O tema da dívida acompanha o Pacs desde as origens. Já em 1988, o Instituto publicou seu primeiro ensaio sobre o assunto. O estudo Prometeu Acorrentado – Os Grandes Grupos Econômicos, o Endividamento Externo e o Empobrecimento do Brasil analisou como a dívida evoluiu durante a ditadura militar, submetendo o Brasil aos ditames dos credores e a uma crise social e econômica de gravidade crescente. “A ideia é que a dívida é como Prometeu, que é colocado pelos deuses no alto da montanha. Todo dia, vem o abutre e come o fígado dele. Toda noite, o fígado cresce. E o mesmo continua acontecendo por toda a eternidade. A dívida é um pouco isso. Não acaba nunca e está sempre enfraquecendo o organismo da população”, explica Marcos Arruda, socioeconomista, educador popular e fundador do Pacs. Segundo levantamento de junho de 2015, a dívida pública atual ultrapassa os R$ 4 trilhões. A dívida externa bruta do país beira os US$ 555 bilhões. Só

em 2014, o orçamento da União dedicou até dezembro o equivalente a R$ 978 bilhões, um pouco mais de 45% dos gastos federais, ao pagamento de juros e amortizações, mais a rolagem da dívida pública. Territórios em disputa A Zona Oeste do Rio de Janeiro é território onde os conflitos decorrentes do modelo de desenvolvimento que descrevemos acima aparecem de maneira mais exacerbada na cidade. O bairro de Santa Cruz, por exemplo, a partir de meados dos anos 1970, passou a receber portos e indústrias pesadas com consequências severas na vida das populações que vivem no entorno da Baía de Sepetiba. Os megaeventos – Pan, Copa e Olimpíadas – também têm essa região da cidade como palco principal, o que configura de vez esse território como espaço em disputa. A instalação da Thyssenkrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), às margens da Baía de Sepetiba, em 2006, é um dos marcos na história de transformação em polo industrial de região onde se praticava agricultura e pesca artesanal. Gabriel Strautman, coordenador adjunto do Pacs, avalia que o acompanhamento dos conflitos socioambientais decorrentes da instalação da siderúrgica trouxe à tona uma série de questões importan-

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tes para o Instituto. “É preciso acompanhar um conflito com essas características estando no território. Essa postura nos dá outra dimensão do que representa o modelo de desenvolvimento simbolizado pela instalação da siderúrgica”, analisa Gabriel. “O Pacs conseguiu reinventar um pouco o seu próprio conhecimento a respeito de temas tradicionais como

é o da dívida, que é um tema que ao longo de 30 anos a gente trabalhou. Fizemos, por exemplo, uma cartilha sobre as isenções fiscais que também analisou os empréstimos do BNDES [para o empreendimento]. Ou seja, é aí que está a concretude, a gente trabalhar temas tradicionais dentro da organização, mas agora muito mais próximos da realidade”, completa.

Ato unificado do 1o de maio ocorre em Santa Cruz em solidariedade às populações atingidas pela TKCSA - 2009.

[1] Fonte: http://www.cev-rio.org.br/site/arq/Arruda-M-Quem-se-beneficiou-do-endividamento-publico-durante-a-ditadura.pdf


arti go

Economia Solidária como alternativa e crítica ao capitalismo A Economia Solidária é um tema muito caro ao Pacs, está presente nas atividades do Instituto desde a década de 1980 até os dias de hoje


Shirley A. A. Silva, Instituto Marista de Solidariedade

E

stamos vivendo um momento crucial da humanidade. Construímos um sistema de valores e crenças baseado na opressão, na guerra e na tirania, tanto entre seres humanos quanto entre pessoas e todos os demais seres que habitam o planeta terra. Temos chamado esse sistema de capitalista. Vamos à força das palavras: capitalismo é um substantivo masculino. A palavra capital vem do latim capitale, derivado de capitalis, com o sentido de “principal, primeiro, chefe”; e do proto-indo-europeu kaput, significando “cabeça”. Essa palavra nomeia um sistema socioeconômico que tem como base a legitimação da apropriação privada de tudo que é considerado bem e a irrestrita liberdade do comércio e da indústria. Seu principal objetivo é a acumulação de riquezas. Nesse sistema, a centralidade está na posse individual do “cabeça”, do chefe, numa visão claramente patriarcal, hierárquica e opressora. Ele visualiza todo o seu entorno como possíveis bens, que podem ser apropriados para a maximização do lucro. Nesse sentido, faz parte 69


do sistema se relacionar com o planeta (seres humanos, bichos, rios, solo, montanhas, plantas) como mercadorias, que devem ser racionalmente negociadas no mercado, gerando cada vez mais lucro e acumulação. O capitalismo gera seres humanos medíocres, medrosos e covardes, limita o pensamento crítico e libertário, impõe a opressão a mulheres, crianças, artes e literatura. Em contraponto, entendemos que Economia é um substantivo feminino. O elemento “eco” vem do grego oikos e significa “casa, lar, domicílio, meio ambiente”. Na sua origem, portanto, economia é a arte de bem administrar a casa. Solidária, por sua vez, é um adjetivo, também feminino, que vem do Francês solidaire, “interdependente, completo, inteiro”, e do Latim solidus, “firme, inteira, completa”. Então, a Economia Solidária se constitui por princípios e práticas fundadas em relações interdependentes, sólidas e altivas de colaboração, trocas e partilhas, apoiadas em um princípio matrilinear, a partir do qual as relações entre pessoas devem ser fundamentalmente horizontais, fundadas no reconhecimento da outra pessoa como parte de mim e do todo. Essas práticas são inspiradas por valores que colocam o cuidado com a casa comum e a promoção da felicidade das pessoas e suas coletividades como finalidades da atividade econômica, cultural e política. A Economia Solidária busca bases diferentes e antagônicas ao capitalismo, não se baseia na acumulação, mas no cuidado com o planeta e com todos os seres que nele habitam, na perpetuação

das condições para gerar vida. Isso requer a tomada de consciência, criatividade e responsabilidade de indivíduos e a solidariedade entre cidadãos e cidadãs, que se reconhecem como parte e não comerciantes da natureza, e que com ela e entre ela estão em total conexão e interdependência. A Economia Solidária se coloca também como propulsora de um (des) envolvimento endógeno, vindo a partir das necessidades das comunidades humanas, no diálogo franco e direto. A definição do que produzir vem a partir das necessidades reais também do planeta e de todas as criaturas. A produção, a distribuição, as finanças e o consumo são ações responsáveis e contextualizadas. Mas é importante ficar alerta. A força militante e propositiva da economia solidária não pode se bastar em si mesma, nem ficar somente no mundo das ideias, em grupos fechados e fundamentalistas, tristes e rancorosos, que se envenenam com a disputa pequena, cada vez mais adoecidos em grupos de “militontos”, onde pessoas fracas e débeis se encontram somente para criar intriga, apontar defeitos uns dos outros, reclamar, se lamentar, debatendo ardorosamente para saber quem é o dono da razão, ou quem são os donos da economia solidária. Consomem-se a si mesmos, afastam quem poderia chegar, somar e enriquecer o debate. Afirmo: isto não é economia solidária. É preciso ter coragem para ir além, romper o lugar-comum, o que já está dado, ser espaço gerador de felicidade, beleza, leveza, esperança, lugar da

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ética, da estética, da poética. A Economia Solidária não se forma com pessoas dependentes, frágeis e débeis; mas com mulheres e homens, jovens e velhos, crianças e adolescentes, de todas as raças e credos, conscientes do seu papel no mundo, seres políticos, que estrategicamente se colocam, se questionam, se organizam. Pessoas que não esperam por projetos ou políticas externas aos seus coletivos, que têm a coragem de olhar de frente e tentar compreender diferenças e conflitos, fazendo destas sua força. Recriam e reinventam as maneiras e significados do trabalho, dos produtos e serviços gerados, da vida comunitária. Constroem comunidades autônomas e altivas, determinadas e propositivas para todos os campos da ação humana, baseados nos princípios do cuidado e da vida plena. Considero a Economia Solidária, neste momento histórico, como um front de resistência, um possível contraponto, frente às imposições do sistema capitalista, que tenta cada vez mais ferozmente transformar tudo em mercadoria, até mesmo as relações. A economia solidária deverá estar de mãos dadas e em sintonia com outros movimentos sociais, apontando a necessidade urgente de um outro paradigma não capitalista, que promova uma sociedade cuidadora e saudável. Portanto, a própria existência e a necessidade de uma economia do cuidado vem do fato de que a economia capitalista não atende, não preenche as necessidades da vida, dos sujeitos e do

planeta. Ao contrário, coloca-os em risco. A Economia Solidária necessariamente vai mais além da crítica, pois traz em seu bojo uma proposta de reflexão-ação-reflexão. Muitas iniciativas que nos fazem saborear a sociedade dos nossos sonhos já estão em prática. São organizações comunitárias em ecovilas, ocupações urbanas, produção agroecológica, biodinâmica, permacultura, feiras orgânicas, lojas solidárias, fundos rotativos, bancos comunitários com moeda social, redes e cadeias produtivas. Nestes espaços, busca-se o exercício de uma democracia direta e não representativa, muito além de uma categoria produtiva. Essa perspectiva está gerando novas concepções e formas de escola, espiritualidade, relação com o tempo e o trabalho; está até mesmo redefinindo as reais necessidades humanas e apontando novas formas de se fazer política, voltadas para a construção de valores éticos e responsáveis e para uma economia da vida verdadeira. Nascemos para sermos cuidados e cuidadores, e podemos enquanto seres em evolução aprender cada vez mais a dimensão do verbo AMAR. Não somente como um sentimento melancólico, mas como um verbo regular, transitivo direto. Verbo exige ação. Não tão somente contemplação, ou falsa passividade. Dessa maneira, a Economia Solidária se transforma não somente numa crítica, mas verdadeiramente na antítese do capitalismo. “Economia é todo dia e a nossa vida não é mercadoria”

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4. Autoorganização na ZO A construção de alternativas nos territórios periféricos do estado do Rio de Janeiro é uma constante nesses 30 anos


entrevi sta

Sílvia Baptista: “A nossa união modifica as coisas” Agricultora urbana, quilombola e cofundadora do Comitê Popular de Mulheres da Zona Oeste. Janaína Pinto

Como começou a relação com o PACS, Sílvia? Acredito que foi no final dos anos 1990, quando me interessei por Economia Solidária. Um militante aqui de Vargem Grande disse: “Você precisa conversar com o Pacs.” A Terezinha Pimenta era de Vargem Grande e trabalhava no Pacs, então comecei a perseguir a Terezinha [risos]. A gente estabeleceu um diálogo de anos, mas, até 2006, era bem interrompido, até por conta da dificuldade organizativa que existia aqui. Na luta local, passam muitas organizações. Então a gente quer conhecer bem antes de se envolver mesmo. É tipo uma paquera, um namoro longo, pra estabelecer se a relação vai frutificar ou não. Nessa aproximação, fui criando um encantamento, também com a perspectiva da organização de mulheres. O feminismo periférico, como diz minha amiga Saney, é muito rico, muito plural. Então, a possibilidade de leitura política do territó-

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rio através das mulheres foi o que deu liga na organização da Zona Oeste. O ponto alto do namoro com o Pacs foi o curso de autogestão. A metodologia foi tão brilhante, tão completa e tão assertiva. A medida certa de teoria, e muita participação das pessoas. Naquele dia, eu pensei: “Pronto, casei com o Pacs”. De lá pra cá, só melhorou. Melhorou? Sim, lembro que havia momentos de muita fragilidade. E a organização de mulheres tirou de nós essa fragilidade. Houve um fortalecimento do nosso posicionamento político na região; e isso diz respeito à forma como vocês se colocam entre nós e nos fortalecem. É muito bonito ver nós todas, mulheres pretas e pobres, conseguindo uma unidade que antes a gente não conhecia. Nas organizações mistas, mesmo as populares e de esquerda, nós somos muito jogadas umas contra as outras, sabe? E isso fragiliza o movimento como um


todo. A gente viveu muito isso na nossa trajetória. E hoje eu vejo a diferença. A gente consegue, a partir da nossa organização de mulheres, fazer avaliações amorosas dos processos. Só tenho a agradecer ao Pacs.

ços do trabalho. E isso só acontece por causa da metodologia, do como você faz. Ninguém como as mulheres pra saber tocar a horizontalidade, a ecologia dos saberes. Quando a gente fala, parece um pastiche: horizontalidade, blá blá blá. Mas é essencial! É preciso dar voz. E aí, sempre digo: é difícil fazer a reunião acontecer, marcar o encontro, as pessoas irem e tudo. Mas terminar o encontro é que é o grande desafio! [risos] E o Pacs consegue fazer isso com continuidade. É uma escola. Não só pra Zona Oeste, mas pra cidade e toda América Latina. A gente acredita nisso.

Você falou da metodologia do curso de autogestão. O que quer dizer uma boa metodologia pra você? Antes de conseguir voltar a atuar na minha vizinhança, eu participava do movimento negro do Rio de Janeiro e me articulava em partido político. Além disso, minha faculdade é de pedagogia, e eu fui uma excelente aluna, mas detestei ser professora naquele formato: quarenta alunos, carteiras viradas para o professor. Esse modelo é tudo o que a gente não quer pra sociedade. Então, nas organizações populares, as pessoas precisam ter noção das relações de poder que existem dentro dessas organizações e noção sobre quem, dentro daquele espaço, precisa de estratégias de empoderamento. É fundamental. Quando militava no partido, eu sempre pensava que queria voltar pro meu bairro. Pra mim, o grande aprendizado é estar num cenário local, com muitos conflitos, e, mesmo assim, ver os avan-

Qual a sua visão sobre a mobilização autônoma das mulheres na ZO? Vou retomar a visão da minha amiga Saney e falar em feminismo periférico: nós somos um feminismo periférico. A marca da pluralidade na nossa organização se mostra nas grandes assembleias. Não é fácil. O Maciço da Pedra Branca fica no meio da ZO, então complica os trajetos. De Vargem Grande pra Campo Grande é uma demora. Nós também temos várias crenças religiosas diferentes. Algumas são Flamengo, outras Botafogo. Algu-

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mas defendem o aborto e outras não. É muita variedade. Mas a aposta que a gente faz é na pluralidade. São várias resistências mesmo, vinculadas, mas em movimento. Com tudo isso, a gente observa avanços muito visíveis. Nós dialogamos e crescemos no diálogo. Depois, damos visibilidade ao que dialogamos, e isso é muito importante dentro dos nossos territórios. Que perspectivas você tem sobre o protagonismo das mulheres nos seus territórios de luta e convivência? Nossa, as melhores. Hoje a gente tem tocado algumas organização mistas

[com homens e mulheres], mas com mais vontade de ficar só nas organizações de mulheres, porque elas são muito mais potentes, são uma outra forma de produzir conhecimento. As mulheres organizadas na ZO hoje têm praticado a metamorfose [risos] e não são identificadas como organizadas, unidas, quando estão presentes em espaços mistos. Eles não entendem direito, mas a gente tá organizada. E é isso. A gente não quer uma revolução em etapas, a gente quer a transformação das relações como um todo. E a organização das mulheres traz isso. A nossa união modifica as coisas.

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r e po rtage m

De, para e entre mulheres O plantio popular de alternativas realizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro é um trabalho feito por várias mulheres; o Pacs está presente nesses territórios como parceira nas lutas por mais qualidade de vida real e novas concepções de economia


Janaína Pinto Imagens: Arquivo PACS

Elas organizam os espaços e o fazem para outras mulheres. Cirandas, debates, místicas, mesas redondas, shows, seminários, feiras, cursos, festivais. Motivos para agregar. Neste exato momento, espalhadas pelos territórios da Zona Oeste (ZO), várias delas reinventam as próprias vidas na cidade grande, dãose as mãos, convivem com as diferenças umas das outras e multiplicam forças. Para a integrante do Coletivo Feminista As Caboclas e mãe do Zayon Saney Souza: “Os movimentos autônomos de mulheres da Zona Oeste contribuem para que nenhuma de nós aceite ou conviva com nenhum tipo de violên-

cia. Nossa coletiva fortalece nossa resistência! Caminhamos e lutamos juntas por um território, uma vida de justiça!” Nas palavras da professora universitária e moradora de Campo Grande Ana Reis: “é incrivelmente forte quando as mulheres conseguem se organizar em lugares tão violentos para elas. O machismo é muito grande nos territórios da ZO, ele está em todos os lugares que compõem esses territórios, inclusive em espaços de esquerda. Mas, ainda assim, elas são educadoras populares, quilombolas, agentes de saúde, mulheres nas ocupações urbanas. É um histórico de luta muito lindo. O contato com essa 80


Imagens: À esquerda, Mulheres da Rede Carioca de Agricultura Urbana dão “uma banana” pra especulação imobiliária na Vila Autódromo, comunidade ameaçada de remoção pelas Olimpíadas. Abaixo: 3º Seminário Economia e Feminismo. Fotos: Arquivo Pacs

realidade mudou muito a minha ideia de luta. Aprendi com elas a exercitar um diálogo feminista bonito, delicado, e muito mais firme do que eu podia antes de conhecê-las”. O protagonismo das mulheres é evidente, e suas práticas brotam nos territórios onde convivem. O papel do Pacs é apenas estar presente nesses espaços – onde o modelo político, econômico e social dominante demonstra seu lado mais predatório e autoritário – e procurar estimular a auto-organização. A integração de instituições como o Pacs em espaços autônomos de luta não é da noite para o dia. Ano após ano, os laços se estreitaram e a confiança se edificou. Sandra Quintela, educadora popular e atual coordenadora-geral do Pacs, comemora a semente plantada lá atrás: “Fico muito feliz que o trabalho com as mulheres esteja crescendo. Antes, há 16 anos, era eu sozinha. Ver a metodologia forte, institucionalizada

aqui dentro, com uma equipe autônoma e fora das minhas mãos é muito gratificante.” Mulheres e Economia Já se vão 12 anos desde o primeiro curso anual Mulheres e economia. Mais de quinhentas mulheres passaram por ele desde então, mas a história é mais antiga ainda. A Economia Feminista é um conjunto de estudos em torno do trabalho reprodutivo, socialmente atribuído às mulheres e ainda invisível para a macroeconomia. O curso é a sistematização de um conteúdo baseado nesses estudos. A reprodução da vida é ainda mais relevante do que a produção, por isso o lema da iniciativa é: a economia é política e deve estar nas mãos das mulheres. Desde o final da década de 1990, já existiam oficinas de Economia Feminista na ZO articuladas pelo Pacs. Porém, foi em 2004 que se consoli-


dou essa que é a ferramenta mais potente de contato e construção coletiva entre o Instituto e as mulheres autonomamente organizadas nos territórios ao redor do Maciço da Pedra Branca e em outras regiões do estado fluminense. “A potência do curso é muito grande. Primeiro por causa da discussão em economia política numa perspectiva feminista, através da qual todas possam se apropriar de instrumentos para analisar a sociedade. Depois, porque ele se propõe o desafio da auto-organização. Para muitas mulheres, acaba sendo a primeira vivência de organização coletiva, de reconhecimento das outras”, resume Joana Emmerick, educadora popular e coordenadora adjunta do Pacs. Joana, nascida em Niterói, começou no curso como educanda. Como algumas outras mulheres de variadas regiões do Rio de Janeiro, ela depois contribuiu como educadora do curso, e hoje trabalha na coordenação de uma gama de projetos com mulheres no Pacs. Ela também destaca a força de um lugar onde o pensamento feminista é debatido e construído a partir das vivências de quem participa de cada edição: “No contexto dos debates atuais sobre os feminismos, o fato de o curso acontecer na região periférica da cidade é outro elemento muito importante”. Da coletiva criada em torno do Mulheres e Economia, surgiram laços de amizade e o Comitê Popular de Mulheres

do Rio de Janeiro e, posteriormente, da Zona Oeste (CPMZO). A articulação delas com outras coletivas da região promove e apoia atos e cursos, quintais e caravanas. “Nós somos um grupo de mulheres bem diversas, e as nossas discussões têm enfoque em questões de saúde que envolvem a economia. Fazer parte do comitê me ajudou a refletir sobre como a noção de desenvolvimento pensado pelo Estado para a Zona Oeste não é o desenvolvimento que nós queremos. Também tem me ajudado a cuidar mais da alimentação e a pensar no autocuidado”, resume a artesã, mãe do Raul e integrante do CPMZO, Elô Nunes. Foi o caso do ato de repúdio à violência contra a mulher, acontecido em 2016, logo depois do episódio quando 33 homens estupraram uma garota desacordada em Morro São João, Jacarepaguá. Dezenas de mulheres se reuniram na praça do BRT de Santa Cruz, realizaram oficinas de cartazes, cirandas e gritaços. No megafone, a mulherada do território soltou a voz. Outras filhas do Mulheres são as práticas de militância pesquisadora que, este ano, reuniram moradoras de várias partes da ZO para conversar sobre os espaços por onde caminham. O seminário Corpo, conhecimento e conflitos: resistências feministas e territórios em disputa faz parte de uma pesquisa de mapeamento em processo, realizada por uma coletiva da ZO, com apoio do Pacs, so82


“A gente entende a Economia Solidária hoje num sentido amplo, como a aposta em um novo modelo de desenvolvimento” bre ameaças e conflitos socioambientais na região. Agroecologia e Economia Solidária A articulação com movimentos de agroecologia, agricultura urbana e economia solidária é um exemplo de como pesquisa e prática quase não se diferenciam no cotidiano do Pacs. Lá atrás, no final da década de 1990, o Instituto foi um dos responsáveis pelas primeiras discussões e articulações políticas em Economia Solidária nacionais. Mesmo antes, já atuava na construção de espaços de cooperativismo popular, sendo um dos responsáveis pela fundação do Fórum de Cooperativismo Popular, que esse ano faz 20 anos. Inclusive, foi pela porta do cooperativismo popular que Sandra se aproximou da instituição. Ela explica: “O Pacs sempre trouxe – através de Marcos Arruda, nas reuniões, nos espaços de formação – a ideia de uma outra globalização, outra forma de organizar a economia; sempre pautou a questão das alternativas, mas com uma crítica muito contundente ao funcionamento dominante da economia. E o cooperativismo popular está dentro dessa discussão.” No Fórum Social Mundial de 2001, já com Sandra na equipe, o Pacs organizou uma apresentação sobre o assunto, imediatamente antes de ele se tornar um tema de grande capilaridade nos movimentos populares brasileiros. 83

A apresentação foi a culminância de alguns anos de investigação e integração regional sobre o tema. Em 2000, o Pacs já se havia adiantado e articulado o Encontro Brasileiro de Cultura e Socioeconomias Solidárias, em Mendes, no Rio de Janeiro. Em 1998, aconteceu o Encontro Latino de Cultura e Socioeconomia Solidária, também articulado pelo Instituto. Hoje, quase 20 anos depois, o tema continua a ocupar um lugar afetuoso no dia a dia do Pacs, através das relações de parceria entre o Instituto e as práticas das feiras agroecológicas e artesãs, das hortas coletivas e privadas, dos quintais urbanos, do beneficiamento de plantas medicinais e da produção de fitoterápicos. “A gente entende a Economia Solidária hoje num sentido amplo, como a aposta em um novo modelo de desenvolvimento. Isso significa uma nova maneira de ser e estar no mundo. A nossa prática hoje está muito ligada ao direito ao território, o direito a produzir na cidade e a consumir alimentos saudáveis”, descreve a psicóloga, mãe do Pedro e educadora popular do Pacs Aline Lima. Aline diz ainda: “hoje também estamos muito ligadas, como Pacs, a práticas produtivas, monetárias ou não, que estejam na direção desse novo modo de viver. E as mulheres são as grandes protagonistas desse novo modo, até porque


não é novo para a gente. A gente já faz isso ‘escondidas’, nos quintais produti-

vos, por exemplo, mas, em geral, nosso trabalho é invisibilizado.”

Mulheres, como vai nossa saúde na Zona Oeste? Realizada pelo Comitê Popular de Mulheres da ZO em parceria com o Pacs, a publicação levantou a discussão sobre economia política, saúde integra e autocuidado

Olhares feministas sobre a economia política e o mundo do trabalho: 10 anos de experiência em educação popular Realizada pelo Pacs, é a coletânea da pluralidades da fala de companheiras nas edições de 2014 e 2015 do seminário Olhares feministas sobre a economia política e o mundo do trabalho


ARTIGO

UBUNTU: eu sou porque nós somos Marina Ribeiro, educadora popular e cientista social

U

buntu não é uma palavra que tem tradução em nossa língua, no entanto, como sentido, exprime a capacidade da minha humanidade reconhecer a humanidade de outra pessoa. Nunca tem o indivíduo como centro, mas sim a comunidade. Como filosofia, reconhece que serei diretamente afetada sempre que outra pessoa semelhante a mim for diminuída, humilhada, torturada ou oprimida. Diferentes grupos e coletivos ativos que compõem a população negra têm cada vez mais a filosófica Ubuntu como princípio. Para nós, mulheres negras, nos coletivos que atuamos, o autocuidado que passa por cada uma e por todas e dialoga com essa filosofia é fundamental. Em 2015, o movimento de mulheres negras realizou a Marcha das Mulheres Negras contra o racismo, a violência e pelo bem viver. A marcha aconteceu no dia 18 de novembro reunindo, em Brasília, cerca de 50 mil mulheres de todos os cantos do país. O movimento foi resultado dos esforços coletivos das milhares, mais ainda, milhões de mulheres negras, que durante anos e em lugares diferentes do país e do mundo acreditaram na construção de um momento político que revelaria e visibilizaria a luta, a resistência, as denúncias, as angústias e as vozes das 50 mil negras brasilei-

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ras que invocaram o sentido de viver africano orientado pelas nossas ancestrais, que nos ensinaram e ensinam que “nossos passos vêm de longe” e, que quando “uma sobe puxa a outra”. Numa sociedade desigual como a brasileira, estruturalmente racista e machista, com injustiças reais no que se refere aos direitos sociais, econômicos e políticos, nós mulheres somos as que mais sentimos na pele todos os dias as consequências e todas essas desigualdades. Recuperar a capacidade de cuidar uma das outras é ter condições de continuar na luta. É reconhecer a importância politicamente do cuidado, não apenas como valor econômico, mas para a vida. Fortalecer afetos para enfrentar e construir alternativas coletivas para superar todas as desigualdades. Nesse processo, não há outra opção: temos que valorizar os saberes ancestrais protegidos pelo conhecimento das mais velhas transmitido para as novas gerações por uma cultura resis-

tência que se concretiza nos território populares e periféricos. É na troca de conhecimento, no olhar generoso e crítico sobre a realidade e participando da vida comunitária que nós, mulheres negras, nos tornamos mais fortes, é nesse movimento de reconhecimento da nossa identidade racial, tendo a educação popular como ferramenta para o diálogo e aprendizado mútuo. A Educação Popular nos oportuniza reconhecer o saber da comunidade, o saber que vem da cultura negra, o saber das mulheres negras e valorizar todas elas envolvidas em qualquer processo emancipatório. Nós mulheres negras e povo negro, queremos construir um novo modelo societário, centrado no bem viver e no rompimento com o racismo e todas as formas de discriminação que matam nossas famílias, filhas e filhos, homens e mulheres negras.

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