Claudio Blanc
Martin Luther King Jr. Her贸i dos Direitos Civis
Uma biografia
Projeto Cultura e Mem贸ria do Sindicato dos Padeiros de S茫o Paulo
Presidente: Francisco Pereira de Sousa Filho (Chiquinho Pereira) Coordenador: Aparecido Alves Ten贸rio (Cid茫o) Curador: Claudio Blanc
www.padeirosspmemoria.com.br
Sumário O Apartheid Americano........................................................4 A Vida em Atlanta.................................................................10 Formação.................................................................................16 Heróis........................................................................................22 Luta pela Liberdade..............................................................35 O Nascimento de um Líder................................................50 Eu Tenho um Sonho.............................................................62 Prêmio Nobel..........................................................................67 O Mártir...................................................................................71 O Legado de Martin Luther King Jr...............................80 Apêndice: MLK por ele mesmo........................................86 Sobre o Autor..........................................................................93
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O Apartheid Americano
O
enfoque de Martin Luther King Jr. na desobediência civil se
baseava numa percepção filosófica. A ideia defendida pelo escritor Henry David Thoreau (1817 –1862) preconizava que
todo cidadão tinha direito de se opor a um governo injusto. Era este justamente o ponto enfatizado por King: a questão do segregacionismo americano era incentivada pelo governo de muitos estados americanos. Era preciso reverter esse processo, estabelecendo novos conceitos, principalmente no que dizia respeito às “leis de Jim Crow”. Entre o século 18 e meados da década de 1960, a maioria dos estados americanos sustentava a segregação através das “leis de Jim Crow” – assim chamadas por causa de um famoso personagem negro de shows itinerantes. Da Califórnia a Delaware, da Dakota do Norte ao Texas, muitos estados e cidades impunham punição legal às pessoas que mantinham relacionamentos inter-raciais. As mais comuns dessas leis proibiam o ca4
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samento entre negros e brancos e obrigavam os estabelecimentos comerciais a manter separados os clientes de raças diferentes. Segundo alguns autores, como Christy Whitman, com a abolição da escravatura as leis de Jim Crow abrandaram. “Os negros eram impedidos, mais do que oficialmente proibidos, de votar e de participar de muitas atividades sociais”, escreveu Whitman em seu livro O Jovem Martin Luther King (Nova Alexandria, tradução de Guca Domenico). Na verdade, a lei estava nas mãos dos magistrados brancos que julgavam e puniam o comportamento dos afro-americanos segundo seus próprios conceitos. No sul do país, a segregação racial era garantida e aplicada pela good ol’ boys network , que poderia ser traduzida como “Associação dos Bons Garotos”. Tratava-se de uma sociedade secreta racista, conservadora, protestante e fundamentalista. No entanto, quem mais se destacou na feroz manutenção da condição social que os brancos pretendiam para os negros foi a famigerada Ku Klux Klan.
Encapuzados
Originalmente organizada no inverno de 1865-66, em Pulaski, Tennessee, a Ku Klux Klan foi concebida como uma fraternidade, por seis veteranos confederados. O nome da organização era derivado de Kuklos, palavra grega que significa “círculo”, mais o termo inglês clan, ou clã. 5
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Membros da KKK e a cruz em chamas, um dos símbolos da fraternidade racista
Logo, a KKK se espalhou como um cancro por todos os estados do sul, incluindo em suas fileiras prefeitos, juízes, xerifes e até mesmo criminosos comuns. Seus alvos principais eram os líderes e políticos negros, os quais 6
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eram sistematicamente assassinados. Através de espancamentos e torturas, os membros da KKK intimidavam a comunidade afro-americana que desejava votar e conseguir melhores condições sociais. Embora dirigissem sua fúria contra a liderança negra, a fraternidade assassinava os afrodescendentes por praticamente qualquer motivo. Homens, mulheres, crianças, idosos e até mesmo deficientes físicos eram submetidos a atrocidades inadmissíveis. Frequentemente os negros tentavam revidar, mas eram em menor número e fracamente armados. O resultado da justa reação era mais terror por parte dos brancos.
O logo da KKK
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Os homens do Klan incendiavam escolas e igrejas; linchavam professores e líderes educados pelos simples fato de representarem alguma luz para sua comunidade; expulsavam homens livres de suas propriedades por serem de uma raça diferente da sua; espancavam trabalhadores por terem tomado empregos desejados por brancos e assassinavam tantos outros por se recusar a trabalhar para os da sua etnia. Matavam pessoas de cor por lerem jornais, por possuírem livros em suas casas ou, simplesmente, por serem descendentes de escravos. Um afro-americano que viveu no século 19 registrou numa nota a violência da Ku Klux Klan: “estamos vivendo dias de terror. As pessoas de cor estão desesperadas. Os rebeldes avisam que os negros não terão mais liberdade agora do que tinham quando eram escravos. Se as coisas continuarem assim, nosso destino está selado. Deus sabe que isso (que estamos vivendo) é pior do que a escravidão”. O pesadelo só terminou na década de 1960, quando investigadores do Federal Bureau of Investigation, o FBI, prenderam e condenaram membros da Ku Klux Klan que haviam assassinado líderes negros no estado de Mississipi. Hoje, A KKK continua ativa. Num tom mais brando, anunciam que “não são racistas”, mas que buscam preservar a identidade cultural de cada povo, desestimulando o casamento inter-racial. Agora, o Klan busca fazer valer seus antiquados conceitos não mais pelo terroris-
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mo, mas pela disseminação de ideias descabidas. Será que realmente estão menos perigosos?
Racismo no berço: crianças posam ao lado do Grande Dragão Verde, o líder da KKK
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A Vida em Atlanta
N
a história recente dos Estados Unidos, ergueu-se um personagem cujo heroísmo não consistia de vencer seus inimigos comandando exércitos e canhões; um homem que buscava
em lugar de destruir, construir; em lugar de disparar suas armas, falar ao coração do seu povo; um homem que, em vez de matar, procurava salvar. Em poucos momentos a humanidade produziu um líder como foi Martin Luther King Jr.: humilde e ao mesmo tempo digno; brando, mas de uma coragem que não se curvava às mais tenebrosas ameaças; persistente em sua luta e ao mesmo tempo realista. Muitos episódios do movimento pelos direitos civis dos afroamericanos têm sido usados para descrever Martin Luther King Jr.: “idealizador e líder do boicote aos ônibus em Montgomery”, “principal orador na Marcha de Washington”, “o mais jovem ganhador de um Prêmio Nobel”. Mas esses eventos empalidecem frente ao fato de a política de protesto não-violento de King ter sido a força dominante da luta pelos direitos civis durante sua década de maior atuação, isto é, entre 1957 e 1968. Este é o poder e também o diferencial de Martin Luther King Jr. 10
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A família King: Martin é o menino à esquerda
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King nasceu Michael King Jr., em Atlanta, Geórgia, em 15 de janeiro de 1929. Era um dos três filhos do pastor Michael (depois Martin Luther) King Sênior (1899 - 1984)e da ex-professora Alberta Williams King. Quando o menino tinha seis anos, o pastor King mudou seu nome e o do filho para Martin Luther. A família vivia na casa dos avós maternos de Martin Jr., o renomado pastor Adam Daniel Williams. O ano de 1929 foi o início da grande depressão americana. Cerca de 65% dos afro-americanos de Atlanta perderam seus empregos, mas os King não foram atingidos pela crise. A casa onde viviam ficava no coração da cidade, próxima da Igreja Batista de Ebenezer, onde o avô de Martin pregava. Era uma casa grande, com doze cômodos, onde imperava uma atmosfera produtiva e febril. Principalmente no primeiro mês de 1929. Alberta não passava bem no final da gravidez. No dia 14 de janeiro, seu estado de saúde piorou consideravelmente. Finalmente, no dia seguinte, 15 de janeiro, Alberta deu à luz a um menino que aparentemente tinha nascido morto. Até o médico se assustou. Mas, segundo o biógrafo Edgar A. Klettner, “após vigorosa palmada do médico, o bebê principiou a gritar”. Em 1931, com a morte do pastor Adam Williams, o pai de Martin, Martin Luther King Sr., assumiu a posição de diretor espiritual da igreja onde também Martin Jr. pregaria. Em poucos anos, Martin Sr. se tornou um importante líder da comunidade negra de Atlanta. 12
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Martin Jr., sua irmã mais velha Cristina e o caçula Alfred Daniel cresceram em um ambiente burguês e confortável. A família nunca morou em uma casa alugada e, segundo Luther King Sr., jamais andaram em um carro que não estivesse totalmente pago. Os King cultivavam a dignidade da sua raça e espalhavam seu exemplo através da igreja. Eram referências. O ambiente familiar era temperado pelas diferentes personalidades dos pais. Enquanto o reverendo King era dado a arroubos emocionais, Alberta atenuava a eletricidade com a tranquilidade Alberta Williams King, a mãe de Martin
do seu temperamento. Martin puxou ao pai.
Também ele se rendia às emoções, chegando até mesmo a se colocar cara a cara com a morte. 13
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Até os 12 anos, Martin atentou contra a própria vida por duas vezes. Ambas pelo mesmo motivo. O que levou o menino a buscar o suicídio pela primeira vez foi o pânico que o dominou quando viu sua avó, Jennie Williams, sofrer um acidente e perder a consciência. Julgando-a morta, Martin pulou da janela do primeiro andar da sua casa. Não sofreu nada de muito grave. Aos 12 anos, quando sua avó faleceu de fato, Martin tornou a se atirar do primeiro andar da casa. Mais uma vez, não se machucou demais. No entanto, a experiência marcou Martin profundamente. A dança que ele executou com a morte, pontuada por ameaças, atentados à bomba, à faca e à bala, o acompanhou por toda a vida. Em 1935, Martin entrou na escola pública. Pouco depois, foi para uma instituição particular, a Escola Experimental da Universidade de Atlanta. Concluiu sua educação básica na Escola Secundária Booker T. Washington. Além dos estudos, Martin vivia na Igreja Batista Ebenezer, o palco onde seu pai lembrava aos negros o quanto sua raça devia preservar a dignidade. Desde os cinco anos de idade, Martin cantava no coro da igreja. Ao que parece ele cantava bem. A biógrafa Christy Whitman afirma que ele “não era apenas afinado, possuía um timbre tão angelical que muitas pessoas iam ao culto só para ouvi-lo”. Exagero à parte, é mais provável que a qualidade da voz de Martin tenha sido um fator menos importante do que o fato de ele ter sido filho do pastor da igreja onde cantava.
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No final da década de 1930, a família King se mudou para uma bela casa na Boulevard Street, uma rua de gente abastada. Luther King Sênior já era um pastor influente e ocupava importantes cargos juntos a praticamente todos os conselhos de direção de diversos movimentos em favor dos afro-americanos da sua cidade. Suas atividades faziam com que ele fosse frequentemente ameaçado de morte – principalmente pela sádica Ku Klux Klan. Esse clima de terror despertou O pai de Martin, Martin Luther King Sênior
no menino Martin a real consciência do mundo em que vivia. Logo
cedo ele percebeu as contradições sociais que geravam tanto ódio. E tudo por causa da diferença da cor da pele. Martin crescia tomado pelos fantasmas de sua condição de negro numa sociedade onde isso era derrogatório.
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Formação
M
atin Luther King Jr. foi um aluno brilhante. Quando sua irmã Christine, um ano mais velha, completou seis anos, o garoto insistiu com os pais que tinha capacidade para ir à escola
junto com ela. Afinal, Martin sabia até mesmo ler placas de rua. Seus pais cederam à insistência do garoto e o matricularam junto com a irmã. O menino já frequentava a escola havia seis meses quando contou aos colegas sobre sua festa de aniversário, dizendo que o bolo teria 5 velas. A professora ouviu a conversa, e foi o fim do ano letivo de Martin. O garoto teve de esperar mais seis meses para voltar a estudar. Mas esse episódio não impediu que Martin continuasse a ser um aluno precoce. Em 1944, com apenas 15 anos, seguindo uma tradição da família, foi admitido no Morehouse College, antes mesmo de completar os estudos secundários. A instituição tinha sido fundada em Atlanta, em 1867, pelo reverendo William Jefferson White, um pastor negro que contava com o apoio de batistas negros e brancos. Morehouse era respeitada por formar importantes líderes afro-americanos – médicos, advogados, professores e 16
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um grande número de pastores, entre eles o pai de Martin. Ainda hoje, o Morehouse College é a universidade mais prestigiada entre as reservadas para estudantes negros.
O Morehouse College, onde Martin se graduou
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Consciente da explosiva situação mundial, Martin escolheu estudar sociologia. A Segunda Guerra Mundial varria a Europa e moldava um novo Estados Unidos. O mundo estava em chamas, e Martin sabia disso. Durante o conflito, o Estado Maior americano condenou à morte e executou por diferentes crimes vários soldados de suas próprias linhas. Absolutamente todos eram negros.
A formatura de Martin no Morehouse College, em 1948
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Martin se formou em junho de 1948, com apenas 19 anos. No Morehouse College, o espírito do futuro líder dos direitos civis dos afroamericanos foi cultivado com as sementes intelectuais que viriam a florescer num ideal de luta cujas armas usadas – dignidade, razão e desobediência civil – não destruíam, mas sim engrandeciam aqueles que delas lançavam mão. Alguns meses depois, em outubro do mesmo ano, Martin trocou sua Atlanta natal pela cidade de Chester, Pensilvânia, onde tinha sido admitido na Faculdade de Teologia Crozer. Num primeiro momento, Martin não pensava em seguir os passos do pai e do avô como pastor. No entanto, ele percebeu a força da liderança que seu pai exercia sobre a comunidade afro-americana da Igreja Batista Ebenezer, pedindo que seu povo andasse de cabeça erguida, estimulando-o a não se abater pelas leis desfavoráveis que o estado reservava à comunidade. Martin, então, passou a acreditar que se tornar um pregador era a melhor coisa a fazer para motivar o seu povo a se erguer e lutar pelos seus direitos inalienáveis. Em junho de 1951, Martin recebeu o diploma de teologia. Quase imediatamente, inscreveu-se no doutorado de teologia sistemática da Universidade de Boston, para onde seguiu no final de 1951. Foi nessa época que Martin conheceu Coretta Scott, a bela e inteligente moça que viria a ser sua esposa e sustentáculo de sua luta. Ao que parece, Coretta não tinha a menor intenção de se casar. Queria, antes, ser cantora, e o casamento 19
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certamente minaria sua carreira. Martin, porĂŠm, tanto insistiu que ela desistiu da ideia e acabou se casando com ele, em 18 de junho de 1953. Talvez o mundo tenha perdido uma boa cantora, mas ganhou uma grande defensora da causa afro-americana.
A jovem Coretta Scott, futura sra. Martin Luthar King Jr.
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A década de 1950 foi a época em que frutificou em Martin tudo o que ele viria a realizar. Em setembro de 1954, ele se tornou pastor da Igreja Batista da Avenida Dexter, na cidade de Montgomery, no Alabama. A data marca o momento em que Martin começou sua cruzada pelos direitos civis. Nessa época, a encapuzada Ku Klux Klan, bem como outros grupos e a própria polícia racista, procuravam, através do medo, paralisar os negros e mantê-los submissos. Foi quando Martin percebeu que precisava combater justamente esse medo cruelmente cultivado no espírito dos afroamericanos. Na medida em que o medo cessasse, a voz negra passaria a ser ouvida. Na primavera de 1955, Martin recebeu finalmente seu diploma de doutor em teologia sistemática. No mesmo ano, o pastor se tornou uma das figuras de proa do movimento pelos direitos civis em todo os Estados Unidos. Entre todas as humilhações sofridas pelos negros, a mais degradante era o regulamento da empresa de ônibus da cidade, que determinava que os negros deviam ceder seus lugares aos brancos. Os motoristas costumavam berrar grosseiramente para “os pretos desocuparem o lugar para os brancos”. Era a injustiça das leis de Jim Crow que favoreciam os brancos em detrimento dos negros. Foi exatamente este ponto que Martin combateu para elevar a autoestima dos seus irmãos de raça, liderando uma das mais bem sucedidas campanhas de desobediência civil jamais vista naquele país. 21
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Heróis
Desde muito cedo, Martin Luther King Jr. intuiu uma estratégia para a luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Ao contrário de muitos líderes negros, como Malcom X, por exemplo, ele sabia que não havia condições de se fazer uma revolução armada. O sangue derramado dividiria o país e só aumentaria o ódio que uma raça nutria pela outra. King tinha consciência de que seu movimento deveria ser pacífico. Foi quando frequentou o Crozer Theological Seminary, em Chester, Pensilvânia, que King entrou em contato com dois pensadores, cuja obra definiria finalmente a direção da sua luta: Henry David Thoreau e Mohandas Gandhi. Enquanto o primeiro pregava a desobediência civil, o segundo acrescentou a esse conceito a necessidade de se alcançar as metas propostas através do “amor, em lugar do ódio”. Henry David Thoreau “Aceito com entusiasmo o lema ‘O melhor governo é o que menos governa’; e gostaria que ele fosse aplicado mais rápida e sistematicamente. Levado às últimas consequências, este lema significa o seguinte, no que 22
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também creio: ‘O melhor governo é o que não governa de modo algum’; e, quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que terão”. A mente por trás dessas ideias é a de Henry David Thoreau (1817 – 1862), um dos mais brilhantes pensadores norteamericanos. Seus ideais libertários influenciaram a estratégia de homens que usaram a resistência pacifica para enfrentar leis discriminatórias impostas por superpo-
Henry David Thoreau, autor de Walden
tências dominantes. A doutrina de Thoreau entusiasmou ninguém menos do que o Mahatma Gandhi a desobedecer ao sistema para conseguir realizar suas metas políticas. Thoreau nasceu na pequena cidade de Concord, perto de Boston, no estado de Massachusetts. Em Harvard, onde se formou, Thoreau foi tremendamente influenciado pelo livro Nature (Natureza), de seu conterrâ23
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neo e contemporâneo Ralph Waldo Emerson (1803 – 1882). Essa obra, segundo o crítico americano Peter B. High, “é a postulação mais clara do transcendentalismo” – a escola filosófica fundada por Emerson que preconiza que o homem pode descobrir a verdade através de seus próprios sentimentos. O texto de Emerson é, de fato, revolucionário. Publicado em 1836, numa época em que se ensinava que “Deus criou as árvores e os animais, os rios e os campos, para que o homem os usasse como bem entendesse”, o livro sustenta que a humanidade não devia ver a natureza apenas como uma coisa a ser usada. Para Emerson, a relação entre o homem e a natureza transcende a ideia de utilidade. E Thoreau se identificou de tal maneira com os conceitos de Emerson, a ponto deste considerar que o pensamento de Thoreau era a “continuação” do seu. No entanto, Emerson escreveu sobre a natureza de forma abstrata, enquanto Thoreau abordou o aspecto prático. Mateiro experiente, Thoreau descreveu plantas, rios e a vida selvagem. Ele era tão fiel ao seu ideal que, entre 1845 e 1847, viveu numa cabana construída por ele mesmo, às margens do Lago Walden, próximo de Concord. A experiência rendeu seu mais famoso livro, Walden, publicado em 1854. Embora pareça, à primeira vista, um trabalho sobre o aspecto prático de se viver sozinho em meio à floresta, é, de fato, uma obra genuinamente transcendentalista. O autor 24
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tentava “viver do visível ao invisível; do temporal ao eterno”. Ele rejeitava as coisas desejadas pelas pessoas comuns, como dinheiro e posses. Em lugar disso, Thoreau enfatizava a busca pela verdadeira sabedoria: “se a civilização melhorou nossas moradias, ela não melhorou aqueles que nelas vivem”.
Thoreau, quando jovem
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Thoreau passeando à beira do lago Walden, em tela de John Warldermilch
Para Thoreau, a verdadeira alegria vinha somente depois que se dispensa todas as coisas desnecessárias. “O homem é rico na mesma proporção ao número de coisas que pode dispensar”, afirmava ele. Thoreau vivia, literalmente, o que pregava. Por conta disso, foi preso. Em 1846, Thoreau foi encarcerado por não pagar impostos. Esta foi a forma de protesto que ele imaginou para se opor a uma sociedade escra26
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vocrata que buscava abocanhar porções do México. O pensador afirmou que seu dinheiro seria usado para sustentar um regime que escravizava homens e para financiar a guerra contra um país vizinho e soberano. Na prisão, ele escreveu um dos seus ensaios mais significativos, Desobediência Civil. Foi esse texto que inspirou tanto o Mahatma Gandhi quanto Martin Luther King Jr. nas suas cruzadas. “O governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente. As objeções que têm sido levantadas contra a existência de um exército permanente, numerosas e substantivas, e que merecem prevalecer, podem também, no fim das contas, servir para protestar contra um governo permanente. O exército permanente é apenas um braço do governo permanente. O próprio governo, que é simplesmente uma forma que o povo escolheu para executar a sua vontade, está igualmente sujeito a abusos e perversões antes mesmo que o povo possa agir através dele. Prova disso é a atual guerra contra o México, obra de um número relativamente pequeno de indivíduos que usam o governo permanente como um instrumento particular; isso porque o povo não teria consentido, de início, uma iniciativa dessas.”, diz Thoreau em A Desobediência Civil. Thoreau também foi um ativo abolicionista. A partir de meados da década de 1850, sua casa se tornou um lugar de encontro de ativistas anties-
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cravatura. Infelizmente, o pensador morreu precocemente e não pode testemunhar a abolição da escravatura.
Gandhi
Mohandas Gandhi (1869 – 1948) foi outro líder que influenciou sobremaneira Martin Luther King. A prática do ativista indiano é notória por unir religião e militância política. Gandhi dizia de si mesmo não ser “um santo que se tornou político, mas um político que esta(va) tentando ser santo”. Sua satyagraha, ou resistência passiva, aliada a boicotes econômicos, mostrou ser uma arma incrivelmente eficiente contra o imperialismo britânico. Mais tarde, usada por Martin LuGandhi em 1906, aos 37 anos
ther King, essa forma de luta voltou a demonstrar sua força na
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conquista pelos direitos civis dos afro-americanos. Além da tradição hindu, Gandhi bebeu de fontes ocidentais. Filho do primeiro-ministro de um pequeno principado indiano – Porbandar –, Gandhi era advogado formado em Londres. Na Inglaterra, experimentou ares de democracia e igualdade – ideais que viria reivindicar para os indianos. Ironicamente, o liberalismo inglês viria a se voltar contra a própria GrãBretanha por meio de Gandhi. Depois de completar seus estudos,
O menino Mohandas
Gandhi foi trabalhar na África do
Sul, onde há, ainda hoje, uma grande comunidade indiana. Foi nesse país que o jovem advogado experimentou um preconceito que não conhecia. Um preconceito tão injusto que fez com que Gandhi se erguesse e, durante sua luta, se transformasse no mahatma, isto é, na “grande alma” que o mundo viria a conhecer. Durante uma viagem de trem à capital Pretória, onde participaria de um processo, Gandhi sentiu pela primeira vez as garras da segregação. 29
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Gandhi e sua esposa Kasturba,em 1902
Acomodado na sua cabine de primeira classe, foi abordado por um homem branco que se recusou a compartilhar o mesmo compartimento com um indiano. O homem saiu e voltou com dois funcionários que ordenaram a Gandhi que fosse para a terceira classe. O filho do primeiroministro de Porbandar insistiu, mostrou seu bilhete de primeira-classe, mas não adiantou nada. Foi empurrado para fora do trem e sua bagagem jogada no chão. 30
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Assaltado por pensamentos de indignação e humilhação, Gandhi passou a noite na sala de espera da estação de trem ponderando sobre o que deveria fazer. E embora não precisasse se submeter a viver na África do Sul, decidiu ficar e lutar pelos seus direitos. A decisão o levou a se transformar de advogado a líder político. Gandhi passou vinte anos na África do Sul defendendo os direitos dos indianos. Foi um preâmbulo para a luta bem-sucedida que travaria pela independência da Índia. Durante esse período,
O novo Gandhi, depois de despir o terno de advogado
Gandhi desenvolveu a ideia de resistência pacífica – uma forma de protesto político e de organizar eficientemente um movimento de massa. Gandhi, porém, não gostava de chamar sua estratégia de “resistência pacífica”. Para ele, “pacífico” poderia sugerir fraqueza. Resolveu, então, chamar sua estratégia de satyagraha, ou “força da verdade e do amor”. Mais tar31
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de, depois de ler o famoso ensaio de Henry David Thoreau, ele viria também a usar o termo “desobediência civil”. Como o filósofo norteamericano, Gandhi também acreditava no direito de todo cidadão de resistir à injustiça do governo.
Gandhi na imagem do velho sábio que o mundo todo passou a admirar
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A primeira vez que Gandhi pôs sua satyagraha em ação foi em 1906, quando o governo sul-africano anunciou uma lei exigindo que todos os indianos tirassem carteira de identidade e a levassem sempre com eles. A apresentação da carteira seria exigida em qualquer circunstância, e a polícia podia até mesmo invadir as casas dos indianos para investigação. Gandhi ficou estarrecido com essa negação dos direitos civis básicos. Convocou um ato público num teatro de Johannesburg, do qual participaram milhares de indianos. Gandhi disse que todos deviam se preparar para lutar contra a nova lei até conseguirem que ela fosse anulada. O líder explicou que a resistência consistiria na recusa de cada pessoa em obedecer à lei injusta e, caso fossem agredidos, não deveriam revidar com violência. Ao contrário, os manifestantes deveriam pensar bem dos opositores. Afinal, os satyagrahis, ou seja, alguém que pratica a satyagraha, não estavam lutando contra indivíduos, mas contra os males do sistema. A luta de Gandhi na África do Sul durou até 1914 e incluiu a reivindicação de outras causas. Finalmente, em junho daquele ano, o general Jan Smuts, ministro sul-africano encarregado dos negócios indianos, promulgou o Ato de Reforma da Questão Indiana – um acordo que, embora não garantisse direitos totais aos indianos, legalizava os casamentos nãocristãos e abolia o imposto de residência dos trabalhadores. Gandhi considerou o resultado uma vitória. Duas semanas depois, deixou a África do Sul para sempre. Agora, ele iria aplicar em seu próprio país a estratégia 33
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aperfeiçoada em defesa dos seus conterrâneos. Através da sua liderança, numa luta entre Davi e Golias, o povo indiano se libertaria do mais poderoso império de então, a Grã-Bretanha.
Grande Alma
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Luta Pela Liberdade
Martin Luther King Jr. foi certamente o porta-estandarte da luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Sempre que se fala desse momento da história dos Estados Unido seu nome vem à baila. Mas ele não foi o único guerreiro dessa causa. Na medida em que os brancos negavam acintosamente a participação dos negros na sociedade americana, diversos líderes dos afro-descendentes organizaram seu povo em torno do orgulho da identidade da sua raça para, juntos, defender sua liberdade e amorpróprio. Na verdade, o movimento de emancipação do negro nos Estados Unidos data do século 19, com a organização da Underground Railroad (ferrovia subterrânea). Depois da abolição da escravatura, os afro-movimentos se organizaram em manifestações a favor do fim da segregação, como o Harlen Renaissance, e na fundação de organizações anti-segregacionistas, até, com a luta pelos direitos civis das décadas de 1950 e 1960, sedimentar a integração do negro na América. É uma história fascinante, repleta 35
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da injustiça sofrida pelos negros e da coragem por eles assumida; uma história onde uma minoria étnica é massacrada e marginalizada por um sistema cruel, mas que responde com dignidade, tolerância e resignação até comover o mundo todo a favor da justiça de sua reivindicação; uma história de humildes davis defendendo-se com prosaica valentia das poderosas armas de sanguinários golias; uma história onde, embora pareça absurdamente improvável, o bem vence o mal no final.
A Ferrovia Subterrânea Durante o século 19, mais de cem mil escravos buscaram a liberdade através da Underground Railroad. O nome simbólico – Ferrovia Subterrânea – se refere às rotas que os cativos usavam para fugirem, quase sempre até o México e o Canadá. Negros livres, brancos, índios e exescravos atuavam como guias, conduzindo os fugitivos à liberdade. No livro Runaway Slaves: Rebels on the Plantation (Escravos Fugitivos: Rebeldes nas Plantações), o escritor John Hope Franklin afirma que “a Ferrovia Subterrânea é o épico americano de coragem e cooperação de indivíduos comuns; o que essas pessoas realizaram, individual e coletivamente, mudou o curso da história”. A “ferrovia” nada mais era do que uma organização secreta, da qual participavam homens, mulheres e até mesmo crianças. Seu papel era dar abrigo e orientação aos fugitivos, estabelecendo dessa forma uma rede de 36
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proteção que se estendia do sul dos Estados Unidos até o México e o Canadá.
Harriet Tubman, nos anos1970. A agente da “ferrovia Subterrânea”, ajudou a libertar cerca de setenta pessoas.
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A Ferrovia Subterrânea, óleo de Charles Webber, pintado em 1893
Os prejuízos causados pelas fugas levaram o governo a estipular punições severas para os membros da “ferrovia”, desestimulando qualquer ajuda ou simpatia aos escravos fugitivos. Segundo John Hope Franklin, “em 1860, havia cerca de 385.000 proprietários de escravos no sul entre os quais aproximadamente 46.000 eram agricultores. Mesmo que apenas metade de todos os agricultores tivesse apenas uma fuga anual, e se 10 ou 15 por cento dos outros donos de escravos tivessem o mesmo problema, o número de escravos fugitivos excederia a 50.000 por ano”. 38
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Esses números indicam, com relação à escravatura, que até Abraham Lincoln se empenhar na libertação dos escravos, a economia esteve na frente daquilo que era moralmente correto. Depois da Guerra Civil (1862 – 1865), a questão girou em torno de convencer a maioria branca de que os negros também são “gente” – iguais em tudo aos brancos, principalmente com relação aos direitos sociais.
O Movimento Niagara
Em 1905, W.E.B. Du Bois, um professor da Universidade de Atlanta, convocou uma reunião em Niagara Falls, Nova Iorque, para apresentar alternativas à política de outro líder negro, Booker T. Washington. Du Bois discordava das ideias de conciliação preconizadas por Washington e propunha fundar uma organização que oferecesse uma outra forma de militância. O Movimento Niagara, conforme Du Bois batizou a organização, era composto da elite intelectual da comunidade afro-ameriana. Inicialmente, a reunião convocada por Du Bois teria lugar no lado americano das cataratas do Niagara, mas como gerentes de hotel racistas negaram acomodações aos delegados, o encontro foi realizado no lado canadense das cataratas.
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Os fundadores do Movimento Niagara, em 1905
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Os 29 participantes renunciaram a política de conciliação de Booker T. Washington e redigiram um manifesto exigindo direito de voto aos negros, o fim da segregação no transporte público ou em qualquer lugar e o gozo de quaisquer liberdades que os outros cidadãos tinham direito. Apesar da abertura de 30 filiais da organização em todo o país e de terem conseguido algumas conquistas em termos de direitos civis, o movimento era mal organizado e sofria com a falta de fundos, de pessoal e até mesmo de sede. Du Bois e seus seguidores nunca conseguiram apoio de massa para o movimento. Além disso, Booker T. Washington minou a iniciativa, impedindo que ela recebesse qualquer publicidade na imprensa negra. O Movimento Niagara durou até 1911. Embora tenha conseguido pouco, permitiu a fundação de uma organização mais atuante, a National Association for the Advancement of Colored People – NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor).
A Fundação da NAACP
Em 1908, os Estados Unidos foram sacudidos mais uma vez por tumultos raciais. Na cidade de Springfield, Illinois, onde Abraham Lincoln vivera, oito afro-americanos foram mortos e dezenas de outros feridos,
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quando uma multidão de brancos invadiu a comunidade negra destruindo casas, propriedades e lojas, forçando milhares de pessoas de cor a fugir. Depois do ataque, abismado com a violência, o inglês William English Walling lançou a ideia de formar “um poderoso órgão de cidadãos” para ajudar a comunidade negra a combater o preconceito que sofria. Imediatamente, Walling recebeu o apoio de Mary White Ovington, uma assistente social que havia escrito um estudo sobre discriminação racial. Os dois partidários da causa afro-americana marcaram uma conferencia para a qual
William Du Bois, em 1918
convidaram os mais importantes ativistas dos direitos civis, tanto brancos como negros – entre eles, o fundador do Movimento Niagara, W.E.B. Du Bois. Da conferência nasceu a National Association for the Advancement of Colored People – NAACP. Du Bois se tornou o editor da revista do movimento, The Crisis, em 1910.
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Líderes da NAACP: Henry Moon, Roy Wilkins, Herbert Hill e T. Marshall em 1956
Em 1918, a NAACP tinha 165 filiais em todo o país e 43.994 membros. Muitos afro-americanos do sul se afiliavam secretamente, pois sabiam que ao fazer isso corriam o risco de perder seus empregos e até mesmo a vida. Embora a NAACP atuasse em várias frentes – de atividades culturais a 43
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políticas e comunitárias – suas ações mais importante se deram nos tribunais. Uma das maiores vitórias aconteceu em 1919, quando a NAACP salvou a vida de quatro fazendeiros afro-americanos injustamente condenados à morte pelo assassinato de um branco, durante um massacre de negros na cidade de Elaine, Arkansas, naquele mesmo ano. Graças à associação, a Corte Suprema dos Estados Unidos reverteu os veredictos e os fazendeiros foram absolvidos. A associação ganhou outros casos relativos à propriedades e ao direito do voto. Fez, também, campanha por uma lei nacional contra o linchamento, mas sem sucesso. Atuante até hoje, a NAACP é, sem dúvida, um dos maiores marcos na luta pelos direitos civis.
A Renascença do Harlem
A Harlem Renasissance foi uma verdadeira explosão cultural, social e artística que aconteceu naquele bairro negro nova-iorquino entre o final da Primeira Guerra Mundial e meados da década de 1930. Nesse período, escritores, artistas plásticos, músicos, fotógrafos e intelectuais afroamericanos convergiram para o Harlem. Muitos deles vinham do sul, buscando ares de maior liberdade, onde pudessem expressar seus talentos. A revista The Crisis, a voz da NAACP, era o arauto do movimento. O então editor da revista, W.E.B. Du Bois, fazia questão de publicar histórias, 44
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fotos e todo tipo de material de artistas negros que conseguiam veicular. A Renascença fez, também, do jazz e do blues a sua música. Isso passou a atrair cada vez mais brancos ao Harlem. Durante os concertos, casais inter-raciais dançavam juntos, contribuindo para quebrar o gelo do preconceito. Mas a Renaissance foi mais do que um movimento literário ou artístico. Tinha a ver com o orgulho de ser negro, com a militância do “New Negro”, como os participantes idealizavam o novo afro-americano, isto é, mais atuante na exigência dos seus direitos civis. O resultado, porém, deixou a desejar. A Renaissance teve pouquíssimo impacto na anulação das leis de Jim Crow, as quais separavam as raças legalmente. Certamente o movimento contribuiu para um certo abrandamento do racismo entre jovens brancos adeptos da música e da arte afro, mas o maior impacto dessa renascença foi a ênfase no orgulho de ser negro.
Black Power
O Black Power foi um movimento político que surgiu em meados da década de 1960 professando uma nova consciência racial entre os afroamericanos. O termo foi usado pela primeira vez no contexto político no
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final dos anos 1950 por Robert Williams, responsável pelo capítulo da NAACP da cidade de Monroe, na Carolina do Norte. O Black Power tinha raízes nos movimentos de luta pelos direitos civis, mas seu sentido foi extremamente debatido na comunidade negra. Para alguns afroamericanos, o Black Power significava a busca pela dignidade racial e pela liberdade da autoridade branca; para outros, tratava-se de uma orientação econômica. Foi Malcom X, um dos maiores líderes afro-americanos, que imprimiu a retórica, o estilo e a atitude Black Power. Malcom insistia em dirigir os esforços para a meStokely Carmichael
lhoria social e econômica das co-
munidades afro-americanas, em lugar de preconizar, como Martin Luther King Jr., a integração completa na sociedade americana. Além de Robert Williams e Malcom X, Stokely Carmichael foi outro líder a influenciar as ideias por trás do movimento. Carmichael tornou o Black 46
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Power mais popular, fazendo dele um ícone da consciência afroamericana. Muitos aderiram. Frases como "Say it loud, I'm Black and I'm proud" (diga alto: sou negro e tenho orgulho disso), do cantor James Brown, se tornaram lemas de uma época libertária. Os afro-americanos redefiniam o mundo em seus próprios termos: Black is beautiful. E na medida em que James Brown cantava, Jim Crow calava.
Os Black Panthers
O Partido dos Panteras Negras foi o braço político do movimento Black Power. O site da oficial da instituição, http://www.blackpanther.org/legacynew.htm, afirma que o partido “foi uma organização política progressiva à vanguarda do mais poderoso movimento por mudanças sociais nos Estados Unidos desde a Revolução de 1776 e da Guerra Civil: aquele episódio dinâmico geralmente referido como Black Power”. O site informa também que o Black Panthers “foi a única organização negra armada a promover uma agenda revolucionária em toda a história da luta dos negros contra a escravatura e opressão dos Estados Unidos, representando a última grande investida dos negros por igualdade, justiça e liberdade”. Fundado em outubro de 1966 por Bobby Seale e Huey P. Newton, em Oakland, Califórnia, o partido chegou a ter 5.000 membros em todo o país. 47
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Os fundadores do Partido dos Panteras Negras, em 1966
Buscando com sinceridade a emancipação dos afro-americanos da exclusão social mantida pelas leis de Jim Crow, municiados de palavras de ordem de Mao Tse-Tung e de Malcom X, armados com livros de direito e rifles, os Black Panthers alimentavam os pobres, protegiam os afroamericanos da polícia racista e apresentavam um novo paradigma de ati48
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vismo social e político. Seus “programas de sobrevivência” – como distribuição gratuita de alimentos – se tornaram populares nas comunidades negras no inicio os anos 1970. No entanto, para o público e o poder brancos, os panteras eram apenas uma militância contra o governo dos Estados Unidos. Essa visão era ainda mais distorcida pela polícia racista e pelo não menos preconceituoso FBI, que assassinaram vários dos seus líderes – muitos dos quais mal haviam saído da adolescência. Outros membros do partido, como o Ministro Pantera de Informação Eldridge Cleaver, eram frequentemente presos pelos motivos mais esdrúxulos. Apesar da hostilidade do governo americano, a organização floresceu, atraindo alguns dos líderes negros mais articulados da cena revolucionária dos anos 1960. Gente como H. Rap Brown e Stokeley Carmichael, ambos ex-presidentes do Student Non-Violent Coordinating Committee (Comitê Estudantil de Coordenação Não-Violenta), e a ativista Angela Davis engrossaram as fileiras dos Black Panthers. Curiosamente, foram divisões internas que enfraqueceram o partido levando-o ao seu declínio e desaparecimento, em meados da década de 1970. Três décadas depois, os panteras negras continuam vivos nas memórias daqueles que lutaram pelos direitos dos afro-americanos.
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O Nascimento de um Líder
s vezes, o ar se torna tão denso de elementos inflamáveis que bas-
À
ta apenas uma fagulha para se criar um grande incêndio. As humilhantes injustiças que os afro-americanos sofriam (e que de certa
forma continuam sofrendo ainda hoje) nas mãos dos brancos volatilizaram a atmosfera dos Estados Unidos com tanta intensidade que bastaria apenas uma outra injustiça para incendiar a reação negra. E isso aconteceu de fato, em 1955, de uma maneira fortuita e por um motivo prosaico – no entender das autoridades, claro. Mas os afro-americanos já tinham engolido muita humilhação e, depois que Rosa Parks foi presa por se negar a ceder seu lugar a um branco no ônibus, eles não pararam até conquistar seu objetivo. O dia 1º de dezembro de 1955 se tornou uma data histórica. Rosa Parks, uma costureira negra de 42 anos, residente em Montgomery, onde Martin era pastor da Igreja Batista da Avenida Dexter, pegou o ônibus para voltar para casa. Depois de um duro dia de trabalho, ela estava exausta.
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Sentou-se no primeiro banco que viu, ignorando a placa acima da sua cabeça, onde se lia “somente para brancos”.
Rosa Parker, com M.L. King Jr. ao fundo, em 1955
O ônibus foi parando nos pontos, recolhendo os passageiros que voltavam do seu trabalho. Na medida em que os brancos iam embarcando, o motorista ordenava aos negros que se levantassem e cedessem seu 51
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lugar. Todos os afro-americanos obedeceram – menos Rosa Parker. Houve uma discussão acalorada, mas Rosa se recusou a acatar a lei de Jim Crow. Ela estava cansada e não sairia do lugar. O motorista decidiu, então, parar o ônibus e chamar a polícia.
O ônibus no qual Rosa Parker foi presa, hoje em exposição em museu.
Rosa foi levada para a delegacia, onde foi fichada, presa e multada por desobedecer a lei segregacionista. O que os brancos não esperavam é que 52
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o incidente se transformou no marco necessário para que os líderes negros mobilizassem um boicote de ônibus de mais de um ano, até conseguirem derrubar a lei. Na verdade, Rosa não foi a primeira afro-americana a ser presa e multada por não ceder o lugar a brancos no ônibus. No entanto, segundo militantes da luta pelos direitos civis, ela foi a primeira com “o perfil adequado” porque poderia suportar “o escrutínio da imprensa e da sociedade”. No dia seguinte à prisão de Rosa, E.D. Nixon, então presidente da National Association for the Advancement of Colored People, NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor), pagou a fiança e a costureira foi libertada. Nixon, porém, percebeu que aquela afronta contra o povo afro-americano poderia ser a faísca que acenderia o estopim do movimento pelos direitos civis. Imediatamente, ele ligou para Martin Luther King Jr., que embora tivesse se mudado recentemente para Montgomery já era uma voz proeminente entre as lideranças negras, e marcou uma reunião. No começo da noite daquele 2 de dezembro, os principais articuladores negros de Montgomery se reuniam sob a liderança entusiasmada de Martin na Igreja Batista da Avenida Dexter. De acordo com a biógrafa Christy Whitman, “Martin usou de todo o seu poder de persuasão para que a reunião não descambasse para a incitação da violência como forma de revide”. O reverendo apresentou um plano de ação que havia 53
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elaborado com Nixon antes da reunião. A ideia era pegar os brancos onde doía mais, isto é, nos seus bolsos. Assim, Martin e Nixon propuseram um boicote aos ônibus da cidade, até que a injusta lei de Jim Crow que obrigava que os negros a ceder seus lugares nos ônibus aos brancos fosse revogada.
Rosa Parker fichada pela polícia por não ceder o lugar a um branco
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Martin Luther King Jr., preso e fichado depois do protesto em Birmingham
O movimento propunha que os afrodescendentes simplesmente exercessem um direito de escolha: se não podiam ser tratados no mesmo nível de igualdade dos brancos nos ônibus, não usariam o serviço. Era uma forma de protesto justa, pacifica e, sobretudo, eficiente. Para que todos aderissem, tornando o boicote um sucesso, Nixon sugeriu que, no sermão do domingo seguinte, os pastores falassem em suas congregações sobre a importância da não andar de ônibus. Nos bair55
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ros negros, também foram distribuídos panfletos com orientações sobre o movimento. “Não pegue ônibus para ir ao trabalho, à cidade, à escola ou a qualquer outro luar na segunda-feira 5 de dezembro. Outra mulher negra foi presa por ter se recusado a ceder seu lugar. Não pegue ônibus para ir ao trabalho, à cidade, à escola ou a qualquer outro lugar na segunda-feira. Se você trabalha, pegue um táxi, uma carona ou caminhe”, diziam os panfletos. Com tanta mobilização, era natural que a informação vazasse. No sábado anterior ao inicio do boicote, a manchete do principal jornal de Montgomery anunciava a “ousadia” do boicote dos negros. A matéria que comentava o movimento trazia o texto dos panfletos de divulgação na íntegra. Os brancos não acreditavam que “cidadãos de segunda-classe” – como eles tiranicamente viam os negros – fossem capazes de uma mobilização que requeria tanta organização. Estavam redondamente enganados, conforme vieram a perceber. A segunda-feira 7 de dezembro assistiu à consagração do movimento. Em dias normais, os ônibus transportavam cerca de 20 mil usuários negros, mas naquela segunda-feira, menos de uma centena tinha usado os ônibus. À tarde, houve uma reunião entre os lideres do boicote, e Martin foi eleito presidente de uma nova organização: a Associação de Emancipação dos Negros de Montgomery. À noite, uma multidão de afroamericanos se reuniu na Igreja Batista da Rua Holt. Tanta gente compare56
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ceu que a grande maioria – cerca de três mil pessoas – ficou do lado de fora do templo. A televisão gravava o evento: era a notícia do dia. Pelos alto-falantes instalados na rua, os líderes celebravam em seus discursos o sucesso do boicote. “O ambiente era de catarse espiritual”, escreveu Christy Whitman. E em meio à todas aquelas vozes, a que soou mais alto no coração dos afro-descendentes foi a de Martin Luther King Jr. Naquela noite, Martin ascendeu definitivamente à posição de líder dos negros americanos.
M.L. King Jr. E Malcolm X, em 1964
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O protesto evoluiu, prosseguindo semanas a fio. Os participantes davam carona espontaneamente uns aos outros. Caminhavam muito também. Todos estavam empenhados em conseguir que suas exigências fossem atendidas. Os manifestantes reivindicavam ter o direito de sentar nos lugares vagos, receber tratamento respeitoso dos motoristas e emprego para os motoristas negros. Mas apesar de o boicote ter provocado um grande prejuízo, as exigências dos negros não foram atendidas, e as autoridades municipais resolveram tomar atitudes drásticas. Motoristas que participavam do boicote dando carona aos trabalhadores eram parados e multados sob qualquer pretexto. Aqueles que pegavam carona, por sua vez, eram ameaçados de prisão. No entanto, o resultado das pressões foi nulo. Os afroamericanos de Montgomery estavam totalmente comprometidos com o boicote. As autoridades resolveram, então, mudar de estratégia: cortar o mal pela raiz, isto é, intimidar o principal líder do movimento. Forjando uma batida, a polícia prendeu Martin Luther King Jr. A ação, porém, se revelou um tremendo erro. “Se os negros já estavam unidos com esse ato arbitrário, a união tomou dimensões vultosas, e as autoridades puderam dimensionar o quanto Martin era admirado e respeitado pelo seu povo”, explica Christy Whitman.
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Menos de uma hora depois da prisão de Martin, uma multidão se reunião em volta da cadeia. Os líderes procuravam acalmar a multidão, tentando controlar uma possível revolta. O apavorado carcereiro ficou tão fora de si que soltou Martin por conta própria. Foi uma vitória. Mas a luta estava longe de acabar. Na noite seguinte à sua prisão, Martin estava numa reunião com os líderes do boicote, quando sua família sofreu um atentado. Coretta estava na sala amamentando Yolanda, a primeira filha do casal, quando ouviu o barulho de alguma coisa pesada caindo na varanda. Intuitivamente, Coretta correu para o fundo da casa com o bebê, a tempo de se protegerem da explosão. A sala onde estivera momenMartin, em 1964
tos antes ficou completamente
destruída. Quando Martin chegou, havia uma multidão de negros irados em frente à sua casa. A violência despertada pela covardia do atentado ameaçava se alastrar incontrolavelmente por Montgomery. No entanto, depois de se certificar de que não havia acontecido nada com Coretta e 59
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com o bebê, Martin acalmou os revoltosos, estimulando-os a não reagir com violência. Foi uma outra vitória. Depois disso, até mesmo muitos brancos passaram a admirar Martin. A prisão e o atentado a Martin só fizeram fortalecer o boicote. Nunca os afro-americanos estiveram tão unidos em torno de uma causa. As autoridades, por sua vez, não sabiam o que fazer. Como último recurso, o Grande Júri de Montgomery considerou o boicote ilegal. O passo seguinte foi prender os líderes e centenas de integrantes do movimento. Mas nem essa medida arbitraria abalou os ânimos dos negros. Para espanto dos brancos, todos se rendiam sem resistência ou até mesmo iam espontaneamente para a prisão. A vitória final chegou 381 dias depois do início do boicote, em 13 de novembro de 1956, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou que as leis de segregação de Montgomery eram inconstitucionais. O boicote projetou a liderança de Martin Luther King Jr. e suas ideias de não violência em nível internacional, mostrando que a verdadeira força do movimento estava na união por um ideal. A desobediência civil baseada na não-violência provara ser uma arma poderosa.
Rosa Parker Depois da greve de mais de um ano, Rosa não conseguiu mais emprego em Montgomery. Além disso, ela se desentendeu com Martin Lu60
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ther King. Como resultado, acabou tendo que se mudar para Detroit, onde as condições para os afro-americanos eram menos intoleráveis. Lá ela passou a trabalhar para o deputado John Conyers e se aposentou em 1988. Rosa foi condecorada pela Casa Branca e pelo Congresso e passou a ser frequentemente convidada a participar de eventos políticos, nos quais evitava discursar. Quando Rosa morreu, em 24 de outubro de 2005, com a saúde mental já deteriorada e com dificuldades financeiras, ela foi amplamente homenageada por personalidades de todo os Estados Unidos. O presidente George W. Bush disse que ela foi “uma das mulheres mais inspiradoras do século 20”. Já o ex-presidente Bill Clinton declarou que “ela foi uma mulher de grande coragem e dignidade”. O reverendo Jesse Jackson, amigo pessoal de Martin Luther King, falou que Rosa “ficou sentada para que outros pudessem se levantar”.
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Eu Tenho Um Sonho
A
vitória que o movimento pelos direitos civis dos afro-
americanos conquistou através do boicote de Montgomery projetou Martin mundialmente. Sob sua liderança, “milhões de ne-
gros americanos saíram do aprisionamento espiritual, do temor, da apatia, e foram para as ruas reivindicar sua liberdade”, escreveu o biógrafo Edgar A. Klettner em seu livro Vidas Notáveis (Editora Globo, Porto Alegre, 1981). Para Klettner, Martin deu a arma que libertaria finalmente os afroamericanos. “Martin Luther King, o guerreiro pacífico, revelou ao povo o seu poder latente; o protesto não violento de massas, firmemente disciplinado, capacitou-o a avançar contra seus opressores num combate eficiente e sem derramamento de sangue”, explica o biógrafo. Fortalecido com a vitória, Martin continuou sua luta, sempre baseando-se nos princípios da desobediência civil e da não-violência, ensinando que os afro-americanos não deviam odiar aqueles que a eles se opunham. Foi preso injustamente diversas vez, foi agredido fisicamente, o que levou sua esposa Coretta a pedir intervenção do próprio presidente Kennedy, foi 62
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esfaqueado por uma negra, quando autografava seu primeiro livro, numa livraria de Nova Iorque, sua casa e família sofreram atentados. Mesmo assim, Martin não desistiu. Ao contrário, foi o protagonista do maior marco na luta pelos direitos civis – a Marcha para Washington. Se o boicote aos ônibus de Montgomery tornou Martin um líder da luta dos negros, a Marcha para Washington o transformou num ícone americano. O acontecimento foi a maior manifestação já realizada na capital dos Estados Unidos, comovendo o mundo todo a favor da causa dos direitos civis. Em 28 de agosto de 1963, em meio a um calor abrasador, Martin Luther King eletrizou cerca de 300 mil pessoas, entre brancos, negros, estudantes, agricultores, operários, que vieram de todo o país
A marcha pelos direitos civis, em Washington, 1963
para o encontro. Diante da estátua de Abraham Lincoln, Martin proferiu seu mais famoso discurso, Eu tenho um sonho. 63
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No entanto, Martin Luther King não era a principal figura da marcha. “Quando ele fez o discurso”, disse Catherine Grahan, diretora da NAACP na cidade de Trenton, ao jornal The Trentonian, “era para Bayard Rustin e A. Phillip Randolph (importantes líderes negros, na época) serem as estrelas. Não era ‘a Marcha para Washington de Martin Luther King’”. Mas King roubou o show. Foi seu discurso inspirador que fez a todos – inclusive as autoridades brancas – refletir e rever seus valores. “Quando ele subiu ao palanque, ele hipnotizou a multidão”, lembra Graham, que estava sentada num gramado, meio dormindo, até Martin discursar. De fato, o discurso de Martin ainda é lembrado hoje, 42 anos depois de ter sido pronunciado, por causa do impacto que teve sobre milhões de pessoas que não estavam em Washington no dia da marcha ou que nem mesmo eram nascidas em 1963. Doug Palmer, prefeito da cidade de Trenton, no norte dos Estados Unidos, que tinha 11 anos à época da marcha, afirmou que Martin “era um símbolo de esperança, orgulho e coragem que combatia as injustiças e era tão articulado que podia emocionar quem o ouvisse”. Jennye Stubblefield, que participou da marcha, explica que a mensagem de Martin “era algo de que precisávamos naquele tempo; é algo de que ainda precisamos hoje”. O discurso de Martin inspirou ações semelhantes em todo o país. Nas reuniões da NAACP, os líderes eram instruídos a estimular suas comunidades a la Martin Luther King. O resultado foi a vitória. De acordo com o 64
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reverendo Benjamin Chavis, ex-presidente da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), a Marcha para Washington levou à assinatura do Ato dos Direitos Civis de 1964 e ao Ato de Direito ao Voto de 1965, duas conquistas vultosas que garantiram os mesmos direitos dos brancos aos afro-americanos.
Martin profere seu famoso discurso, “Eu tenho um sonho”, em agosto de 1963
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A Marcha para Washington precisa, porém, continuar. Em 1993, no aniversário de 30 anos da marcha, o reverendo Benjamin Chavis declarou que "a cor da sua pele ainda limita suas chances na sociedade”. Para Chavis, “o sonho do dr. King ainda não se tornou realidade". O líder estudantil Jamal Oakley, presidente da Foothill's Black Student Union (União dos Estudantes Negros da Faculdade Foothill), concorda. Oakley acredita que a luta pelos direitos civis ainda está longe de terminar. Recentemente, Oakley promoveu uma passeata nos moldes da Marcha para Washington no campus da faculdade. “Queremos mostrar que só porque os negros e os brancos podem comer no mesmo lugar ou beber no mesmo bebedouro a luta não acabou. Não queremos perder de vista o sonho do dr. King. Isso seria terrível”.
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O Prêmio Nobel
O
esforço de Martin Luther King Jr. e as armas que ele usava para
fazer valer aquilo que acreditava – desobediência civil e nãoviolência – acabaram sendo reconhecidos mundialmente. Em
1964, aos 35 anos de idade, Martin ganhou o Prêmio Nobel da Paz. A honra era enorme e se estendia a todos os afro-americanos. Foi o segundo negro americano a ter tal consagração e o homem mais jovem a ser premiado. Ao receber o prêmio, em Oslo, Noruega, Martin disse que recebia o Nobel em nome dos milhões de negros americanos que lutam “para dar fim à longa noite de injustiças raciais”. Ele destinou o valor do prêmio, que na época era de 50 mil dólares, ao movimento pelos direitos civis. No sul dos Estados Unidos, porém, a reação à concessão do prêmio foi, como era de se esperar, negativa. Os racistas do sul classificaram de “vergonha para todo mundo” o fato de um negro ter recebido o Nobel. Mas a vergonha era que na terra da “liberdade e justiça para todos” nem todos podiam viver em liberdade e com justiça. E foi o exemplo e a coragem de 67
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homens como Martin Luther King Jr. que fizeram esta situação reverter. Martin sonhou e ousou lutar por esse sonho.
Martin Luther King Jr. recebendo o Nobel, em Estocolmo, Suécia, 1964
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A biógrafa Chisty Whitman afirmou que “a força da crença de Martin contagiou negros e brancos, e foi pelo exemplo de vida, pela retidão de caráter, que ele mostrou ‘como’ fazer com que o sonho se tornasse realidade”. Foi pelo fato de Martin ter colocado a liberdade acima das diferenças sociais que ele pôde sensibilizar milhares de pessoas justas e honestas em todo o mundo. Com suas palavras e ações, Martin foi capaz de estabelecer uma corrente dinâmica capaz de abalar séculos de racismo. Martin acabou se tornando o porta-voz dos oprimidos. E por causa da sua luta incansável, ele foi escolhido duas vezes como Homem do Ano pela prestigiosa revista Time. O Nobel veio na esteira. Martin estava acima das mesquinharias humanas. Apesar de tudo o que sofrera – atentados, prisões, agressões –, ele não guardava rancor. No discurso que fez por ocasião da entrega do prêmio, Martin reiterou que sua luta era contra a injustiça e não contra os homens. No entanto, nem mesmo com toda honraria e reconhecimento público, os afro-americanos deixaram de ser perseguidos. Apesar das conquistas do Ato dos Direitos Civis, em 1964, e do Ato de Direito ao Voto, de 1965, os negros continuaram sendo vítimas da violência dos racistas. Em fevereiro de 1965, em Nova Iorque, a casa de Malcon X, líder do Partido dos Panteras Negras, sofreu um atentado a bomba. Sua mulher e seis filhos sobreviveram, mas duas semanas depois, depois de fazer um discurso no Harlem, Malcon X foi assassinado a tiros. 69
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Naquele mesmo ano, uma bomba foi detonada numa igreja de negros. Era um domingo de manhã, e quatro garotinhas morreram enquanto rezavam. Meses depois, dois jovens afro-americanos foram assassinados numa emboscada. Eram avisos a Martin sobre o que poderia acontecer com ele e com seu sonho de igualdade.
A medalha de reconhecimento pelos esforços da paz em seu país.
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O Mártir
D
epois de ser premiado com o Nobel da Paz, Martin não dormiu sobre os louros da vitória. Ao contrário. Logo depois de chegar da Noruega, onde tinha ido receber o prêmio, assumiu novos
desafios. Na cidade de Selma, Alabama, ele liderou uma campanha pelo registro de eleitores negros, que culminou com a Marcha da Liberdade de Selma a Montgomery. Em seguida, Martin levou sua cruzada a Chicago, onde lançou um programa de erradicação das favelas da cidade e uma campanha de construção de casas populares. No entanto, a viagem ao norte do país mostrou a Martin que os jovens negros de lá não se impressionavam com seus discursos e pouco ligavam para seus apelos de protesto pacífico. Martin percebeu que por trás da ira dos jovens afro-americanos do norte estava a guerra do Vietnã – um conflito onde os negros eram literalmente usados como “bucha de canhão”, sendo sempre escalados para as missões mais perigosas em lugar dos brancos. A partir desta percepção, Martin passou a lutar por uma nova causa: o fim da guerra do Vietnã. 71
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Na Casa Branca, com Robert Kennedy, em junho de 1963.
Martin tentou criar uma nova coaliz達o, baseada em apoio igual para a luta pelos direitos civis e pelo fim da guerra do Vietn達. Mas isso causou um racha no movimento. Segundo o jornal Seattle Times, http://seattletimes.nwsource.com/mlk/king/biography.html, a National 72
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Association for the Advancement of Colored People – NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor) – viu a mudança de ênfase de King como um “sério erro tático”, e a Liga Urbana, outra entidade que lutava pelos direitos civis, avisou que os “recursos limitados” do movimento praticamente acabariam. Mas a história provou que Martin estava certo. “Estudantes, professores, intelectuais, clérigos e reformadores imediatamente abraçaram a proposta”, relata o Seattle Times. Com o apoio recebido, King passou a atacar o problema doméstico que sentia estar diretamente relacionado à guerra do Vietnã, isto é, a pobreza. Exigiu um seguro familiar que garantisse uma renda mínima para os excluídos, ameaçou promover boicotes em nível nacional e fazer acampamentos de protestos pacíficos nas principais cidades americanas. Em seguida, começou a planejar uma nova marcha a Washington. Dessa vez seria a Marcha dos Pobres. Sua ideia era reunir um número tão grande de americanos excluídos em frente ao Congresso Nacional, esperando que as autoridades reconhecessem seu grande número e fizessem algo em seu favor. Mas Martin teve de interromper esses planos para apoiar a greve dos coletores de lixo de Memphis.
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Com o presidente Lyndon Johnson, em 1966
Martírio
Em abril de 1968, os coletores de lixo do estado de Memphis, Tennessee, estavam em greve, reivindicando melhores condições de trabalho e aumento salarial. Como 90% dos coletores de lixo eram negros, a greve passou a fazer parte da luta pelos direitos civis. 74
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No dia 3 daquele mês, Martin Luther King Jr. foi a Memphis apoiar a greve. Com ele, estavam dois outros importantes líderes afro-americanos: Jesse Jackson e Ralph Albernati. Os três foram saudados por uma multidão de cerca de trezentas pessoas. Martin, que voltava a Memphis depois de uma malograda passeata meses antes, enfatizou em seu discurso a necessidade de conduzir o movimento por meio da não-violência. Na verdade, os negros começavam a recusar a estratégia de Martin. Nos comícios, policiais se infiltravam à paisana e provocavam os participantes. Muitas outras frentes afro-americanas, como os Panteras Negras e o Movimento Nacionalista Negro, não concordavam com a orientação de Martin Luther King Jr. e reagiam, respondendo com violência às provocações. Martin dava mostras de desânimo. Depois do incidente em Memphis durante sua última visita, Martin havia se reunido com membros da Southern Christian Leadership Conference (Conferência da Liderança Cristã do Sul), fundada por ele e outros líderes negros em 1957 para apoiar em todo o país as organizações locais que participavam do movimento pelos direitos civis. Desanimado com o curso que a luta tomava, Martin chegou até mesmo a pensar em desistir, mas foi influenciado a abandonar a ideia. No dia 5 de abril de 1968, uma quinta-feira, Martin se reuniu com Ralph Albernathy e Jesse Jackson no quarto 306 do Motel Lorraine, onde se hospedara na nova visita a Memphis. Os três analisaram nos jornais as 75
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notícias sobre a greve. As matérias estavam carregadas de provocações, esperando com isso causar a reação violenta dos grevistas negros. Qualquer deslize dos afro-americanos implicaria que o movimento queria “tomar o poder à força”, como as autoridades, inclusive o FBI, insinuavam. Se isso fosse de fato comprovado, justificaria uma intervenção radical por parte dos brancos. Martin queria evitar isso a todo o custo. Cada vez mais, insistia na ideia de não reagir, de responder pacificamente às provocações e de continuar reivindicando aquilo que consideravam ser justo.
O motel Lorraine, onde o líder negro foi assassinado, em 1968
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No final do dia, depois de tantas reuniões e discussões, Martin estava extenuado. Tomou um banho e se preparou para jantar com o reverendo Kyles, um dos líderes negros locais. Depois ele saiu até a sacada do quarto. Vendo um dos assistentes de Kyles à sua espera, fez sinal para ele esperar. Eram 6 horas da tarde. Martin não teve tempo de se virar para sair da sacada. Ouviu-se um disparo de rifle, e Martin caiu. Ralph Albernathy correu até o quarto, mas já não podia fazer mais nada: uma bala covarde atingira Martin na parte inferior do rosto e no pescoço. Pregando amor, respeito e não-violência, o grande líder negro fora assassinado. James Earl Ray, o autor do disparo, tinha feito de Martin um mártir. A morte de Martin fez alastrar uma onda de violência em todo o país: exatamente o contrário daquilo que Martin desejava. A partir daquele momento, o belicoso Partido dos Panteras Negras assumiu a liderança do movimento pelos direitos civis dos afro-descendentes. As autoridades, por sua vez, encontraram no radicalismo dos panteras a justificativa que procuravam para reprimir o movimento com violência. A polícia e o FBI apoiaram traficantes de drogas que atuavam nas comunidades negras e infiltraram espiões nas linhas do partido, assassinaram muitos dos seus líderes e efetuaram prisões. O resultado final pendeu em favor dos brancos. No começo da década de 1970, apesar de as injustiças contra os afroamericanos continuar, o movimento pelos direitos civis tinha perdido sua força quase que completamente. 77
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A esposa, a mãe e a irmã, depois do funeral de Martin.
Mas o legado de Martin Luther King Jr. continua. Em 1969, Coretta Scott King, viúva de Martin, organizou o Martin Luther King Jr. Center for Non-Violent Social Change (Centro Martin Luther King Jr. Para a Mudança Social Não-Violenta), na sua cidade natal, Atlanta. O Centro fica ao lado da Igreja Batista Ebenezer, onde seu avô, seu pai e ele pregaram. Seu aniversário, 15 de janeiro, se tornou feriado nacional – uma homenagem que
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pouquíssimos americanos tiveram. O Hotel Lorraine, onde foi assassinado, é hoje o Museu Nacional dos Direitos Civis. As palavras e ações de um homem como Martin Luther King Jr. não se calam à bala, nem se perdem jamais. Em seu túmulo, no South View Cemetery, seu epitáfio continua a proclamar seu sonho de liberdade: “Enfim livre, enfim livre! Graças a Deus Todo-Poderoso, sou finalmente livre”.
Aos 24 anos, pastor da Igreja de Dexter
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O Legado de Martin Luther King Jr.
M
uitos escritores atingem a glória com um único livro. Outros, porém, são julgados pelo conjunto da sua obra. Martin Luther King Jr. – que também era escritor – não deixou a-
penas uma história que marcou seus contemporâneos e as gerações futuras (neste caso, a sua própria), mas legou uma grande obra através do exemplo da sua vida. Seu legado é imenso. As realizações que levou a cabo fizeram com que os afro-americanos sentissem orgulhos de si mesmo. Provavelmente este é seu maior trunfo: mais do que qualquer vitória significativa – e ele obteve muitas –, Martin Luther King ensinou seu povo a valorizar a si mesmo. O legado de Martin é tal que o líder foi homenageado com um feriado nacional, o Dia de Martin Luther King Jr., celebrado em 15 de janeiro, aniversário do pastor. Poucos americanos têm um feriado nacional em sua honra. Nem mesmo George Washington e Abraham Lincoln têm um ferido 80
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exclusivamente para eles – são celebrados em conjunto no Dia do Presidente. Isso irrita sobremaneira os muitos brancos racistas que ainda grassam nos Estados Unidos.
A marcha pelos direitos civis em Washington: ápice da carreira
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Numa declaração feita em cadeia nacional no programa American Dissident Voices, cujo texto está disponível em inglês em http://www.martinlutherking.org/thebeast.html, Kevin Alfred Strom fez tudo para pintar a imagem de King como “A Besta Tomada por Santo”. Um dos pontos que o detrator ataca é o que ele chama de “frenesi de adoração ao famoso reverendo doutor Martin Luther King Jr.” que toma os Estados Unidos no feriado. Mas quem lê a transcrição do discurso de Strom percebe que sua retórica é fraca e permeada de raiva. Ele está errado. O fato de Mártir ser um dos poucos americanos a terem um feriado para si demonstra claramente o seu valor: um dos maiores líderes da América. No site oficial do Martin Luther King Center (http://www.thekingcenter.org) a própria viúva de Martin, Coretta Scott King fala sobre o legado de Martin, ao comentar o feriado em homenagem ao marido. “Nós celebramos nesse feriado (a memória de) um homem de ação, que alinhou sua vida pela liberdade e justiça todos os dias da sua vida, o homem que enfrentou corajosamente ameaças, cadeia, linchamento, até finalmente pagar o preço mais alto para tornar a democracia uma realidade para todos os americanos”. Para Coretta, o maior legado de Martin foi seu exemplo. Colocou sua vida, suas ações, suas palavras à serviço da sua causa. Para defender aquilo em que acreditava, foi esfaqueado por uma pessoa da própria raça, 82
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sofreu atentados à bomba, foi preso diversas vezes, até finalmente sucumbir a uma bala covarde.
Martin, Coretta e os três filhos, em 1963
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A vida e as ações de Martin espelham de fato sua convicção, seu legado político e filosófico. O biógrafo Edgar A. Klettner, citado em Martin Luther King, O Redentor Negro (Editora Martin Claret, São Paulo), diz que “sob sua liderança milhões de negros americanos saíram do aprisionamento espiritual, do temor, da apatia, e foram para as ruas reivindicar sua liberdade (...) Martin Luther King, o guerreiro pacífico revelou ao povo o seu poder latente; o protesto não-violento de massas, firmemente disciplinado, capacitou-o a avançar contra seus opressores num combate eficiente e sem derramamento de sangue”. Martin foi um exemplo não só para os negros, mas também para milhões de brancos que com ele aprenderam a valorizar seus concidadãos afro-descendentes. Martin continua ainda hoje a inspirar com sua obra. De fato, os afro-americanos conquistaram seu lugar na sociedade do seu país, mas ainda há muito a fazer. A população mais pobre dos Estados Unidos, bem como a dos presídios, ainda é majoritariamente negra, assim como a que aguarda a sentença final nos corredores da morte dos cárceres americanos. Alguns grupos de direitos humanos afirmam que a incrível negligencia do governo Bush no resgate às vítimas do furacão Katrina, que varreu a cidade de Nova Orleans em setembro de 2005, se deveu principalmente ao fato de as vítimas serem na grande maioria negras. Alguns comentaristas apontam a falta de líderes como um grande problema da minoria negra americana hoje. Jesse Jackson, amigo de Martin, 84
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continua ativo, assim como permanece vivo o orgulho do Black Power. Mas o exemplo de Martin não tem sido seguido. Muitos afro-americanos acabaram se acomodando com os louros da vitória. Um vasto número deles enriqueceu e alçou posições sociais mais altas. Há, porém, incontáveis negros excluídos e esquecidos, sem voz para reivindicar a atenção do seguro social. Estes ainda precisam de um novo Martin Luther King.
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Apêndice Martin Luther King por ele mesmo Trechos de escritos e discursos Sobre o atentado à faca no Harlem
“Há alguns anos, sentei-me numa loja de departamentos no Harlem, cercado por centenas de pessoas. Estava autografando exeplares de ‘Caminhada para a Liberdade’, meu livro sobre o boicote dos ônibus de Montgomery, em 1955-56. Ao assinar o nome numa página, senti um objeto pontiagudo penetrar com força no meu peito. Eu havia sido ferido com cortador de papel, arremessado por uma mulher que, mais tarde, viria a ser considerada louca. Levado às pressas, em ambulância, para o Hospital do Harlem, fiquei horas deitado numa cama, enquanto se faziam os preparativos para extrair a faca pontiaguda de meu corpo. Passados alguns dias, quando me senti bem para conversar com o dr. Aubrey Maynard, cirurgião-chefe que realizou a delicada e perigosa operação, soube o motivo da memória que precedia a cirurgia. Disse-me o médico que a ex86
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tremidade da lâmina estivera tocando minha aorta e que todo o meu tórax fora aberto para extraí-la. ‘Se você tivesse espirrado durante todas aquelas horas de espera’, afirmou o dr. Maynard, ‘sua aorta seria perfurada e você se sufocaria em seu próprio sangue’”. “A Revolução Negra – Por que 1963?”, in Luther King – O Redentor Negro, Editora Martin Claret
A Missão Humana
“Enquanto os homens não forem em busca de sua essência e não compreenderem o que vieram fazer neste mundo, nada vai mudar, porque é mais cômodo ficar como está. Mesmo que esteja doendo um pouco”. Citado por Christy White in O Jovem Martin Luther King, Editora Nova Alexandria, Tradução Guca Domenico
Sobre a participação das crianças no movimento pelos direitos civis: “Uma das mais pungentes (atitudes dentro do movimento) procedeu de uma criança de aproximadamente doze anos, que acompanhava a mãe numa passeata. Um policial divertido interpelou-a, em tom de mofa: ‘ o que é que você quer?’. A criança fitou-o nos olhos, resoluta, e respondeu: ‘liberdade’. Ela quase não sabia dizer a palavra, mas trombeta alguma, de 87
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qualquer Gabriel já produzira som mais autêntico(...) As crianças compreenderam quais eram os direitos porque lutavam. Ocorre-nos o caso de um adolescente, cujo pai, devotado ao movimento, aborreceu-se ao saber que o filho se comprometera a participar das manifestações. Proibiu-o de fazêlo. ‘Papai’, disse o menino, ‘mão quero desobedecer-lhe, mas já estou comprometido. Se o senhor tentar me segurar em casa, fugirei. Se achar que mereço ser punido, aceitarei o castigo. O senhor sabe que não estou fazendo isso somente porque quero me libertar. É também porque desejo liberdade para o senhor e mamãe e quero que a liberdade venha antes de o senhor morrer’. Aquele pai refletiu e aprovou a ação do filho”. Pretos e Brancos Reunidos, in Luther King – O Redentor Negro, Editora Martin Claret
Eu Tenho Um Sonho
“Eu digo a vocês hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se levanta´ra e viverá o verdadeiro significado de sua crença: ‘nós celebraremos essas verdades e elas serão claras para todos:que os homens são criados iguais’”.
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“Eu tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar juntos à mesa da fraternidade”. “Eu tenho um sonho de que um dia, até mesmo o estado do Mississipi, um lugar que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça”. “Eu tenho um sonho de que meus quatro pequenos filhos vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo seu caráter”. “Hoje eu tenho um sonho. Eu tenho um sonho de eu um dia, no Alabama, com seus racistas maledicentes, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação, nesse justo dia, no Alabama, meninas e meninos negros poderão dar as mãos a meninas e meninos brancos como irmãs e irmãos”. “Hoje eu tenho um sonho. Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados, e a glória do senhor será revelada e toda carne será unida”. “Essa é nossa esperança. Essa é a fé com que regressarei para o Sul. Com essa fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com essa fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos,
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lutar juntos e, até mesmo, ir preso juntos em defesa da liberdade. Mas certamente um dia seremos livres”. “Esse dia será o dia, esse será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar uma melodia com todo um novo significado. ‘Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto. Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos. De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade’”. “E se a América é uma grande nação isso tem de se tornar realidade. E desse modo ouvirei o sino da liberdade...” In O Jovem Martin Luther King, Christy Whitman, Editora Nova Alexandria
O Propósito da Educação (escrito no Morehouse College, em 1948, quando Martin tinha 19 anos) “Enquanto participo das atividades estudantis dentro e fora da escola, percebo que muitos estudantes têm uma concepção errada do propósito da educação”. “Muitos dos ‘irmãos’ acham que a educação deve instrumentalizá- los com instrumentos de exploração apropriados para que eles possam passar por cima das massas. Outros pensam que a educação deve dar-lhes nobres fins, em lugar de meios para um fim. A mim parece que a educação tem dois papéis a realizar na vida de um homem e na sociedade: um é utilida90
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de e outro é cultura. A educação deve possibilitar que o homem se torne mais eficiente, que realize com cada vez mais facilidade os objetivos legítimos da sua vida. A educação deve também treinar o estudante a pensar rápida, resoluta e eficientemente. Pensar incisivamente por si mesmo é muito difícil. Somos inclinados a deixar que nossa vida mental seja invadida por legiões de meias-verdades, preconceitos e propaganda”. “E nesse ponto, eu me pergunto se a educação está ou não cumprindo seu propósito. A grande maioria de pessoas ditas educadas não pensam logica nem cientificamente. Até mesmo a imprensa, a sala de aula, o palanque e o púlpito, em muitas instâncias, não nos dão verdades objetivas e imparciais. Salvar o homem do atoleiro da propaganda é, na minha opinião, a principal meta da educação”. In The Purpose of Education, http://seattletimes.nwsource.com/mlk/king/speeches.html, tradução de Claudio Blanc
As Três Dimensões de Uma Vida Completa sermão proferido na Igreja Batista da Nova Aliança, Chicago, em 9 de abril de 1967
“Há três dimensões em qualquer vida completa (...): comprimento, largura e altura. O comprimento da vida, conforme o conceito que usaremos 91
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aqui, é a preocupação pessoal com o próprio bem-estar. Em outras palavras, é a preocupação consigo mesmo que faz com que as pessoas vão em frente para realizar suas metas e ambições”. “A largura da vida, conforme o conceito que usaremos aqui, é a preocupação exterior pelo bem-estar dos outros. E a altura da vida é a busca por alcançar a Deus. Vocês devem ter todos esses três aspectos para ter uma vida completa”. In The Three Dimensions of a Complete Life, http://seattletimes.nwsource.com/mlk/king/speeches.html, tradução de Claudio Blanc
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Sobre o Autor
Claudio Blanc é escritor, tradutor e editor, autor de cerca de 600 artigos sobre História, Ciência, Literatura e Filosofia, publicados em revistas como Discovery Magazine, Filosofia Ciência & Vida, Revista do Explorador e Grandes Líderes da História. É autor, entre outros, dos livros Aquecimento Global e Crise Ambiental, Uma Breve História do Sexo, O Lado Negro da CIA e O Homem de Darwin. Entre seus livros infanto-juvenis estão Histórias Sopradas no Tempo e De lenda em Lenda se Cruza Fronteiras, indicado como Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Claudio Blanc também assina até o momento da publicação deste livro a tradução de 40 obras nos mesmos campos de conhecimento sobre os quais escreve, entre elas os best-sellers Fumaça e Espelhos, de Neil Gaiman, e O Relatório da CIA – como será o mundo em 2020?
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Direito reservados: Sindicato dos Padeiros de São Paulo, 2014 Este artigo pode ser reproduzido para fins educativos; a fonte deve ser citada Projeto Memória: www.padeirosspmemoria.com.br
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