O Movimento Tenentista
Claudio Blanc
Projeto Mem贸ria Sindicato dos Padeiros de S茫o Paulo
Presidente: Francisco Pereira de Sousa Filho (Chiquinho Pereira) Coordenador: Aparecido Alves Ten贸rio (Cid茫o) Curador: Claudio Blanc www.padeirosspmemoria.com.br
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O Tenentismo
A década de 1920 foi marcada por alterações profundas nos contornos do Brasil. Embora a estratificação social e política permanecesse a mesma do tempo do Império, a burguesia se fortaleceu graças à conquista de poder econômico ou institucional, como os militares. Ao mesmo tempo, outras classes sociais, como os imigrantes e o operariado, faziam valer suas reivindicações, pressionando com greves e manifestações. Cada qual buscava concretizar seus interesses nos estratos da Velha República. De um lado desse cabo-de-guerra do poder, a situação. Desde o governo do presidente Campos Salles (1898-1902), grandes cafeicultores de São Paulo e de Minas, os Estados mais ricos da União, alternavam-se na presidência da República, uma constante que acabou sendo chamada de “política café-com-leite”. Nessa política, a vice-presidência ficava ora com os gaúchos, ora com os baianos e ora com os pernambucanos. Aos outros Estados, a quem um escri3
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tor chamou “Bagageiros da Federação”, raramente era dada a presidência – apenas quando a divergência entre paulistas e mineiros era insustentável. O partido da situação, o Partido Republicano, escolhia os parlamentares e governantes que lhe eram convenientes. Além disso, as eleições eram fraudadas descaradamente. E como os postos importantes eram ocupados por pessoas ligadas ao PR, quase não havia oposição. O governo tinha meios de impedir a formação de grupos que pudessem ofuscar os interesses dos grandes cafeicultores. Mas a grande ironia era que, mesmo assim, o Brasil passava ao mundo a imagem de ser uma democracia pluripartidária. ‘Do outro lado, o crescimento industrial fomentou o fortalecimento de uma burguesia atuante – que já estampava sua marca na revolução que promovia nas artes – e desejosa de ver seus interesses representados no quadro político nacional. A baixa oficialidade do exército, oriunda da pequena-burguesia, também buscava meios de concretizar seus ideais revolucionários, reunindo-se no movimento tenentista. Ao mesmo tempo, o operariado se erguia, reivindicando melhores condições. Em São Paulo, no Rio de Janeiro e em outras cidades que se industrializavam, fermentavam ideias, manifestações, realizava-se encontros, escrevia-se jornais. Falava-se de jornada de trabalho de oito horas, quando eram de doze; em férias remuneradas quando se trabalhava no domingo até o meio-dia; em proteção ao trabalho feminino e infantil quando eles representavam 70% e 20% do operariado, respectivamente
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A vida de trabalhador era árdua. Com a crise econômica que vinha desde os anos 1910, a situação dos operários era lastimável. O custo de vida aumentava muito, e os salários não aumentavam nada. A família operária ganhava menos (mesmo com todos os seus membros trabalhando) do que era necessário para a subsistência. Em 1918, por exemplo, o salário máximo de um trabalhador era 120 mil réis, mas a manutenção da casa nunca, calcula-se, era inferior a 207$000. Nos bairros operários não havia nem água encanada nem esgotos; em 10% dos cortiços onde esses trabalhadores moravam, segundo sanitaristas da época, entre cem e duzentas pessoas compartilhavam o mesmo banheiro. Nesse Brasil dos anos 1920, 65% da população maior de 15 anos de idade era analfabeta. As forças de repressão impediam os trabalhadores de protestar. Em 1924, em Niterói e no Rio, oitocentos operários foram presos acusados de simpatizarem com o tenentismo e levado a Clevelândia. Menos de cem voltaram. Essa convulsão social era espelhada, no plano econômico, pelo conflito entre a lavoura, a indústria, o comércio, as finanças em torno da política cambial e da valorização do café. Todos esses fatores acabaram se voltando contra o Partido Republicano, o café e, consequentemente, contra o Estado de São Paulo. Tenentes Rebeldes No começo dos anos 1920 a situação no Exército era desalentadora. Faltava de tudo: armamento, cavalos, medicamentos, ins5
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trução para a tropa. Os soldos permaneciam baixos e o governo não fazia menção de aumentá-los. Essa situação afetava particularmente a baixa oficialidade. Havia um grande número de tenentes, e as promoções eram muito lentas. Um segundo-tenente, por exemplo, podia demorar dez anos para alcançar a patente de capitão. Além disso, na Velha República, a autonomia dos Estados era apoiada pelas Forças Públicas. As do Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas eram verdadeiros exércitos. A Força Pública de São Paulo, apelidada de “Exército do General Café”, reformulada por Washington Luís quando ele foi presidente do Estado, recebeu treinamento igual ao do exército Francês; tinha artilharia, cavalaria e até aviação. Seu contingente e profissionalismo superavam os de quase todos os exércitos latino-americanos. Essa situação foi enfatizada com a vinda da Missão Militar Francesa para melhorar a formação dos oficiais brasileiros – uma das medidas que o governo tomou para modernizar o exército, depois da Primeira Guerra Mundial –, que, ao mostrar a face de uma instituição moderna e eficiente, acabou impulsionando as reivindicações dos tenentes. Mas a gota d’água que fez transbordar a taça de descontentamento dos oficiais foi a nomeação do civil Pandiá Calógeras para o Ministério da Guerra pelo presidente Epitácio Pessoa. A partir de então, diversos levantes militares eclodiram. E como a participação dos tenentes nessas ações era significativa, o movimento foi logo batizado de "tenentismo". Incrédulos de que conseguiriam mudanças pela via eleitoral, os tenentes elegeram como seu principal objetivo derrubar o governo. 6
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No entanto, não tinham ideia do regime que queriam implantar no país. Não havia um programa claro, apenas algumas ideias gerais. Suas propostas políticas se vinculavam ao clima do pós-Primeira Guerra Mundial, marcado pelo avanço do nacionalismo e da centralização política. Nesse ponto, eles se alinhavam com as oligarquias regionais que se opunham à política do café-com-leite. Entre outras reformas, defendiam o voto secreto, a independência do Poder Judiciário e um Estado mais forte. Mas, embora o Exército como um todo estivesse descontente com o governo, muitos oficiais achavam que os métodos dos tenentes dividiam e enfraqueciam a instituição. Essas correntes defendiam a legalidade e a profissionalização. Entre meados da década de 1920 e o início dos anos 1930, foi tomando corpo uma proposta que concebia a intervenção na vida política do país como algo que deveria ser feito pelo próprio Exército. Seus principais formuladores foram Bertholdo Klinger e o tenente-coronel Gois Monteiro. De acordo com esse conceito, as Forças Armadas tinham o dever de intervir na vida política brasileira em caso de grave ameaça à organização nacional. Essa ideia se concretizou de fato com a Revolução de 1964. Os 18 do Forte Se a História brasileira fosse medida pela coragem, sem dúvida o episódio que ficou conhecido como a “Marcha dos 18 do Forte” estaria entre os mais significativos. Os desmandos do governo pro7
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vocavam descontentamento em todos os setores da sociedade, e os tenentes, que também falavam pela classe média, acabaram se erguendo contra essa situação. As relações entre o Exército e o governo já estavam bem esgarçadas, e mais lenha foi jogada na fogueira durante a sucessão presidencial de Epitácio Pessoa. Em outubro de 1921, a imprensa divulgou cartas supostamente escritas pelo candidato oficial, Artur Bernardes, contendo acusações ao Exército e ofensas ao marechal Hermes da Fonseca, presidente do Clube Militar. Em março de 1922, apesar da oposição, Artur Bernardes foi eleito presidente da República, tomando posse em novembro daquele ano. Em junho, o governo, ainda chefiado por Epitácio, interveio na sucessão estadual de Pernambuco e foi duramente criticado por Hermes da Fonseca. Como reação, Epitácio, ordenou a prisão do marechal e o fechamento do Clube Militar, em 2 de julho de 1922. O fogo daquela fogueira de conflitos já se alastrava sem controle: em todos os quartéis e guarnições militares da capital federal se comentava que a “procissão ia sair”. No dia 4 de julho de 1922, o capitão Euclides Hermes, filho de Hermes da Fonseca e comandante do Forte de Copacabana, convocou seus subordinados. Do portão até o farol do forte, foram cavadas trincheiras e o terreno foi minado. A revolução começaria ali. Na madrugada do dia 5, à 1h e 20m, o tenente Siqueira Campos disparou um dos canhões. Era o sinal. Os rebeldes ficaram em silêncio esperando as respostas das outras unidades. No entanto, apesar de outras unidades militares terem aderido inicialmente à revolu8
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ção, o tempo passou... e nada. Ninguém respondeu. “Covardes! Cadê vocês? Mas nós já começamos e vamos até o fim”, gritou Siqueira Campos. Em seguida disparou um canhão contra o QuartelGeneral, a ilha das Cobras, o Depósito Naval e o túnel Novo. Seus tiros chegaram até a obrigar o comando militar a abandonar o Ministério da Guerra. Mas as forças legalistas revidaram, e o forte sofreu pesado bombardeio durante todo o dia. Na madrugada do dia 6, o ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, telefonou a Euclides Hermes exigindo a rendição dos revoltosos. Então, Hermes e Siqueira Campos informaram aos seus homens que o governo iria esmagar o levante e deixaram sair os que não queriam combater. Dos 301 iniciais, restaram apenas 29. Em seguida, a Marinha posicionou os encouraçados São Paulo e Minas Gerais, além de um destroier, em frente à ilha de Cotunduba e ordenou o bombardeio ao Forte. Depois dessa mostra de força, Calógeras telefonou de novo. Dessa vez, os rebeldes decidiram negociar. Euclides Hermes saiu ao encontro do Ministro da Guerra, mas foi preso. O governo deixava claro: não haveria dialogo; ou os revoltosos se renderiam, ou seriam massacrados. E o bombardeio naval recomeçou. Sob pesado fogo, os tenentes não conseguiram disparar os canhões do forte contra a cidade como tinham ameaçado. Pressionado pela situação, Siqueira Campos tomou uma decisão suicida: sair para combater de peito aberto as tropas legalistas. Com um canivete, eles cortaram uma bandeira do Brasil em 29 pedaços e os distribuíram entre si, guardando aquele que deveria ser entregue ao capitão Euclides Hermes. Armaram-se como podiam e começaram a marcha pela avenida 9
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Atlântica. Alguns debandaram. Restaram somente 18, caminhando para a morte. De repente, um civil, Otávio Correia, atravessou a avenida e se juntou aos rebeldes – uma atitude espontânea que ilustra o alinhamento que havia entre os tenentes e a classe-média. Eram 19 homens indo enfrentar 3.000 soldados do governo. Depois de alguns tiroteios, restaram apenas 10 homens: quatro tenentes, cinco soldados e o engenheiro Otávio Correia. Finalmente, uma carga de fuzilaria os derrubou. Só dois sobreviveram: os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Mais tarde, Epitácio Pessoa foi visitar os sobreviventes. Durante o encontro, Siqueira Campos teve uma atitude que deixou bem claro a que os tenentistas se dispunham pelo seu ideal. Campos não conseguiu conter a raiva e, aos olhos do presidente, conforme conta o historiador Glauco Carneiro, “num gesto brusco e impregnado de desdém, arrancou as gazes e a cinta que lhe continham o abdômen dilacerado, ficando com os intestinos à mostra”. Em 15 de novembro de 1922, Artur Bernardes assumiu a presidência da República sob estado de sítio, decretado por ocasião do levante de julho. E, durante a maior parte do seu governo, os tenentes obrigaram-no a manter essa situação.
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