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Cultura ß Cinema ß Livros A multiplicação de feiras e festas literárias ajuda a formar leitores, movimenta o mercado e oferece aos escritores novas possibilidades de viver de seu ofício
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BRUNO MEIER
uando um amigo perguntou casualmente à professora Tânia Rösing como andava o curso de letras que ela coordenava na Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, ela extravasou insatisfações que vinha represando havia muito. A conversa foi no início dos anos 80, mas Tânia ainda lembra as palavras raivosas que usou para expressar a desilusão com o próprio trabalho: medonho, ridículo, sem inovação, uma mesmice. Na raiz dessa fúria, estava uma constatação preocupante que, diz ela, permanece atual: “Professor não lê. Alguns chegam a ter dois celulares, mas não compram livro”. No esforço de estimular a leitura entre os que já deveriam cultivá-la, Tânia levou à reitoria da universidade uma ideia ambiciosa: convidar escritores brasileiros e estrangeiros a participar, em Passo Fundo, de um grande encontro, no qual falariam de suas obras ao público. O projeto pareceu, a princípio, inviável: a 250 quilômetros de Porto Alegre, Passo Fundo estava ausente do mapa cultural do Estado e do país. Os escritores, no entanto, atenderam ao chamado. A primeira edição da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, em 1981, contou com a adesão do escritor Moacyr Scliar e do poeta Mario Quintana. Há duas semanas, Tânia subiu ao palco de um dos pavilhões da universidade para encerrar a 15ª edição da jornada, que, realizada de dois em dois anos, se tornou uma re-
E NÃO SÃO TABLETS Leitores na
Feira do Livro de Porto Alegre, uma das mais antigas do país: a geração digital ainda se deixa encantar pelas letras ≤ | 18 DE SETEMBRO, 2013 | 123
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Cultura ferência bem-sucedida de programa de incentivo à leitura. Hoje, Passo Fundo ostenta o orgulhoso título de cidade mais leitora do Brasil. De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, da Câmara Brasileira do Livro, cada habitante da cidade lê, em média, 6,5 livros ao ano, perto do índice francês, de sete livros por ano — e muito acima da média brasileira, de 1,3. O vergonhoso índice nacional parece confrmar o clichê segundo o qual o brasileiro não é amigo dos livros. É da natureza do clichê ter seu fundo de verdade, mas também obscurecer o que realmente interessa: muitas vezes, falta apenas um pequeno empurrão — ou alguém que empurre, como Tânia Rösing — para despertar os leitores. As feiras, jornadas, festas, festivais de literatura que têm se multiplicado pelo país podem representar essa diferença. E às vezes fornecem indicadores otimistas: a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, surgida dois anos depois da jornada de Passo Fundo, comemorou em sua última edição, encerrada no dia 8, o número recorde de 3,5 milhões de exemplares vendidos, movimentando um total de 70 milhões de reais, 20 milhões a mais do que a edição de 2011. Ao lado de sua irmã mais velha, a Bienal de São Paulo, criada em 1970, a Bienal do Rio é a grande vitrine da in-
dústria do livro no Brasil. Atraiu, nesta edição, 660 000 pessoas — para fns de comparação: o maior festival de música do país, o Rock in Rio, que está acontecendo nesta semana, espera um público de 600 000 —, sobretudo jovens leitores entre 15 e 29 anos que faziam imensas flas para pegar autógrafo de autores pop como Paula Pimenta e Eduardo Spohr. A jornada é um acontecimento de natureza muito diversa: o centro das atividades não é o balcão do vendedor, mas o palco onde os escritores falam. Não existe, porém, nenhuma oposição entre a feira comercial e o acontecimento cultural: são fatos complementares, que, cada um a seu modo, fortalecem a indústria editorial e ajudam a aplainar o sinuoso caminho que vai do escritor ao leitor. O Brasil entrou de forma mais efetiva no circuito internacional dos eventos literários em 2003, quando surgiu a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Espécie de butique de escritores, a Flip já trouxe autores da moda, como o americano Jonathan Franzen, e nobelizados, como o turco Orhan Pamuk e o sulafricano J.M. Coetzee. E serviu de modelo e inspiração para várias festas literárias que vêm surgindo nas mais diversas locali-
heroínA dAs LetrAs A gaúcha
Tânia Rösing, idealizadora da Jornada Nacional de Literatura: um trabalho de 32 anos que fez de Passo Fundo a cidade que mais lê no Brasil
dades do país, como a Flica, em Cachoeira, na Bahia, e a Fliporto, em Olinda, Pernambuco. Não há um levantamento seguro do número de eventos literários que, em suas várias modalidades (veja o quadro abaixo), existem no país. Um cadastro do Ministério da Cultura registra 250, mas é seguro calcular que, incluindo-se feirinhas em cidades pequenas, o número no mínimo dobre. Criado em 2011, o Circuito Nacional de Feiras de Livro, programa do Ministério da Cultura, tem um edital de 1,9 milhão de reais destinado a fnanciar feiras e similares. A Lei Rouanet, entre 2011 e 2012, despejou 42 milhões de reais nessas promoções, por meio de renúncia fscal. A qualidade e os resultados desses projetos são desiguais, mas, de forma geral, o fnanciamento público se justifca. Muitos tor-
Mercadão da leitura
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As grandes feiras
A primeira feira do livro do Brasil aconteceu em São Paulo, em 1951, emulando modelos europeus. Quatro anos depois, Porto Alegre inaugurava sua Feira do Livro. As feiras se multiplicaram, e hoje há dois gigantes no mercado: as bienais do livro, realizadas em São Paulo e no Rio de Janeiro, em anos alternados. Neste ano, a Bienal do Livro do Rio bateu o recorde de vendas em suas dezesseis edições: 3,5 milhões de exemplares. O Rio Grande do Sul é o estado com mais feiras de livros no Brasil: tem cadastrados 112 eventos. Realizada há dezessete anos, em Belém, a Feira Pan-Amazônica do Livro recebeu neste ano 400 000 pessoas e vendeu 850 000 livros
CRISTIANO MARIz
Um cadastro do Ministério da Cultura inclui 250 feiras e festivais literários em todo o país, mas é seguro afrmar que há pelo menos um número igual de eventos do gênero que, sediados em cidades pequenas, não fazem parte dessa lista. O circuito literário brasileiro conta com basicamente três modelos de evento
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As feirinhas
Realizadas em municípios pequenos e médios, têm difculdade em atrair escritores conhecidos e às vezes nem despertam o interesse de editoras e livrarias. Ainda assim, apresentam uma oferta razoável de livros para a população de cidades que muitas vezes não contam sequer com livrarias. As regiões Sul e Sudeste concentram a maior parte dessas pequenas feiras, mas há novidades também no restante do país: pelo segundo ano, a paraense Paragominas, com 97 000 habitantes, organiza um Salão do Livro
As festas literárias
Criada pela editora inglesa Liz Calder, em 2003, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) tornou-se uma espécie de modelo para esses eventos. O centro não é a venda de livros, mas a celebração do escritor — e, para isso, as festas dependem muito de nomes fortes, sobretudo de escritores internacionais. Já há empresas especializadas na promoção desses festivais — como aquela montada pelo empresário baiano Emmanuel Mirdad, que realiza a Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), na Bahia, e planeja lançar, nos próximos anos, a Flisca, a primeira festa literária de Santa Catarina, e a Flican, em Canela, no Rio Grande do Sul
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nam o livro, ainda que por um curto período, mais acessível aos moradores de cidades que não contam com livrarias (são 1 600 em todo o país). Em cidades de maior tradição letrada, as feiras dão fôlego ao mercado livreiro regional. Tal é o caso notável da Feira do Livro de Porto Alegre, uma das mais antigas — em novembro, terá sua 59ª edição —, cujos best-sellers frequentemente são autores quase desconhecidos no restante do país. Para os escritores, a profusão de festas e feiras representa um ganho duplo: para a vaidade e para o bolso. A literatura é a mais solitária das artes — mas, ao ser aplaudido pela multidão em Passo Fundo ou ser abordado nas vielas de Paraty para dar um autógrafo, o escritor vive seu momento estelar. E a participação nesses eventos costuma ser remunerada. Os cachês variam muito — de 1 000 a 15 000 reais, dependendo do caixa do evento e da fama do autor convidado. Autores que se dispõem a percorrer o circuito de feiras país afora têm aí um bom expediente para incrementar o rendimento, já que poucos conseguem se manter só com a vendagem de suas obras. “Há autores que garantem boa 126 |
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parte de seu orçamento com as feiras, ou até vivem delas”, diz Valéria Martins, jornalista que, há cinco anos, montou uma agência especializada em levar escritores a esses eventos. As festas literárias que anseiam por apelo publicitário disputam autores best-sellers (Laurentino Gomes, de 1889, é hoje um dos mais solicitados) ou consagrados no jornalismo e na televisão. A última Jornada de Passo Fundo teve Walcyr Carrasco entre suas atrações. Célebre como empresário da noite, Ricardo Amaral, graças à intermediação de Valéria, fez em 2012 uma bateria de eventos literários no Nordeste — chegou a aparecer em oito deles, em apenas seis dias — para divulgar suas memórias, Ricardo Amaral Apresenta: Vaudeville. Também lançando um livro de memórias, Boni, ex-executivo da Globo e figura indissociável da história da televisão brasileira, debutou em um evento das letras no ano passado: dividiu o palco com Ricardo Amaral na Tarrafa Literária, em Santos. “Sou virgem em feiras, mas me agrada qualquer iniciativa ligada ao livro”, disse então. A Tarrafa, cuja quinta edição se realiza na semana que vem, de quarta a do-
O BRASIL LÊ, SIM A Bienal do Livro
do Rio de Janeiro: neste ano, essa gigantesca feira do mercado editorial atraiu 660 000 pessoas e bateu o recorde de livros vendidos em toda a sua história — 3,5 milhões de exemplares
mingo, é promovida pela livraria Realejo — o livreiro José Luiz Tahan, aliás, teve a Flip como inspiração primeira. O amparo de um profissional da área, com conhecimento e sensibilidade, pode fazer a diferença para o êxito de uma festa ou feira. Nem todos contam com essa expertise. “Muitas cidades perderam o foco na organização. Preferem colocar um parque de diversões no meio da feira a pensar no leitor”, diz Sônia Zanchetta, da feira de Porto Alegre, autora de um guia de como montar uma feira. Abundam, de fato, tentativas duvidosas de “popularização”. A Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém, existe há dezessete anos e pode se considerar consolidada: atraiu neste ano 40 000 pessoas por dia e movimentou 15 milhões de reais com a venda de 850 000 livros. Em edições passadas, porém, tentou atrair público tirando o livro de seu centro: os shows de bandas bregas como a Calypso
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Contato direto com o público
FLÁVIO MORAES/FOTOARENA/AGÊNCIA O GLOBO
CAROL DO VALLE
“Descobri já no fim dos anos 1970 a importância de estar próximo ao leitor. Deixei de lado essa imagem do escritor inacessível e fui fazer um trabalho com os professores e livreiros das cidades pequenas. Os escritores são vaidosos, mas perceberam que quem frequenta feiras literárias tem seu nome e obra multiplicados. Esses eventos são polos irradiadores.” Ignacio de Loyola Brandão
“Décadas atrás, poucos escritores sobreviviam com a escrita. Precisavam ter um emprego, a maioria no serviço público. Hoje, há uma geração de escritores que podem viver do seu ofício, graças ao que ganham em eventos literários. Quando deixei a universidade, onde trabalhei por 24 anos, metade do meu orçamento vinha de feiras, simpósios e eventos de livros que frequentei por todo o país, de Rondônia ao Rio Grande do Sul.” Cristovão Tezza
“A literatura já foi vista como algo elitista. Hoje, ela ficou mais popular, e as feiras espalhadas pelo país têm papel central nessa mudança. É legal ver a literatura se tornar pop, tal como o cinema. Na Bienal do Rio, 400 pessoas, com idade entre 16 e 35 anos, me prestigiaram. É um público muito fiel. Alguns fãs me seguiram ao estacionamento. Autografei até no capô do carro.” Eduardo Spohr
ERNANI D’ALMEIDA
MARCOS MICHAEL
MÔNICA IMBUZEIRO/AGÊNCIA O GLOBO
Quatro escritores falam da importância das feiras e festas literárias para divulgar a leitura — e para garantir uma renda extra aos autores
“As feiras são muito importantes. É estimulante ver pessoas saindo de casa, interessadas na leitura e num contato mais próximo com o escritor. Eu participei das primeiras feiras do livro de Porto Alegre, e recebo muitos convites. Mas vou a poucas, por causa do meu pavor de viajar de avião.” Ferreira Gullar ≤ | 18 DE SETEMBRO, 2013 | 127
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de fato trouxeram muitas pessoas à feira, mas poucas vinham comprar ou ler. Em Palmas, no ano passado, a primeira Feira Literária Internacional do Tocantins apresentava um cardápio variado mas desencontrado de atrações — de um show do padre-cantor reginaldo Manzotti a uma apresentação do Balé Bolshoi de Joinville. Pouco conhecida, a escritora americana Tahereh Maf ouviu do público perguntas ingênuas como “é você mesmo quem cria seu livro ou alguém assopra a história em seu ouvido?”. A feira também enfrentou difculdades para trazer autores. “cansei de responder que Palmas não tem onça pelas ruas. Só aparecem algumas raposas na praça”, diz danilo Souza, secretário de Educação e cultura de Tocantins. A edição deste ano acabou cancelada — a promessa é que a feira passe a ser bienal. dar início a um evento do gênero é trabalhoso: é preciso garantir convidados, buscar fnanciamento, seduzir o público. No rio de Janeiro, está-se tentando promover encontros literários nas favelas ocupadas por unidades de Polícia Pacifcadora. Neste ano, a Festa Literária Internacional das uPPs (Flupp) 128 |
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pretende cobrir vinte favelas (a maior delas é Vigário Geral, em novembro). O irlandês John Banville, que veio ao Brasil para a Flip, também participou dessa iniciativa. Em 2012, a primeira Flupp, restrita ao Morro dos Prazeres, em Santa Tereza, contou com convidados de peso, como o maranhense Ferreira Gullar, talvez o melhor poeta brasileiro em atividade. Mas não chegou a mobilizar a população da favela, e policiais foram convocados para ocupar as cadeiras vazias da plateia. A jornada de Passo Fundo tem um trabalho de base mais sólido, realizado nas escolas da cidade gaúcha: os alunos leem as obras dos autores convidados. A Flip não tem esse envolvimento comunitário, mas conta com o potencial turístico da cidade e da própria festa. A maior parte do público vem de fora. Em outubro, a Feira de Frankfurt, o maior acontecimento editorial do mundo, terá o Brasil como país convidado. Setenta escritores brasileiros vão até lá divulgar a literatura nacional, na esperança de interessar editores do mundo todo na tradução de suas obras. No próprio país, porém, ainda está em curso o
best-seLLers novatos Boni e o empresário Ricardo Amaral, na Tarrafa Literária de Santos: celebridades e autores que aparecem em listas de mais vendidos são disputados trabalho de conquistar corações e mentes para a leitura. Sobretudo para a leitura prazerosa mas exigente da literatura. “As pessoas querem narrativas. Gostam que a gente conte boas histórias”, diz o escritor paulista Ignacio de Loyola Brandão. Ele é um dos autores que vão a Frankfurt — e é também um dos mais rodados palestrantes de feiras e festas por todo o país. No ano passado, Loyola esteve em 46 feiras, incluindo um evento no Amapá, graças ao qual fechou a totalidade dos 26 estados brasileiros. Bom de palco, ele foi o mediador de todas as mesas na última Jornada de Literatura de Passo Fundo (o público feminino, generoso, gritava “lindo” quando ele subia ao palco). Nem todo romancista ou poeta terá a desenvoltura de Loyola para essas apresentações públicas. Mas a exibição dos escritores nessas vitrines pode, aos poucos, conquistar novos adeptos para o íntimo prazer da leitura. ß
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