aDRoGA NeRÐ ≥ POR RODRIGO BRANCATELLI ≥ FOTO THOMAS SUSEMIHL
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á um segredo e n t r e os empreendedores e funcionários de empresas de tecnologia do Vale do Silício que passam horas e horas acordados, criando centenas de linhas de programação. Não tem nada a ver com organização, perseverança, sorte ou qualquer outra dica de sucesso publicada em livros de autoajuda. O segredo é ovalado, branco, pesa de 100 a 200 miligramas e custa tão pouco quanto um café pequeno no Starbucks, ou cerca de 5 dólares. Se há algo em comum entre as quase 500 companhias da região,
as aulas da Universidade Stanford e as do Massachusetts Institute of Technology (MIT), as reuniões de gigantes como Facebook e Twitter e as madrugadas insones dos programadores de startups, essa coincidência é um pequeno comprimido de modafinil, a droga que move o maior polo de empreendedorismo digital do mundo. “Dois meses depois que cheguei para estudar e trabalhar na Califórnia, me ofereceram uma pílula dessas. Chamam de ‘smart drug’, uma espécie de Viagra para o cérebro. Óbvio que achei que era mentira e também fiquei com receio de aumentar a pressão, dar taquicardia. Mas aí vi que todo mundo daqui tomava para trabalhar sem cansaço. Até meus professores tomavam. Tinha gente que colocava o remédio para dissolver em um copo de Mountain Dew (um refrigerante cítrico) e tomava o dia inteiro. Então experimentei. E, para ser sincero, mudou meu rendimento.”
COM A PROMESSA DE TORNAR QUEM TOMA MAIS INTELIGENTE E PRODUTIVO, O MODAFINIL É A DROGA DOS EMPREENDEDORES DO VALE DO SILÍCIO. MAS É POSSÍVEL SER CRIATIVO E EFICIENTE COM UM COMPRIMIDO? E, SE FOR, QUAL O LIMITE DO DOPING INTELECTUAL?
O brasileiro Fábio, que aceitou contar sua experiência para esta reportagem, é estudante do MIT, trabalha em um laboratório dentro da universidade, em Boston, e faz estágio não remunerado em uma empresa de mídia social. Acorda às 6 horas da manhã e vai dormir sempre depois da meianoite. Come mal, não faz exercícios e, claro, dorme muito menos do que o recomendável. Tinha uma rotina estafante, pelo menos até ser apresentado ao modafinil, droga comercializada apenas com receita médica desde 1998 e criada para o tratamento de pacientes com narcolepsia, mas que também passou a ser utilizada por um número cada vez maior de pessoas em busca de uma suposta melhora cognitiva.
ILUSTRAÇÃO DENIS FREITAS
TWITTER.COM/_INFO
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INOVAÇÃO
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á um segredo e n t r e os empreendedores e funcionários de empresas de tecnologia do Vale do Silício que passam horas e horas acordados, criando centenas de linhas de programação. Não tem nada a ver com organização, perseverança, sorte ou qualquer outra dica de sucesso publicada em livros de autoajuda. O segredo é ovalado, branco, pesa de 100 a 200 miligramas e custa tão pouco quanto um café pequeno no Starbucks, ou cerca de 5 dólares. Se há algo em comum entre as quase 500 companhias da região,
as aulas da Universidade Stanford e as do Massachusetts Institute of Technology (MIT), as reuniões de gigantes como Facebook e Twitter e as madrugadas insones dos programadores de startups, essa coincidência é um pequeno comprimido de modafinil, a droga que move o maior polo de empreendedorismo digital do mundo. “Dois meses depois que cheguei para estudar e trabalhar na Califórnia, me ofereceram uma pílula dessas. Chamam de ‘smart drug’, uma espécie de Viagra para o cérebro. Óbvio que achei que era mentira e também fiquei com receio de aumentar a pressão, dar taquicardia. Mas aí vi que todo mundo daqui tomava para trabalhar sem cansaço. Até meus professores tomavam. Tinha gente que colocava o remédio para dissolver em um copo de Mountain Dew (um refrigerante cítrico) e tomava o dia inteiro. Então experimentei. E, para ser sincero, mudou meu rendimento.”
COM A PROMESSA DE TORNAR QUEM TOMA MAIS INTELIGENTE E PRODUTIVO, O MODAFINIL É A DROGA DOS EMPREENDEDORES DO VALE DO SILÍCIO. MAS É POSSÍVEL SER CRIATIVO E EFICIENTE COM UM COMPRIMIDO? E, SE FOR, QUAL O LIMITE DO DOPING INTELECTUAL?
O brasileiro Fábio, que aceitou contar sua experiência para esta reportagem, é estudante do MIT, trabalha em um laboratório dentro da universidade, em Boston, e faz estágio não remunerado em uma empresa de mídia social. Acorda às 6 horas da manhã e vai dormir sempre depois da meianoite. Come mal, não faz exercícios e, claro, dorme muito menos do que o recomendável. Tinha uma rotina estafante, pelo menos até ser apresentado ao modafinil, droga comercializada apenas com receita médica desde 1998 e criada para o tratamento de pacientes com narcolepsia, mas que também passou a ser utilizada por um número cada vez maior de pessoas em busca de uma suposta melhora cognitiva.
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“MEU CÉREBRO TRAVOU EM UMA TAREFA, SEM DIVAGAÇÕES OU DISTRAÇÕES. NÃO VIREI O EINSTEIN, MAS CONSEGUI MEU MELHOR DESEMPENHO”
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De acordo com um estudo da Universidade da Califórnia publicado na revista da Associação Médica Americana, a quantidade de usuários da droga aumentou cerca de dez vezes nos últimos seis anos. De 500 000 a 700 000 pessoas tomam o medicamento regularmente nos Estados Unidos. “No mundo das startups, em que todos são levados a fazer mais coisas do que o dia permite, os chamados estimuladores cognitivos são muito comentados”, escreveu no site swombat.com o empreendedor inglês Daniel Tenner, diretor das empresas GrantTree e Woobius. “O modafinil é um atalho para você conseguir ser muito produtivo. Realmente acho que tive algumas ideias mais criativas e respostas que não teria sem o remédio.” Em um mundo onde todos querem vencer o sono, ser mais produtivos e acabar com a procrastinação, o modafinil ganha adeptos exponencialmente, como um Red Bull 2.0: algo supostamente inofensivo e extremamente eficaz. Nenhum estudo, no entanto, atestou até hoje como a substância age no cérebro e, pior, quais efeitos colaterais pode causar no longo prazo. Trata-se de um fenômeno com muito mais perguntas do que
respostas. É realmente possível melhorar o desempenho sem ter consequências para o organismo? É seguro trabalhar quase 20 horas sem dormir? E, afinal, se existe mesmo um comprimido que pode deixar alguém brilhante e genial, quais são as implicações éticas e morais desse doping intelectual? Vendido com o nome comercial de Provigil ou Stavigile, o modafinil é o medicamento mais recente a entrar na longa lista de substâncias utilizadas para aumentar a produtividade, como o café, o guaraná, a cocaína, as anfetaminas e a ritalina. Como todo fármaco, no entanto, foi desenvolvido com propósitos bem diferentes. A intenção de seu criador, o médico e professor francês Michel Jouvet, era encontrar uma solução para a narcolepsia, distúrbio que causa sonolência excessiva em cerca de 0,5% da população mundial. O resultado da pesquisa, realizada na década de 70, foi uma droga que estimula o sistema nervoso central, excitando áreas do cérebro responsáveis pela vigília. Ela atua cerca de 3 horas após a
PRODUÇÃO PAULA GUGLIANO MAKE JULLIANA FRAGA MODELO TEODORO BAVA/L'EQUIPE AGRADECIMENTOS OTICA VENTURA, STEIN
ingestão e seu efeito tem duração de até 9 horas. Os benefícios são cada vez mais discutidos em fóruns online como o Reddit, mas quase nada tem a ver com a narcolepsia de fato. Os usuários falam em aumento da concentração, foco durante o dia inteiro, ausência de cansaço e fim do jet lag. “Experimentei pela primeira vez em um sábado de manhã. Tomei metade de um comprimido. Não tive nenhuma sensação diferente, não fiquei agitado, não tive palpitação, nada. Também não fiquei mais inteligente. Mas aí, do nada, percebi que já era de tarde e que fiquei direto trabalhando no computador, sem distrações, muitíssimo mais focado do que de costume. Normalmente sempre me distraio muito. Entro no Facebook, vejo um vídeo no YouTube, fico lendo o Twitter. Mas, com o modafinil, meu cérebro travou em uma tarefa, sem divagações. Era muito mais fácil lembrar a palavra certa, lembrar uma fórmula, lembrar uma citação. Achei sensacional e desde então tomo quando preciso estudar ou trabalhar de madrugada. Às vezes fico um pouco nervoso, tenho uma sensação estranha atrás do globo ocular. Mas não dá para ficar indiferente quando você completa um trabalho acadêmico de 3 000 palavras em apenas 2 horas. Não virei o Einstein, mas consegui ter meu melhor desempenho.” Para cristalizar ainda mais essa aura do modafinil como “a droga da inteligência”, os usuários não aparentam sofrer consequências ou sequelas comuns a outros remédios usados para aumentar a vigília, como as anfetaminas, que podem causar problemas cardíacos, depressão e visões. Em testes clínicos no Instituto de Pesquisa do Exército Walter Reed, em Maryland,
nos Estados Unidos, os pacientes continuaram funcionais por até 85 horas seguidas sem dormir, e apenas 1% dos voluntários reclamou de efeitos colaterais da droga. Era de esperar, portanto, que o uso indiscriminado explodisse, principalmente em comunidades de profissionais que passam noites em claro, como programadores e empreendedores digitais. O laboratório Cephalon, que tem o registro do modafinil nos Estados Unidos, vende cerca de 600 milhões de dólares da droga por ano, o que a coloca na lista dos 30 remédios mais comercializados no país. Conseguir o medicamento não é difícil, apesar de ser vendido apenas com receita médica. Fábio, por exemplo, compra de um intermediário na própria universidade, por 5 dólares cada comprimido. Sites também prometem entregar caixas do medicamento em qualquer ponto do mundo por preços que variam de 300 a 500 reais. No Brasil, o
segundo maior consumidor mundial de remédio para déficit de atenção e hiperatividade, não é diferente. O laboratório Libbs, que comercializa a substância por aqui, recusou-se a dar informações ou entrevista sobre o assunto. Mas é só ligar em farmácias para conferir o sucesso. “Não tenho mais em estoque. Vêm poucas caixas e acabam rapidinho”, disse a atendente de uma farmácia de São Paulo, por telefone. A fama da pílula mágica, no entanto, preocupa a comunidade médica, principalmente pelo fato de que não há literatura sobre a ação do modafinil. “Falar que um medicamento é bom sem ter estudos é um absurdo completo”, afirma a médica neurofisiologista Marlene dos Santos Amendale, especializada em medici-
100 MG DE INTELIGÊNCIA COMO ATUA O MODAFINIL >> O medicamento estimula o sistema nervoso central, inibindo o sono e excitando áreas do cérebro responsáveis pela vigília. Alguns mecanismos têm sido discutidos para explicar seu efeito estimulante. Um deles seria o aumento da liberação de dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer. O modafinil também aumentaria a quantidade de histamina, o que promoveria a vigília. >> Segundo o laboratório que comercializa a droga no Brasil, os efeitos colaterais mais comuns são dor de cabeça, náusea, nervosismo, ansiedade, insônia, dor lombar, diarreia, dispepsia, rinite e vertigem. >> Estudos recentes mostram que o medicamento também pode causar depressão, confusão, amnésia, tremor, alteração do paladar, visão anormal e retenção urinária. >> Foi criado para o tratamento da narcolepsia. Mas há estudos clínicos para analisar seu uso contra depressão e esquizofrenia.
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na do sono. Segundo ela, o descanso à noite funciona como uma espécie de “zelador” do cérebro. “Cedo ou tarde, não dormir vai cobrar seu preço”, diz. A lém da questão puramente médica, há diversas questões éticas envolvidas, principalmente quando o modafinil parece ser apenas o primeiro passo de uma nova farmacologia que promete aumentar a cognição humana e melhorar a memória de pacientes com mal de Alzheimer. Os laboratórios americanos Cortex, Axonyx e Memory Pharmaceuticals, por exemplo, desenvolvem três tipos de estimulador cognitivo. Russell Grant Foster, renomado neurocientista inglês, chegou a afirmar em um artigo na revista New Scientist que estamos prestes a experimentar uma revolução sensorial. Segundo Foster, seremos capazes de usar diferentes fármacos para desligar e ligar o sono, sem consequências negativas. “Há uma corrida por remédios que nos tornem mais produtivos, mas não sabemos os efeitos para a sociedade”, diz Barbara Sahakian, professora do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Cambridge, que já publicou cerca de 300 estudos sobre farmacologia cognitiva e ética médica. Para ela, essa nova área da indústria farmacêutica é um caminho sem volta, mas que deveria ser precedida por uma série de reflexões. “Como o cérebro de um jovem reage quando mudamos o equilíbrio químico dele? Vamos tomar pílulas para ficar produtivos dia e noite? Vamos conseguir viver em uma sociedade tão competitiva assim?”, diz Barbara, sem ter qualquer tipo de solução na ponta da língua. Se nem com modafinil conseguimos responder a essas perguntas, então é bem possível que estejamos ainda longe de uma droga da inteligência perfeita.
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