Especial
Espiritualidade A busca da transcendência longe das religiões
Para o novo ateísmo, é possível alcançar um arrebatador sentimento de elevação, a partir de um estado de consciência plena, sem que isso se aproxime de algo com uma dimensão mística RINALDO GAMA
“O
cristianismo, tanto quanto o islamismo, ensina às crianças que a fé sem questionamento é uma virtude. Não é preciso defender aquilo em que se acredita. Se alguém anuncia que isso faz parte de sua fé, o resto da sociedade, tenha a mesma fé, outra fé ou nenhuma fé, é obrigado, por um costume arraigado, a ‘respeitar’ sem questionar.” O britânico Richard Dawkins já havia inscrito seu nome na história da ciência — graças ao estupendo O Gene Egoísta (1976), que estuda a seleção natural com foco em sua unidade primordial — quando, em 2006, publicou uma obra, da qual se retirou a frase acima, que transformaria seu percurso intelectual: Deus, um Delírio. Só pelo trecho citado e pelo título é possível medir a incendiária temperatura do manifesto de Dawkins, e enxergar o alvo: as religiões. Não era, claro, a primeira vez que ele se posicionava contra a fé — suas críticas ao criacionismo faziam parte, digamos assim, do seu DNA.
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Especial
Espiritualidade A busca da transcendência longe das religiões
Para o novo ateísmo, é possível alcançar um arrebatador sentimento de elevação, a partir de um estado de consciência plena, sem que isso se aproxime de algo com uma dimensão mística RINALDO GAMA
“O
cristianismo, tanto quanto o islamismo, ensina às crianças que a fé sem questionamento é uma virtude. Não é preciso defender aquilo em que se acredita. Se alguém anuncia que isso faz parte de sua fé, o resto da sociedade, tenha a mesma fé, outra fé ou nenhuma fé, é obrigado, por um costume arraigado, a ‘respeitar’ sem questionar.” O britânico Richard Dawkins já havia inscrito seu nome na história da ciência — graças ao estupendo O Gene Egoísta (1976), que estuda a seleção natural com foco em sua unidade primordial — quando, em 2006, publicou uma obra, da qual se retirou a frase acima, que transformaria seu percurso intelectual: Deus, um Delírio. Só pelo trecho citado e pelo título é possível medir a incendiária temperatura do manifesto de Dawkins, e enxergar o alvo: as religiões. Não era, claro, a primeira vez que ele se posicionava contra a fé — suas críticas ao criacionismo faziam parte, digamos assim, do seu DNA.
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Chopra, indiano radicado nos Estados Unidos, cujo livro O Futuro de Deus (Editora Planeta, 34,90 reais) acaba de sair por aqui. É de Harris o mais recente petardo do neoateísmo, que chega às livrarias brasileiras no próximo dia 17: Despertar (Companhia das Letras, 27,90 reais). No caso dele, é o subtítulo que sinaliza, de maneira, absolutamente precisa, a orientação do “movimento”: Um Guia para a Espiritualidade sem Religião. Segundo o cientista, é possível ter experiências transcendentais sem professar uma fé. “A palavra espírito vem do latim spiritus, uma tradução do termo grego pneuma, que significa respiração”, escreve Harris, com o propósito de retirar do termo a conotação “mística” que o enredou “em crenças sobre almas imateriais, seres sobrenaturais, fantasmas e daí por diante a partir do século XIII”. Na concepção proposta pelo americano, a palavra espiritualidade é empregada para discorrer sobre os esforços que as pessoas fazem para trazer a mente por inteiro ao presente. Para Harris, o modo mais racional, aceitável e simples de fazer um incrédulo vivenciar a transcendência é a meditação. O autor acredita que também seja possível alcançar a mais profunda consciência de si próprio através do uso de drogas psicodélicas. O neurocientista admite, inclusive, que teve experiências com ecstasy. Vale, porém, a ressalva: nem ele nem esta publicação pretendem estimular o uso de entorpecentes. “É possível que exista espiritualidade sem religião, mas, na maioria das vezes, é um produto de mercado. A crença no transcendente pressupõe elementos culturais”, opina o filósofo Luiz Felipe Pondé, professor da PUC-SP e autor do livro 10 Mandamentos + 1 Aforisma Teológico de um Homem sem Fé (Editora Três Estrelas), que será lançado em julho.
neoateísmo. Como na terceira lei de Newton — para usar uma imagem científica que agradaria aos militantes da implacável corrente —, a cada ação doutrinária dos religiosos corresponde uma virulenta reação dos novos ateus. O grupo, que já contou com o escritor inglês Christopher Hitchens (1949-2011), tem hoje, ao lado de Dawkins, um pensador igualmente agressivo, o neurocientista americano Sam Harris. Não por acaso, o trio aparece na alça de mira de pensadores como a britânica Karen Armstrong, que assina o erudito Em Defesa de Deus (Companhia das Letras, 2011), e o best-seller Deepak
ben welsh / corbis / latinstock
Mas, em Deus, um Delírio, Dawkins foi, de uma vez por todas, para a briga. “Se este livro funcionar do modo como pretendo, os leitores religiosos que o abrirem serão ateus quando o terminarem”, anota ele no prefácio, para ironizar em seguida: “Quanto otimismo e quanta presunção! É claro que fiéis radicais são imunes a qualquer argumentação, com a resistência erguida por anos de doutrinação infantil executada com técnicas que levaram séculos para amadurecer”. Deus, um Delírio e seu autor fazem parte de uma vertente que, nos últimos anos, não tem dado uma oração de trégua aos crentes: o
INSPIRE, expire Meditação sem mistificação: a palavra espírito — do latim spiritus, tradução do grego pneuma — quer dizer apenas respiração, o que significa, claro, que isso está ao alcance de todos. A ideia de que se trataria de alguma coisa especial só surgiu no século XIII � | 8 de abril, 2015 | 69
Criado em um lar secular, onde a existência de Deus não era objeto de discussão ou preocupação, Harris começou a combater as religiões após o 11 de Setembro — episódio que situa como divisor de águas na militância ateísta, ideia que encontra eco no trabalho de Dawkins: em Deus, um Delírio, ele afirma que aquele tal “respeito sem questionamento”, mencionado na frase que abre esta reportagem, persiste até a eclosão “de um massacre horrendo como a destruição do World Trade Center”, quando “surge então um forte coro de reprovações, enquanto clérigos e líderes de comunidades fazem fila para explicar que esse extremismo é uma perversão da fé verdadeira – mas como pode haver uma perversão da fé se a fé, por não ter justificativa objetiva, não tem nenhum parâmetro demonstrável para ser pervertido?”. Harris cita ainda a “escancarada religiosidade” do governo George W. Bush como estopim da nova “cruzada” — com o perdão da expressão, que certamente desagradaria ao neurocientista e a seu colega britânico — contra os crentes. Não é uma implicância apenas ética, o 70 |
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Jonathan Alcorn
Brasil
que já seria formidável, mas sobretudo moral: o americano vê nas religiões um obstáculo de proporções espantosas ao avanço da sociedade e ao debate de temas como o aborto ou a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Disse o autor a VEJA: “Só o dinheiro usado para apoiar as religiões no mundo, que poderia ser revertido para algum ganho social, já é um bom exemplo de como a fé tem um custo muito elevado”. Ao longo da história, o ateísmo tomou formas distintas. Por muito tempo, a Igreja Católica considerou ateísmo o panteísmo como o defendido pelo filósofo Baruch Espinosa (para quem Deus seria a única substância eterna e infinita à qual todas as coisas deveriam sua existência) e o deísmo (doutrina que admite a existência de Deus, mas descarta uma revelação e o dogma; daí a objeção de Blaise Pascal, que fala de um “deus dos filósofos” tomando o lugar do “deus de Abraão”). No século XIX, consolidou-se a ênfase na negação escancarada de Deus, expressa, por exemplo, no
materialismo científico, na tradição nietzschiana e nos neopositivistas. “O ateísmo ocidental clássico se desenvolveu durante o século XIX e no início do século XX como uma reação à percepção teológica de Deus que se formara na Europa e nos Estados Unidos ao longo da era moderna”, analisa Karen Armstrong. “O ateísmo mais recente de Dawkins, Hitchens e Harris é diferente porque se concentra no deus dos fundamentalismos”, ataca ela. Seria pertinente situar a trincheira dos neoateístas no campo em que se desenrolam as “batalhas sombrias” às quais se referia Bertrand Russell ao tratar dos confrontos entre ciência e religião. Karen Armstrong se queixa de que os novos ateus “se recusam por princípio a dialogar com os teólogos mais representativos da tradição predominante”. “O novo
∑ os semdeus...
O indiano Deepak Chopra, que vive nos Estados Unidos, e a inglesa Karen Armstrong: queixas contra os militantes do outro lado, resistentes ao diálogo em um campo que abrangeria todas as possibilidades
ateísmo está explicitamente ligado à ciência e é menos paciente com o que as pessoas chamam de moderação religiosa. Algumas religiões são mesmo religiões de paz, como o jainismo. Seus adeptos nunca respondem com violência. Você jamais verá um homem-bomba jainista”, rebate Harris. Dawkins também não se intimida com a acusação de desprezo aos argumentos alheios: “Quando dois pontos de vista contrários são manifestados com a mesma força, a verdade não está necessariamente no meio dos dois. É possível que um dos lados esteja simplesmente errado. E isso justifica a paixão do outro lado”, sublinha em Deus, um Delírio. Haveria paixão simplesmente nos fideístas, que não aceitam que a razão seja capaz de dar conta de responder a questões basilares como
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O neurocientista americano Sam Harris e o biólogo britânico Richard Dawkins: guerra contra os fundamentalismos motivada sobretudo pelo ataque às torres do World Trade Center no 11 de Setembro de 2001
a da existência de Deus ou a da persistência da alma? Na Antiguidade, dois textos se destacaram ao abordar a temática da ressurreição. Em O Mito de Er, Platão, que acreditava que o poder da virtude teria implicações para além da vida, apresenta um guerreiro armênio que retorna dos céus doze dias após a morte em combate. Ao voltar, Er, eleito “o mensageiro junto aos homens sobre as coisas daquele lugar”, conta que todas as almas pagam as injustiças cometidas em vida. A pena de cada injustiça era paga dez vezes. Em O Sonho de Cipião, Cícero descreve uma visão onírica daquele general romano, dois anos antes de comandar a destruição de Cartago. No sonho, ao chegar à África, Cipião é visitado por seu avô morto, que lhe fala sobre seu destino. Na Odisseia, de Homero,
o tema aparece num outro recorte, o do ser vivo que adentra o além e de lá regressa. “No episódio denominado Nékuia (evocação dos mortos), Ulisses desce aos infernos para consultar o vidente Tirésias sobre sua volta à terra natal, Ítaca. Nesse ambiente, ele reencontra ex-companheiros da Guerra de Troia e sua mãe, cuja morte ignorava”, diz Trajano Vieira, professor de grego da Unicamp. Sócrates, enquanto aguardava o cumprimento da sentença que o condenou a morrer bebendo cicuta, deixou claro para seus discípulos sua confiança na vida após a morte. “Nossas almas existem no Hades”, proclama, conforme se lê no Fédon, de Platão. O sonho maior de transcendência talvez seja este mesmo: a imortalidade. ƒ Com reportagem de Fernanda Allegretti
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