Paj te reportagem claudia claudia especial carona

Retratos da mulher brasileira

3 com 000

km

Vivi

O que querem as brasileiras?

CLAUDIA começa uma imersão no país de carona no caminhão da goiana Viviane Soares, uma mulher determinada como muitas da região Centro-Oeste PATRÍCIA ZAIDAN / FOTOS MARCIO SCAVONE

U

m bitrem desce com voracidade pela BR-153. Parece um ente indomável comendo o asfalto gasto antes da divisa de Minas com Goiás. Com dois semirreboques que levam até 57 toneladas, está no encalço do Scania branco e amarelo, carregado com 11 toneladas de fogões e dirigido pela goiana Viviane de Sá Soares, 26 anos, a Vivi. Ela acelera e se sente só um pouco mais potente: “Estou vigiando esse bitrem. Pode ser que eu tenha que sair da frente”, diz. “Ninguém segura um monstro desses quando toma embalo para aguentar a subida aí na frente.” Vivi tem um olho nele e o outro no tráfego intenso no contrafluxo da pista simples. Não dá para apelar para a faixa da esquerda nem existe escape à direita nessa tripa de asfalto que liga o Norte ao Sul. Nascida no governo Kubitschek, famosa por acidentes, roubos de carga e pelos desafios no trecho Belém-Brasí156

CLAUDIA

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lia, a 153 é uma das quatro rodovias mais importantes do país, indispensável para escoar a produção de grãos, eletrônicos, carnes, combustíveis, defensivos agrícolas. “Segura. Segura firme!”, avisa a mulher, decidida a entrar com tudo em um buraco da pista. Em velocidade ascendente, ela deixa, finalmente, o adversário comendo poeira. Tem uma impressionante destreza ao volante. Perto dos 17 anos, pegou a chave do caminhão com que trabalhava o pai, Miguel, e saiu pelo Setor Rio Branco, em Goiânia, onde vive com a família. “Ninguém me ensinou a dirigir. Nasci num caminhão. Só desci aos 7 anos para ir à escola, mas, de saudade dele, tinha febre todo dia.”

A aventura está na alma dessa motorista de mãos miúdas, porte esguio, aparelho nos dentes, riso franco – que ela abre para poucos –, sempre de camisetas leves e shorts, que revelam as coxas claras. “Faz calor, a cabine não tem ar-condicionado”, justifica. Seus pés, descalços, acionam os pedais, e as sandálias Havaianas servem apenas para

Retratos da mulher brasileira

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Vivi

O que querem as brasileiras?

CLAUDIA começa uma imersão no país de carona no caminhão da goiana Viviane Soares, uma mulher determinada como muitas da região Centro-Oeste PATRÍCIA ZAIDAN / FOTOS MARCIO SCAVONE

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m bitrem desce com voracidade pela BR-153. Parece um ente indomável comendo o asfalto gasto antes da divisa de Minas com Goiás. Com dois semirreboques que levam até 57 toneladas, está no encalço do Scania branco e amarelo, carregado com 11 toneladas de fogões e dirigido pela goiana Viviane de Sá Soares, 26 anos, a Vivi. Ela acelera e se sente só um pouco mais potente: “Estou vigiando esse bitrem. Pode ser que eu tenha que sair da frente”, diz. “Ninguém segura um monstro desses quando toma embalo para aguentar a subida aí na frente.” Vivi tem um olho nele e o outro no tráfego intenso no contrafluxo da pista simples. Não dá para apelar para a faixa da esquerda nem existe escape à direita nessa tripa de asfalto que liga o Norte ao Sul. Nascida no governo Kubitschek, famosa por acidentes, roubos de carga e pelos desafios no trecho Belém-Brasí156

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lia, a 153 é uma das quatro rodovias mais importantes do país, indispensável para escoar a produção de grãos, eletrônicos, carnes, combustíveis, defensivos agrícolas. “Segura. Segura firme!”, avisa a mulher, decidida a entrar com tudo em um buraco da pista. Em velocidade ascendente, ela deixa, finalmente, o adversário comendo poeira. Tem uma impressionante destreza ao volante. Perto dos 17 anos, pegou a chave do caminhão com que trabalhava o pai, Miguel, e saiu pelo Setor Rio Branco, em Goiânia, onde vive com a família. “Ninguém me ensinou a dirigir. Nasci num caminhão. Só desci aos 7 anos para ir à escola, mas, de saudade dele, tinha febre todo dia.”

A aventura está na alma dessa motorista de mãos miúdas, porte esguio, aparelho nos dentes, riso franco – que ela abre para poucos –, sempre de camisetas leves e shorts, que revelam as coxas claras. “Faz calor, a cabine não tem ar-condicionado”, justifica. Seus pés, descalços, acionam os pedais, e as sandálias Havaianas servem apenas para

A goiana, que adora desafios, no caminh達o equipado com TV, minifog達o, computador, DVD e uma cama para duas pessoas

Retratos da mulher brasileira descer nos postos. Vivi emenda um frete no outro; demora até 20 dias para voltar para casa. “Preciso trabalhar, quero conquistar muitas coisas, ter independência, uma pequena frota.” Ela toca um dos dois caminhões de Miguel. Em breve, entrará em um financiamento para comprar o próprio cavalo mecânico. “Terá de ser no nome do meu pai”, queixa-se. “O BNDES não negocia com quem está começando, o que me atrapalha.” Vivi está crescendo.

Foi babá, auxiliar de limpeza, costureira industrial e fez o começo de administração de empresas. “Abandonei. A faculdade é teórica, não ensina a organizar uma empresa e a lidar com pessoas.” Sua trajetória ajuda a entender o Brasil, o que ele oferece para o avanço das mulheres e quanto se exime da responsabilidade de garantir educação de qualidade, saúde, direitos reprodutivos, segurança,

“DEMORO ATÉ 20 DIAS PARA VOLTAR PARA CASA. PRECISO TRABALHAR. QUERO TER INDEPENDÊNCIA E UMA PEQUENA FROTA”

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condições de trabalho e civilidade. Pegar carona por cinco dias no caminhão de uma mulher do Centro-Oeste é o começo da imersão que nossa equipe faz nas cinco regiões para sentir o impacto de tudo isso na vida das brasileiras.

QUINTA-FEIRA: PRECONCEITO, LUA E LIBERDADE São 5 horas da madrugada, um friozinho confirma a chegada tardia do outono a São Paulo. A carreta de 15 metros de extensão e 4,40 de altura está engatada no cavalo. Vivi terá que entregar os fogões em Belém, a 3 mil quilômetros, na terça, sem atraso. Tinha feito as unhas e guardado o esmalte no armário da cabine, coberto de pelúcia vermelha, onde mantém remédios, café, macarrão instantâneo, laptop e DVDs, que assiste na TV a bordo. Ao alcance da mão, deixa balas e chocolate, que adora, e um garrafão térmico com água. A cama para duas pessoas fica atrás do banco, e sobre ela vai a mala. “Trago 25 pares de bermuda e blusa.” Dispensa pijama (dorme vestida para o dia seguinte), nunca esquece do biquíni: “Posso ir a uma praia de rio me banhar”. No painel, coloca a Bíblia evangélica, lanterna e carregadores de celular. “Tenho três. Sinal de telefonia na estrada é um horror”, afirma.

Não existe facilidade para caminhoneiros. No Brasil, eles são 1,2 milhão, transportam 58% da carga, o equivalente a 16 bilhões de reais em frete, segundo o IBGE. A atividade é perigosa, mata 8 mil por ano, deixa 100 mil

feridos em assaltos ou acidentes nas vias arrebentadas do o que quero. Se não tenho vontade de conversar, fico capaís. Isso leva a um déficit de 100 mil profissionais e ao lada. Se me sinto só, converso comigo, arrumo os pensaaumento de mulheres no setor – muitas, aliás, viúvas dos mentos.” Quase 17 horas depois da partida, às 21h35, vitimados. São 176 mil habilitadas para todo tipo de caViviane chega exausta a Goiânia. Vai dormir em casa. minhão. Apenas 13,7 mil delas para carreta; 12% vivem no Centro-Oeste, como Vivi. Se a estrada é árdua para SEXTA: A FAMÍLIA QUE DECIDIU MUDAR DE RUMO homens, imagine para elas. Há postos sem sanitário feEntre as hortênsias lilases do quintal, Viviane beija Idelminino. O banho é invariavelmente frio, os pátios onde a ça, 67 anos, sua avó. A mãe, Maria, 44 anos, uma moremotorista estaciona para dormir são esna de cabelos pretos e longos, se aproxicuros, ocorrem estupros e o preconceito ma para um abraço a três. Recordam a é o de sempre. “Acham que sou auxiliar matriarca, Rita, morta no ano passado. do caminhoneiro ou prostituta”, explica.

As quatro gerações da família ilustram Em Barretos (SP), quatro homens o esforço da brasileira para mudar a ordeixam o balcão do bar e correm para dem patriarcal. Elas forçaram a porta ver aquela mulher com jeito de mepara ter acesso a direitos que o Estado nina manobrar a enorme carreta em demorou a providenciar. Rita, mãe de A VIDA NOS ESTADOS um espaço mínimo. No Posto Marajó, Idelça, teve 14 filhos na zona rural.

DE GOIÁS, MATO GROSSO em Aparecida de Goiânia (GO), onde “Quando meu bisavô bebia, ela, com E MATO GROSSO DO SUL prostitutas não podem trabalhar, um medo de morrer, se escondia no mato E NO DISTRITO FEDERAL funcionário suspeita de Vivi: “Como com as crianças”, diz Vivi. Idelça, muentrou aqui?” Ela conta. Ele desdenha: lher meiga e esperta, deu um breque à NÚMERO DE MULHERES: “Você? Dirigindo uma carreta? Ah, vá. fecundidade depois da quinta filha.

7,486 milhões Conta outra”. Viviane nem se estressa: Eram os anos 1960. Ela e o marido haMATRICULADAS “Pensam que sou de engolir caroço”. A viam perdido o que conseguiram na roça NA GRADUAÇÃO: gíria significa errar a marcha, o que e se mudaram para a capital. “Para meus 390,5 mil é vexame. “Vou mandar escrever no filhos não passarem fome, virei lavadeiMÉDIA SALARIAL: para-brisa: ‘O seu preconceito é o seu ra”, relata. Engomava até 400 toalhas de o rendimento delas por fracasso e a minha vitória’.” mesa de um clube. “Eu queria parar de hora trabalhada é de A goiana assumiu o Scania em dezemter crianças, mas os médicos não ensina10,10 reais, enquanto bro de 2013. Por cinco anos, tinha sido vam, os maridos mantinham a gente o dos homens é de 13 reais assistente do pai. Parou de dirigir porquase trancadas em casa.” Então, soube CAMPEÃS EM que Leonardo Soares, 31 anos, com que uma conhecida usava um comprimiATIVIDADE FÍSICA: quem se casou em 2010, preferia que ela dinho todo dia para evitar gravidez. Por 15,6% fazem exercícios por levasse vida de cidade. No dia seguinte à sua conta e sem receita, passou a commais de 30 minutos, cinco segunda separação deles, Viviane assuprar anticoncepcional. Seis anos depois, vezes por semana. A média miu o volante. Em março, reatou com em uma pausa, teve um menino. Da sua nacional é de 11,7% Léo. Deu a ele um prazo para tirar habiprole, ninguém lhe deu mais do que dois TAXA DE FECUNDIDADE: litação na categoria E, de motorista de netos. Maria ligou as trompas assim que 1,92 filho por mulher carreta. “Ele vem trabalhar comigo. Mas teve Amanda, 18 anos, uma universitária AIDS: avisei: ‘Se der mole, desce do meu camibonita que corta o bairro de moto. Vivi A cada 100 mil habitantes nhão’.” A goiana vai criar a própria emusa contraceptivo injetável e vai adiar a da Região, 11,5 mulheres presa, confirmando a tendência no Cenmaternidade. “Não está nos meus planos são portadoras de HIV tro-Oeste, onde 56% dos negócios aberdescer do caminhão nos próximos anos tos têm uma mulher na proa, conforme para ter um bebê”, afirma. “A vida vem o Sebrae. Há algo que incomoda essa melhorando para nós”, comenta Maria. empreendedora: perder dinheiro. Às ve“Não pude estudar. Era doméstica de dia zes, fica cinco ou seis dias com o caminhão parado na e, à noite, sem ônibus no bairro, eu não podia ir à escola.” porta do galpão de uma rede de lojas onde descarregará a Aprendeu sozinha a administrar os caminhões do marimercadoria. “Precisa ter uma lei para mudar isso.” do, ex-frentista de posto. Maria compra peças, paga imÉ na estrada que se solta: “Quer vida melhor? Ontem postos e prestações. “Sou o escritório da firma.” peguei uma lua cheia linda. Desliguei o farol, ela ilumiIdelça gosta de ver como as filhas e netas enveredaram nou o asfalto. Eu namorei a lua”. O vento sopra o rosto por outro caminho: “Na minha época, a gente sabia que o e alguns fios dos seus cabelos, presos em um rabo de marido se engraçava com mulheres, tinha amantes. Eu cavalo. Ela se sente a mulher mais livre do Brasil. “Faço reagia do meu modo, mas não podia falar nada. Hoje, elas

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não toleram tudo caladas nem apanham”. Debora Diniz, professora de pós-graduação em política social da Universidade de Brasília, confirma que a violência doméstica na Região não é a mais alta do país, embora as mulheres do Distrito Federal sejam as que mais teclam 180, o telefone da central do governo que informa onde buscar socorro em agressões. Ela aponta outro problema grave: a morte materna. “O aborto clandestino e inseguro ainda provoca muitas vítimas.” Contra isso, uma das coisas a fazer é flexibilizar a lei que criminaliza a interrupção da gravidez indesejada, o que o Congresso Nacional tem rejeitado.

A taxa de fecundidade da Região é de 1,92 filho por mulher, enquanto a do país é de 1,90. A capital federal se destaca com a menor, 1,74. Analisando a família de Vivi, Debora explica: “Elas são uma representação autêntica do Centro-Oeste: não migraram para cá, vêm de família extensa, rural, provavelmente de origem indígena, acompa-

nham o perfil demográfico local e chegaram a isso pelas escolhas que fizeram”. Ressalta que a figura da caminhoneira é forte, redescreve o feminino e confirma a tendência local de busca por um trabalho cada vez mais urbano e tradicionalmente masculino. Os salários seguem os do Sudeste, com Brasília, o maior holerite do país, puxando a média para cima. O ganho de Vivi, entre 2,5 mil reais e 3 mil, está além da média local. Com o caminhão próprio, faturará de 8 mil a 10 mil reais, mas arcará com muitas despesas. Só de diesel, o trecho São Paulo–Belém consome 2,5 mil reais. Mulheres negras e índias com menor escolaridade e baixa empregabilidade são a ponta frágil na Região e, sem ajuda do poder público, não poderão bancar escolhas como as das herdeiras de Idelça, reflete a professora. Mesmo assim, o país conseguirá reduzir em 75% a morte materna até 2015, cumprindo uma das oito metas estabelecidas no programa Objetivos de Desenvol-

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COTIDIANO SEM ROTINA 1. Às 5h30, a repórter, de carona, acompanha o começo de mais um dia de estrada 2. Raridade: pista em bom estado, em trecho da BR-153, nas proximidades de Belém 3. No estacionamento em Santa Maria do Pará. Só o Scania branco e amarelo é dirigido por uma mulher 4. Confere a documentação da carga no Porto Passarão, na capital paraense

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vimento do Milênio (ODMs), traçado pelos países-membros da ONU. “Nos anos 1990, morriam 141 mulheres em 100 mil nascidos vivos. Em 2010, eram 68 mortes”, diz José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE. “O número ainda é alto.

Países desenvolvidos e com aborto livre praticamente eliminaram a morte materna”, pondera ele. Os outros sete ODMs são: diminuir a miséria, dar educação básica de qualidade, promover a igualdade entre os sexos e a autonomia feminina, reduzir a morte infantil, combater a aids, a malária e outras doenças, garantir sustentabilidade ambiental e estabelecer parcerias para o avanço das nações.

SÁBADO: O AMOR É TUDO E NADA Na manhã de céu azul sem nuvens, Viviane retoma a estrada; quer chegar à divisa com o Tocantins antes da noite. Pela mesma Belém-Brasília que ela corre, passa a maioria das 33 rotas de tráfico de mulheres, mapeadas pela CPI da Câmara dos Deputados sobre o tema. A rede é mais complexa no Mato Grosso do Sul pelas ligações com o Paraguai e a Bolívia. No livro Tráfico de Pessoas – Quanto Vale o Ser Humano na Balança Comercial do Lucro?, Priscila Siqueira e Maria Quinteiro denunciam o turismo sexual em barcos que navegam nas águas do Pantanal, oferecendo a estrangeiros garotas de 14 e 15 anos.

As árvores baixas, de galhos retorcidos e beleza incomparável que pontuam a BR-153 lembram que o compromisso do país em preservar os biomas sofre ameaças. A produção agrícola e principalmente a pecuária têm provocado alterações na flora e na fauna; Goiás, com 90% do bioma alterado, enfrenta os maiores riscos. “Metade do cerrado já está devastado”, afirma José Eustáquio.

Sobre saúde, Viviane comenta que o vírus HIV é uma preocupação em casa. “No bairro, ouço falar de casos novos.” Todo ano, ela se submete ao exame e leva Léo para fazer também. “Na estrada, postos como um no Cariri do Tocantins dão camisinhas de graça”, conta espetando o pendrive no rádio, de onde saem modas de viola como Cabocla Tereza, sertanejo universitário, o funk do beijinho no ombro, de Valesca Popozuda, Caetano, Gal, Elis.

Agora, toca Adriana Calcanhoto, com quem Viviane canta: “Que é pra ver se você volta/ Que é pra ver se você vem/ Que é pra ver se você olha pra mim”. O que é o amor? Ela responde: “O amor é tudo. E nada ao mesmo tempo. É bom demais. Mas tem que ser com a pessoa certa”. Vivi não recolocou a aliança no dedo, mantém um pé atrás: “Para reatar, Léo não trouxe sequer uma flor”. A psicana-

lista paulista Rose Galacini observa: “A mulher pode tornar-se independente, assumir o poder, ter o dinheiro, a decisão. Mesmo assim, ainda chora pelo homem”.

A goiana gosta de dançar, mas o tempo de diversão anda curto. Para esta noite, havia planejado estacionar num lugar com mais estrutura. Como se atrasou, tem que pernoitar onde não há nada para comer além de biscoitos. O jantar se restringe a suco de polpa de abacaxi. Em quase todas as mesas, cerveja e cachaça; afinal, é sábado. Vivi tomou um porre aos 17, em uma festa, e o seu celular sumiu. “Detesto perder o que compro com sacrifício.” Fez uma promessa: se o achasse, não beberia mais. Também não usa o estimulante dos carreteiros, o rebite. Além do remédio tarja preta para emagrecer, vendido até na bomba de óleo e que deixa o motorista ligadão, a cocaína está em alta. Ela mostra os locais em que a “farinha” é oferecida. “Eu não sabia o que era. Quando me disseram ‘Ali você pode comprar farinha’, eu perguntei: ‘De mandioca ou de milho?’ ” Os homens miram os shorts de Vivi e ela não dá bola. Impõe respeito com um olhar duro e distante; eles nem se atrevem. Sexo na cabine, fetiche que povoa o imaginário dos usuários da estrada, passa longe. “Só transei aqui com o meu marido”, diz. Queria ser modelo na adolescência, sabe que é bonita, mas não correspondeu a elogios sinceros e bem-intencionados quando estava separada. “Eu me senti muito bem, mas não deixei rolar.”

“QUER VIDA MELHOR DO QUE ESTA? FAÇO O QUE QUERO, ME SINTO UMA MULHER LIVRE”

DOMINGO: QUEM SEGUE A LEI? Vivi pula da cama e brinca com ela mesma: “Não vou tirar leite da vaca.

Por que acordar tão cedo?” Detesta deixar as cobertas.

São 5h50, e ela tem que tirar – isso, sim – o atraso da véspera. Carga fora do prazo gera multa de 800 reais. Confere os 19 pneus, tocando neles com uma marretinha, e segue. Se um deles furar, e não for dianteiro, ela pode rodar 100 quilômetros até um borracheiro. Já no Tocantins, carimba a papelada no posto fiscal. Para cada dez caminhões, transitam ali dois ônibus e um carro de passeio. É o trajeto mais pesado; não dá para piscar. “As leis existem.

Mas quem cumpre?”, critica. Vivi se refere à lei do descanso do caminhoneiro, em vigor desde 2012, que determina meia hora de relax a cada quatro horas de estrada. “Parar como? No meio do nada? Devia ter pontos de acolhimento. Eu abriria a rede debaixo da carreta ou numa árvore.”

Quando está com carga mais valiosa, é rastreada – ou até escoltada por homens armados – e não pode interromper a viagem sem permissão da empresa, que vigia à distância. Outro embaraço é com a carta-frete, proibida em 2010, mas vigente no submundo da estrada.

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Assinada pela transportadora, é um vale para comida e diesel. Obriga o motorista a trocá-la em determinados postos, que em geral cobram ágio de até 30%. Hoje, um cartão magnético ou o adiantamento na conta do motorista substituem a carta. Vivi não carrega dinheiro para não perdê-lo em assaltos; roda até um posto que aceita o cartão.

Araguaína, Figueirópolis Miranorte, Barrolândia, Gurupi, Fátima e Talismã.

Tantas paradas, quantas histórias. Ela narra episódios vividos nessas cidades tocantinenses e em outros 2 estados com os quais tem aprendido como funciona o Brasil, como agem os homens, como eles se comportam com as mulheres.

Nas andanças, só não se sentiu segura no Nordeste. “O motorista é mais machista. Joga o caminhão em cima quando tem mulher no volante.” Em Ibó (PE), viu um posto com a parede inteira crivada de balas.

SEGUNDA: POEIRA, ACIDENTE E PEIXE FRITO A barreira fiscal do Maranhão é a quarta; tem mais uma no Pará. O dia está lindo, quente, um naco de areia no Rio Tocantins enfeita a BR-153, entre Aguiarnópolis (TO) e Estreito (MA). Ela gosta de água; tem sérias intenções de fechar o caminhão por uma tarde e se deleitar ali ou no Parque Aquático Freitas, mais à frente, em Imperatriz (MA). Há um movimento enorme de pedestres, mulheres cozinhando, gente comprando frutas e bebidas nas barracas alegres que se espicham à beira do caminho. E um desvio chato também: a erosão levou parte da estrada entre Imperatriz e Açailândia. A via está coberta de poeira. “A chuva pesada de sábado – recorda Vivi – podia cair agora.” Estava muito escuro, não se via um palmo à frente do nariz; ela franziu a testa e meteu a cara na tempestade.

Chamou Jesus e emendou ao apelo alguns palavrões. “Faz parte. A gente chora e ri do que diz.” Ela enumera os caminhões quebrados. Um, envolvido em acidente feio: cheio de galinhas mal acomodadas na carroceria, atropelou três operários que trabalhavam na margem. Há penas pela pista toda. Os operários morreram. Vivi buzina, puxa o microfone do rádio faixa cidadão para avisar dois caminhoneiros que passam. São agregados, como ela, à Supersonic, empresa de logística com sede em São Paulo com quem fecha seus contratos de trabalho. É a única mulher entre os 120 profissionais que transportam as 450 carretas da firma, arrecadando cerca de 10 milhões de reais por mês.

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3 MISSÃO CUMPRIDA 1. Vivi em Belém, cinco dias depois de sair de São Paulo e rodar 3 mil quilômetros 2. Encontra na capital do Pará o primeiro banheiro com água quente 3. No dia seguinte, no Porto Passarão, solta as quatro mangueiras, liberta a carreta e entrega a carga

Os marmanjos apelidaram a colega de Bailarina. Um dia, Vivi acordou brava, então virou Garotinha do Mal. “Por fim, me chamam de Penélope. Isso eu curto.” No almoço, novidade: tambaqui frito, na Vila Arco-Íris. Na rodovia, o hit é o bife a cavalo com cebolas puxadas na frigideira. À noite, sob trovoadas, raios, pingos grossos, o Scania P-94, de 310 cavalos de potência, ano 2006, entra em Belém. É tarde, Vivi não pode descarregar. Ancora no Posto Marajó, encontra o primeiro banho quente, em banheiro claro, e mais de 700 caminhões no pátio bem escuro.

TERÇA: O FIM E O COMEÇO A Baía de Guajará brilha ao sol das 12 horas. No Porto Passarão, a goiana apoia o equipamento hidráulico embaixo do caminhão e desce os pés da carreta. Com as mãos sem luva, solta as quatro mangueiras e liberta o cavalo. Não se suja na operação. Oficializa a entrega da carga, que, posta na balsa Jeany Saron, com outras 44 carretas, seguirá rumo a Manaus. Em horas, Vivi zarpará para Campo Grande com 20 toneladas de ar-condicionado, no seu cotidiano apaixonante e sem rotina. “Quer saber meu maior sonho?”, pergunta para ela mesma revelar: “Ouvir um concerto da Orquestra Sinfônica de São Paulo, na Sala São Paulo. Qualquer dia, paro o caminhão por lá.

COLABOROU MARIANA CONTE

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Com Rose,

nas águas

doNorte CLAUDIA viaja no barco da paraense Rosecleia de Lima, que rompeu com a pobreza e ajuda a construir uma nova economia na sua região PATRÍCIA Z AIDAN / FOTOS MARCIO SCAVONE

O

cheirinho de café invade a casa às 5h30. Rosecleia Corrêa de Lima, 43 anos, toma o primeiro gole. Logo vai preparar o seu Gideão. O barco ganhou o nome do herói bíblico por sua bravura nas águas do Rio Guamá, que Rose percorre todos os dias. Ela verifica o óleo, tira o ar da bomba e espera os passageiros que sairão apressados de Boa Vista, povoado do município de Acará, para começar o dia em Belém. São 6h20, a paraense dá a mão, ajuda cada um a saltar do ancoradouro de madeira para a embarcação, que balança um pouco. Nessa manhã, há 44 pagantes sentados nos bancos, que acomodam 60; a corrida custa 3 reais. Não há ondas fortes; em 45 minutos será possível atracar no Porto da Palha, no bairro de Cremação. Acompanhar a rotina dessa morena bonita, de cabelos longos e fisionomia assemelhada à dos índios, é a melhor forma de conhecer as mulheres que fazem a vida econômica fluir no Norte. Seguir seu vai e vem levando gente para o trabalho, crianças para a escola, velhos a passeio e, à noite, carga, é mais um capítulo da incursão de CLAUDIA pelo país. Mas é preciso fôlego.

A jornada da capitã só termina na madrugada.

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O CENÁRIO COMEÇA A MUDAR Como é que uma menina, tendo passado fome no almoço e no jantar, chega ao transporte coletivo e se torna responsável pela segurança das 4 mil pessoas que utilizam o serviço dela todo mês? “É o querer”, diz a ribeirinha. Sua infância foi em Boa Vista mesmo. Ela subia ao topo do açaizeiro com os pés atados pela peconha, cinto de fibras que a mãe fazia para Rose manter-se firme na árvore. Colhia os cachos enormes e escorregava pelos 20 metros, da palmeira até o chão, mais rápido que um macaquinho. Sua família vivia disso. Ainda hoje, o açaí, que nasce em igapós do estuário amazônico e é comum também no Amapá, nas Guianas, na Venezuela e Colômbia, é fonte de renda de milhares de nortistas. O fruto que dá no Pará responde por 90% da produção nacional. A passageira Cleide Vilhena tem sua vida ligada ao açaí, que os paraenses comem com peixe e farinha e acham uma heresia servir em versões doces, como no restante do país. Cleide descerá do barco, deixará na escola o filho Markley, 7 anos, e irá para o bar, no bairro Jurunas, onde tritura os bagos o dia inteiro.

Rose deixou a colheita, virou doméstica e, mais tarde, capitã, com habilitação expedida pela Marinha. Tem oito anos de bordo. Há poucas mulheres nesse ofício. A maior

Rose, no barco que mandou construir para transportar passageiros.

“Adoro ganhar a vida no meio dos rios”

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Retratos da mulher brasileira parte da mão de obra feminina está na agricultura. Muitas assassinados pela polícia e o de meninas no tráfico”, diz mulheres são colonas ligadas à soja, que, no Pará, saltará de Maria de Fátima. Das detentas nos presídios do Norte, 60 mil hectares plantados, da safra passada, para 110 mil 47,9% se dedicavam à venda de drogas. Muitas haviam na próxima. “Já as quilombolas, ribeirinhas e indígenas são assumido a banca deixada pelo companheiro morto. donas do plantio de mandioca ou se dedicam à pesca, mas têm dificuldade de escoar a produção”, afirma Maria de MULHERES SOB ATAQUE Fátima Matos, vice-presidente do Conselho dos Direitos Aos distúrbios urbanos, soma-se a violência de gênero. “No Humanos do Pará. Ela explica que as longas Acre, o incesto ainda é comum”, conta distâncias entre as cidades impedem o proMargarete Lopes, doutora em teorias gresso dessas mulheres. De Portel a Belém, da crítica e da cultura e coordenadora por exemplo, a viagem demora 13 horas, dedo Núcleo de Estudos de Gênero na pendendo da maré. “Não há um programa Amazônia. De novo, o isolamento geopúblico de etnodesenvolvimento, pautado gráfico impulsiona as causas. “Chove A VIDA NO ACRE, AMAPÁ, na economia justa, e de incentivo à produquatro meses por ano, fica difícil naveAMAZONAS, PARÁ, EM ção.” Elas acabam vendendo o que têm e se gar e interagir com outras comunidaRONDÔNIA, RORAIMA alojam nas periferias dos centros maiores, des”, diz. “O viúvo toma a filha mais E TOCANTINS sem qualificação para o mercado. “As norvelha como mulher. O irmão e o patistas, no entanto, são talentosas para o tradrasto fazem o mesmo com as meniMULHERES: balho informal, se viram com vendas ou nas.” Em 2013, no Hospital Mãe Luzia, 8,225 milhões como costureiras, cozinheiras, benzedeiúnica maternidade pública do Amapá, MATRICULADAS NA ras”, ressalva. “Estão lavando roupa na beira gestantes de 12 a 17 anos corresponGRADUAÇÃO: 327 334 do rio e teclando o celular ao mesmo temdiam a quase 50% dos partos. Muitas RENDIMENTO POR po.” Esse espírito se traduz na abertura de já com dois filhos. Para Margarete, a HORA TRABALHADA: negócios e na mudança do perfil de atividanortista, em geral, é a mais oprimida 7,8 reais. O dos homens des. De 2001 a 2011, o número de empreendo país. “A origem está na mulher indíé de 8,2 reais. A média dedoras orientadas pelo Sebrae quase dogena, nunca respeitada como sujeito”, brasileira é 9,1 reais para brou, e foi o maior crescimento do país. De diz. “De 1890 a 1916, os brancos cearenelas e 11,1 reais para eles.

302 mil, saltaram para 537 mil. Com Rose ses iam trabalhar nos seringais, invaTAXA DE FECUNDIDADE: entre elas. O rendimento por hora feminino diam as aldeias, matavam os homens e 2,54 filhos por mulher. se aproximou do masculino: 7,8 reais ante levavam as índias.” Até meados do séA média brasileira é 1,95.

8,2 reais. É a menor diferença nacional, seculo 20, ela lembra, mulheres eram MALÁRIA: O número de gundo o Relatório Anual Socioeconômico postas à venda ao lado das prateleiras infectadas (68 696 mil da Mulher (Raseam), da Secretaria de Políde fumo e pólvora, em Rio Branco, Maem 2013) é decrescente. ticas para as Mulheres. Apesar de o Amazonaus e Belém. O histórico talvez expliAIDS: a cada 100 mil nas ter sofrido queda de 9,3% na produção que o feminicídio. No Mapa da Violênhabitantes, 16,1 mulheres industrial em junho, segundo o IBGE, dos cia de 2012, feito pela Faculdade Latisão portadoras do vírus 125 mil empregados na Zona Franca, em no-Americana de Ciências Sociais, HIV. A taxa no país Manaus, 49% são mulheres. “Na prática, cinco dos sete estados do Norte figué de 14,9 mulheres. elas têm chamado para si o protagonismo ram entre os 15 mais sórdidos com as NEGÓCIOS: em dez econômico da região”, diz Renato Meirelles, mulheres. O Pará está em quarto lugar anos, cresceu em presidente do instituto de pesquisas Data entre os que matam mais.

80% o número de Popular. “Com a geração de empregos nos empresas femininas. últimos anos, viram diminuir a enorme deDESAFIO DAS ÁGUAS fasagem em relação às demais brasileiras.”

A Lancha do Corpo de Bombeiros, que Além do emprego direto, elas enxergam resgata vítimas de afogamento, está melhor as chances geradas às bordas da perto do barco de Rose. O trânsito é inconstrução das hidrelétricas de Belo Monte, no Rio Xingu, tenso às 7 horas. As rabetas (canoas pequenas com motor) e no Pará, e de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, em escaleres de alumínio ziguezagueiam entre embarcações Rondônia. Com custo de 30 bilhões de reais, só a de Belo médias, como o Gideão, e até maiores. Acidentes são coMonte envolve 25 mil trabalhadores em Altamira. Eles muns. A capitã desvia rapidamente de uma rabetinha que precisam comer, morar, consumir. O outro lado da moeda tenta se safar de bolos de mururé que enroscam no casco, é o aumento da violência e de acidentes de trânsito, do imatrapalhando a navegação. Rose é hábil até sob tempestade pacto ambiental e do desalojamento de índios. “Nesse esou ventania. “Só tenho medo mesmo dos ratos-d’água”, recopo, cresceu o número de jovens que se matam ou são vela. Os piratas chegam em botes a motor, são ágeis ao

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Pelo Rio Guamá, nas bordas de Belém, a paraense Rose faz até seis viagens por dia. Transporta cerca de 4 mil passageiros por mês e cargas cheirosas de frutas

NA ROTINA, A CAPITÃ DO BARCO PODE ENFRENTAR PIRATAS, CONTRABANDISTAS, UM TRÂNSITO INTENSO ENTRE EMBARCAÇÕES MENORES E VENTOS FORTES SETEMBRO 2014

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Retratos da mulher brasileira roubar e chispam pelas águas, impunes. “Ninguém mais os denuncia”, diz. A Secretaria de Segurança Pública registrou só 19 ocorrências, de janeiro a abril deste ano. Mais um perigo driblado por Rose: os contrabandistas de cigarro, perfume e roupas que saem da Guiana Francesa e do Suriname, entram pelo Amapá e descem pelos rios do Pará e Tocantins. Como a ribeirinha se vira no universo do descaminho? “Toco em frente, foco no futuro.” Ela concluiu o ensino médio há pouco e vai estudar pedagogia. Aprendeu a conduzir barcos com o segundo marido, Ivail Pastana Silva, que às vezes reveza o manete com ela – embora ele se dedique mais ao segundo negócio da família, uma pequena venda de gêneros alimentícios. Até o final do ano, a dupla termina de pagar o artesão que fez o Gideão. “Administro tudo com meu marido. Sou dura com o dinheiro. Basta olhar e Ivail entende”, conta. Para quitar as prestações, poupou, adiou a

QUASE 50% DAS DETENTAS CHEGARAM AOS PRESÍDIOS DO NORTE POR SE ENVOLVER COM A VENDA DE DROGAS

compra de uma geladeira e as férias. E já traça planos: “Ter dois barcos. Quem sabe?”, diz. Como o casal acabou de erguer uma casa de alvenaria (em Boa Vista o padrão é de madeira), no médio prazo quer comprar um carro e viajar.

Mãe aos 17 anos, Rose não contou com o parceiro para alimentar o primeiro bebê. “Tudo foi difícil. Pretendo ensinar minhas filhas a se organizar desde cedo.” Quando pequenas, as meninas iam com ela para a capital, ficavam na casa de um conhecido e estudavam, enquanto a mãe trabalhava e dormia no emprego. Só no sábado voltavam para casa.

As filhas, hoje com 26, 24 e 21 anos, se casaram. Duas deram à capitã duas netas. Sua prole difere do perfil nortista, marcado por famílias numerosas. A região tem a maior taxa de fecundidade, de 2,54 filhos por mulher (o Sudeste apresenta a menor, 1,76), e é a única com número de homens (8 274 milhões) ligeiramente superior ao de mulheres (8 225 milhões). Estão ali o maior índice de partos em casa (4% ante 1%, a marca nacional) e as estatísticas mais alarmantes de morte materna. Dos óbitos, 73% são provocados por causas diretas, como complicações na gestação e no parto – problemas evitáveis se a gestante passa pelas sete consultas pré-natais recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. As nortistas morrem mais cedo, com idade média de 27 anos, ante os 33 das sulistas. Mas a região comemora o decréscimo da malária. No Pará de Rose,

As mulheres são a maioria dos passageiros do Gideão. Elas saem do povoado de Boa Vista para trabalhar na capital paraense

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No fim da noite, Rose ajuda a descarregar, no mercado Ver-o-Peso, pupunha, açaí, manga...

“ADMINISTRO TUDO COM MEU MARIDO. SOU DURA COM O DINHEIRO. BASTA OLHAR E IVAIL ENTENDE” os registros do Ministério da Saúde apontaram 29,3 mil infectadas em 2012 e 8,1 mil em 2013. No Amazonas, de 34,2 mil caiu para 32 mil. As chefes de família cuidam de 42% das casas urbanas, muitas delas sem internet – só 20% têm computador. O saneamento básico é um alto desafio: 16,6% têm acesso à água por rede, esgoto e coleta de lixo. Entre os pontos positivos, destaca-se a sinceridade em assumir o amor por outra mulher, já que 63% das relações homoafetivas são declaradas por elas ao IBGE. ABRAÇADINHA NO FORRÓ A capitã reduz a velocidade, manobra, encosta entre dezenas de barcos no Porto da Palha, onde uma feira animada vende pirarucu, roupas, ervas, pimentas. Alguns passagei-

ros abraçam Rose na descida, ela volta para Boa Vista. Vem de lá às 12 horas com o Gideão lotado de alunos de um colégio público. “Enquanto eles estudam, faço academia”, diz.

E ainda fecha a boca para se cuidar. “Minha mãe é diabética; tirei o refrigerante e o açúcar e diminuí o açaí para não encher a cuia de farinha.” Fã de autoajuda e da Bíblia, vai à igreja, mas não se considera evangélica clássica: “Não troco a bermuda por uma saia enorme de crente”, afirma. É começo de noite, a barqueira está na cozinha, acerta o sal na panela, deixa o jantar pronto. Já escuro, sai com Ivail para a última viagem. Três contratantes fretam o Gideão, que segue abarrotado de frutas para o mercado Ver-o-Peso, o icônico cartão-postal de Belém, ainda mais lindo agora, quase todo restaurado. O perfume é sentido assim que Rose, de pé na tolda do barco, arremessa as cestas de cupuaçu, bacuri, sapoti, manga e açaí. À meia-noite, jantará. No dia seguinte, sábado, a manicure irá atendê-la antes da primeira rodada do barco. Ela se sente moderna e feliz com o marido. “O sexo é muito bom e isso é importante para mim.” O que não aceitaria? “Traição. Não tolero homem que engana a mulher.” O lazer será no Bar do Raul, à beira do igarapé.

“Meu esposo e eu vamos dançar forró abraçadinhos.”

COLABOROU MARIANA CONTE SETEMBRO 2014

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NO CÉU COM A COMANDANTE

Aline

CLAUDIA continua sua imersão no país, desta vez de carona no táxi aéreo de Aline Maia, paulista descolada e aguerrida que poderia ser símbolo das mulheres do Sudeste PATRÍCIA Z AIDAN / FOTOS FILIPE REDONDO

“O

lha a lua, você nunca viu uma igual!” Eram 20h32 da sexta-feira 10 de outubro, e não se tratava da lua de sangue visualizada dois dias antes, no instante eclíptico em que a Terra passava entre esse satélite e o Sol. Mas devia ser sua irmã. Espetacular, se impunha como uma esfera rubro-quente no céu paulistano e parecia estar só um pouquinho acima da aeronave da comandante Aline Ricci Maia, 27 anos, dona da exclamação que abre mais uma etapa da série que retrata as brasileiras nas cinco regiões do país. A bordo, uma tentação: erguer o braço, para além da bolha acrílica (o para-brisa) do helicóptero Robinson 44, e tocar a enorme bola no firmamento. Voar suscita muitas ilusões. Mais ainda na máquina californiana de 650 mil dólares, para três passageiros, com jeito de ovo e de brinquedo de parque americano, altura interna de 90 centímetros, largura de 1,30 metro e potência para se elevar a 4,2 mil metros do chão. A rotina de Aline no táxi aéreo que pilota é cheia de glamour. E de percalços também. Aeronaves da aviação comercial, levando cerca de 200 passageiros, não enxergam helicópteros. Para não colidir, são eles que precisam desviar – como 1 80

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acontece agora, no trecho próximo ao Aeroporto de Congonhas, onde os aviões voam mais baixo. No nervoso tráfego aéreo de São Paulo, a capital com a maior frota de helicópteros do mundo (411, segundo a Agência Nacional de Aviação Comercial), eles realizam 2,2 mil pousos e decolagens por dia. No alto, porém, o maior inimigo desta mulher não tem nada de tecnológico: “É o urubu”, conta.

“Se não me esquivo e a ave bate no rotor principal, onde giram as duas pás, isso pode me derrubar.” O número de acidentes, porém, tem caído; no Brasil foram 24 em 2013.

Mas a aviação não permite erros. Aline guarda sempre um plano B para enfrentar panes elétricas ou de motor, conhece os 221 helipontos da Grande São Paulo e, se precisar, usa a esperteza para identificar um campo de futebol, nesgas de grama ou clareiras na selva de prédios, onde possa fazer uma parada de emergência.

Criada no bairro paulistano de Casa Verde, Aline retorna à base e espera a sexta viagem, um Night Air, serviço para casal que, depois de espumante, velas e flores na chegada ao hangar, culmina em um voo panorâmico rumo a um hotel de luxo. No Campo de Marte, onde fica o hangar da Helimarte, empresa para a qual trabalha, a comandante lembra de um passageiro da véspera, que não escondeu o espanto. Teria imaginado que ela fosse

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1 Aline aciona, com a mão esquerda, o coletivo e, com a direita, opera o cíclico: ferramentas de comando que lhe permitem alçar voo. 2 Com a vareta, checa o nível do óleo, o que repete a cada cinco horas. 3 E verifica o rotor de cauda NOVEMBRO 2014

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uma espécie de comissária dando boas-vindas quando viu se tratar da piloto – uma menina miúda, vestida com calça 36 de modelo masculino, já que o uniforme não tem versão feminina. “Você tem filhos?” perguntou ele. Ao ouvir a negativa de Aline, inquiriu: “Quem tem filhos encontra motivo para voltar vivo para casa. Qual é o seu?” Ela devolveu: “O amor à minha vida e a enorme preocupação com a sua”.

Tudo isso sob um sorriso terno e demolidor, que ela sabe dar. Jorge Bittar, seu patrão, convence clientes que suspeitam de “a mulher ser ainda mais barbeira no ar” assim: “O homem vira comandante e o poder lhe sobe à cabeça. A piloto, não. Sofreu tanta discriminação para chegar aonde está que dá valor ao emprego, estuda mais, é cautelosa com a segurança e acata a chefia”. O preconceito não é raro.

Outra profissional, Aline Volpatto, instrutora de voo na mineira Alfenas, revela ser difícil arrumar trabalho como piloto executivo. “Os maiores empregadores são fazendeiros e empresários. As esposas implicam quando eles querem contratar uma mulher. Há um fetiche nesse nosso universo e elas morrem de ciúme”, afirma.

TERAPIA PARA SE AFIRMAR Em três anos de carreira, Aline Maia voou 2 mil horas e conta centenas de casos. “Já fiquei em pista de terra, no meio do nada, menstruada, com fome, mas não abandonei a aeronave.” Isso se deu em Minas Gerais, onde esperava um fazendeiro que havia levado para negociar uma terra.

Também conduziu noivas para casar na praia e um monte de malas de um casal que seguiu em outra aeronave para pegar, atrasado, um voo internacional em Cumbica; pilotou quase amassada por um carregamento de calotas de caminhão que transportou até uma montadora; decolou com uma caixinha de parafusos para uma fábrica que estava com a linha de produção parada em Taubaté (SP); e ouviu um pedido de casamento frustrado. “Um apaixonado entregou a aliança à namorada. Ela não pôs no dedo, fechou a cara, virou para o lado e emudeceu”, relata rindo.

Aline é brincalhona. Ao passar pelo envidraçado restaurante Terraço Itália, no topo do Edifício Itália, o segundo prédio mais alto da capital, com 46 andares, ela excita os

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passageiros: “Vejam, vai dar para ler o cardápio”. E, então, se aproxima dando a sensação de voar rente à torre. Está mais descontraída graças à terapia. “No começo, me fiz um homem em corpo de mulher. Achava que só me respeitariam se não parecesse uma moça. Nunca usava batom, me portava como um macho para ser uma piloto competente.

Isso foi me incomodando.” Mais liberta, ainda separa a piloto da Aline da vida – onde se apruma com classe em um saltão –, e já decidiu não ser mãe: “A aviação cobra 100% de entrega. Não decolaria deixando um bebê com febre”.

Mais: comandante grávida só fica no chão, em função administrativa. Aline quer chegar ao auge em cinco anos, conduzindo o veloz Eurocopter 155, de 10 milhões de dólares, com satélite, geladeira, TV de plasma – objeto de desejo dos magnatas da nação. “Sou ambiciosa, vou me sentir o máximo com meu 1,56 metro descendo daquela potência.”

Pelos céus do país, navegam 33,2 mil pilotos do sexo masculino e 637 mulheres. Delas, só 132 em helicópteros.

“De uma coisa me gabo: meu salário é igual ao dos pilotos da minha categoria na empresa.” Ela recebe 4,5 mil reais.

“Não queimaria um sutiã nem a pau, mas sou grata às feministas. E me considero uma, embora goste de colo e de que o homem abra a porta do carro... Para eu dirigir.”

Na Região Sudeste, a mais rica e populosa, poucas empresas pagam salários iguais. Em geral, mantém-se a prática de tungar a mão de obra da mulher, que, com 12 anos ou mais de estudo, continua com 65% do holerite masculino, segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Quando o foco está na cor, o vexame é maior. Suelaine Carneiro, do Geledés Instituto da Mulher Negra, lembra as diferenças sobre a hora trabalhada: “Uma branca com essa escolaridade ganha 19,30 reais e a negra 15 – um prejuízo de 4,30 reais”. Ela observa que a desigualdade de cor/ raça é mais grave do que a de gênero, pois mulheres brancas ganham mais do que recebem homens negros. Com base em dados de junho, do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas, Suelaine olha para as regiões metropolitanas. “A maior distância está no Rio de Janeiro, onde o rendimento do homem branco é

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1 Uniforme com as três faixas amarelas que lhe conferem o grau de comandante de helicóptero. 2 Camisa masculina reformada para ter corte mais feminino. 3 Pulso firme na decolagem. 4 Sapato maior que seu pé: “Não é bonito, mas confortável e operacional”, afirma Aline

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1 Tráfego intenso: desembarque de passageiros no heliponto de um hotel, na rota do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

2 A bonita vista da Avenida 23 de Maio 2

“JÁ POUSEI EM PISTA DE TERRA, NO MEIO DO NADA, MENSTRUADA, COM FOME. FIQUEI HORAS ALI, MAS NÃO ABANDONEI A AERONAVE”

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82,2% maior que o do negro; e de mulheres brancas, 77,9% acima do que ganham as negras.” Muitas buscam carreira-solo. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais mostra que 3,3 milhões de negras abriram pequenos negócios de 2001 a 2011. Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular, diz que, entre os 12 milhões de moradores das favelas brasileiras – a maioria negra vivendo no Sudeste –, o sonho é virar empreendedor. Eles já movimentaram, este ano, 64 bilhões de reais e querem financiamento e capacitação para criar negócios voltados para a realidade local. Também estão mais exigentes com a política. Para Meirelles, essa população passou a entender que os serviços públicos não são um favor do governo, e sim o retorno dos impostos que pagam desde que entraram no mercado formal de trabalho.

“Eles se tornaram críticos da administração pública.”

“NO COMEÇO, ME FIZ UM HOMEM EM CORPO DE MULHER. ACHAVA QUE SÓ ME RESPEITARIAM SE NÃO PARECESSE UMA MOÇA” Única piloto na empresa, Aline conhece todas as aeronaves, quer logo subir de posto e passar a voar com as maiores

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O CONFORTO DO NINHO Um bom retrato das classes A e B emerge do Radar Jovem, pesquisa divulgada em setembro pela B2, empresa especializada em conectar marcas ao público de 18 a 25 anos.

No recorte Sudeste/mulher, a nota de 0 a 10 para o interesse pela política ficou em 5.4; o envolvimento com ela, em 3.2. A comandante Aline tem visão compatível com o grupo: “Não entendo. Teria que estudar para opinar; não sou engajada, acho que tem partidos demais”. Segundo o Radar, o perfil da mulher jovem é este: universitária (63%), se vê daqui a dez anos casada (85%) e com filhos (71%).

Ela trabalha (56%) e sua ambição é ser empresária (80%).

Atualmente, carreira (52%) e tempo livre (48%) se equilibram, mas crê que em dez anos a profissão terá peso maior (55%). Preocupada com o corpo, se considera magra (79%) e quer permanecer magra em 2024 (97%). Usa transporte público (54%) e optará pelo particular futuramente (81%).

Hábitos: paga tudo com cartão (52%), vai à aula de inglês (55%) e à academia (30%). Pretende incorporar o home office (45%), usar cremes de beleza (40%) e atuar em ONGs (37%). Ah: mora com os pais (83%). A piloto Aline também.

Filha única, de uma família “zero autoritária”, que confia nela, vê vantagens no ninho. “Entre elas, a comida gostosa da mamãe, uma descendente de italianos que oferece conforto cinco estrelas.” Formada em design de produtos,

ex-assistente de uma fotógrafa, matriculada na pós-gramédicos a militares do Exército. O que intuitivamente Aliduação, voou de helicóptero pela primeira vez em 2009 ne defende é encampado por antropólogas como Yvonne com um amigo do pai. Quando contou que queria aquela Maggie, pesquisadora do CNPq, no Rio. “A criminalização carreira, a família entendeu: desde pequena gosta de máda interrupção da gravidez produz um tráfico inacreditáquinas e dirigiu um jet ski antes da adolescência. Marcos vel”, afirma, criticando o Código Penal, que prevê prisão Maia, o pai, recomendou que fizesse os exames médicos para quem aborta, exceto em risco de morte para a mulher no Hospital Aeronáutico, visse melhor o ambiente da aviae estupro. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu ção antes de decidirem pagar 80 mil reais pelo curso de eliminar a proibição em caso de feto anencéfalo. “Não é piloto – o que lhes custou a venda dos dois carros e das pelo bem das outras mulheres ou por justiça diante das duas motos da casa. “Financiamos dois mortes que a polícia está atrás dos culCorsas depois e eu fui para as aulas”, repados. Mas por um viés autoritário e corda ela. Marcos nasceu pobre em Pireligioso”, opina Yvonne. “Essa operação racicaba (SP) e interrompeu o curso de se chama Erodes, que, diz a Bíblia, madireito já casado. Diná, a mãe, foi criada tou crianças.” No país, o aborto é a na Barra Funda, bairro de classe média NÚMEROS DE SÃO PAULO, quinta causa de morte materna. Só em de São Paulo, e fez matemática. Os dois RIO DE JANEIRO, ESPÍRITO 2013, as intervenções malfeitas levaram mantêm uma confecção de camisas sob SANTO E MINAS GERAIS a 154,4 mil internações no SUS por medida. Marcos põe a mão na massa; o complicações, como infecção e perfuracorte e o acabamento impecável são feiTOTAL DE MULHERES ções nos órgãos. “As mais ricas, princitio dele. Ambos estão muito orgulhosos.

82,67 milhões. palmente no Sudeste, pagam pelo aborDiná chorou de emoção na única vez EDUCAÇÃO Taxa de frequência to em clínicas aparelhadas e estão morem que voou com a sua menina. no ensino médio: mulheres rendo em menor quantidade”, comenta. brancas respondem por 64,7% Mais uma questão de saúde: o cânAMORES ANDAM RAROS das vagas; homens brancos cer de mama, o tipo de tumor maligno Aline não é de falar sobre sexo, se acha por 55,4%. Mulheres negras, que mais mata mulheres, deve ser conservadora, jamais transa no primei52,1%; homens negros, 38,9%. diagnosticado em 57,1 mil brasileiras ro encontro. Adotou a pílula aos 14 anos No ensino superior, brancas são até o final do ano. As piores projeções por problemas de ovário policístico, mas 23,6% e brancos 18,3%; negras do Instituto Nacional de Câncer recaé irredutível quanto à camisinha. “O ca10,9% e negros 7,4%. em sobre o Sudeste, que deverá ter o ra tenta me tranquilizar, diz que não TAXA DE FECUNDIDADE maior número. A cada 100 mil mutem problemas de saúde, e eu contrapo1,76 filho por mulher. lheres, 71,1 terão a doença. A Região nho: ‘Não é por você, é por mim’.” Ela AIDS A cada 100 mil habitantes Sul enfrentará 70,9 novos casos, seobserva, no entanto, que os amores anda região, 14,8 mulheres são guida pela Centro-Oeste, com 51,3. dam raros. “Na balada, não me apresenportadoras do HIV – número No Sudeste ocorre ainda o maior feto mais como piloto, porque eles passam colado à taxa brasileira, de 14,9 minicídio. No Espírito Santo, segundo o o resto da noite perguntando como se a cada 100 mil habitantes.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplivoa. Digo que sou designer.” Se a convercada, são 11,24 mortes para cada 100 sa engata e planejam um jantar para mil mulheres, o dobro da média naciodias depois, a imprevisibilidade da pronal de violência doméstica (5,82). fissão pode gorar o combinado. “Explico que surgiu uma Aline está na sala dos pilotos, falando sobre tudo e ao missão de urgência e tento remarcar.” Ele liga de novo, dá mesmo tempo conectada no iPad e celular. À espera do errado outra vez. “E, quando vou atrás, já desistiu de mim”, próximo chamado, diz estar sempre pronta. “Eu me sinto diz. A piloto não dividiu com ninguém os últimos Natais, um motoboy do ar.” Só ali, quando ela relaxa, é possível Réveillons, Carnavais e, pior, o Dia dos Namorados. notar seus pesados sapatos marrons. A comandante já haAinda no capítulo sexo, o aborto vem à tona. “Acho um via dito que, na terceira vez que fora a Nova York, tinha absurdo que esse direito seja negado às mulheres. E aos assistido a musicais, se derramado de emoção em museus casais. A decisão de não ter mais um filho, por exemplo, é e se arrebentado de tanto comprar bolsas, roupas e escardos dois. E, por força de uma lei, eles não podem escolher.” pins. Que sapato é esse? “Não é bonito, mas confortável e Ela considera igualmente absurdo que, no estado do Rio operacional, quase uma bota de peão de obra”, responde. de Janeiro, um assunto de saúde pública tenha ido parar Até poderia usar sapatilha em voo, mas prefere o modelo na polícia. Tratava-se das mortes de Elisangela Barbosa e da Calçados Manuel, igual ao do pai, um número maior Jandira Cruz, em consequência de abortos clandestinos e que seu pezinho 35. Conta isso fazendo piada e para lá de inseguros, que levaram à prisão de 57 pessoas, de falsos segura sobre a sua feminilidade e seu poder de sedução.

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Raquel NO TREM QUE

A gaúcha Raquel Barbosa enfrentou, aos 16 anos, uma gravidez de gêmeos.

Passou em um concurso estudando sozinha.

Tornou-se o carro-chefe no sustento da casa. Leva todos os dias 5 mil pessoas no transporte coletivo. É dona de uma história sobre a audácia das mulheres do Sul

CONDUZ

PATRÍCIA Z AIDAN / FOTOS FILIPE REDONDO

E

ra horário de pico, 17h05, e a Estação Anchieta estava apinhada de gente com pressa. Raquel Krumberg Barbosa, 36 anos, enfrentaria naquela tarde de 2013 o episódio mais tenso de sua carreira.

Ela abriu as portas do trem que deixaria Porto Alegre e passaria, na região metropolitana, por Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul e São Leopoldo até terminar a viagem em Novo Hamburgo.

Em uma rotina normal, gastaria 55 minutos até o final da linha. Mas um homem transtornado, com uma faca na mão, passou a ameaçar as pessoas a bordo. Parecia decidido a furar alguém. “Foi um pânico geral, travou a via, um carrossel se formou”, lembra Raquel. O brinquedo de feira em que os cavalinhos ficam amarrados à viga é a imagem que os pilotos gaúchos, como ela, usam para descrever a sequência de composições que vão parando e impedem que o sistema flua. Sobre os trilhos havia 23 trens e, neles, quase 25 mil pessoas. “Meus passageiros vinham aflitos à cabine, pediam que eu fosse conter o homem”, conta. “Eu não podia abandonar o comando da máquina, muito menos segurar um louco”, explica. Então, acionou o Centro de Controle Operacional (CCO) e, ao microfone, tentou acalmar os usuários. A confusão só acabou com a entrada em cena de um policial da Brigada Militar. Ouviu-se um disparo de pistola, a bala atraves1 82

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sou o abdome do homem, que caiu na plataforma, e atingiu a perna de um passageiro. Sirenes, resgate e mais tumulto. Os dois feridos foram levados com vida para o hospital. O nó na via se desfez meia hora depois e o trem de Raquel virou notícia das TVs em edição nacional. É preciso equilíbrio e sangue-frio no transporte coletivo, um dos ambientes estressantes da vida urbana, palco também de manifestos. No domingo, 9 de novembro, véspera do nosso encontro com Raquel para mais esta etapa da série de retratos da brasileira, que leva CLAUDIA às cinco regiões do país, a paixão pelo futebol foi o estopim da encrenca. No clássico em que o Grêmio bateu o Internacional por 4 x 1, o pau quebrou na estação Esteio. Uma torcedora gremista, proibida de entrar no estádio, liderou o levante à base de bombas e rojões. “As torcidas vão separadas”, conta Raquel. “Cobrimos as janelas dos vagões para que não se vejam nem se provoquem, mas acontece até guerra de extintor de incêndio.” Ela é do time que perdeu.

Porém, em situações como essa – e vestida com o uniforme da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb) – é a autoridade no comando da viagem de 1,2 mil usuários. Com esse poder, não pode revelar o coração colorado.

Quem diria... Seis anos atrás, Raquel não ocupava o espaço público nem estava profissionalizada. Cuidava do lar. Só em 2008 conquistou papel ativo na economia, ao passar no concurso – estudando sozinha – para bilheteira

Ela teve medo de se arriscar e não conseguir segurar o trem, que atinge até 90 quilômetros por hora. Quando viu o salário, decidiu: “Não só vou prestar o concurso, como uma vaga já é minha”

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1 Raquel chega para mais um dia de trabalho. 2 Os usuários lotam a estação Mercado. 3 No quadro, o horário da próxima viagem da piloto

da Trensurb. “Nos primeiros dias, estranhei”, lembra. “Mas tirretrovirais na rede pública. Na região, a aids segue sendo foi prazeroso começar a trabalhar. Pela primeira vez eu era um grave problema. O país tem 718 mil pessoas com HIV a Raquel. Antes, me chamavam de esposa do Paulinho e e a maior taxa está no Sul, com 30,9 casos a cada 100 mil me viam como mãe do Bruno e do Mateus na escola deles. habitantes, seguido pelo Norte (21) e Sudeste (20,1), conNa família, era filha da Elza. Aqui passei a ser eu mesma.” forme o Ministério da Saúde. Os estados mais atingidos Em 2010, saiu edital de um concurso para operador. A são Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Amazonas e Rio gaúcha teve medo de arriscar. “Um trem trafega com velode Janeiro. Entre as capitais, Porto Alegre (93,7) e Floriacidade de até 90 quilômetros por hora. É muita responsanópolis (57) lideram. As grávidas gaúchas respondem pela bilidade”, pensou.” Mudou de ideia ao ver o salário: o dobro maior taxa de infecção, quase o dobro do segundo lugar, do dela. “Não só vou prestar, como uma vaga já é minha”, ocupado pelas catarinenses. A explicação da infectologista disse a si mesma. Hoje, ganha 2,6 mil reais e, com horas Simone Tenore, da Universidade Federal do Estado de São extras, chega a 3,9 mil. Bem acima da renda média das Paulo: “A campanha de prevenção e a compra de remédios sulistas, que é 1 268,75 reais. Quando se trata da negra, o e preservativos são nacionais. Pode estar havendo problesalário é sempre menor e, às vezes, a cor da pele lhe tira a mas na coordenação gaúcha, dificultando o repasse dos vaga (leia “Ser negra no Sul”). Segundo a assessoria da recursos”. Raquel não espera providências do Estado. “Na Trensurb, há só uma piloto negra: Márcia Lima, 43 anos. família, sou eu quem faz a campanha. Digo aos meus guris, O marido de Raquel se roeu de ciúme de 19 anos, que não vou ser avó cedo e assim que ela foi trabalhar. “Há muitos que eles devem transar só de camisinha”. homens em volta”, explica ela. Dos 168 Sua casa vive cheia de jovens, eles ouoperadores, 132 são do sexo masculino. vem música, tomam uma cervejinha.

“Eu falava de um colega, de outro, e Pau“Nunca vi maconha ali”, afirma a piloto linho ficava esquisito.” Mas o dinheiro AS MULHERES DO PARANÁ, durona. “Dizem que o lugar na cabeceira dela já supera o de Paulo César, mecânico DE SANTA CATARINA E da mesa é meu. Os filhos me obedecem. industrial, e foi decisivo na construção da DO RIO GRANDE DO SUL Embora não gostem de estudar, estão na casa do casal. Com a conquista, Raquel A IDADE MÉDIA é 36 anos, escola e trabalham em posto de gasolientrou para o grupo (79%) das donas da 57% têm filhos, 14% na.” Antes de Bruno e Mateus nascerem, moradia que ocupam. “Estou comprando concluíram o curso superior.

Raquel deixou o colégio e só terminou o peças de decoração”, diz, alegre, essa muEntre elas, 46% POSSUEM ensino médio dois anos depois. Caçula, lher de olhos cor de mel, 1,70 metro de CARTEIRA ASSINADA, 18% havia assumido a cozinha e o tanque, já altura e ascendência germânica. estão em emprego informal, que os pais, dois irmãos e Paulinho – que A operadora virou adulta aos 16 anos, 13% são empregadoras e 9% foi morar na casa – saíam para trabalhar. ouvindo uma bronca do pai: “Se era para funcionárias públicas. Cerca Somente em 2010 casou-se com Pauaprontar, tinha que fazer bem-feito, não de 60% MANTÊM CONTA lo César. “Na igreja, de papel passado e é, Raquel?” Ele tinha na mão o exame CORRENTE, 46% usam cartão com festa”, relata Raquel, que criou seu que revelava que a gravidez descoberta de crédito e, nos próximos vestido branco, bordado, com três saias um pouco antes já entrava no sexto mês 12 meses, COMPRARÃO TV longas e uma fenda que mostrava a pere era de gêmeos. “Eu menstruei até perto DE PLASMA (15%) E VIAGENS na bonita. O noivo usou gravata prata e daquele dia, jamais imaginei... E, na (6%). Oito em cada dez se os gêmeos puseram terno pela primeira época, não usávamos camisinha”, recorconsideram brancas, 17% SÃO vez. Um ano depois, o casal se separou. da. A aids entrava no pico da expansão, PARDAS e 4,1% NEGRAS. “Perdi 12 quilos. De tristeza e decepção com 20 mil casos novos naquele 1995 e, com ele”, diz Raquel tomando chimarFonte: Instituto Data Popular só no ano seguinte, o Programa Nacional rão no pátio, onde os trens passam por de DST-Aids começaria a oferecer os anajuste mecânico e limpeza. Os filhos, não

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1 1 A caminho de Novo Hamburgo, na região metropolitana de Porto Alegre.

2 Na cabine, com tudo sob controle: “Adoro o que faço, me divirto nesses trilhos “

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“FOI PRAZEROSO COMEÇAR A TRABALHAR. PELA PRIMEIRA VEZ EU ERA A RAQUEL. ANTES, ME CHAMAVAM DE ESPOSA DO PAULINHO E ME VIAM COMO MÃE DO BRUNO E DO MATEUS NA ESCOLA DELES. AQUI PASSEI A SER EU MESMA.” DEZEMBRO 2014

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Retratos da mulher brasileira discretos, perguntaram por que o pai saíra de casa. “Fui à balada, tive uns namoricos. Mas não sou dada à caça, não era o que queria da vida.” Dez meses depois, aceitou o marido de volta. “Saímos fortalecidos. Eu disse a ele: ‘O que passou passou. Não se repete. E não se fala mais nisso’.”

No desenlace, descobriu uma verdade: “O trabalho me deu a sensação de pertencimento. De estar em um grupo e poder contar com ele”. Os colegas notaram que ela andava à base de iogurte, suco e mamão. “Nervosa, eu não como”, revela. Um deles perguntou de que pratos gostava, outros saíram para buscar os ingredientes. Uma lasanha cheirosa e, no dia seguinte, lentilha com linguiça devolveram a ela o apetite. “Eu me senti aceita e protegida.” Raquel não considera o ambiente profissional competitivo. Ali, homens e mulheres em funções idênticas ganham salários iguais.

Em cargo de confiança há uma mulher, e a indicação é política. “Talvez por isso, não haja disputas”, diz. Mas ela admite que, às vezes, a rivalidade feminina aparece. Ela acabava de ouvir o pedido de desculpa de uma colega. O pivô da desavença entre elas foi uma falha que fez o trem andar de portas abertas, pondo em risco os usuários. Um deles gravou a cena e enviou para um programa de TV. A piloto atribuiu o erro a Raquel, que pegava carona na cabine. Na apuração interna, ela se defendeu por escrito e o clima azedou. Imagens da câmera de uma estação e conversas gravadas pelo CCO desfizeram as dúvidas – a favor de Raquel. Elas só voltaram a se falar naquela tarde.

Diferentemente do serviço público, na iniciativa privada os homens do Sul ganham 35% mais que as mulheres.

“Santa Catarina é o estado brasileiro com diferença salarial mais acentuada”, diz a socióloga Neusa Freire Dias, da Casa da Mulher Catarina. De fato, ali mulheres recebem o equivalente a 60,5% do holerite masculino. No Paraná, 65,5%; e no Rio Grande do Sul, 66,9%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E eles não são de tarefas domésticas. A pesquisadora do IBGE Cristiane Soares lembra que na região, onde a escolaridade e a empregabilidade da mulher são altas, há até mais sobrecarga.

“Somando o tempo de trabalho com as horas gastas com casa, crianças e idosos, a mulher do Sul tem uma jornada de 57 horas semanais”, calcula. “Não sobra tempo para se cuidar, estudar mais, descansar.” Enquanto a sul-mato-grossense é a brasileira que fica menos na lida doméstica, com 21,28 horas semanais, a paranaense (24,30 horas) e a gaúcha (24,03 horas) estão entre as que levam o piano nas costas. “Ainda é um peso para mim”, diz Raquel. “Na folga, pago contas, faço mercado e faxina. Saio para trabalhar deixando roupa e comida prontas.” Por que tão solitária nos deveres? “Tenho três homens em casa. Esse é o problema.”

A jurista Maria Berenice Dias explica isso com uma contradição: “No Rio Grande do Sul, onde o Judiciário é arrojado e mulheres e gays obtiveram conquistas no direito de família, há também uma herança patriarcal. Somos

“O TRABALHO ME DEU A SENSAÇÃO DE PERTENCIMENTO. DE ESTAR EM UM GRUPO E PODER CONTAR COM ELE”

No pátio de manobras, Raquel movimenta os trens entre o setor de limpeza e o de manutenção mecânica

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1 “Senhores passageiros, tenham uma boa tarde.” 2 Na volta para o centro da capital. 3 Acionando comandos, abre e fecha as portas do trem

um estado branco, católico, descendente de alemães e italianos”. Ela lembra que os gaúchos até hoje chamam a mulher de prenda. “Isso hierarquiza as relações.” Assim, serviço de casa, menos nobre, fica com a subordinada.

Para Neusa Dias, a dificuldade de criar políticas públicas que aliviem a carga feminina, entre outros benefícios, existe porque é baixa a representação no Executivo e no Legislativo. “Somos poucas no poder. Na Câmara de Florianópolis, estamos na segunda legislatura sem vereadoras. Raras secretarias estaduais e municipais têm uma titular. Para a Assembleia, foram eleitas só quatro”, afirma. “A presença delas faz diferença, como se vê no combate à violência doméstica no Rio Grande do Sul”, comenta a advogada e pesquisadora de gênero Carmen Hein Campos. “Por provocações da Secretaria das Mulheres, o estado criou há dois anos a Patrulha Maria da Penha, que reduziu a zero o descumprimento das medidas protetivas.” Os policiais fiscalizam. “Agressores afastados das mulheres por força da medida não voltaram para matá- las”, diz a tenente-coronel da Brigada Militar Nádia Gerhard, coordenadora da Patrulha, presente em 18 cidades. Mas há muito por fazer. Segundo ela, das mortes violentas, 25% ocorrem em acidentes e latrocínio. “Já 75% morrem simplesmente porque nasceram mulher. O matador as toma como propriedade.”

Raquel aciona a tração que coloca o trem de volta a Porto Alegre. “Adoro o que faço, me divirto nesses trilhos”, afirma. Ela recorda situações inusitadas, como o dia em que oito vacas pastavam na lateral da via, em Esteio. Revela a vontade de tomar banho no Rio dos Sinos, como os moradores da vila fazem nesta tarde quente. Fala do cuidado dobrado com as crianças que, atrás de bola, pulam a divisória que separa o trem da área de uma pedreira, onde moram. E responde porque nunca larga um dispositivo que fica no cockpit: “É o ‘homem morto’. Se tirar a mão esquerda e não voltar a tocá-lo em oito minutos, soa um alarme, o trem para e o CCO entende que o condutor desmaiou”. A saúde dela está ok. “Não há sinal de que haverá homem morto”, brinca. A bursite e a tendinite, somadas à hérnia de disco, que enfrentou por questões laborais, foram contornadas. No final da noite, Raquel vai fechar as centenas de janelas dos oito vagões do trem, o que lhe tomará 20 minutos. A próxima escala será das 23h15 às 7h15, manobrando no pátio. Mas terá uma folga longa no meio.

Gastará o sábado no salão de Gilberto, amigo de infância que retoca a tinta do seu cabelo acobreado. Ele é como um terapeuta a quem conta tudo. Mas tudo mesmo. Dali, Raquel sairá para uma cervejinha e, renovada, se sentirá pronta para conduzir 5 mil passageiros no dia seguinte.

SER NEGRA NO SUL

Colaborou Gabriela Abreu

DEPOIMENTO DE VERA DAISY BARCELLOS, PRESIDENTE DO CONSELHO DOS DIREITOS DA MULHER, DE PORTO ALEGRE

“Há 33 anos moro em um bairro de classe média alta e, na nossa rua, somos a única família negra. Isso ainda é tão anormal. Estou cansada de responder ao carteiro que a “patroa não está”. E de ouvir: ‘Aquele negro é o zelador?’ Respondo: ‘Não, é meu marido, o síndico, que ama cuidar do jardim do prédio’. O ônibus que tomo para ir ao centro, com ar refrigerado, mulheres e rapazes perfumados, revela a ausência dos negros nessa linha, em

outros espaços e retrata o histórico da limpeza étnica que Porto Alegre resiste em assumir. Em nome da reforma urbana, a cidade os empurrou para a periferia. Ali faltam saneamento básico, equipamentos de saúde e lazer.

As negras choram a perda dos filhos para a violência. No Sul, brancas têm rendimento duas vezes maior que o delas. E o acesso ao mercado é difícil.

Empresas de RH criaram um perverso mecanismo de seleção: na ficha

sinalizam com caneta preta que o candidato é negro, já que anúncio pedindo “boa aparência” é proibido.

Por outro lado, a mulher estuda mais hoje. Integro duas comissões de avaliação de seleção de cotistas em concursos públicos. O número de negras aprovadas supera o dos negros.

Ações afirmativas, como as cotas, são um avanço. Mas, para evoluir mesmo, precisamos de políticas públicas em todas as áreas para a população negra.”

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LÁ VAI

Clau

ganhar a VIDA NUMA MOTO

A paraibana atira bem com pistola, mas deixou de ser segurança para ganhar mais e viver melhor. Com um olho nos negócios e o outro na sua comunidade, é o retrato da nordestina – a mais guerreira das mulheres brasileiras Patrícia zaidan / fotos FILIPE REDONDO

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temperatura está amena. O céu tende mais para o cinza do que para o azul radiante, comum nos filmes que reforçam a ideia de que no Nordeste toda terra é sempre quente. Em meio à caatinga brejada, a mulher de jaqueta de couro, que se sobressai no pó da estrada vicinal, é Claudivânia Alves Diniz, 28 anos. São 7h30, ela acaba de deixar sua casa, na zona rural de São Sebastião de Lagoa de Roça. De moto, vai percorrer 4 quilômetros, passar pelo centro desse município paraibano, tomar a BR-104 para, 20 quilômetros depois, chegar à maior cidade dos arredores, Campina Grande, onde mantém negócios.

Hábil, vende com sua verve sedutora qualquer coisa que lhe caia nas mãos. No momento, dedica-se mais a lingeries, cremes e produtos para cabelo. Tem dado tão certo que ela deixou de ser segurança em uma loja do Walmart para empreender. Mirando melhores salários, Clau havia feito um curso para trabalhar, armada até os dentes, em carro-forte. Aprendera a atirar com revólver 38, pistola 1.40 e uma megaespingarda – “que faz um rombo do tamanho de um prato de sobremesa”. Mas deu de cara com uma interdição machista: “As empresas daqui não contratam mulheres para o transporte de valores”.

Não sabia pilotar uma moto. Pegou o Fundo de Garantia, comprou por 3,5 mil reais sua Pop-100 usada. Deu 1 22

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partida e, meio insegura, engatou a primeira torcendo para não se espatifar na via de terra. A opção por duas rodas foi decisiva. “Não tinha dinheiro para um carro e a alma do meu ganha-pão é a agilidade na locomoção”, diz.

“Preciso visitar várias compradoras em sítios e cidades, reabastecer o estoque, pagar as contas da casa, ir às compras. A moto já faz parte do meu corpo”, conta a vendedora neste último capítulo da série “Retratos da mulher brasileira”, que percorreu as cinco regiões.

No Nordeste está a maior frota de motos, com crescimento de 315%, de 2001 a 2012, segundo o Observatório das Metrópoles de 2013. A Bahia tem o maior número de emplacamentos de Honda, responsável por 80% do mercado nacional, com seus modelos mais populares e de trabalho. Mas está em Campina Grande a concessionária que mais vende. Não é piada que o jegue tenha sido substituído pela motocicleta. Ela também eliminou o cavalo usado pelo vaqueiro na condução das vacas de volta ao curral e o caminhão pau de arara, que levava pessoas emboladas sob a lona. A moto impera. Em São Sebastião de Lagoa de Roça, onde vivem 11 mil habitantes, trafegam 685 carros, 115 caminhonetes e 967 motos e motonetas. Sem contar as não registradas no Detran. Esse veículo virou um aliado da mulher, possibilita muitos negócios. É comum encontrar em todo o interior nordestino mototaxistas, encanadoras, vendedoras, manicures e cabeleireiras que vão

Claudivânia não tinha roupas nem bonecas e ia de pau de arara para a escola. Hoje é referência para as mulheres da zona rural JANEIRO 2015

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Retratos da mulher brasileira em domicílio e colaboradoras terceirizafava continua com o marido. Da mulher, das de laboratórios, que transportam são os canteiros que vicejam ao redor da material para análises clínicas. casa, cheios de coentro, pimentão, alfaBahia, Sergipe, Alagoas, Clau zanza o dia inteiro, quer fazer dice e tomate. Mas nem só de informações Pernambuco, Paraíba, Rio nheiro, montar uma loja; por isso, guarda sobre a terra vivem essas mulheres. “AlGrande do Norte, Ceará, parte dos 3 mil reais que fatura. Só para gumas dizem: ‘Já tenho dois filhos, quePiauí e Maranhão no sábado e domingo, quando tem a ro parar nisso’. Então, há sempre alcompanhia de André de Lima, 33 anos, Das nordestinas, 62% se guém para lembrar à desavisada que, se declaram pardas e 9% seu parceiro. Ele é operador de guindaste ela não passar no posto de saúde e pegar negras; 53% têm filhos, e passa a semana em uma construção em pílulas, vai ter filhos como as avós”, relaGoiana (PE). Foi casado, é pai de três fi43% cursaram até o ensino ta. A matriarca da família da empreenlhos e conheceu Claudivânia quando ele fundamental; 8% o superior. dedora teve sete filhos, e sua mãe três. era açougueiro e ela caixa em um mercaDo total, 28% têm emprego Clau perdeu o primeiro bebê, gerado na informal, 20% são autônomas do. “Sempre quis casar com um açoutrompa, que foi retirada com o feto. “Se gueiro, porque não sei sequer cortar uma e 2% são empregadoras. vier outro, será bem-vindo.”

A renda média é de 799,84 reais galinha”, brinca. “Depenar, então, vixe, A vizinha dela, Luciene Marques, nem me fale!” A vendedora tinha 21 anos. e 78% moram em casa própria.

40 anos, doméstica, conta que, no “Ele foi meu primeiro homem, me casei Quatro em cada dez têm quarto rebento, a duras penas, juntou conta-poupança e 34% virgem. Na verdade, nem me casei, tenho 500 reais, entrou numa clínica e pagou uma união estável”, corrige. “E é muito cartão de crédito. Os sonhos de por uma laqueadura. “Digo para miprazerosa.” O casal se dá bem. Ela veste, consumo: TV de plasma (23%), nhas filhas, já casadas, que não parem das lingeries que vende, as mais sensuais máquina de lavar (21%), notebook de estudar e não virem uma máquina para sair da rotina. Gosta dos enteados (20%) e geladeira (10%). de criar.” Divorciada e vivendo há oito – que moram com a mãe – e tudo segue meses com o namorado descoberto no Fonte: Instituto Data Popular sem rusgas até que amigos voltam à carFacebook, Luciene conta que a maior ga para ela se candidatar a vereadora. dificuldade, no entanto, não foi alimen“André fica irritado. Diz que, se eu virar tar a família. “No colégio, minha filha política, ele pede divórcio sem ser casado”, diz, rindo. “Não Rúbia era xingada de preta feia. Chegava em casa chosei se sou líder, estou mais para encrenqueira. Não mando rando”, diz. “Eu nunca tive carteira assinada, só fui até o recado e só sossego ao conseguir o que acho justo.” quarto ano da escola, mas passei para ela a compreensão Clau é popular, se envolve com a comunidade, conhece de que era linda, ia crescer mais linda ainda e os brancos todos nos sítios do pedaço, mas se vê sem tempo para a é que não entendiam isso.” Na região onde vive a maior vida pública. “Eu me equilibro entre casa, marido, cão, população de negros e pardos, o preconceito é forte (leia igreja e associação”, explica. Os dois pets, Romeu e Duquadro “Beleza negra como símbolo de luta”). que, a rodeiam. Já a Igreja Católica consome suas atenLuciene também pilota. Tem uma Honda Bis, que ela ções – em dezembro, por exemplo, organizou um casamesma conserta, porque vive dando defeito. “Parei de gasmentão coletivo. Na Associação das Mulheres, que reúne tar com mototáxi, chego mais cedo em casa (é diarista em pequenas agricultoras, é vice-presidente e tesoureira.

Campina Grande), sobra tempo para fazer e vender meu “Voluntária”, ressalta. “Falamos sobre autonomia para a artesanato (almofadas e forros pintados). No caminho de mulher não precisar tanto do marido nem do Bolsa Famívolta da casa da vizinha, Clau desvia de um teiú, “o maior lia.” Na região, 45% das famílias dependem do programa. lagarto brasileiro”, e depois de uma galinha capoeira que Por meio da entidade, as inscritas recebem do governo passeia calmamente. Ainda aponta mulungus, pés de casfederal cisternas, ajuda de agrônomos, mudas e equipatanhola, goiaba, acerola e seriguela. “Isso aqui é uma dementos para plantar. O roçado de batata, arroz, feijão e lícia. Para que viver o stress da cidade grande?”, pergunta.

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1 Clau sai de um salão de beleza, onde costuma fazer vendas. 2 Reforça estoque na fábrica de lingerie. 3 Vende a professores de uma escola

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1 Saindo da escola, em São Sebastião de Lagoa de Roça.

2 Às portas da Matriz.

3 Na estrada vicinal que liga a cidade à zona rural

“Meu marido fica irritado. diz que, se eu virar política, ele pede o divórcio sem ser casado. Não sei se sou uma líder, Estou mais para encrenqueira. não mando recado e só sossego ao conseguir o que acho justo” JANEIRO 2015

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Retratos da mulher brasileira Como num cordel da caatinga, nos anos 1990, a família dela vendeu o gado magro, fechou a porteira, tomou o ônibus e, dias depois, se instalou na casa de uma tia, na periferia paulistana. “O sítio andava seco demais, meu pai achou que lá tudo seria fácil”, diz ela, filha mais velha, que, na infância, só brincou com bola doada e vestiu a roupa dos primos. Um ano depois, estavam de volta à Paraíba: o irmão caçula, que havia chegado a São Paulo com 3 meses, passou mais tempo morando no hospital do que em casa, com bronquite. A virada se deu nos anos 2000. “Aproveitamos o Bolsa Família, o Luz para Todos, o Vale-gás, o programa de duas cisternas”, enumera. “Um irmão está terminando a faculdade de engenharia e trabalha na Vale do Rio Doce; o outro é técnico em mecânica na Coteminas.”

Clau, que ia para a escola de pau de arara e trabalhava em uma pizzaria para ajudar em casa, prestou vestibular para geografia e serviço social. Não passou. As nordestinas estão mais escolarizadas que os homens de lá: 8% são graduadas ou têm pós diante dos 6% deles. Mas o salário é inferior ao das demais brasileiras. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra e Domicílio, o pior rendimento é o da

piauiense, em média 662 reais. O Rio Grande do Norte é o estado que paga melhor: 1 014 reais. Também o desemprego é mais grave entre elas: 10,4% no segundo trimestre de 2014, enquanto as sulistas respondiam por 5,1%.

O outro lado da moeda é a força da nordestina agitando o comércio. Basta olhar a performance das lojas de cimento, tijolo e tinta – que têm em Clau uma cliente fiel. Há dois anos, ela faz a casa que desenhou com ares contemporâneos, o living se abrindo para a sala de jantar e a cozinha.

Segundo a Associação Nacional dos Comerciantes de Material de Construção, o faturamento decresceu Brasil afora, com duas exceções. No Nordeste, em novembro passado, os negócios atingiram um patamar 49% acima do mesmo período de 2013; no Norte, 41%. Já no Centro-Oeste, as vendas despencaram feio: 47%. No Sudeste, caíram 44%.

As nordestinas também compram mais nos mercadinhos de alimentos e outros produtos, conforme observa Luiz Barretto, presidente do Sebrae. “Numa pesquisa que fizemos no interior do país, identificamos que dos 827 bilhões de reais gastos ao ano, 162 bilhões ficam naquela região.” Entre os itens de maior valor negociados está a moto.

“preciso visitar clientes, pagar as contas da casa, ir às compras. A moto já faz parte do meu corpo”

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1 Água da cisterna para regar a horta e abastecer a casa.

2 Na estrada, onde pessoas trafegam sem capacete. 3 A vizinha Luciene que ensinou às filhas o orgulho de ser negra. 4 Clau, no mar de motos, em Campina Grande

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Colaborou Gabriela Abreu

“Pelo menos 8,8 milhões de habitantes desejam ter uma”, afirma Barretto. “O que leva a abrir mais oficinas e lojas de acessórios.” Isso a despeito de elevar acidentes. Em 2012, morreram 3 496 nordestinas em motos; no Brasil 10 873.

No Ceará, com frota de 1,2 milhão de veículos, o superintendente do Detran, Igor Ponte, chama a atenção para o crescente número de mães com filhos na garupa e sem capacetes. Do 1,6 milhão de habilitados, 30% são do sexo feminino. Há, ainda, muitos sem carteira, pilotando mal. Os riscos sobem no fim de semana, com a bebida. “No Instituto Dr. José Frota, hospital público de urgência da capital, 90% dos leitos são ocupados pelos acidentados”, diz Igor.

Voltando às empreendedoras: de 2001 a 2011, o número cresceu 12%. “Uma coisa puxa a outra”, diz Clau. “Quanto mais as pessoas trabalham e ganham dinheiro, melhor para mim. Eu vendo para elas.” Mulheres não são a maioria, mas estão em linha ascendente, com 49% das novas micro e pequenas empresas, como mostra o levantamento Global Entrepreneurship Monitor (GEM). Delas, 38% estão no comércio, 33% nos serviços, 20% na indústria. A confecção R. Emes, no bairro do Cruzeiro, em Campina Grande, pertence a seis irmãs. Ex-empregadas de fábricas, passaram a fazer 1,5 mil calcinhas, 500 sutiãs e 500 camisolas por semana. Clau está na R. Emes, agora, comprando das irmãs.

A paraibana ajeita os óculos de aro rosa embaixo do capacete, a bolsa e uma sacola nos braços. A mala cheia vai presa na garupa. Corta a cidade, considerada a capital do interior nordestino, em meio a um mar de motos. A população gaba-se do apelido de Vale do Silício brasileiro – numa comparação com o mais famoso centro high-tech americano. Está ali um dos primeiros parques tecnológicos do país, com incubadoras e empresas de computação. Com bares agitados, comércio fervente, tem mais de 30 mil universitários e pós-graduandos, muitos nas duas universidades públicas. Funcionam também a fábrica das sandálias Havaianas e indústrias ligadas ao algodão. Por isso, o lugar é citado como um dos melhores para se arrumar emprego.

Não é caso isolado. Embora não estejam nos primeiros lugares, as capitais Fortaleza, Natal, Recife e Salvador entraram na lista de municípios com bom Índice de Desenvolvimento Humano, segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano das Regiões Metropolitanas, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e da Fundação João Pinheiro. A avaliação se baseia em 200 indicadores socioeconômicos.

Se os nordestinos enxergaram rumo novo para certos problemas, velhas dificuldades permanecem sem solução.

A violência doméstica é uma delas. Alagoas é o segundo estado onde mais se matam brasileiras. A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), relatora do projeto que deu origem à Lei Maria da Penha, viajou o país inteiro, em 2005, para ouvir o que as mulheres queriam ver na lei, aprovada no ano seguinte. Ela não se esquece de um caso: “Um marido espancou a mulher até a morte porque ela ha-

via pintado o cabelo sem autorização dele”. O pior é que continua ocorrendo. “A violência ainda é a forma de tratar os problemas”, diz. “Sobretudo em Alagoas, onde persiste o código de honra, mata-se por vingança ou banalidade, os homens têm certeza da impunidade e o Estado não responde a isso.” Jandira conta que ali – onde 8,3 a cada 100 mil mulheres são liquidadas – funcionam apenas um juizado, três delegacias especializadas e dois Centros de Referência da Mulher para todas as vítimas alagoanas. A coordenadora de um deles, em Maceió, Joana d’Arc Araújo, relata que muitas mulheres atendidas passam três meses em terapia para conseguir se reequilibrar antes de denunciar o marido ou pedir a separação. A falta de estrutura se repete nos outros oito estados da região, com maior morosidade em Sergipe, o último a ter um juizado especializado. “Mas a nordestina é a brasileira mais guerreira, apesar de ter a menor renda e ser a menos escolarizada do país”, diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular. “Ela tem gana, tenta derrubar a supremacia do homem mais que em qualquer outro lugar.” A garra existe, mas não foi suficiente para acabar com outra prática arcaica: o casamento precoce. “Meninas de 11 a 14 anos casam para resolver problemas da família pobre ou porque nasceram prometidas para um primo ou alguém de outra família”, afirma. Elas deixam os estudos, assumem o fogão e o tanque. Até que se inquietem, como Clau, e resolvam romper esse destino.

Beleza negra como símbolo de luta

Maria Piedade de Souza, 45 anos, de Cabo de Santo Agostinho (PE), É professora de filosofia e atua em um programa de arte e cultura

“Assumi meu cabelo de negra aos 17 anos. Vivia solto. Enfrentei olhares atravessados, muita desconfiança. Hoje, as meninas estão em maior número nas faculdades, adotam tranças, turbantes...

O black saiu do gueto.

Vi um grupo que usava uma camisete em que se lia: “Faça amor, não faça chapinha”. Essa estética é a coroação de uma luta, uma vitória. Significa autoafirmação. Também na sexualidade, as jovens negras se mostram mais

tranquilas, até para assumir que são lésbicas, por exemplo. Estamos saindo do lugar de coisa para o posto de sujeito. Mas há dificuldades, que vão além do salário mais baixo que o das brancas: no imaginário geral, a negra nordestina é objeto de prazer e ponto.

Construiu-se a ideia de que suportamos mais a dor, aceitamos o trabalho quase escravo, estamos prontas para o sexo, damos mais prazer. É machismo com racismo, mistura perversa que precisamos demolir.”

JANEIRO 2015

CLAUDIA

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