Leonilson - O poeta escrevia a agulha

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O poeta escrevia a agulha... Ana Lúcia Beck Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte pelo PPGAV/UFRGS, Professora no Curso de Artes Visuais da Universidade Luterana do Brasil.

Mas amar é, para ele, tirar do amor tudo o que o amor pode oferecer ao espírito. Paul Valéry Nem sempre poetas escrevem com canetas. Nem sempre a pena é macia. Há poetas que escrevem com agulhas. Um deles se chama Leonilson, ou, como ele mesmo escrevia, O Penélope, ou, simplesmente, José. Leonilson1 é um artista brasileiro da chamada “geração 80” em cuja obra as palavras são presença constante. Palavras escritas, palavras pintadas, palavras bordadas. Palavras sobre papel, palavras sobre tela, palavras sobre tecido. Palavras a caneta, palavras em linha de costura. O termo palavra é utilizado aqui para designar “informação verbal”, que aparece tanto na obra plástica do artista (pinturas, desenhos, objetos) como faz parte de seu processo criativo e de seu cotidiano de organização de idéias, aparecendo em agendas, cadernetas, cartas aos amigos, entre outros.

Leonilson: páginas de diário/agenda e pintura sobre lona. Na pintura que aparece ao centro realizada em tinta acrílica sobre lona em 1982, lê-se “Na neblina – o bom piloto”.

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José Leonilson Bezerra Dias; 1957 – 1993.

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Desenho a aquarela realizado em 1988 com temática que aparece em outras produções do artista: o mundo, a ponte, e que lembra outro desenho onde constam as palavras selecionadas para nomear a exposição: “Sob o peso dos meus amores”.

Em recente exposição retrospectiva intitulada Sob o peso dos meus amores2, com desenhos, pinturas, bordados, objetos e esculturas produzidos pelo artista, foram expostos outros materiais que pertenciam a ele como coleções de brinquedos, botões, tecidos, entre outros objetos, além de cadernetas, cartas, cartões postais, cadernos escolares. A visão deste conjunto de elementos no mesmo espaço possibilitou que se percebesse claramente as relações entre estas diferentes categorias na obra do artista. Carrinhos de brinquedo, por exemplo, possuem um aspecto visual em termos de forma muito próximo de carrinhos que ele elaborava em seus desenhos e pinturas. Assim também, pequenas pontes de madeira, possuíam características parecidas com um elemento recorrente na poética do artista: a ponte. A ponte “real” assim como a ponte “representada” compartilham características formais que podem ser consideradas como pistas do simbolismo deste elemento. A ponte é curva, a ponte possui base nas margens, mas também se apóia no rio, a ponte possui arcos, a ponte não

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Neste breve relato, várias informações e dados utilizados partiram da verificação direta da obra do artista que pôde ser vista na exposição Sob o peso dos meus amores com curadoria de Bitu Cassundé e Ricardo Resende. A exposição foi apresentada entre março e maio de 2011 no Centro Cultural Itaú São Paulo, e entre 16 de março e 3 de junho de 2012 na Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre.

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possui barras de proteção lateral. Sobre a ponte, nunca há alguém. A ponte liga sempre mundos. Entre muitos outros elementos simbólicos, plásticos e reais que constituem o universo de Leonilson, percebe-se que sua poética se elabora sobre a relação com o cotidiano, com o vivido. Ver esta ampla e completa exposição, embora lacunar com relação aos desenhos realizados por ele para a coluna da jornalista Barbara Gancia para a Folha de São Paulo3, me fez refletir que as palavras, o texto, o escrito, pode ser pensado como mais um objeto para o artista. Denominar a palavra objeto não diminui seu valor ou importância, mas pontua que esta também oscila, tal qual um carrinho de plástico ou uma pequena ponte de madeira, entre o real e o imaginário, entre o cotidiano e a obra, entre um significado presente socialmente e um sentido elaborado e atribuído pelo artista. A presença das palavras num espaço considerado a princípio como plásticovisual não é recente. Desde a Idade Média, pinturas e gravuras apresentam obras nas quais verbo e imagem se encontram. Um exemplo é a obra Os quatro Apóstolos, realizada por Albrecht Dürer em 1526.

Albrecht Dürer – Os quatro Apóstolos – 1526. (www.albrecht-durer.org)

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Esta lacuna ocorreu na exposição em São Paulo, porém, na exposição de Porto Alegre vários destes desenhos estavam presentes.

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Nesta pintura, abaixo da representação dos apóstolos, Dürer transcreve trechos do Novo Testamento segundo a versão traduzida por Lutero e impressa alguns anos antes por Gutemberg. Contrariando o modelo da época – que inseria palavras e frases em pinturas em latim, dando a conhecer o personagem retratado e o ano da pintura, aqui o pintor privilegia a língua do povo: o alemão. Tal qual Lutero, que traduzira a Bíblia do latim para o alemão, Dürer parece preocupado em marcar espaço para a leitura. Mesmo se considerarmos que, na época, grande parte da população comum era analfabeta, o fato de as palavras que aparecem na pintura estarem em língua alemã e não no idioma latino, certamente ampliava a comunidade de leitores em potencial. Esta é uma observação importante a ser considerada, pois, se as palavras estão presentes na pintura mesma, ou seja, na mesma superfície que o restante da representação, em um idioma acessível, no mínimo se deve considerar que tais palavras estão ali também para serem lidas. Ítalo Calvino, ao refletir sobre a arte do conto, considera que “a partir do momento em que um objeto comparece numa descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força especial, torna-se como o pólo de um campo magnético, o nó de uma rede de correlações invisíveis” (CALVINO, 1990, p. 47). Esta observação de Calvino, que pode parecer banal, nem sempre é considerada com tamanha obviedade. Assim como ocorre em um conto, também em uma pintura cada elemento que comparece torna-se necessário para a rede de correlações que o leitor poderá estabelecer a fim de elaborar sentidos a partir da obra. Ora, se em um espaço plástico comparece o elemento verbal, é necessário que o mesmo seja considerado em sua rede de correlações com os elementos restantes. De outra forma, podemos incorrer no equívoco de pensar que a imagem precisa ser interpretada, mas que, quanto às palavras, “basta lê-las”. O problema desta questão fica evidente em vários momentos. Ainda são raras as reproduções ou comentários críticos sobre obras de artes visuais em que se confere à informação verbal a atenção e a importância que devem merecer uma vez que se apresentam como informação verbal e, ao mesmo tempo, como elemento pictural4.

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O termo elemento pictural foi utilizado aqui a fim de não criar confusão com o termo “elemento plástico” uma vez que, considerando-se como veremos mais adiante, a plasticidade da palavra enquanto elemento da linguagem verbal, facilmente se poderia confundir esta idéia com a idéia de “elemento plástico” definição que se aplica aqui implicitamente ao elemento verbal.

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René Magritte – Isto não é um cachimbo – 1928.

Quando em 1928, Magritte pinta La trahison des images (Ceci n’est pas une pipe), Foucault faz desta pintura uma leitura que se dedica tanto ao conteúdo visual quanto ao conteúdo verbal elaborados pelo pintor. Ao fazê-lo, apresenta as noções clássicas de linguagem verbal e linguagem visual. Para a concepção clássica, leia-se a que vigora até pelo menos meados do século XIX, as linguagens verbal e visual são distintas. Uma, opera através da diferença: a linguagem verbal. A outra opera através da semelhança: a linguagem visual. A distinção entre as linguagens é tal que Foucault em determinado momento afirma que elas não podem se cruzar ou fundir. Para a noção clássica, existe um limite claro entre as duas linguagens. A linguagem verbal estaria encarregada de fixar o pensamento através de signos convencionais ou arbitrários. Já a linguagem visual estaria encarregada de fixar as coisas utilizando-se de signos considerados naturais. Assim, a partir desta diferenciação, se estabelecem diferentes atitudes por parte do receptor de cada uma das linguagens: Na concepção tradicional, existe uma distância entre as palavras e as coisas, ou seja, entre as palavras e o mundo. Nesse espaço, situa-se o pensamento do homem. Dessa forma, o pensamento lê, significa, articula, diz e nomeia; realiza atividades consideradas ativas. Tal espaço, na concepção clássica de linguagem, não existe entre as coisas e suas imagens. A imagem, ao contrário da palavra, não fixa o pensamento do homem. A imagem fixa o olhar do homem. O que o homem vê, porém, são “as próprias coisas”. Os objetos e suas imagens são semelhantes. Reconhecer as semelhanças entre as imagens passaria não por uma articulação entre pensamento, realidade e signo, mas por algo como a mecânica do olhar. O sistema de representação visual lida com os objetos tais como são, sem interferência do pensamento. A imagem é apenas uma cópia da realidade. É nesse sentido que este sistema de representação é entendido como mimético. Não por copiar o pensamento, mas por imitar a realidade. As atividades do olhar, portanto, não são ativas, mas passivas: imitam, reproduzem, figuram, mostram (BECK, 2004, p. 19.).

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Isto significa que, para a concepção tradicional, a linguagem verbal afirma enquanto a linguagem visual mostra. Em seu texto, Foucault, utiliza o exemplo do manual de botânica no qual uma imagem, de determinada planta, é acompanhada do seu nome. Ao contrário deste manual, porém, a pintura de Magritte apresenta uma contradição, pois, abaixo da imagem de um cachimbo, há a afirmação isto não é um cachimbo. O que a pintura mostra contradiz aquilo que ela afirma. Embora a contradição em si não seja o ponto que nos interessa, o fato é que ela é pensada porque que existe, para a concepção clássica, um fundamento racional na linguagem verbal. Mais tarde, a partir do século XIX, e da obra de autores como Mallarmé, esta concepção será contraposta à idéia de linguagem propriamente dita, que se diferencia da língua ou idioma e estabelece, inclusive, o “estatuto poético da palavra”. A partir desta nova concepção, pode-se lançar a hipótese de que as linguagens podem sim se cruzar e fundir. A maneira como as linguagens surgem na obra de Magritte, por exemplo, ou mesmo na obra de Dürer, parece ser fundamentalmente distinta da maneira como se apresentam na obra de Leonilson. Considero que as diferentes formas de apresentação que podem ser verificadas em obras de artes plásticas para conteúdos verbais explicitam de algum modo diferentes abordagens da própria linguagem verbal por parte dos artistas, mas, sobretudo, explicitam diferentes tipos de relação que os artistas constituem entre as linguagens verbal e visual. Este é um campo fascinante que ainda carece de pesquisas detalhadas, imprescindíveis para a reflexão sobre a enorme quantidade de obras de arte da contemporaneidade nas quais as palavras são presença constante e determinante da poética dos artistas. A obra de Leonilson, apesar do reconhecimento que vem recebendo nos dias de hoje, carece de um olhar de análise mais cuidadosa a respeito da presença da palavra. Pedrosa, comentado a obra do artista, afirmava que “lançar-se num projeto de estabelecimento de nexos de significação [para o léxico do artista] me parece tarefa, quando não supérflua, ao menos fadada ao fracasso” (PEDROSA apud LAGNADO, 1998, P. 21). Ora, a afirmação de Pedrosa demonstra flagrante esvaziamento de um dos aspectos mais ricos e ímpares da obra de Leonilson. É interessante notar que, a medida que o tempo passa, percebe-se que há uma infinidade de obras de arte produzidas, por

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exemplo, a partir dos anos 20005, que se aproximam muito mais da poética de Leonilson, considerando a relação entre conteúdos verbais e visuais, do que as obras de seus colegas e contemporâneos da Geração 80. Parece evidente, em contraposição ao que afirmou Pedrosa, que se deve considerar o seguinte aspecto: Se uma obra como a de Leonilson, no uso que faz das palavras, escapa à dicionarização, isso não significa, necessariamente, que tentar estabelecer nexos de significação seja uma tarefa inválida ou fadada ao fracasso. A tentativa de estabelecer nexos de significação será inválida caso parta do princípio de que o artista está utilizando a linguagem verbal “apenas” em função de sua dimensão cotidiana/literal. Por quê? Ora, simplesmente porque na obra de Leonilson a relação entre imagem e verbo ou é aparentemente óbvia – texto e legenda; ou é contraditória – imagem e texto que não afirmam a mesma coisa. Mas a impressão de obviedade e de contradição assenta-se, como observado por Foucault, em uma noção tradicional, lógico-racional da linguagem. Caso se espere que a palavra em Leonilson possua um significado, ou que esse significado atenda à lógica da língua, lê-lo será tarefa ingrata (BECK, 2004, p. 80).

A obra de Leonilson demanda um olhar atendo, um olhar que considere que para o artista, a palavra também é matéria, a palavra também tem forma. Com a palavra – e não somente através dela – também é possível estabelecer uma relação de intimidade. Enquanto Magritte nos mostra uma realidade na qual palavra e imagem ainda estão de alguma maneira separadas, ou, pelo menos, podemos identificar claramente o espaço ocupado por cada uma, em Leonilson, os limites já não existem mais:

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Dentre artistas brasileiros cuja obra se situa no espaço inter linguagens, podemos citar: Mira Schendel, Rosana Ricalde, Hilal Sami Hilal, Arnaldo Antunes, Jonathas de Andrade, entre outros. Com relação a artistas estrangeiros podemos citar: Picasso, Georges Braque, Barbara Kruger, Sophie Calle, Jenny Holzer, Leon Ferrari, Jorge Machi, entre outros. Estes, porém, são apenas alguns casos dentro do grande universo de obras visuais que citam, incorporam, dialogam ou referenciam o universo literário.

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À esquerda, Os dois mistérios, obra de Magritte de 1966. À direita, detalhe de A caminho do despenhadeiro o rei pensou, obra de Leonilson de 1987.

Nas obras acima, e devemos lembrar que esta obra de Magritte é realizada por ele após a leitura do texto de Foucault, há uma evidente diferença na distribuição do elemento verbal na imagem. A observação inicial de Foucault poderia ser entendida com relação à obra de Magritte, mas, certamente, não auxilia na abordagem, estudo e entendimento de obras como a de Leonilson. Aqui, a relação entre palavra e imagem não é apenas de contradição, mas de justaposição, que também é sobreposição. De maneira semelhante a que ocorre na pintura de Magritte, a relação entre imagem e verbo em Leonilson será, muitas vezes de contradição (entendida segundo a concepção clássica de linguagem). O contexto das palavras em Leonilson é tal que mesmo uma leitura do conteúdo verbal, dissociado da imagem, é dificultado. Esta utilização das palavras remete à maneira como a palavra é entendida na poesia e como, através desta, se pode pensar a questão da imagem na linguagem verbal. A poesia, em função da utilização da metáfora e das nomeações falhas, explicita a variedade de imagens associadas ou produzidas no processo de leitura: [...] a utilização do termo imagem, aplicado àquilo que a leitura produz, é comumente utilizado nesses três momentos que são distintos, a lembrar: a imagem do significado literal mais explícito do texto, a imagem do que é interpretado a partir desse significado mais explícito e a imagem conclusiva – um “quase conceito” – que se elabora a partir das duas primeiras. A existência desse tipo de procedimento – formação de imagens – a partir da leitura pode ser vista não somente em Walty, mas em outros autores, principalmente nos que trabalham com poesia como Bachelard, Ramos, Ricoeur e Valéry. A única liberdade que se tomou foi a de tentar distinguir essas diferentes imagens e lhes atribuir os termos primeira, segunda e terceira. Tal distinção é importante, pois, esclarece que a leitura não produz apenas uma imagem, mas várias imagens concomitantes no tempo e no espaço. Ao invés de um grande borrão sem foco ao qual se poderia chamar de imagem verbal, têm-se imagens claras e distintas associando-se e confrontando-se (BECK, 2004, p. 66).

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Ler envolve, em diferentes graus, certa articulação com a imagem. Ver e ler, portanto, estão intrinsecamente ligados. Mesmo lendo, é necessário ao espectador articular diferentes imagens a fim de elaborar ou constituir o sentido de um texto. A idéia da relação entre as imagens no momento de leitura, também é indicado por Calvino (1990, p. 55) quando se refere à excitação provocada pelo uso de idéias simultâneas. Esta idéia se esclarece mais adiante em seu texto quando afirma: “Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias, contraposições” (CALVINO, 1990, p. 104). Ao estabelecer esta idéia de leitura, Calvino explicita que ao ler também vemos, afinal, a analogia é o fundamento da linguagem visual, e o leitor/espectador relaciona várias possibilidades entre si ao realizar um caminho de leitura. A imagem cunhada por Calvino de excitação simultânea é formidável para pontuar o fato de que, no cerne mesmo da linguagem verbal, não somente articula-se algo

vislumbrado,

mas,

se

articulam

várias

possibilidades

de

sentido

concomitantemente. Não ocorre uma relação direta entre uma palavra, termo ou trecho verbal e uma imagem. Ocorre, isto sim, a articulação entre uma informação verbal e uma variedade de imagens simultâneas. A contradição poderia ser entendida em uma relação um a um, mas certamente não auxilia na compreensão de um cenário mais complexo. Saramago comenta isto quando descreve seu personagem José: Espírito atento aos múltiplos sentidos das palavras que cautelosamente ia pronunciando, sobretudo aquelas que parecem ter um sentido só, com elas é que é preciso ter mais cuidado. [...] o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e sub-dividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projetar marés vivas pelo espaço afora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições” (SARAMAGO apud BECK, 2004, p. 26).

No caso da obra de Leonilson, estas imagens multiplicam-se e relacionamse também com as imagens “visuais” das obras. O jogo verbal-visual que, na poesia, situa-se em nível mental; adquire corpo na obra do artista: as imagens se materializam. A relação entre imagem e verbo é determinante na poesia para que se estabeleça o sentido da leitura. A possibilidade de elaboração de sentido, na poesia, existe onde não pode existir num discurso literal: na contradição. Podemos dizer que, ao nos depararmos com os trabalhos de José Leonilson, tal situação de confronto entre imagem e verbo se potencializa, uma vez que tanto imagem como verbo se materializam na obra.

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Leonilson: O zig-zag, Traidor e Puros e Duros.

Nestas obras, palavras são bordadas, as imagens são “as coisas mesmo”. Na relação que ambas estabelecem entre si, mais do que um confronto contraditório, parece ocorrer um levantamento de sentido. O artista confere a ambas peso, o peso de algo que se diz com as coisas mesmo. Com a força reivindicada pela palavra materializada. No peso da palavra que não se basta escrita, o artista se faz poeta. Em obra anterior, ao fazer uma leitura mais detalhada da obra Puros e duros, discorri sobre como a associação possibilitada por este trabalho entre os conteúdos verbais e visuais, possibilita a elaboração de novos sentidos para os termos bordados pelo artista. Afinal, “[...] a obra de Leonilson mostra que o poeta trabalha com as palavras, assim como faz com os tecidos, tentando conferir-lhes forma” (BECK, 2004, p. 155). Conferir forma, neste caso, reveste-se de mais de um sentido. Trata-se tanto da forma plástico/visual, como do sentido novo que constitui para os termos. A carga poética que o artista elabora em sua obra é tal que, mesmo quando é mais literal, mesmo quando elabora uma imagem mais figurativa – portanto mais próxima do caráter mimético da imagem – demonstra seu eterno exercício com a matéria da linguagem. Suas figuras, muito antes de serem figurativas, são signos próprios, apropriados de uma simbologia mais genérica compartilhada socialmente. De forma quase literal, Leonilson nos mostra este exercício que lhe é constante, e que envolve tanto a linguagem verbal como a visual em O pescador de palavras, por exemplo:

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O pescador de palavras, acrílica sobre lona de 1986.

A busca do artista poeta pela forma adequada, que se elabora com ambas as linguagens e no limite entre ambas, faz-me pensar na concepção apontada por Calvino: “[...] uso da palavra como a entendo, ou seja, como perseguição incessante das coisas, adequação a sua infinita variedade” (1990, p. 39). Tal forma de busca pela expressão no cerne da linguagem é potencializada pela relação com os elementos visuais na obra de Leonilson. Leonilson poeta. Valéry assim se referia a um poeta: “O poeta consagra-se e consome-se, portanto, em definir e construir uma linguagem dentro da linguagem” (1999, p. 30). Na obra O pescador de palavras, a operação do pescador é metáfora mesmo da busca de Leonilson pela expressão que se elabora no meio plástico, mas que trata também a linguagem verbal pelo seu potencial plástico. Não se trata de um artista plástico que simplesmente inclui palavras em sua obra, mas de uma obra na qual a palavra também possui textura, peso, cor, forma. A palavra em Leonilson, assim como na poesia, possui um grau de mobilidade, ou seja, de levantamento de possibilidades de sentido, na relação que estabelece com a imagem. Na poesia, o jogo entre imagem literal (caráter descritivo dos termos), imagens interpretativas e imagens conclusivas (quase-conceitos) elabora novas possibilidades de sentido para os termos utilizados. No caso dos trabalhos de Leonilson, o que a princípio pode parecer contradição, é constituição de sentido e, ouso inferir, materialização mesmo do processo associativo eminentemente visual que ocorre no momento da leitura de qualquer obra literária. Processo associativo que não necessariamente ocorre em função de possibilidades de analogias primárias e óbvias – não se trata da semelhança dada – mas em função de analogias que o compartilhamento 11


do espaço plástico oferece. Nesse caso – e poesia maior talvez não exista – a analogia se constitui tanto através da contradição, como da associação, da complementaridade ou do reforço entre os sentidos que podemos atribuir seja aos elementos verbais, seja aos elementos visuais. A matéria da linguagem é tão plástica e moldável quanto um tecido. Suas possibilidades de sentidos, algo que pode ser modificado através de um costura, na aplicação de pedraria ou na complexidade de um bordado. A linha lógica de uma leitura literal torna-se linha de alinhavo, linha de bordado, linha de ziguezague. Mas o embate de Leonilson com a linguagem, que também é embate do artista consigo mesmo, ocorre inúmeras vezes no espaço interno da palavra. Além das alterações de sentido, o poeta elabora expressões verbais de alta carga visual. Expressões verbais de grande plasticidade, palavras de imagens contundentes.

Bordado sobre tecido, 1990.

Falar dos bordados e poesias de Leonilson parece ser sempre algo que está aquém do que já foi dito por ele na obra. A contundência de suas afirmações diminui o peso de qualquer coisa além que lhe seja dita. Mesmo assim, é necessário, no âmbito deste pequeno ensaio, comentar a beleza e a precisão da imagem elaborada pelo bordado acima. “Você trouxe o tubarão para o meu coração”, é uma frase cuja poesia não reside na rima ou na distribuição do verso, mas na força da metáfora elaborada para falar de algo que a linguagem literal parece jamais alcançar com tal precisão: o sentimento interno. Este pequeno bordado, que parece tão singelo e despretensioso na forma – pois foi realizado à máquina de bordar, algo não muito comum nos bordados do artista – coloca toda a força na palavra e na imagem da palavra. Na busca incessante do poeta pela expressão correta, a escolha pelo idioma do outro, pelo idioma estrangeiro, utilizado ora com , ora sem correção gramatical, continua sendo tentativa de alcançar o 12


outro. Para Leonilson, palavra e imagem, sentido e significado, língua e linguagem rompem limites na tentativa de eliminar fronteiras e barreiras de comunicação. Ouso dizer que a mais significativa parcela do quociente emocional de sua obra não reside na aparente simplicidade de sua temática, mas na contundência da forma que adota para falar sempre do mesmo. Do mesmo seu, do mesmo nosso. Palavra é ponte. Leonilson estabelece um diálogo ímpar entre as linguagens verbal e visual. Nos desdobramentos que o artista elabora, o limite clássico entre as linguagens verbal e visual não mais existe. Assim como o artista rompe os limites entre pintura-desenhoobjeto, ou os limites entre artes plásticas e alta-costura, rompe os limites entre artes plásticas e poesia, entre verbal e visual. Leonilson não é um artista plástico escrevendo poesia ou um poeta que desenha e pinta. Leonilson ignora categorias prévias e, em sua luta incessante para comunicar-se com o outro, estabelece um universo de “encontro das palavras com novas circunstâncias” (CALVINO, 1990, p. 72). Mais do que utilizar a palavra em sua função cotidiana e, porque não dizer, banal, Leonilson, ao articular palavra e imagem, suspende-as sobre um abismo. Mesmo abordando em sua temática questões há muito banalizadas sobre as relações amorosas que, em função desta banalidade, parecem retirar de certas palavras e expressões a maior parte de sua carga poética, alcança o que Calvino refere como “literatura com função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver” (CALVINO, 1990, p. 39). Na obra de Leonilson as palavras adquirem a leveza crua da escrita a agulha.

À esquerda, bordado sobre tecido no qual se lê “não seja doce, seja violento comigo”. À direita, desenho sobre papel onde constam as palavras “palavras violentas”. 1987 e 1990 respectivamente.

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Referências: BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BECK, Ana Lúcia. Palavras fora de lugar – Leonilson e a inserção de palavras nas artes visuais. Dissertação de Mestrado defendida em janeiro de 2004. Programa de Pós-graduação em Artes Visuais – UFRGS. Porto Alegre. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CASSUNDÉ, Bitu e RESENDE, Ricardo. Sob o peso dos meus amores. Exposição: Sob o peso dos meus amores. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 17 março a 29 maio, 2011. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. LAGNADO, Lisette. Leonilson: são tantas as verdades. São Paulo: DBA Melhoramentos/ Fiesp, 1998. RAMOS, Maria Luiza. Interfaces: literatura, inconsciente, cognição. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. SACKS, Sheldon (org). Da metáfora. São Paulo: EDUC/Pontes, 1992. SALGADO, Renata (org). Imagem escrita. Rio de Janeiro: Graal, 1999. SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SCHULTZ, Margarita. El poder de la palabra. Santiago do Chile: Editorial Cuatro Vientos, 1999. VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. ____________. Monsieur Teste. São Paulo: Ática, 1997.

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