Imagens Marginais

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Imagens marginais Profa. Me. Ana Lúcia Beck Porém o dia em que a palavra do Filósofo justificasse os jogos marginais da imaginação desregrada, oh, então realmente o que estivesse à margem pularia para o centro, e do centro se perderia qualquer vestígio. (ECO, 2003: 456)

Não são poucos os romances que, nas linhas ou nas entre linhas, elaboram sentidos para a relação entre palavras e imagens. Da mesma maneira, não são poucas as obras de artes visuais, principalmente na arte contemporânea, que trabalham com estas duas linguagens. Palavras contidas em imagens, imagens que fazem referências a obras literárias, obras que falam do amor aos livros e letras ou à sedução por estes propiciada, imagens que se apresentam como palavras ou palavras que se apresentam como imagem, palavras pintadas ou desenhadas, desenhos escritos. A relação entre imagens e palavras, a relação entre as linguagens verbal e visual é antiga e profícua.


Em obra anterior (BECK, 2004), detive-me na compreensão desta relação a partir do estatuto da palavra na poesia. A forma como a palavra é entendida e utilizada na poesia permitiu compreender as distinções entre o significado e o sentido das palavras. Para tanto, buscou-se apontar o aspecto imagético da palavra. A partir de M. Teste (VALÉRY, 1997), percebe-se que compreendemos, ou melhor, tentamos localizar os possíveis significados para uma palavra, na imaginação. Naquilo que em nossa mente se forma e se torna visível em termos de imagem. Várias imagens. Diferentes imagens associáveis a uma palavra. Através de tais imagens, busca-se compreender as palavras. No cerne da linguagem verbal, alojam-se imagens1. As muitas imagens associáveis a uma palavra configuram um campo de sentidos da palavra. Para cada significado dicionarizável de uma palavra corresponderia uma quantidade muito maior de sentidos. Não somente o significado, mas também os vários sentidos associados a uma palavra seriam mobilizados ao tentarmos “entender” o que é lido. A imagem/sentido está ligada portanto aos aspectos não explícitos, não literais, multívocos das palavras. A palavra possui dois lados. O lado do sentido, o lado do significado. E tanto o sentido – ou sentidos – como o significado são mobilizados na produção do conteúdo de um discurso. (BECK, 2004, p.29)

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A parcela de imagem da linguagem verbal e a relação que a partir delas se estabelece para elaborar os sentidos e significados de uma informação verbal encontra-se mais aprofundada em BECK, 2004, p. 59-70.


Em outra obra literária, O Nome da Rosa, várias possibilidades de reflexão sobre a relação entre imagens e palavras são reveladas. Do momento histórico em que o romance se passa marca-se a idéia de que a pintura era a literatura do leigo. Quem não sabia ler, “lia” por imagens. Aprendia-se por imagens, conhecia-se por imagens. A esta idéia, posta logo nas primeiras horas do romance, contrapõe-se outras que mostram o grau de complexidade que a relação entre imagem e palavra pode alcançar. Gostaria de me deter em duas delas. Uma que diz respeito diretamente à relação entre palavras e imagens visível no trabalho dos monges copistas. Outra que podemos inferir se observarmos a maneira como o autor caracteriza a ação do personagem principal, o “monge, filósofo, detetive” Guilherme. A certa altura do romance, Guilherme e Adso visitam o scriptorium, local onde os monges da Abadia executavam o trabalho manual de cópia de livros. Tal tarefa, porém, não se restringia à cópia do texto, mas também à elaboração das iluminuras e imagens contidas nos livros, mesmo quando não contidas nos originais. Segundo Adso, deparam-se com um saltério sobre o qual afirma:


A primeira metade já estava coberta pela escritura e o monge tinha começado a esboçar as figuras nas margens. Porém, já estavam prontas outras folhas, e olhando para elas, nem eu nem Guilherme conseguimos conter um grito de admiração. Tratava-se de um saltério às margens do qual se delineava um mundo ao avesso em relação àquilo com que se habituaram os nossos sentidos. Como se à margem de um discurso que por definição é o discurso da verdade, se desenvolvesse, profundamente ligado a ele, um discurso mentiroso sobre um universo virado de cabeça para baixo. (ECO, 2003, p.81)

Apesar do rígido controle que havia sobre o trabalho dos monges copistas, o que podemos inferir deste trecho é que os monges se permitiam maior liberdade na execução das imagens do que na cópia dos textos. Pela maneira como o autor prossegue na descrição da imagem neste caso específico, percebe-se que a imagem permitia uma leitura que contradizia a informação verbal. A imagem apresentava uma contradição relativamente ao que a lógica deduziria do texto escrito. Desta forma, na relação complexa que se elaborava entre palavra e imagem, a imagem concorria para um levantamento do sentido do texto. A imagem ampliava as possibilidades do texto para além das verdades que o mesmo aparentava afirmar. À margem, nas imagens, subvertia-se a verdade pretendida pelo texto. Marginalmente, na imaginação do copista ao elaborar a imagem, libertava-se o leitor da prisão da verdade da lógica do texto. Interessa apontar que a imagem neste caso, amplia, abre, ou até mesmo corrompe o sentido primário de um texto. Assim, o campo da imagem configuraria um campo de liberdade relativamente às verdades contidas no discurso escrito. A associação entre imagem e palavra provocava novas possibilidades de sentido. Tal cena também é idéia paralela ao comportamento e ao procedimento do personagem de Guilherme. Ao longo dos dias em que Guilherme busca desvendar os crimes ocorridos na Abadia, prossegue em sua missão de educar o jovem Adso. Assim, reitera, dia após dia, que não se contente em pensar sobre as coisas, mas que se detenha, longamente, atentamente a observar as coisas. No romance, a narrativa de Adso acaba por assumir tal ensinamento: fala do que pensou, mas se detém, longamente, no que viu. Da mesma maneira como descreve seu espanto ao perceber como o que Guilherme “via” subsidiava suas idéias. Numa relação muito próxima, o visto ampliava o sentido do pensamento articulado verbalmente. Mais do que isso, as imagens tornavam o pensamento possível.


Afinal, percebe-se, leigos ou não, opera-se com imagens sempre que se quer conhecer um texto ou se quer articular uma informação verbalmente. Sendo possível que livros contenham além de palavras, verdades, esta idéia tão simples, torna-se metáfora do complexo jogo mental operado por Guilherme para descobrir “a verdade”. Guilherme valese de um método que se baseia no jogo entre as atitudes associativas (princípio da linguagem verbal) e dedutivas (princípio da histórica concepção logicista da linguagem verbal). Não somente o leigo, portanto, lê por imagens. Mas, além desta idéia marginal, nas entre linhas do romance se insinua uma importante questão. Mais vale ao conhecimento depor sobre a verdade, ou elaborar sentidos para aqueles que por ele se interessam? IMAGENS: BECK, Ana Lúcia. Detalhes de desenho da Série Diário, nanquim sobre papel, 2006/2010. BIBLIOGRAFIA: BECK, Ana Lúcia. Palavras fora de lugar: Leonilson e a inserção de palavras nas artes visuais. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGAV/UFRGS, 2004. (disponível em: http://issuu.com/palavraimagem/docs/palavras_fora_de_lugar) ECO, Umberto. O nome da rosa. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003. VALÉRY, Paul. Monsieur Teste. São Paulo: Ática, 1997.


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