05/11/2017 Medium

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Gabriela Morgado Follow 20 anos. 6º período de Jornalismo, UFRJ Nov 5 · 7 min read

Lugar de mulher é na arte Conheça as responsáveis por uma reviravolta no mundo artístico Mel e Peixa descobriram que estavam namorando a mesma pessoa. A segunda pensou em acusar a primeira de culpa, mas ponderou: “A culpa é daquele safado! ” Pegaram a foto dele. “Sabe o que eu vou fazer com você? ”, disseram e esfregaram a foto em suas calças, gritando para que morresse de saudade, e a jogaram no chão. Essa é uma das cenas da esquete “Empoeiradas”, do Coletivo de Palhaças Casa 407. O grupo é um dos muitos no Brasil que lutam pelos direitos das mulheres através de atividades de arte feminina. Existem no país, hoje, núcleos só de mulheres de cinema, de escrita, de dança e até de gra te. Além de serem formados por integrantes femininas, esses grupos batalham pela equidade entre os gêneros. O Casa 407 é formado por Elisa Neves, 30, palhaça Gleicy Mel; Kassia Nascimento, 33, a Peixa Peixeira; Luisa Machado, 27, a Farofa de Beicom; e Érica Rodrigues, 26, a Dolores Paz. O Coletivo foi fundado em 2014, com o objetivo das atrizes e palhaças se unirem em torno do feminismo na palhaçaria.

Da esquerda para a direita: Luisa, Elisa, Kassia e Érica /Foto: Gabriela Morgado

Para Érica, que está só há um ano no grupo, a palhaçaria foi a melhor forma que as integrantes encontraram para tratar do tema: “Quando as


pessoas riem, elas automaticamente quebram seu bloqueio. O riso é o maior laço entre duas pessoas”, comentou. “A gente encontrou na palhaçaria o lugar por onde nós queremos nos expressar. ” “Empoeiradas” narra a história da traição sofrida pelas personagens, mas com muito humor. O texto da peça vai contra os estereótipos da competição feminina e do papel da mulher como indefesa. As quatro palhaças a estavam ensaiando para o Festival Breves Cenas de teatro, que aconteceu em Manaus, na segunda semana de junho desse ano, no qual ganharam um prêmio pelo movimento contra o machismo. A intenção do grupo é justamente essa: fazer uma transformação política e social, pois “a palhaçaria é uma arte prioritariamente masculina”, como a rmou Elisa. “As referências mulheres são muito poucas.” O maior exemplo de palhaças para o grupo são As Marias da Graça, primeiro coletivo de palhaçaria feminina do Brasil. Em 1991, quando surgiram, as Marias contavam com sete integrantes. Hoje, são apenas quatro: Karla Concá, 49, Samantha Anciães, 41, Geni Viegas, 53 e Vera Ribeiro, 57. Elas abriram as portas para as mulheres que querem ser palhaças no país. Uma de suas principais contribuições foi a criação do primeiro festival de comicidade feminina do Brasil, chamado “Esse Monte de Mulher Palhaça”. Criado no Rio de Janeiro, o festival já teve seis edições desde 2005. “É uma troca”, comentou Geni. “A gente pode conhecer o trabalho de outras pessoas, e elas o nosso.” Hoje, além do “Esse Monte de Mulher Palhaça”, existem mais cinco festivais de comicidade feminina no Brasil: em Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília e São Paulo, além de encontros menores de mulheres palhaças espalhados pelo país. A palhaçaria feminina também foi cando mais organizada e unida. Segundo Karla, “se formou uma rede de mulheres palhaças de organizadoras de festivais, que estão empoderando e ajudando festivais enfraquecidos”. Arte e machismo na história O circo como conhecemos hoje apareceu primeiro na Inglaterra, no século XVIII. No entanto, segundo pesquisa feita por Sarah dos Santos, aluna de pós-graduação da UNESP, as personagens mulheres de palhaças só começaram a surgir na década de 1980, a partir das escolas de circo. Mesmo assim, a presença feminina nos espetáculos sempre esteve associada à beleza física e à sexualidade. Para Elisa, esse ainda é um problema na palhaçaria. “A comicidade feminina é muito difícil de encontrar, porque a tendência a sexualizar


todo o nosso corpo é muito imediata”, a rmou. “A gente está fazendo pesquisa para poder quebrar isso. ” O caminho da palhaçaria feminina ainda está sendo construído. Karla, das Marias, explicou que para os palhaços homens, já existe um padrão, mas as mulheres “são livres”, estão fazendo sua própria trajetória. O mesmo pode ser percebido em outras áreas da arte. Depois da “Primavera das Mulheres”, onda de protestos feministas que ocorreu no Brasil em 2015, cou claro que as pessoas estão tomando consciência do problema da equidade de gênero e, mais do que isso, estão se juntando para lutar contra ele. “Eu acho que a gente está acordando”, disse Érica sobre o assunto. Os dois coletivos de palhaças concordam que já está acontecendo uma mudança, mas que ela está longe de ser completa. Um bom incentivo pode partir das universidades. Julia Araújo, 23, integrante do coletivo de audiovisual Carne e Osso, disse acreditar que o ambiente acadêmico foi essencial para que ela começasse a debater sobre o feminismo: “Antes de entrar na ECO, eu não tinha muito contato com teoria ou debates feministas”, explicou. “Esse ambiente contribuiu muito. ” ECO é a Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde Julia cursa Rádio e TV, e dentro da qual o Coletivo Carne e Osso foi formado, por e para mulheres. As quatro principais responsáveis se juntaram para participar de um concurso de lmes só com mulheres, na frente e por trás das câmeras. Depois disso, perceberam a falta de representatividade feminina em certas funções do audiovisual e, assim, o coletivo nasceu, em 2016. Julia comentou que “as mulheres geralmente não dirigiam, não faziam direção de fotogra a, não faziam som” dos lmes. “A gente teve a ideia de criar esse coletivo para incentivar que essas mulheres, estudantes da ECO, tivessem a oportunidade de exercer essas funções. Como os homens sempre as acabam exercendo, elas não têm chance de testar para aprender, que é o que a gente está aqui na faculdade para fazer. Isso re ete também o mercado do audiovisual, que é muito difícil”, explicou. Com dados da ANCINE (Agência Nacional de Cinema), o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação A rmativa da UERJ lançou em 2017 um boletim que explicita a falta de mulheres no cinema do país: dos lmes brasileiros com maior público, lançados entre 1995 e 2016, 85% dos diretores e 75% dos roteiristas são homens brancos. Em


contrapartida, não há mulheres negras nessas funções e apenas 4% integram os elencos principais desses lmes. O segundo curta-metragem do Carne e Osso, chamado “Mercadoria”, foi selecionado para ser exibido no Short Film Corner, no Festival de Cannes de 2017. Ele foi dirigido por Carla Villa-Lobos, de apenas 25 anos, também estudante da UFRJ. Julia cuidou da produção executiva, da assistência de direção e das legendas. O lme fala sobre prostituição, e os diálogos foram construídos a partir de conversas reais com mulheres da Vila Mimosa.

“Mercadoria” foi exibido em Cannes /Foto: Facebook.com/CurtaMercadoria

Os professores de Julia e os técnicos da faculdade foram essenciais para o coletivo, contou a estudante. As passagens para a França foram compradas com a ajuda do Parque Tecnológico da UFRJ, com mediação de uma das professoras. O incentivo da Universidade foi muito importante. Apesar da mostra não ser competitiva, a equipe pôde apresentar o curta em um dos maiores festivais de cinema do planeta. “Participar foi incrível, porque a gente conseguiu contato com pessoas de vários lugares do mundo”, comemorou Julia. Outra ex-estudante da UFRJ, da Escola de Belas Artes, Panmela Castro, 36, foi a criadora de uma ONG para mulheres gra teiras. Segundo o site o cial, a Rede NAMI é “uma rede feminista que usa as artes urbanas para promover os direitos das mulheres”. Uma de suas principais causas é o combate à violência contra a mulher. Jennifer Borges, 29, da comunicação da ONG, explicou que a NAMI tenta trabalhar com a prevenção da violência: “A nossa ideia é fazer com que as mulheres consigam reconhecer sinal de abuso antes da violência física”.


Por isso, um dos projetos da Rede é o “Gra ti Pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, idealizado pela Panmela, antes mesmo da criação da NAMI, mas que foi o pontapé para o surgimento da ONG. Nesse projeto, a rede oferece o cinas gratuitas de gra te em comunidades e escolas, que sempre são precedidas por uma palestra sobre questões de gênero, na qual discutem, entre outras coisas, a Lei Maria da Penha.

Panmela em frente ao seu mural no Boulevard Olímpico, no Rio de Janeiro /Foto: Instagram.com/panmelacastro

Além disso, a NAMI também tem um projeto para empoderar mulheres negras, o AfroGra teiras. Jennifer esclareceu que o objetivo é que essas mulheres “usem a arte urbana como uma ferramenta de comunicação, para que a gente pare de ter imagens de mulheres negras representadas por pessoas brancas e, dessa forma, reduzir um pouco o racismo”. Esses coletivos mostram que as mulheres são capazes de ser o que quiserem e que a arte pode, e deve, ser um meio de empoderamento feminino. Jennifer conseguiu resumir o objetivo dos grupos em uma fala: “As meninas que entram aqui saem mais cientes do lugar delas no mundo e, ao mesmo tempo, com talentos incríveis artísticos. Você se sente recompensado das duas formas”.


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