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Panorama: “Falar
da
ausência
de
Brevíssimos apontamentos sobre crítica de arte, mídia e cultura contemporânea
propalada ‘crise da arte’. (...)
por Paula Ramos
Entretanto,
crítica no Brasil, sobretudo no que
tange
às
transformou-se
artes em
visuais,
verdadeiro
clichê. Há pelo menos 30 anos este assunto é corrente no meio e, na esteira dele, como também não poderia deixar de ser, a tão
permito-me
fazer
algumas breves reflexões sobre o morno, para não dizer ausente panorama
crítico
contemporânea. retomo
algumas
na Para
mídia tanto,
percepções
gerais sobre o papel comumente atribuído à crítica.”
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Sumário da edição Nº00 Dez. 2008
1. Panorama >
Brevíssimos apontamentos sobre crítica de arte, mídia e cultura contemporânea – Paula Ramos
2. Artigos > O imaginário do Arroio Dilúvio – Maria Ivone dos Santos
3. Artigos > Entre intenções, maturações e recordações: as Bienais de Artes Visuais do Mercosul e a cidade de Porto Alegre – Bianca Knaak
4. Ensaios > Figura – André Dornelles Pares
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Panorama Brevíssimos apontamentos sobre crítica de arte, mídia e cultura contemporânea Paula Ramos
Falar da ausência de crítica no Brasil, sobretudo no que tange às artes visuais, transformou-se em verdadeiro clichê. Há pelo menos 30 anos este assunto é corrente no meio e, na esteira dele, como também não poderia deixar de ser, a tão propalada “crise da arte”. Ambos os temas dão “pano paras as mangas”, como indica a expressão popular, e não é meu objetivo, neste rápido texto, discuti-los. Entretanto, permito-me fazer algumas breves reflexões sobre o morno, para não dizer ausente panorama crítico na mídia contemporânea. Para tanto, retomo algumas percepções gerais sobre o papel comumente atribuído à crítica.
Mônica Zielinsky nos lembra que, quando a crítica moderna surge, com Diderot, no século XVIII, os visitantes dos salões de arte e potenciais compradores das obras buscavam nela um amparo para as suas escolhas. A crítica de arte era, portanto, atividade de um especialista, que determinava a circulação pública das obras, estabelecendo as relações entre a produção artística e o espectador/colecionador (ZIELINSKY, 2006). Por outro lado, na tradição em que se fundamenta, o trabalho desse mesmo especialista funcionaria, como define Jacques Leenhardt, de modo semelhante a uma pedagogia da sensibilidade. Aprendemos a ler e a escrever, mas não a olhar. E o crítico de arte sabe, ou deveria saber, apreciar cores, formas e linhas. E ele também deveria encontrar nessas mesmas cores, formas e linhas um significado especial e saber comunicá-lo, por meio da linguagem verbal. Dessa forma, o efeito visual seria acessível a todos, por meio do texto crítico, uma espécie de escola do olhar (LEENHARDT, 2000).
Esse papel de mediação, de ponte, manteve-se por muito tempo calcado na concepção generalista de uma capacidade desse especialista, digamos
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assim, de discernir, no universo das produções culturais – e, pontualmente, no das artes visuais –, as de grande qualidade. Mas, se os acertos da crítica acabam se diluindo no consenso comum, os erros são muitos, célebres e para sempre lembrados, vide o antológico episódio envolvendo a primeira exposição dos impressionistas, em 1874... A minha memória falha neste momento, mas inclusive alguém já escreveu que residiria aí o gérmen da paralisia da crítica na contemporaneidade: diante de uma avalanche de produções muitas vezes desprovidas de sentido, ancoradas na banalidade, e com receio não somente de errar, mas de passar à história como o crítico que não teve sensibilidade – olho – discernimento ou qualquer outra coisa que o valha, muitos teriam deixado de fazer textos mais analíticos, mais comentados, mais críticos, na sua essência.
Os “motivos” da neutralização da crítica, de um lado, e do raro espaço dedicado a ela nos meios de comunicação social, de outro, podem ser vários: desde as linhas editoriais adotadas pelas empresas de comunicação, passando pelo tamanho cada vez mais enxuto dos “cadernos de cultura”, bem como pelo despreparo dos jornalistas e desinteresse do público, entre muitos outros. Sendo, ou não, resultado dessa conjuntura, o quadro geral da crítica no Brasil todos conhecemos: no lugar da reflexão, o texto de serviço, indicando aberturas de exposições, horários de funcionamento, patrocinadores, quem fez o quê; no lugar da reflexão, a efemeridade da notícia; no lugar da reflexão, a coluna social, com direito a farto material fotográfico reproduzindo os sorrisos dos convivas durante o vernissage...
É evidente que há exceções a essa fórmula que parece ter assumido a condição de regra, mas o que temos vivenciado nos últimos anos é uma perversa transformação dos espaços jornalísticos tradicionalmente reservados aos assuntos “culturais e artísticos”. Tal território foi tomado pela volatilidade e pelo extraordinário, num fenômeno que ultrapassa o campo da comunicação, mas que, ao mesmo tempo, é potencializado nele. Ora, provavelmente nunca antes o homem viveu de modo tão espetaculoso e exibicionista. O estrondoso sucesso internacional dos reality shows e blogs, que midiatizam tudo, até
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mesmo os aspectos mais cotidianos e prosaicos da vida, reforça a percepção de que a sociedade contemporânea vive uma grande representação de si mesma. Nesse ambiente de aparências, de encenações e de fugacidades, a reflexão crítica, de qualquer ordem, é absolutamente necessária. Contudo, onde ela está?
A rede que se estabelece em torno das artes visuais não ficou imune a esse câmbio de valores e de comportamentos. E as bienais e mega-exposições nos mostram, cada vez mais, como o campo artístico encontrou na estética videogame e na caprichada cenografia aliados imprescindíveis na sedução de novos e jovens públicos. Nisso, pelo menos em princípio, não residiria qualquer problema; a questão é que esses aspectos muitas vezes suplantam a própria produção artística, tornando-se “o” fato artístico e desviando a já frágil atenção do público. A obra, em muitas situações, é mera coadjuvante.
Processo semelhante tem ocorrido em relação ao papel do curador. Quantas vezes a curadoria não se confunde com as obras... Isso porque talvez a curadoria tenha assumido outro posto: de verdadeira criação. É como se as obras estivessem ali para justificar uma idéia, um conceito, ou mesmo um delírio do curador. Poderíamos listar diversas exposições realizadas nos últimos anos, no Brasil, conhecidas, comentadas e fartamente citadas não necessariamente por causa dos artistas e das obras que delas participam, mas devido à proposta, ou ao nome do curador. Curador que, diga-se de passagem, quase sempre emerge do universo da crítica (quando ele não é um artista que, curiosamente, também participa da exposição, e em destaque! Mas esse já é assunto para um outro texto...). Trata-se, de fato, de uma nova função, articulada à lógica institucional das artes visuais na contemporaneidade e que difere daquela do crítico de antigamente, respaldado no discurso, na mediação. Nesse quadro, o curador muitas vezes se lança, como aponta Fernando Cocchiarale, a produzir questões quase sempre extra-estéticas, temáticas, que norteiem as exposições, que lhes emprestem sentido, ainda que provisório (COCCHIARALE, 2006). E aí podem surgir tanto propostas interessantes,
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instigantes e pontuais, como constrangedoras falácias, verdadeiros “sambas do crioulo doido”, sem contar os atentados visuais e intelectuais.
Uma vez mais, esse livre trânsito de personagens e funções não traria grandes conseqüências se houvesse, efetivamente, crítica. Todavia, como os atores são reduzidos, há não somente uma sobreposição de atuações, como uma espécie de protecionismo entre os pares. O resultado é que não se diz, não se escreve e não se comenta nada, até para preservar o colega e, também, porque nunca se sabe que novo papel ele poderá assumir no campo! E os interesses pessoais, nesse sentido, podem falar mais alto. Esse aspecto nebuloso por trás da falta de crítica nos jornais e revistas indica que tal dificuldade não decorre, apenas, de uma falta de interesse do publico ou das empresas de comunicação. Pior: ela é endêmica.
Essa mesma linha de pensamento nos leva a refletir sobre o texto crítico produzido para livros ou catálogos de exposições. Aliás, seria lícito chamá-lo de crítico? A dúvida se justifica quando pensamos que, ao ser convidado e pago a escrever, o profissional provavelmente não fará um artigo ou ensaio de caráter realmente crítico, mas sim de apresentação, de contextualização e que debata determinados aspectos da obra do artista, os que ele julgar mais apropriados. Como, nos últimos tempos – inclusive devido aos investimentos em cultura, decorrentes das leis de incentivo fiscal –, tem havido uma expressiva produção editorial voltada a esse segmento, somos convidados a acreditar que a crítica de arte não desvaneceu e que, pelo contrário, está até mais fortalecida!!! O que não faz esse incrível mundo de aparências!!!
As híbridas e polêmicas relações entre curadoria, crítica, artistas, instituições, mercado e, sim, público, têm fomentado profícuos debates, sobretudo no meio acadêmico. Entre tantos, porque muitas coisas mudaram, a começar pelo próprio conceito de arte... Nesse cenário em constante ebulição e
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carente de espaços de discussão, é admirável que um grupo de estudantes∗ tenha se organizado e desenvolvido, de modo corajoso e independente, este fórum público de diálogo em torno da arte contemporânea. Assuntos e temas para discutir, como sabemos, não faltam...
Referências:
COCCHIARALE, Fernando. Crítica: a palavra em crise. In: FERREIRA, Glória (Org.). Crítica de Arte no Brasil: Temáticas Contemporâneas.Rio de Janeiro: Funarte, 2006. LEENHARDT, Jacques. Crítica de arte e cultura no mundo contemporâneo. In: MARTINS, Maria Helene (Org.). Rumos da Crítica. São Paulo: Itaú Cultural; SENAC, 2000. ZIELINSKY, Mônica. A arte e sua mediação na cultura contemporânea. In: FERREIRA,
Glória
(Org.).
Crítica
de
Arte
no
Brasil:
Temáticas
Contemporâneas.Rio de Janeiro: Funarte, 2006.
∗
A idéia partiu de Alexandre Nicolodi e Denis Nicola, do curso de Artes Visuais da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mobilizados, de um lado, pelas querelas e polêmicas próprias do campo e, de outro, pelo total desconhecimento do que acontece em outras instituições de ensino superior na área de artes, e mesmo em cidades vizinhas a Porto Alegre (RS), Alexandre e Denis resolveram criar um site, este site. A proposta surgiu em abril de 2008 e, com a parceria dos colegas Gabriel Gageiro, Letícia Lampert, e André Pares em pouco tempo PANORAMA CRÍTICO ganhou forma.
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Artigos O imaginário do arroio Dilúvio nas imagens de imprensa e nas representações da arte – Maria Ivone dos Santos RESUMO: O presente trabalho dá continuidade à pesquisa iniciada em 2004. Nesta fase, discutiremos alguns exemplos de representações fotográficas do arroio Dilúvio em Porto Alegre, Brasil, focando nas transformações ocorridas em seu traçado desde a fundação da cidade. Observaremos as distinções entre as imagens realizadas por usuários deste entorno,as propostas desenvolvidas no projeto Fração Localizada: Dilúvio, as apropriadas por artistas e videastas e as produzidos pela mídia impressa que cobrem este contexto urbano. O problema que se coloca é o da sondagem do poder das imagens na mídia sobre um imaginário ideologicamente construído, o de observar como o mesmo contribui para a formação de uma idéia do lugar. Como as nossas propostas visuais e artísticas, as videocartas que realizei e sua exposição, abordam estas questões e o poder da arte neste tema?
Palavras-chave: Dilúvio, representação, entorno, objetivo, subjetivo.
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Ensaios Figura Por André Dornelles Pares
Figura, 1964, óleo sobre tela, 130 x 184 cm, coleção Gerard Loeb, SP
Iberê tem algo de pequeno. Não é segredo algum que tenha sido um rebelde; nem mérito, nem demérito. Foi um insatisfeito na medida da necessidade: do mundo, da vida; das condições de vida no mundo e das condições que o mundo oferece à vida. Tudo isto se vê em ‘Figura’, seu óleo sobre tela de 1964, como se observa desde as paisagens do mato de Jaguari na década de 40, até os idiotas ciclistas, de 90.
Ainda que uma rebeldia dessas possa ser poética, permanece algo de pequeno em Iberê. O museu, novinho e elegante, que abriga sua fundação, em Porto Alegre, não é grande. Iberê nasceu num lugar pequeno, morreu noutro, e viveu em volta de exigüidades como preços de tintas, hérnia de disco,
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movimentos mais políticos do que artísticos e outras desditas às quais teve que atender. À ninharia que lhe rondou sem trégua, respondeu com arte não sociologicamente engajada, mas humanamente construída, cuja conclusão e prenúncio, ao mesmo tempo, se sente em ‘Figura’. Pintura na qual se compreende a afirmação de Augusto Massi: “Na base do áspero individualismo de Iberê cresce um humanismo revoltado1”.
Em contato com a tela de tom marrom, que predominou na série Figuras, não há como não reafirmar que Iberê tem, foi, e segue tendo algo de menor toda vez que nos encontramos com ele. E talvez seja difícil admitir a sensação, tendo em vista o fetiche cultural em que se transformou seu nome, caso não se aceite o convite feito pelo artista, através da obra, para o desvelamento das certezas que trazemos para a apreciação. Quem chegar em Iberê seguro para honrarias e elogios, possivelmente terá que camuflar seu provável instantâneo desapontamento, ou se esforçar em conseguir manter um suspeito imediato maravilhamento. Porque o caminho inefavelmente sugerido pela ânsia do artista – que é o impregnado nos gestos que são a pintura – é o de volta, de re-volta, de mergulho e de sobressalto, de uma concentração que quase exige o compromisso. E não de instantaneidade.
Estar em frente à ‘Figura’ (como de resto à obra toda de Iberê Camargo) e não passar a se sentir responsável pelo o que ali está denunciado não é só não estar em frente à obra, mas ficar ao largo da essência do que se é. Pois se torna impossível não começar a descobrir o efeito do que ao contrário de pequeneza, é movimento. Há que se diferenciar: Iberê demonstra o pequeno para denunciar a pequeneza. Só percebendo a necessidade do recuo ao menor, que funciona como origem, é que poderia andar em direção a, ou construir, algo maior. E quando mover-se é a sugestão quase autoritária do quadro, a metáfora da origem extrapola: aquilo de pequeno, além de para onde se volta, é onde se está, ou para onde se vai. Sem se perceber assim, minúsculo, como a tela praticamente obriga, não é possível construir-se
1
Massi, Augusto. “Carretéis da Memória”, in Camargo, Iberê. Gaveta dos Guardados. SP: Edusp, 1998
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grande: busca incessante do artista, que se torna nossa busca ao sentir sua obra. Uma busca, no entanto, que pode ser simplesmente abortada pelo mundo fora da pintura, justamente por aquilo que ela estaria a denunciar. Segundo os curadores da exposição ‘Iberê Camargo, Moderno no Limite, 1914 – 1994’, Sônia Salzstein, Paulo Sérgio Duarte e Mônica Zielinsky, que inaugura o museu sede de sua fundação, o pintor combatera essencialmente uma massificação cultural contra a qual a arte deveria exercer seu papel. No texto que abre a exposição, salientam os curadores que o artista teria respondido à grande viravolta cultural do século XX com “ceticismo perante o vertiginoso progresso tecnológico que já não parecia capaz de emancipar forças criadoras”, e principalmente com “a pergunta, posta sem trégua em sua obra, sobre a excepcionalidade da experiência da arte em uma sociedade cujos rumos se viam cada vez mais marcados por uma hegemônica cultura de massa”. Curioso, então, foi perceber que a tela que abria, no foyuer, a exposição (ou que a fechava, já que a mostra começa no quarto andar) foi retirada em função de um programa de televisão local.
Que pequena tela, com motivos menores e acabrunhados teria inventado Iberê para responder ao fato?
Mais curioso ainda, depois de perceber o desaparecimento da tela, é notar o permanente cuidado na advertência ao se entrar no museu com uma máquina de fotografia: ‘sem flash’, solicita-se. A câmera fotográfica é um aparelho técnico que foi incorporado pelos processos de comunicação de massa, que se valem dela para comunicar, no sentido de noticiar – embora haja, ainda, graças à hibridez da fotografia, e mesmo na era da foto digital, muitos fotógrafos que são artistas, e não comunicadores. A televisão não. Não é um meio no qual ainda se possa fazer arte – pelo menos não uma arte que tenha a chance de não ser midiatizada, pois a função essencial da transmissão (e produção) televisiva é comunicar, o que inevitavelmente engendra sua linguagem no grau do instantaneamente entendível, isto é; sem percalços de expressão: pouco mais que o didático pode ser a ruína de um meio de natureza
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necessariamente massiva. A produção televisiva, também, em outra oposição à máquina fotográfica, em ambientes fechados invariavelmente não funciona sem iluminação artificial. Se a arte de Iberê, portanto, ganha de um outro artefato artístico, pois as câmeras fotográficas obedecem à proibição do flash; perde para o artefato tecnológico comunicacional, pois a televisão, intrusa num ambiente de arte, por causa da luz proibida à fotografia mas obrigatória ao seu funcionamento, expulsa – materialmente! – a tela de seu habitat natural e necessário; o museu, sob a tenaz justificativa – que a tevê faz com que a própria instituição artística anuncie! – de proteger a obra.
Será que nem a “excepcionalidade da experiência da arte” clamada por Iberê e conclamada pelos curadores em palavras talhadas na parede do próprio museu foi capaz de frear os rumos de uma sociedade “cada vez mais marcada por uma hegemônica cultura de massa”? Quando as lógicas institucionais do campo da arte sucumbem às do campo midiático, não só desaparece de seu lugar de direito (e sagrado) a principal obra de uma exposição fundamental (como se fosse pouco): passa-se a tornar inócua toda a função do campo sucumbido – que não se resume somente às obras, obviamente. Como ficaria a ferrenha idéia defendida por Mônica Zielinsky – que não é ninguém menos do que a ‘curadora permanente’ de Iberê – de que a mediação midiatizada (da arte) faz o indivíduo “ressentir-se desse contato primeiro da experiência dos fatos, ao mesmo tempo em que incorpora o material simbólico midiático”2, diante da consciente retirada da tela mais importante da exposição para que o programa de tevê fosse transmitido? Se a afirmação da teórica e crítica não fica simplesmente desmoralizada perante o fato, nem fica: inexiste.
Porque não foi qualquer pintura expulsa do museu e da exposição que ela em si sintetiza: trata-se de uma tela da série Núcleos. Difícil saber qual dos núcleos, perante a falta de informações (e quando presentes, desencontradas),
2
Zielinsky, Mônica. “A arte e sua mediação na cultura contemporânea”, in Ferreira, Glória (Org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. RJ: Funarte, 2006
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dias depois do sumiço da obra3. Seja como for, um Núcleo de Iberê Camargo, como única obra no andar térreo, localizada – num cavalete! – ao lado do título da primeira exposição do museu, provavelmente não estava ali por mero acaso: foram os núcleos que, no mínimo, jogaram Iberê ao ‘limite’ mencionado no título da mostra. Sônia Salzstein, em texto que refere a década de 60 como um marco na obra de Iberê Camargo4 (os núcleos começam a surgir a partir 1963, mas em 1965 é que eclodem), afirma que nessa época o artista preocupava-se com a ameaça dos imperativos do mundo da cultura ao horizonte da experiência estética: “as violentas estocadas na tela, a tangenciar permanentemente o informe, manifestavam uma posição ativa e influente nesse contexto (do triunfo da vulgaridade da indústria cultural)”. O Núcleo (‘II’, ou ‘em expansão’, seja qual deles estivera presente) não é nada mais do que o retrato desta “atitude indignada” tão pequena de Iberê, que se faz grande cada vez que acessada, in loco, com os olhos e o sentimento diretos nos sulcos do óleo da tinta. O pior de sua retirada em prol da tevê, bem mais que uma simples derrota tardia, é a plena indiferença da quotidiana aceitação do ocorrido, por uma sociedade anestesiada, a qual Iberê esperava ressuscitar com a excepcional experiência da arte.
Em ‘Figura’, de 1964, – não desaparecida da exposição – está o núcleo dos Núcleos. Mesmo que em 1963 já haja uma tela de 65 x 92 cm denominada Núcleo, é depois da ‘Figura’ que acontece a grande virada do pintor. Ferreira Gullar cita um “progressivo afastamento da realidade objetiva”5 que vai fazendo com que os carretéis comecem a se desprender no ar – fase
que Paulo
Venâncio Filho introduz como ‘Forma rompida’6, tal o título de telas de 1960 e 64. Ambos críticos contextualizam um pós-cubismo na arte de Iberê, que ruma à abstração. Entretanto, pareceria simples dizer que o artista apenas deixa o figurativo e parte para o abstrato, como lembra Gullar. Clareia o crítico o que 3
A exposição ocorre de 31.05.08 a 31.08.08. A tela foi retirada no dia 12.06.08.
4
Salzstein, Sônia. “Anos 60/ Um marco na obra de Iberê Camargo”, in Salzstein, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. SP: Cosac & Naify, 2003.
5
Gullar, Ferreira. “Do fundo da matéria”, in Salzstein, Sônia. Diálogos com Iberê Camargo. SP: Cosac & Naify, 2003.
6
Venâncio Filho, Paulo. Paulo Venâncio Filho / Iberê Camargo. RJ: Fundação Iberê Camargo, 2003
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isso significa, no universo de Iberê, e da pintura: afastar-se do figurativo é não poder se valer mais dos seus recursos. Trata-se, pois “de uma experiência complexa que implica romper com o sistema de referências que habitualmente mantemos com a realidade e que nos protegem do caos: substituir uma ordem existente por outra que há de surgir no próprio ato de pintar é uma audácia a que nem todos se aventuram”. Tirar a mesa de baixo dos carretéis, pois, não apenas lançou-os ao espaço, mas, os transformado em estruturas dinâmicas, passou a rompê-los em busca de sua origem e de sua nova forma, inesgotável movimento paradoxal do pequeno ao grande e vice versa, sem o qual Iberê não seria um artista. Se Iberê nomeou o que já era abstração de ‘Figura’ é porque sabia que ela ainda não era o suficiente para o “irreversível processo de afastamento da natureza e busca de formas autônomas da pintura”7. O Núcleo – desaparecido da exposição cuja unidade só poderia se dar por ele –, no qual o pintor ainda não chegara, era o ponto culminante de uma “tendência a buscar a coerência interna do quadro como linguagem em detrimento das referências ao mundo exterior”. Por isso ‘Figura’ é tão importante; porque nela “a linguagem da pintura reivindica o privilégio de submeter a realidade às suas leis”, como salienta Gullar. Realidade que se prepararia em ‘Figura’ para se transformar em pintura nos Núcleos, telas nas quais as leis próprias do quadro são um grito estrondoso de emancipação, não casual, muito menos de uma gratuidade da pintura pela pintura como poderíamos pensar sobre um action paiting. A violência absolutamente cuidada na qual resulta a pintura premente de ‘Figura’ e presente nos Núcleos é de uma função quase mais social que artística, ainda que – mas talvez justamente por isso – Iberê fosse muito mais humanamente do que socialmente engajado. Privar a exposição do Núcleo símbolo desta postura não é ofender a sociedade destinatária nem o artista remetente, é desligá-los um do outro e desligar-se deles; se em prol de um processo cultural massivo, é feri-los, e abandoná-los.
7
F. Gullar. op. cit.
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É conseguir, sobretudo, não prestar atenção às feridas expostas em ‘Figura’ a retratar a confusão que é também o próprio descaso humano com aquilo que deveria cultivar. Na pasta remexida provocadora de uma ambigüidade tão ingênua quanto a lembrança de doce de leite e fezes concomitantemente, estão pessoas escondidas confusas e à espreita, na perfeição geométrica que chega a invocar a forma vegetal de uma art nouveau rudimentar ao mesmo tempo em que levada ao extremo, dentro de um envelhecimento com vida que os raros pontos vermelhos fazem pulsar, num retorcido liso que é o próprio mar, visto de cima, do mesmo modo que simultaneamente se apresenta como uma maquete do organismo vivo que é a terra. Uma vida que aponta para nós, que quer nos pegar e nos rechaça em seguida. Uma Figura de milhares de figuras que se oferece e se esconde. Vai do pequeno ao grande, do engrandecimento ao apequenamento num movimento incessante de cima para baixo, de um lado a outro, de dentro para fora e de fora para dentro. Tudo ainda emoldurado – diferente dos Núcleos, que extrapolam a moldura – por uma fina margem plana, fornecedora de uma proteção metálica, dentro da qual Gullar diz a forma central parecer ter sido “soldada a solda elétrica, deixando em volta da figura as rebarbas do eletrodo derretido”.
A exacerbação de códigos e de significados em ‘Figura’, que pela polissemia total, mesmo que praticamente monocromática, simboliza tudo e nada é a erupção ainda concentrada; uma preparação. Na explosão seguinte dos Núcleos é que o pintor desce “ao magma ardente onde as formas se formam, numa experiência radical desconhecida na arte brasileira”. Nesta atitude, conclui Ferreira Gullar, “Iberê conquistara afinal tal integração entre expressão e linguagem”.
Não como prêmio nem como prova, mas feito pura matéria de um processo que nada mais é que o trabalho do artista, esta fase parece ter colaborado fundamentalmente no que Iberê se transformou. Os carretéis voltam depois das corrupções das figuras e dos núcleos expandidos, mas o espírito e a mão que os geram são outros: há quase graça (nos anos 70) para
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culminar em solidão (nos 90), após a explosão. O reaparecimento da transfigura humana, mais de uma década depois, parece também ter sua dívida com o estouro do meio dos anos 60. Iberê já pode ser pequeno mais sossegado porque sente com menos pressa agora que aí está uma indicação da grandeza perseguida. No ápice do exercício lugrubemente radioso que é ‘Figura’, forja-se com a pujança que seria a liberdade seguinte o artista em que se transformou Iberê. Aquele que prefere ser um verme, mas ser ele mesmo, que ludicamente se define como “caminhante solitário”8. O senhor de si que ao recusar à política que ditava a arte no Clube da Gravura gaúcho do meio século passado, cava seu próprio caminho no fundo do rio.
E que fica na memória de outra artista cuja violência e paixão são o germe de sua arte. Na escolha de Karin Lambrecht das expressões de Iberê que ela invoca para defini-lo, estão frases – nem telas, nem gravuras: “Preciso de uma coisa que me faça crescer, que me leve além da minha animalidade. Eu queria ser mais do que sou. (...) É uma ousadia, um atrevimento querer fazer o que estou fazendo. E com toda a minha precariedade. (...) Eu só tenho um ofício. Só tenho um minuto e acabou. Mas nesse minuto eu quero ser grande”9. Para ser grande, Iberê sabe que é urgente mover-se, que a grandeza está em oferecer o caminho de saída do pequeno na pele de um processo de busca. É assim que se engrandece toda a vez diante dos nossos olhos, sem que percebamos o momento em que os traços deixam de ser rabiscos de tinta para virarem nossa própria condição humana no único mundo que conhecemos. Iberê quis mostrar tal experiência sua vida inteira. Por isso é pequeno ainda toda a vez: para (nos fazer) descobrir a grandeza que é o próprio ato desta descoberta, ainda que efêmero – fugidio tal a própria experiência estética.
8
Lagnado, Lisette. Conversações com Iberê Camargo. SP: Iluminuras, 1994.
9
Lambrecht, Karin. “Iberê Camargo, lembranças”, in Salzstein, Sônia (org.). Diálogos com Iberê Camargo. SP: Cosac & Naify, 2003, (citando depoimento de Iberê a Augusto Massi no caderno Mais, da Folha de São Paulo, em 20 set. 1992)
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Não precisa, no entanto, tanta ajuda para apequenar-se. Numa cidade em que a recepcionista da prefeitura não sabe que o subsolo do prédio é uma galeria de arte e diz ‘pode ver isso aí atrás’, referindo-se à outra exposição na sala do lado, não é de se espantar que uma reles tela a óleo devesse mesmo ter que ser mandada ao almoxarifado se atrapalhasse os imponentes refletores da inquestionável televisão. Deixar seu legado num lugar em que isso ainda ocorre pode ter sido o último gesto furioso de Iberê. Resta a nós movermo-nos de nossa pequeneza.
Da esquerda para a direita, no sentido horário: Vista interna do Museu da Fundação Iberê Camargo; ao lado esquerdo do título da exposição, no andar térreo, o vazio deixado pela retirada da tela. Núcleo em Expansão, 1965, óleo sobre tela, 153x 217 cm, IMS – coleção Unibanco SP. Núcleo, 1965, óleo sobre tela, 150 x 212 cm, coleção Christóvão Moura RJ
Bibliografia: Camargo, Iberê. No andar do tempo. Porto Alegre: LPM, 1988. Appel, Myrna Bier. Masina, Léa. Geração de 30 no Rio Grande do Sul, Literatura e Artes Plásticas. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000.
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Expediente
Editores
Alexandre Nicolodi Artista Plástico graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em Escultura. Vive em Porto Alegre.
Denis Nicola Artista Plástico, Publicitário e Fotógrafo. Graduado em Comunicação Social/Publicidade e Propaganda pela PUCRS e em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Vive em Porto Alegre.
Jornalista
André Dornelles Pares Jornalista e Filósofo licenciado. Graduado em Comunicação Social/Jornalismo pela Unisinos e Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Vive em Porto Alegre.
Conselho Editorial
Paula Viviane Ramos Jornalista, crítica de arte e pesquisadora. Mestre e Doutora em Artes Visuais, ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte (UFRGS, 2007). É professora junto ao Centro Universitário Ritter dos Reis e à UFRGS. Desenvolve pesquisa sobre arte moderna, arte contemporânea e artes gráficas. Vive em Porto Alegre.
Maria Ivone dos Santos Artista plástica, doutorada em Artes Plásticas na Universidade de Paris I, Panthéon Sorbonne em 2003. É professora no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS e integra o Grupo de Pesquisa: Veículos da Arte. Coordenadora do Programa de Extensão Universitária do DAV Formas de Pensar a escultura – Perdidos no espaço. Vive em Porto Alegre. PanoramaCrítico | ISSN 1984-624X | Edição #00 Dezembro 2008
PanoramaCrítico #00 – Dez. 2008
Paulo Gomes Artista plástico, curador independente e professor no Uniritter. Mestre e Doutor em Artes Visuais – História Teoria e Crítica pela UFRGS. Gerente Artístico da Galeria ECARTA. Desenvolve pesquisa na área de Poéticas Visuais, sobre arte contemporânea e arte no Rio Grande do Sul. Tem textos publicados em livros, revistas e jornais.
Neiva Maria Fonseca Bohns Professora adjunta do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pelotas. Mestre e Doutora em Artes Visuais - História, Teoria e Crítica de arte pela UFRGS. Professora de Arte Contemporânea, História da Arte no Brasil, História da Arte no Rio Grande do Sul e Metodologia da Pesquisa em Artes Visuais. Desenvolve pesquisa sobre arte contemporânea no Brasil e arte no Rio Grande do Sul. Atua como crítica de arte e curadora de exposições de arte contemporânea. Membro do Conselho Curatorial da Fundação Vera Chaves Barcellos. Tem textos publicados em livros, revistas e outros veículos especializados.
Colaboradores
Gabriel Karasek Artista plástico e web designer de Porto Alegre. Graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente morando em São Paulo onde trabalha na www.cubo.cc. Mais informações em www.gkarasek.com.
Letícia Lampert Artista plástica, designer gráfica, web designer e fotógrafa, Vive e trabalha em Porto Alegre. Formada em Desenho Industrial/Programação Visual, pela Ulbra, é graduada em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na ênfase em fotografia. Mais informações e portfólio em www.leticialampert.com.br.
Angela Cagliari Artista plástica graduada pelo Instituto de Artes da UFRGS com ênfase em Fotografia. Vive e Atua em porto Alegre. Recebeu prêmio do British Council para intercâmbio acadêmico na Inglaterra em 2007.
PanoramaCrítico | ISSN 1984-624X | Edição #00 Dezembro 2008
PanoramaCrítico #00 – Dez. 2008
Roberto Muniz Graduado em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ênfase em desenho. Há muitos anos trabalha com desenvolvimento web e publicidade on-line.
Adreson Artista ...
... E todos aqueles que contribuíram, e contribuem das mais diversas maneiras, para a publicação dessa revista.
PanoramaCrítico | ISSN 1984-624X | Edição #00 Dezembro 2008
PanoramaCrítico #00 – Dez. 2008
“Um espaço público para o intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca da produção artística contemporânea..." Mesmo com a produção artística contemporânea vivendo um período de grandes realizações, são muitos os teóricos que analisam o período a partir da óptica de uma "crise da arte", ou mesmo do "fim da arte". Esses mesmos intelectuais reconhecem que, se existe crise, parte importante dela deve-se à escassez de material crítico. De fato, foi-se o tempo em que se podia encontrar crítica de arte em jornais e revistas, os meios tradicionais para esse e outros tipos semelhantes de manifestação... Hoje, o exercício da crítica, notadamente da crítica de arte, parece ter encontrado lugar nos ambientes acadêmicos. No entanto, será que essa estratégia não estaria restringindo ainda mais a reflexão sobre arte, sobretudo sobre arte contemporânea, a círculos de iniciados no assunto? Foi pensando nessas e em tantas outras questões que criamos a revista PanoramaCrítico. O nosso objetivo é disponibilizar um espaço público para o intercâmbio de idéias e ações, por meio de textos críticos e reflexivos acerca da produção artística contemporânea, brasileira e internacional. PanoramaCrítico também tem como objetivo possibilitar a troca entre instituições, acadêmicas ou não, que tem algum tipo de atuação voltada ao campo. Assim, o site se coloca como um espaço para a divulgação de atividades, eventos, cursos e palestras na área. Isso significa que estão todos convidados a participar!
PanoramaCrítico
é uma publicação bimestral.
Acesse: www.panoramacritico.com
PanoramaCrítico | ISSN 1984-624X | Edição #00 Dezembro 2008
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