Artigo sobre processamento de peixes de água doce da edição de julho agosto de 1997

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Panorama da AQÜICULTURA, julho/agosto, 1997

O Processamento

de Peixes de Água Doce A sub-utilização dos produtos da pesca e a falta de diversificação da indústria processadora de pescado, são grandes problemas relacionados com o aproveitamento dos recursos pesqueiros, seja de origem marinha ou de águas doces continentais. A falha da indústria processadora em oferecer produtos de conveniência, de fácil preparo e diversificados, é um dos fatores relacionados ao baixo consumo de pescado no Brasil e no mundo. O incremento cada vez maior da produção oriunda da aqüicultura, incentivado pela estagnação dos recursos pesqueiros marinhos e pelo aumento da demanda por produtos aquáticos, está tornando possível um grande avanço relacionado a tecnologia de produção das diversas espécies dulcícolas. Muitas universidades brasileiras passaram a estudar as espécies nativas e exóticas, dando ênfase a trabalhos relacionados à biologia e aos aspectos zootécnicos como a alimentação, manejo, reprodução e melhoramento genético. No entanto, paralelamente, pouco tem sido feito em ralação ao aproveitamento racional pós-abate, processamento e desenvolvimento de produtos a partir dessas espécies. Podemos tomar como exemplo, a tilápia nilótica Oreochromis sp., uma das espécies mais estudadas atualmente no Brasil, com rápido avanço tecnológico em termos zootécnicos, em virtude da grande expansão dos cultivos comerciais e a conseqüente demanda de conhecimento por parte de técnicos e piscicultores. Entretanto, caso haja um grande aumento da produção destinada a indústria, esse pescado encontrará um parque despreparado para implementar novas tecnologias de processamento que possam inovar e agregar mais valor, obtendo um produto diferenciado e competitivo.

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Tilápia Nilótica:

Processamento e desenvolvimento de novos produtos

A tilápia nilótica, introduzida no Brasil em 1972, vem sendo cultivada em algumas regiões com grande sucesso. Segundo dados da EMATER/PR, somente na região Oeste do Estado do Paraná, em 1996, a área em lâmina de água era de aproximadamente 2.000 ha, com cerca de 4.000 produtores rurais envolvidos economicamente na piscicultura. A mesma região conta com cerca de 22 unidades de processamento de pequeno e médio portes e algumas artesanais, todas destinadas a produção de filés. A capacidade diária de abate chega a 25 toneladas, totalizando 6.120 toneladas por ano. Na prática, observando-se a maioria dessas unidades de transformação, constata-se o emprego de baixa tecnologia de processamento, com sérios problemas desde o abate, manipulação, congelamento e distribuição do produto no mercado, o que compromete seriamente a qualidade dos filés, que passam a ter curto tempo de vida na prateleira. Rendimento da Tilápia Nilótica A partir de tilápias com peso médio de 380 gramas, chegou-se ao seguinte rendimento da parte comestível e dos resíduos oriundos da filetagem, apresentados abaixo.

PEIXE INTEIRO (100%)

Filés (33%)

Resíduos da filtagem (67%)

Carcaça (18,5%)

Cabeça, vísceras, pele e nadadeiras (48,5%)

Ossos (9%)

Carne recuperada da carcaça (9,5%)

Rendimento da parte comestível e dos resíduos oriundos do processamento da tilápia nilótica (Fonte: MARCHI, 1997 - Tese Mestrado).

Com relação à parte comestível, foi obtido um rendimento na forma de filés de 33% e um grande percentual (9,5%) de carne remanescente nas aparas e no esqueleto após a filetagem, que pode, por meio de processos mecânicos, ser recuperada, podendo elevar, de acordo com os resultados, para 42,5% o rendimento. Este residual de carne, que poderia ser destinado à produção de polpa, ainda é, na sua maioria, descartado pela indústria, muitas vezes por não haver tempo hábil para sua triagem, lavagem, conservação frigorificada, extração e congelamento, ou até mesmo pela falta de equipamento, como despolpadoras mecânicas, que facilitem o processo. Atualmente, grande parte deste material se destina à produção de farinha de peixe, que possui baixo valor de mercado.

Alternativas de processamento Além da produção de filés, pode-se viabilizar na indústria, alternativas promissoras como a produção de polpa ou até mesmo a produção de pasta básica de pescado, também chamada de surimi. Estas matérias-primas semi-elaboradas, podem ser utilizadas no preparo de formulações alimentícias de alto valor nutricional e de grande aceitação no mercado. Estudos mostraram que é possível o aproveitamento racional desses recursos, que podem incrementar consideravelmente a atividade piscícula no Brasil e, certamente, vem de encontro ao atendimento da diversificação dos produtos à base de peixe. Produção da polpa de pescado: O advento da máquina de desossar tornou possível a utilização de diversas espécies de peixe pela indústria, para produção de músculo de peixe desossado e moído, que pode ser usado como matéria-prima para diversos fins, a exemplo da polpa de pescado, utilizada em formulações alimentícias. No entanto, a utilização de espécies de peixes de água doce para esta finalidade, ainda é pouco estudada, além da sua pouca aplicação comercial. A polpa de pescado pode ser definida como sendo o músculo integral, mecânica ou manualmente obtido pela separação de espinhas, ossos e pele. As principais vantagens de utilizar a polpa de pescado em relação ao pescado filetado, são a diminuição dos custos pelo maior rendimento em carne, a possibilidade de aproveitamento de diversas espécies e a vasta linha de produtos que podem ser comercializados como fishburger, nugget, salsichas, empanados, bolos pasteurizados e enlatados, patês, tirinhas de peixe (fish stick) e mesmo, os concentrados protéicos. A polpa, utilizada como matéria-prima na elaboração de algumas formulações, já está, inclusive, sendo comercializada em diversos municipios brasileiros, visando atender à merenda escolar, com excelente aceitação. Os desperdícios de carne devido à filetagem e à padronização de filés são da ordem de 20 a 30% do pescado bruto e estes descartes poderiam ser aproveitados na produção de polpa. No entanto, essa técnica exige maiores cuidados na manipulação, quanto à higiene, aos equipamentos e ao processo propriamente dito, necessitando acompanhamento técnico e treinamento dos manipuladores. Quanto aos aditivos incorporados à polpa antes do congelamento, recomenda-se o uso de polifosfatos (0,5 a 1% p/p), com a finalidade de diminuir o drip, proporcionando ao produto maior capacidade de retenção de água (CRA). Produção do Surimi Com o advento da técnica para estabilizar a polpa de pescado durante o congelamento, por meio de substâncias crioprotetoras (sacarose e sorbitol), tornou-se possível armazenar blocos de músculo de peixe moído e lavado a baixas temperaturas, sem alterações nas qualidades necessárias à produção de gel de alta qualidade. Esta propriedade funcional permite com que o surimi seja utilizado na elaboração de produtos que imitam frutos do mar como o camarão, a lagosta, o caranguejo, etc... No Japão, a técnica de produção de surimi é muito antiga, representando uma etapa intermediária utilizada na fabricação de kamaboko, definido como gel de pescado. Recentemente, esta tecnologia tem despertado grande interesse na indústria de alimentos 39


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dos Estados Unidos e do Canadá e começa a despertar interesse dos países latino-americano, como a Argentina e o Chile. Os maiores consumidores de surimi são o Japão, a Coréia e os Estados Unidos. Somente o Japão importou, em 1990, cerca de 436.000 toneladas e produziu em torno 248.000 toneladas de surimi e 829.000 toneladas de produtos à base de surimi. Todo esse interesse pela técnica de produção de surimi se dá pelas inúmeras vantagens que o processo oferece. Entre elas, podemos destacar a longa vida-de-prateleira sob congelamento (estimada em seis meses a um ano) e a ótima qualidade nutricional, sendo considerado um ingrediente protéico altamente funcional. Observa-se também que a tecnologia permite sua produção em larga escala, podendo ser elaborado a partir do surimi, um grande número de produtos de alto valor agregado. Além dessas vantagens, a produção do surimi possibilita a criação de um complexo de indústrias integradas ao sistema, como a indústria de ingredientes, de flavorizantes e o próprio incremento da indústria pesqueira e aqüícola. Fabricação Atualmente, tem aumentado o número de estudos que visam o aproveitamento de diversas espécies para a produção de surimi, com especial interesse nas espécies de água doce. Basicamente, o surimi é produzido mediante lavagens repetidas do músculo de peixe triturado com água à temperatura de 5 a 10 ºC, cuja finalidade é a remoção de componentes indesejáveis, como gordura (removidas por floculação), pigmentos, substâncias odoríferas, óxidos de trimetilamina (OTMA) e da maioria das proteínas sarcoplasmáticas.

O processo de lavagem converte a polpa com alta pigmentação e forte sabor em uma massa altamente funcional, levemente colorida e insossa, que adquire notável propriedade de ligar-se à gordura e à água, proporcionado uma textura firme e elástica nos alimentos elaborados. A lavagem do músculo de peixe deve ser efetuada até que se obtenha uma pasta macia, levemente pigmentada e com alta concentração de proteínas miofibrilares. Recomenda-se o uso de três a cinco lavagens, na proporção de três ou quatro partes de água para uma de músculo, como o mais adequado para remoção das substâncias indesejáveis. Cada lavagem deve ser feita sob agitação lenta e constante, por um tempo não superior a nove minutos. Este tempo não deve ser excessivo, para que não ocorra o favorecimento da hidratação protéica, dificultando a posterior remoção da água. A água em excesso é, então, eliminada por prensagem ou centrifugação, obtendo-se um conteúdo final de água no músculo de 80 a 82%, correspondente ao conteúdo de umidade da carne de peixes magros. A seguir, o músculo prensado é então peneirado para a retirada de possíveis restos de ossos, antes da adição dos aditivos crioprotetores. Algumas substâncias de natureza diversa, chamada de crioprotetores, podem ser misturadas à polpa lavada de pescado, com a finalidade de estabilizá-la no congelamento. Uma das substâncias freqüentemente usadas é a sacarose, que inicialmente era adicionada em nível de 10%, mas em razão do seu acentuado sabor doce e do escurecimento causado no produto, parte foi substituída pelo sorbitol, substância de menor doçura. A sacarose e o sorbitol, tipicamente misturados em nível de 8%, na proporção de 1:1, são os principais crioprotetores adicionados no surimi. Experimentação O trabalho descrito a seguir, foi desenvolvido no Departamento de Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal de Viçosa, nos anos de 1996/1997. O estudoconsistiu no desenvolvimento de produtos obtidos de polpa e surimi, produzidos a partir de tilápias nilóticas, para tese de mestrado. Após a captura, os peixes passaram por um processo de depuração em água corrente, em que permanecem por um período de 48 horas, sendo, em seguida, abatidos e processados em produtos semi-elaborados, como a polpa e o surimi. Para produção de polpa, o músculo separado foi triturado e adicionado de 0,5% de tripolifosfato de sódio, sendo, em seguida, estocado sob congelamento a 20C, por um período de 70 dias. Parte do músculo moído foi também utilizado na produção de surimi, o qual submetido a três ciclos de lavagens com água a 10C, para retirada de substâncias odoríferas, pigmentos, gordura (por floculação) e proteínas sarcoplasmáticas. Após a prensagem do músculo lavado, foram adicionadas as substâncias crioprotetoras: sacarose 3%, sorbitol 4% e polifosfato de sódio 0,2% e, em seguida, foi congelado nas mesmas condições dadas à polpa. A composição centesimal da polpa apresentou valores de 78,0% de umidade, 19,0% de proteínas, 1,85% de lipídios e 1,5% de cinzas, variando, em relação à matéria-prima, apenas no teor das cinzas, em virtude da adição de polifosfato. Já a composição química do surimi foi bastante alterada em função do processo de obtenção, apresentando valores de 77,6% de umidade, 15,6% de proteínas, 1,0% de lipídios e 0,3% de cinzas. Ao final do processo de produção do surimi, obteve-se um produto de cor esbranquiçada, odor suave e de sabor ligeiramente adocicado, em decorrência da adição das substâncias crioprotetoras.

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Quanto à capacidade formadora de gel do surimi, verificou-se, pelo teste da dobra, a formação de um gel extremamente elástico, classificado no grau AA (pontuação 5), o que revela a alta qualidade e a estabilidade do produto após o período de estocagem sob congelamento. O gel formado pode ser visualizado na foto superior da página 38. A estabilidade do surimi e a efetividade das substâncias crioprotetoras foram também evidenciadas por meio da determinação do exsudado ou drip, já que, após o período de armazenamento, não foi constatada a formação de exsudado no decorrer do processo de descongelamento. No caso da polpa, mesmo com a adição de polifosfato, ocorreu a formação de exsudado na proporção de 8,2% (v/p) possivelmente ocasionado pelos danos nos tecidos e pela desnaturação protéica, ocorridos durante o congelamento. As análises químicas de pH, BVT (Bases Voláteis Totais), bem como as microbiológicas realizados na polpa e no surimi após o período de estocagem, revelaram valores que estão de acordo com a legislação para peixes congelados, portanto próprios para consumo humano. A polpa e o surimi produzidos serviram como matériaprima na elaboração de produtos de conveniência semi-prontos. À base de polpa elaborou-se um produto que é conhecido como nuggets de peixe empanado, como pode-se visto na foto do meio da página 38. Da mesma forma, à base de surimi, elaborou-se um produto moldado análogo a camarão-empanado, que pode ser visto na foto de baixo na página 38. As formulações dos produtos desenvolvidos à base

de polpa e surimi, estão apresentando no quadro abaixo. De acordo com a composição química de cada formulação, determinada antes após o preparo dos pratos, verificou-se que tais formulações apresentaram teores elevados de proteínas de 13,7% para o produto imitação de camarão e de 18,7% para o nuggets de tilápia. Os produtores desenvolvidos foram avaliados sensorialmente e sua aceitabilidade foi comparada com produtos similares dentro de cada categoria, comercializados no Brasil. Verificou-se, com base nas respostas dos provadores, que tanto os nuggets de peixe como a imitação de camarão, ambos elaborados a partir da tilápia, foram preferidos sensorialmente (P<0,05) em relação aos produtos comerciais. Da mesma forma, o filé de tilápia foi analisado sensorialmente e sua aceitabilidade foi comparada com o filé de merluza, uma espécie muito consumida no Brasil. Analisando os resultados, foi detectada a preferência significativa (P<0,05) pelo filé de tilápia, ficando esta situada no termo hedônico gostei muito. Portanto, pode-se concluir que a tilápia nilótica possui grande potencial no que se refere ao seu processamento industrial, sendo viável à produção de polpa e surimi, matérias-primas de alto valor nutricional e funcional, que podem ser utilizadas no desenvolvimento de diversas formas de produtos de conveniência. Por João Francisco Marchi, Eng. agrônomo e Mestres em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela UFV. É extensionista da EMATER em Campo Mourão- PR.

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