Sobre coisas que aconteceram comigo (preview)

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Sobre coisas que aconteceram comigo



Marcelo Matthey

Sobre coisas que aconteceram comigo

Tradução Rafael Gutiérrez Antonio Marcos Pereira Diogo de Hollanda


© Marcelo Matthey, 2019 © Papéis Selvagens, 2019

Coordenação Coleção Archimboldi Rafael Gutiérrez, Antonio Marcos Pereira e Rodrigo Rosa

Tradução Rafael Gutiérrez, Antonio Marcos Pereira e Diogo de Hollanda Revisão Diogo de Hollanda

Capa, projeto gráfico e ilustrações internas Ana Vizeu Ilustração do autor na orelha Melissa Mendes Vogelgsang Diagramação Papéis Selvagens

Conselho Editorial Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP) Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá) Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ) Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Matthey, Marcelo, 1959Sobre coisas que aconteceram comigo / Marcelo Matthey; tradutores Rafael Gutiérrez, Antonio Marcos Pereira, Diogo de Hollanda - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2019. 108 p. : 16 x 23 cm - (Archimboldi; v. 5) ISBN 978-85-85349-11-0

1. Ficção chilena. 2. Literatura chilena - Romance. I. Gutiérrez, Rafael, 1975-. II. Pereira, Antonio Marcos, 1970-. III. Hollanda, Diogo de, 1978-. IV. Título CDD Ch863

[2019] Papéis Selvagens papeisselvagens@gmail.com papeisselvagens.com




Sumรกrio

Escrevi tudo isso entre dezembro de 1987 e marรงo de 1989 Sobre coisas que aconteceram comigo Entrevista com Marcelo Matthey

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Escrevi tudo isso entre dezembro de 1987 e marรงo de 1988



Dezembro ou janeiro Não coloquei data

Quando sento ao lado do galinheiro, no quintal dos fundos, é para descansar e ficar mais tranquilo. Aqui tem muitas coisas que gosto de ver, como por exemplo a roupa secando, a máquina de lavar, o banheirinho, a mesa de pingue-pongue e a de totó; além disso, basta escutar o som das folhas das árvores que me dá vontade de ficar. Sei que posso ficar aqui sem que ninguém venha falar comigo, e às vezes fecho os olhos e tiro um cochilo. Mesmo assim, de tudo que posso fazer aqui, quase sempre o que mais me relaxa é ver e escutar as galinhas; estar perto delas é extraordinário para mim.


12 | Marcelo Matthey

Dezembro ou janeiro Não coloquei data

Abrir a porta da rua e ficar parado nos degraus da escada é algo que venho fazendo, alguns dias da semana, entre nove e dez da noite. Gosto de ficar ali e olhar a rua nessa hora em que tudo é tão diferente de como é pela manhã. É formidável ver os alunos da escola de adultos passando, na hora em que voltam das aulas pela avenida España, e escutar algo do que conversam e as piadas que contam. Presto atenção, além disso, no movimento de pessoas no restaurante e no estacionamento que ficam ao lado de minha casa, e também nos caminhões que chegam aqui no quarteirão.


Escrevi tudo isso entre dezembro de 1987 e março de 1988 | 13

10 de janeiro

Ontem fui com meu irmão e sua esposa ver um jogo de futebol no Estádio Nacional. Como fomos na Suzuki, deixamos o carro a uns cinco quarteirões do estádio e dali fomos caminhando. Pouca gente se via nas bilheterias, pois a maioria já tinha entrado e num instante pudemos nos sentar na arquibancada. Embora o que mais nos interessasse fosse o jogo principal, conseguimos ver um pouco da preliminar. Prestei atenção em como um dos goleiros se movimentava e em como abria as pernas quando o perigo se aproximava; vi também esse salto impressionante que ele deu para dar um golpe na bola com a mão, num momento em que a bola estava em sua área. Sobre o jogo principal posso dizer que foi muito interessante, e na verdade fiquei mais preocupado com o placar que com qualquer outra coisa. Mesmo assim, em alguns momentos observei a forma de movimentação dos times, em particular quando um atacava e o outro se defendia.


14 | Marcelo Matthey

Janeiro Não coloquei data

Hoje de manhã, indo para a biblioteca da qual sou sócio há alguns meses, quando caminhava pela República e estava a um quarteirão da Alameda, pensei primeiro em continuar indo pela República, mas mudei de ideia ao prestar atenção em um homem que seguia pela Salvador Sanfuentes; tinha a aparência de alguém importante e quis vê-lo caminhando pela rua; apesar disso, mais adiante, pensando em outras coisas, me esqueci dele. Já na Alameda, quando parei em uma banca para ler as manchetes dos jornais, vi esse homem de novo. Na sala de leitura me sentei na mesa do canto mais distante da janela, onde li e escrevi um pouco. Depois fiquei ali um tempinho, sem mais ninguém na sala, e então voltei para casa.


Escrevi tudo isso entre dezembro de 1987 e março de 1988 | 15

Janeiro Não coloquei data

Estou escrevendo no salão central do Museu de História Natural, ao lado do esqueleto de uma baleia de uns vinte e cinco metros de comprimento. Acabo de percorrer o museu e prestei uma atenção maior em certas coisas, como por exemplo em um gorila, uma garça, e o tronco de um sobreiro, que toquei para sentir a superfície de cortiça. Há vários ambientes marinhos com animais, em sua maioria pinguins; há também um puma e uma ave parecida com a galinha d’angola, mas maior.


16 | Marcelo Matthey

Janeiro Não coloquei data

Estou na biblioteca; fica em um segundo andar. As quatro janelas desta sala de leitura estão abertas e todas dão para o jardim. Posso escutar claramente a batida de dois martelos aqui perto, mas o barulho não me incomoda; toda vez que venho aqui sinto a mesma serenidade. Há pessoas características deste lugar, começando pela bibliotecária; entre os leitores há uns dois ou três que vejo com muita frequência, exceto nesses dias de janeiro, em que não tem quase ninguém. Nas vezes que venho depois do almoço quase sempre durmo um pouquinho; ponho os antebraços sobre o livro que estou lendo, apoio neles minha cabeça e fecho os olhos, do mesmo jeito que alguns outros fazem a essa hora.


Escrevi tudo isso entre dezembro de 1987 e março de 1988 | 17

Janeiro Não coloquei data

Ultimamente tenho vindo aos sábados ao cerro San Cristóbal. De manhã, antes do meio-dia, subo correndo até a estação superior do teleférico e lá descanso um pouco enquanto olho para Santiago e para a Cordilheira. Subindo ou descendo posso ver o verde nas ladeiras, as árvores e a água que corre ao lado do caminho.


18 | Marcelo Matthey

19 de janeiro Primeira parte

Hoje fui na galeria de arte que fica na rua Victorio Lastarria quase esquina com a Merced; havia uma exposição de pinturas na qual se mostravam mulheres seminuas em paisagens marinhas. O quadro que mais gostei foi o de duas banhistas. Depois fui ao Instituto Chileno-Francês para perguntar se estavam passando filmes durante o mês de janeiro; falaram que não, mas que tinham um ciclo de vídeos. Além disso consegui ver uma exposição de fotos de Paris; gostei de duas em que havia alguns mendigos em uma estação do metrô, ao lado de um muro com anúncios publicitários. Ao sair do Instituto fui caminhando pela Merced. Passei na frente de um teatro e depois virei pela rua que bordeia o lado leste do cerro Santa Lucía; entrei num lugar em que havia pinturas e esculturas e não encontrei nenhuma que me agradasse. Depois, ao seguir pela rua do cerro Santa Lucía, antes de pegar a van de volta, olhei as árvores que há no cerro e tive a sensação de que estavam umas sobre as outras.


Escrevi tudo isso entre dezembro de 1987 e março de 1988 | 19

19 de janeiro Segunda parte

Entre duas e dez e vinte para as três da tarde estudei canto no quarto. Depois deitei um tempo na cama; li um pouco e adormeci. São alguns contos de Oscar Wilde, mas acho que não seguirei com eles pois prefiro outras coisas. Penso muito em El viaje de Mozart, de Eduardo Mörike, que terminei de ler há pouco tempo; é um livro que encontrei na biblioteca do quarto em que estudo canto, há mais ou menos três semanas.


20 | Marcelo Matthey

20 de janeiro Primeira parte

Ontem à noite, depois de tomar o leite, fui ao quarto do meu pai e da minha mãe para olhar a rua. As janelas estavam abertas para ventilar esse quarto e os que se comunicam com ele. Olhei um carro que estava estacionado na frente, junto ao qual estavam algumas pessoas conhecidas, e depois olhei para uma das esquinas da avenida España com a Gorbea; senti, nesse último caso, um prazer particular. Entre olhar esse carro e olhar a esquina havia tanta diferença para mim; acho que foi porque ao olhar essa parte da rua podia pensar em mais coisas que gosto.


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