APRENDER A ESCUTAR CRIANÇAS: UM DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO SA B E R & E D U C A R 2 1 / 2 0 1 6 : E S T U D O S DA C R I A N Ç A
Maria Inez da Silva de Souza Carvalho Professora associada IV Universidade Federal da Bahia misc@ufba.br
Mônica Sâmia Coordenadora de Projetos ligados à formação docente AVANTE - organização não governamental Educação e Mobilização Social samiamonica@gmail.com
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Resumo
Abstract
relevância de aprender a escutar crianças na consti-
of learning how to listen to the children in the es-
rativas que emergiram no campo de uma pesquisa
sents narratives that emerged in the field of a PhD
Este texto, que tem como objetivo dialogar sobre a
This text, which aims to talk about the importance
tuição da profissionalidade docente, apresenta nar-
tablishment of the professionality of teaching, pre-
de doutorado para defender a urgência de incorporar
research to defend the urgency of incorporating the
a escuta das crianças como dispositivo metodológi-
listening to children, as a methodological device, in
co nos processos formativos. Considerando os cons-
the formative processes. Considering the theory that
trutos que consideram a criança como ser social, na
defends the child as a social being from the perspec-
perspectiva da chamada lógica da infância dialoga com
tive of so called logic of the childhood by theorists like
teóricos como HADDAD (2013), RINALDI (2012), BAR-
HADDAD (2013) RINALDI (2012) BARBOSA, 2009 ARIES
BOSA, 2009, ARIÈS (1981) e CORSARO (2011), OLIVEI-
(1981) and CORSARO (2011), OLIVEIRA-FORMOSINHO
RA-FORMOSINHO (2008) e defende uma (re)fundação
(2008), defend a (re)foundation of professionality of
da profissionalidade docente como forma de fortalecer
teaching as a way to strengthen the school as a live
a escola como espaço de vida carregado de sentido para
space full of meaning
as crianças.
for children.
Palavras-chave
Keywords
cia, profissionalidade, dispositivo metodológico
ic, professionality of teaching, methodological device
escuta de crianças, formação docente, lógica da infân-
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child listening, educational formation, childhood log-
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Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer,
Neste tipo de dispositivo metodológico, a interferência
Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos,
para gerenciar o tempo, garantir o turno de falas e pau-
a voz humana não encontra quem a detenha.
do pesquisador no ato, dá-se apenas quando necessária,
ou pelos poros, ou por onde for.
tar as temáticas. A alteridade do pesquisador requer que
Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa,
ele não se perca, nem abandone seu lugar para se apro-
alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais.
ximar do/s outro/s, mas desloque-se em direção a, ao
Eduardo Galeano
tempo que mantém uma distanciação que permite ver de um lugar diferenciado. Afinal, abrir-se para a expe-
Este artigo tem como objetivo dialogar sobre a relevância
riência do outro não significa esvaziamento da própria
de aprender a escutar crianças na constituição da profis-
experiência, mas colocar-se em diálogo, que promove
sionalidade docente, considerando os construtos que de-
enriquecimento, tensão, alteridade. Assim, um rigor
fendem a criança como ser social e, como consequência,
necessário na pesquisa é ‘entrar no campo’ aberto às sur-
a urgência de incorporar este tipo de atitude nos proces-
presas, ao fluxo do próprio campo, deixar que se movi-
sos formativos para que se possa (re)fundar uma profis-
mente e se apresente como é.
sionalidade, que fortaleça a escola como espaço de vida,
Estruturar o campo a partir de um dispositivo metodoló-
carregada de sentido para as crianças, fortalecendo seu
gico como a roda, que privilegia o coletivo, teve como
protagonismo e suas potencialidades.
intenção promover uma confrontação entre dife-
A defesa da relevância da escuta das crianças como
rentes experiências e, a partir delas, instaurar um
elemento constituinte da profissionalidade1 docente
movimento dinâmico, em que as narrativas de uns
advém dos construtos ligados à lógica da infância e
puderam ser enriquecidas ou problematizadas pe-
das narrativas que emergiram no campo da pesquisa
las demais, promovendo um diálogo formativo entre os
de doutorado “Diálogos formativos: singularidades
membros do grupo. Este tipo de dispositivo aponta para
nas experiências de formadores da educação infantil”
uma epistemologia que compreende o subjetivo como
(2016) – de autoria e orientação das autoras desse arti-
parte indissociável do institucional e do social, permi-
go - sobre a constituição da profissionalidade de for-
tindo a fruição das narrativas de experiências ou das
madores que atuam na educação infantil. A pesquisa,
“memórias de referência”, como diria Souza (2006,
que teve como pergunta orientadora: como os forma-
p. 143), fazendo emergir sentidos do que foi formador
dores da Educação Infantil constroem sua profissiona-
nas experiências de cada sujeito.
lidade? foi desenvolvida por meio de dois dispositivos
Já as Entrevistas com Especialistas emergiram como dis-
metodológicos complementares: as Rodas de Conversa e
positivo metodológico no decorrer da pesquisa, à
as Entrevistas com Especialistas.
medida que foi percebida sua potencialidade para
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A roda de conversa foi constituída por cinco formadores,
atualizações, aprofundamentos e debates relativos à
com diferentes perfis e campos de atuação, e permitiu
problemática da pesquisa. Tratou-se de dialogar com
criar uma ambiência favorável para que emergissem
cinco especialistas - nas áreas de Educação Infantil,
narrativas de formação que tiveram especial sentido na
formação de professores e formadores e metodologia
constituição da sua profissionalidade. Baseou-se em um
de pesquisa ligada às histórias de vida -, com vistas
tipo específico de entrevista narrativa em grupo, com
a buscar subsídios não encontrados nas bibliografias
maior ênfase no componente (auto)biográfico, pois este
disponíveis. Ao pesquisar sobre o que singulariza, dá
permite, a partir de grandes temáticas e algumas pro-
contornos próprios à formação de formadores da Edu-
vocações - as questões orientadoras -, deixar a narrativa
cação Infantil, buscou-se, por meio das narrativas
dos integrantes da roda fluir. Como afirma Josso (2010),
orais, compreender que experiências tiveram especial
“o exercício narrativo nos remete à memória, à busca da
sentido no percurso formativo dos formadores ouvi-
compreensão das experiências que nos tornaram o que
dos, ou seja, aquelas que contribuíram na constitui-
somos”. É uma viagem ao encontro de si. A intenção,
ção do ser formador e, dessa forma, colaborar para o es-
pois, foi tecer a pesquisa como espaço de encontro de
tatuto específico da profissão, relativo ao seu processo
si e entre sujeitos. Os formadores se encontraram para
de profissionalização.
narrar suas experiências e, ao fazê-lo, aprenderam,
Ao trazer para o centro da investigação a figura dos
olharam para si, ampliaram seus repertórios, desvela-
formadores que atuam na Educação Infantil, em di-
ram tramas, dilemas e tensões, enfim, construíram a
ferentes funções, quer no âmbito das universidades,
pesquisa no ato da fala, para posteriores atualizações,
nas redes públicas ou em projetos sociais, a pesquisa
interpretações e tecituras.
pretendeu contribuir para os estudos sobre esses pro-
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fissionais, especialmente no que tange à constituição
A escuta seria uma grande fonte de informação sobre as
suas experiências de vidaformação.
sidera as crianças como partícipes. Em uma publicação
da sua profissionalidade, a partir das narrativas de
possibilidades de construção de um currículo que con-
Parte significativa destas narrativas revelaram os efeitos
que dialoga com os postulados de Corsaro, Barbosa faz
de experiências de escuta de crianças nos formadores
uma afirmativa ainda muito pouco assimilada na práxis:
que participaram da pesquisa e apontam esta atitude
“sendo a criança o foco central do processo educativo,
como fundamental para uma educação pautada na cen-
efetivamente, é a partir dela que o projeto pedagógico
tralidade da criança, perspectiva defendida pela chama-
será construído, estabelecendo padrões de qualidade,
da lógica da infância. Haddad (2013), aponta três conjuntos
segurança e desafio.” (BARBOSA, 2009, p. 184). Estudos
diferentes de lógica que modelam o atendimento na
como os citados acima insistem na ideia de que todo pro-
Educação Infantil e esclarece que a lógica da infância é sus-
fessor deveria ambicionar que seu planejamento con-
tentada pela ideia de que as crianças “são especialistas
tivesse as vozes das crianças, ou seja, que as crianças,
em suas próprias vidas” e por relações dialógicas. O ob-
ao serem ouvidas, possam participar efetivamente do
jetivo assumido por esta perspectiva é a qualidade das
currículo2, quer direta ou indiretamente. O currículo,
experiências vivenciadas pelas crianças, quer seja as
nessa abordagem, deve considerar as curiosidades ge-
que elas obtêm individual e autonomamente, quer seja
nuínas das crianças que, por sua vez, estariam inseridas
as mediadas pelos adultos. Essa lógica, coaduna com os
em um ambiente que promove múltiplas possibilidades
aportes da Pedagogia da Infância (OLIVEIRA-FORMOSI-
investigativas e criativas. É vivo e integrado, embora
NHO, 2008), que defende a criança como ser partícipe e
não se trate de espontaneísmo, mas de uma ação in-
não à espera de participação. Assim, pressupõe um pro-
tencional do adulto que vai organizando o ambiente a
fissional que construiu uma imagem da criança como
partir do conhecimento que tem sobre a criança e seus
um sujeito que brinca, interage e participa ativamente
processos de desenvolvimento e aprendizagem, bem
na ampliação e construção do seu repertório cultural e
como do que emerge do diálogo permanente que se es-
de suas aprendizagens.
tabelece entre adulto e criança, a partir de uma relação
Em decorrência desta imagem de criança potente,
de alteridade. Estes aportes são amplamente defendi-
uma das características fundamentais ao professor de
dos nos documentos nacionais brasileiros, que oferecem
Educação Infantil, seria a capacidade de escutar.
diretrizes sobre a qualidade do atendimento às crianças
A tarefa do educador é de criar um contexto em que a curiosidade,
na educação infantil. Em 2006, por exemplo, foram
as teorias e a pesquisa das crianças sejam legitimadas e ouvidas,
lançados pelo Ministério da Educação, os Parâmetros
um contexto em que as crianças se sintam confortáveis e confian-
Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil e, no
tes, motivadas e respeitadas em seus processos e percursos cogniti-
vol.1, o primeiro aspecto tratado referiu-se à concepção
vos e existenciais. Um contexto em que o bem-estar seja a expres-
cumento norteador da política nacional, dois princípios
emoção e entusiasmo. (RINALDI, 2012, p.28)
básicos e complementares, amplamente defendidos fo-
Considerando este contexto, é fundamental que a capa-
ram oficializados: a crença nos direitos das crianças e na
cidade de escutar seja desenvolvida nos e pelos professo-
sua competência:
res, pois possibilita a efetivação de atitudes de reconhe-
Para propor parâmetros de qualidade para a Educação Infantil, é im-
cimento das potencialidades das crianças e seu papel
prescindível levar em conta que as crianças desde que nascem são:
social, especialmente dentro da escola. Com isso, com-
preendem a escola como espaço de democracia e, conse-
•
cidadãos de direitos
•
seres sociais e históricos
•
quentemente, de participação da criança. A ‘pedagogia da escuta’ instaura uma nova profissionalidade docente
•
ou, no mínimo, a atualiza, a partir de um novo paradig-
•
ma de ressignificação da imagem da criança:
Se acreditamos que as crianças têm teorias, interpretações e ques-
indivíduos únicos, singulares seres competentes, produtores de culturas
indivíduos humanos, parte da natureza animal, vegetal e mineral. (BRASIL, 2006, p.19)
tões próprias e que são protagonistas dos processos de construção
A ideia de criança potente, rica de possibilidades,
educativa não são mais ‘falar’, ‘explicar’ ou ‘transmitir’ – é apenas
atribuem sentidos ao mundo, num processo de cons-
do conhecimento, então os verbos mais importantes na prática
uma imagem baseada na compreensão de que elas
‘escutar’. Escutar significa estar aberto aos outros e ao que eles têm
tante construção de conhecimentos e de sua identi-
a dizer, ouvindo as cem linguagens com todos os nossos sentidos.
dade, já é legitimada na vida teórica, mas ainda não
(RINALDI, 2012, p. 227)
plenamente incorporada aos processos da vida vivi-
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de criança e pedagogia da Educação Infantil. Neste do-
são dominante, um contexto de escuta em diversos níveis, cheios de
da. São ideias que instauram uma mobilização pela
que os objetos muitas vezes funcionam como fios que
movimentos, especialmente os estudos da Sociologia
elementos da natureza, com brinquedos variados, com
causa da infância, compartilhada por vários outros
puxam da memória as narrativas do vivido: caixas com
da Infância, como os de Ariès (1981) e Corsaro (2011),
materiais de arte, de música, com livros de literatura,
este último publicado originalmente em 1997, bem
com livros técnicos, com cheiro, com fotografias, com
como os estudos do prof. Dr. Manoel Sarmento e equi-
objetos escolares, foram cuidadosamente dispostas no
pe, com destaque à prof . Dr . Natália Fernandes, da a
centro da roda, convidando os participantes à interação.
a
Universidade do Minho. Também são um dos pontos
Neste ambiente acolhedor e favorável à imersão no campo
focais das filosofias defendidas pela equipe de educa-
das memórias, os formadores passaram a narrar experiên-
dores de Reggio Emilia, na Itália, referência mundial
cias vividas, que são consideradas, no construto metodo-
de política pública e de atendimento de qualidade na
lógico da pesquisa, como narrativas de formação, ou seja,
primeira infância, assim como pela Associação Crian-
aquelas que tiveram especial sentido na constituição da
ça, em Braga, Portugal, representada especialmente
sua profissionalidade enquanto formadores.
pela prof . Dr . Júlia Oliveira-Formosinho. a
Emergiram assim, narrativas de várias naturezas e, es-
a
pecialmente, as voltadas para experiências advindas da escuta de crianças:
“Então uma experiência muito legal foi com as crianças. Se a gente não tem esse olhar sensível - porque é
uma via de mão dupla, a gente media, a gente dá e a gente também recebe – e, aí, quando a criança diz que
não tá legal ou ela se manifesta a partir de agressões, o que ela quer me dizer? Será que eu consigo a atenção de
todas as crianças numa roda? Dentro desse fazer peda-
gógico construído junto com elas, muitas vezes o que eu levava não dava certo ou dava, e também tinha o olhar,
o toque, o jeito deles e eu fui aprendendo. A gente vai fazendo essa formação junto e aprendendo junto. Esse olhar que a criança ensina é pertinente à minha prática
Este movimento nos convoca a tematizar o papel da
de formadora e eu construí enquanto professora.”
escola e dos profissionais, assim como os processos
“Em fevereiro, uma criança chegou na sala e disse ‘ah,
formativos, que, por esse entendimento, devem con-
eu fui pra praia, eu fui pra praia!’ e aí todo mundo ficou
fissionalidade docente. Sendo assim, caberá aos for-
criança contou ‘nossa, a areia é molinha, é macia...’ e
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siderar a escuta como elemento constituinte da pro-
junto dela e disseram ‘mas como é que é a praia?’. E a
madores se comprometer com processos formativos
começou a descrever a praia e as crianças ficaram mui-
que busquem aproximações com uma relação efetiva-
to interessadas em como era a praia. Então as crianças
mente dialógica entre professores e crianças.
queriam investigar, saber mais como era a areia e por
As aprendizagens advindas das narrativas dos formado-
que a água era salgada; qual era a diferença entre água
res no âmbito da pesquisa aqui relatada - que privilegiou
doce e água salgada e começaram a perguntar (...) Esse
a escuta nos dispositivos metodológicos -, contribuíram
contato com o novo é surpreendente, uma coisa que às
sobremaneira para uma reflexão importante sobre o para-
vezes é óbvia pra nós, não é para as crianças. O quanto
digma formativo: a urgência do equilíbrio entre ‘escutar’ e
eu aprendi a olhar a praia com eles. Foi um dia muito
‘falar’ na relação pedagógica, ou, compreender a urgência
especial, que marcou minha formação, por poder real-
de aprender a escutar para fundar uma relação pedagógi-
mente entrar no jogo com as crianças. Acho que isso faz
ca comprometida com a lógica da reciprocidade, onde os
uma grande diferença, fez uma grande diferença na mi-
adultos se dispõem a olhar as crianças de forma aberta,
nha experiência como professora, como coordenadora,
sensível e reflexiva, para melhor compreendê-las.
de entrar nesse jogo com as crianças.”
Estas narrativas emergiram da Roda de Conversa, a partir
“No final do curso [de Teatro] eu participei de uma expe-
de uma rodada intitulada A caixa de Memórias. Uma ins-
riência no subúrbio de Salvador. Foi no interior do Par-
talação com caixas de diferentes tamanhos e com dife-
que São Bartolomeu que eu encontrei muitas coisas para
rentes objetos ou imagens foi usada para cumprir uma
guardar na minha canastra, nessa minha maleta, entre
função acolhedora e sensibilizadora às narrações, visto
elas, o encontro com a infância, porque eu ainda não ti-
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nha contato direto com as crianças, até então. Foi na es-
mos seres sociais e, como tal, o diálogo nos constitui.
saber o que seria fundamental elas fazerem para mudar
vez mais profunda sobre o que significa dialogar, sem
cola Durval Pinheiro que conversei com as crianças para
Como podemos evoluir sem uma compreensão cada
a realidade da escola. E foi ali que elas disseram muitas
termos o diálogo como um valor e, por decorrência,
coisas que eu pude guardar na minha canastra[...]Por
como uma capacidade a ser conquistada e exercitada?
fim, uma frase que me trouxe aqui e tem me levado a
Revisitar nossa compreensão sobre diálogo pressupõe
muitos lugares, que tem feito essa canastra andar para
desenvolvermos um interesse genuíno pelo outro. E
muitos lugares, foi uma menina que disse: “eu queria
como acessar o outro se não o escutamos? É pela escuta
aprender com mais alegria”.
que há a possibilidade de interação. Entretanto, a esco-
Narrativas como estas, que emergiram ao longo da
la carregada de tradição, sustenta-se nas relações desi-
roda de conversa, explicitaram claramente a atitude
guais de poder e autoridade, que são marcas sociais, por
de escuta da criança como um elemento constituinte
uma tendência à identificação entre os iguais, aqueles
da profissionalidade daqueles formadores. Estas nar-
que reconhecemos como pares, e não com o ‘diferente’.
rativas representam um movimento dialógico em di-
Mas é importante reconhecer que já vivemos, em al-
reção à criança, que é reconhecida como sujeito rico e
guma medida, um exercício mais alteritário em rela-
potente, que atribui sentidos ao mundo e oferece aos
ção às diferenças, ao menos já legitimado amplamen-
adultos sua visão singular sobre ele. Mais do que isso,
te na vida teórica. Começamos a entender que elas
anunciam a potencialidade da atitude de escuta com
também nos constituem. Novas relações precisam e
um elemento importante na constituição da profissio-
já estão sendo construídas. É neste contexto que a es-
nalidade dos formadores e para outros profissionais
cuta, como atitude de estar com o outro, se configura
que atuam com crianças.
como importante elemento da profissionalidade do-
cente. Como diria Freire (1996), “escutar é algo que vai além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar
A escuta da criança como dispositivo de formação
significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro (p. 135).
Assim, defende-se que a escuta da criança, como uma atitude a ser desenvolvida na constituição da docência, precisa ser exercitada e, para tal, pressupõe que seja valorizada na formação.
Entretanto, a teorização e a utilização da escuta de abordadas no Brasil. Isto significa que ainda não a reconhecemos a ponto de utilizá-la intencional e sistemati-
camente nos processos formativos. O contexto histórico
Historicamente, é provável que nenhum outro verbo
e a concepção de formação revelam a complexidade de
tenha marcado melhor o papel do professor do que
realizar esse tipo de movimento. Estamos em um mo-
‘transmitir’. Este papel emerge de uma concepção de
mento de consolidação da ideia de criança como ator
educação amplamente debatida, que funciona a partir
social, como sujeito de direitos. O discurso está posto,
da lógica reprodutivista e tem como pressupostos o su-
entretanto, continuamos a ter uma incipiente cultu-
jeito aprendiz passivo e o professor falante.
ra de participação das crianças. Somos produto de um
A educação e a escola contemporânea exigem outro
conjunto de aspectos culturais que, ao longo do proces-
funcionamento. Mais dialógico, participativo, pois a
so educativo, nos habituaram a um tipo de socialização
complexidade da vida social na atualidade e suas im-
adultocêntrica – especialmente nos espaços da educação
plicações do ponto de vista das relações humanas e da
formal. Para fundar uma nova lógica, fundada na dia-
vida no planeta provocam movimentos de ruptura e
logicidade, é preciso ressignificar as práticas formativas
de reconstrução social. À medida que se aprofundam
tendo em vista que, muitas delas, ainda reproduzem
as crises – especialmente as crises sociais -, vamos en-
esta relação verticalizada, baseada em relações de poder.
xergando o óbvio: estamos chegando ao limite de um
Para tal, antes de abordar a escuta de crianças, é preciso re-
paradigma histórico, marcado por determinadas rela-
fletir sobre a escuta de professores e dos demais profissionais nos
ções de poder e com pouca tolerância ao diálogo. So-
processos formativos.
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crianças como dispositivo de formação ainda são pouco
A concepção de formação sustentada por esta abor-
As narrativas dos formadores do campo da pesquisa apon-
caminho que acontece em um continuum, não neces-
demais profissionais, é possível tocar nas subjetividades,
dagem, considera o processo formativo como um
tam que a partir dos atos de escuta de professoras/es e
sariamente linear, de experiências e atualizações.
ativar o saber sensível e, em decorrência, desenvolver uma
Considera-se aqui que os sujeitos da formação não
verdadeira atitude de escuta em relação às crianças. Pela
serão transformados em outros, em sujeitos ideais,
natureza atitudinal dessa aprendizagem, ela não ocorre
não se transformam, mas, a partir da conjunção de
apenas com o contato com a produção e argumentação
determinados elementos, em determinados am-
teórica, mas com o exercício de uma ‘nova’ relação peda-
bientes, tornam-se o que são, tornam-se eles mes-
gógica, fundada na escuta - porque escutar pressupõe uma
mos. Nas palavras de Carvalho (2008), formação é:
relação de alteridade, um ato de encontro, de estar e ser
Termo que se consolida ao longo dos últimos anos como achado
com, onde a polifonia ocorre de fato. Ou seja, exige que
semântico para a necessidade contemporânea de se pensar/vi-
nos percursos formativos - estágios, observação e temati-
ver a educação como um processo singular intrínseco ao sujeito
zação de práticas etc - ou nos processos investigativos, os
individual e/ou coletivo e não mais como um padrão único pré-
formadores escutem os professores.
-estabelecido. (CARVALHO, 2008, p. 14)
Defende-se, portanto, que a atitude de escutar as crian-
Distante das concepções tecnicistas, a autora coadu-
ças é um elemento da profissionalidade docente que
na com vários outros pesquisadores do campo da for-
corresponde à habilidade de realizar uma observação
mação que relacionam o termo, formação, à ideia de
atenta, aberta e sensível às atitudes das crianças, inter-
processo, que acontece no percurso de experiências
pretando seus sentidos e incorporando esses saberes na
singulares.
prática. Esta abordagem busca estabelecer um diálogo
A “homologia de processos”, um dos conceitos es-
genuíno entre adultos e crianças, promovendo aproxi-
truturantes da formação, nos convida a refletir so-
mações e novas relações de poder, menos verticalizadas.
bre as ressonâncias de uma formação pautada na
Com isso, promove o conhecimento sobre as crianças a
transmissão/recepção e como este tipo de experiên-
partir delas mesmas e convida o adulto a entrar no uni-
cia reverbera como um obstáculo para uma atuação
verso infantil, para melhor compreendê-lo.
dialógica. Este conceito, remete à ideia de reação em
Em palestra sobre ‘Participação infantil: equívocos e possibilidades’3, a prof. Dra. Natália Fernandes, da Uni-
cadeia, por entender que o tipo de experiência vi-
versidade do Minho e especialista no tema, fez uma fun-
venciada na formação tem ressonância na atuação
damental provocação: “o que realmente sabemos sobre
do sujeito. Isso significa que não apenas os conteú-
as crianças por elas mesmas é pouco, pela nossa incom-
dos teemáticos, mas as práticas de formação devem
petência de saber olhar e dar voz para elas, respeitando
receber atenção especial, pois elas são modeladoras
suas especificidades.” Nesse contexto, escutar tem uma
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de posturas profissionais futuras. Portanto, um
dupla função: visa tanto a escuta em si, como uma for-
primeiro passo para o desenvolvimento de atitudes
ma de conhecer as crianças, como também visa promo-
de escuta das crianças é realizar atos de escuta dos
ver uma interação com elas, garantindo a construção de
profissionais que atuam com elas. Se as experiên-
espaços de participação.
cias nos constituem - os sujeitos não são formados
Busca-se, pelos atos de escuta, que o professor possa exer-
e, sim, se formam - precisamos reconhecer que, na
citar uma nova lógica de relação, onde não somente a
ciranda de experiências desses/as professionais, é fun-
criança se move em direção do adulto para assimilar o
damental incluir a escuta. Em sua pesquisa sobre a
conhecimento construído, mas uma lógica de recipro-
escuta como uma prática constituinte do saber-fa-
cidade, onde os adultos se dispõem a olhar as crianças
zer dos professores da Educação Infantil, Mendes
de forma aberta, sensível e reflexiva, para melhor com-
(2009), que além da pesquisadora, era a coordenado-
preendê-las. É preciso que essa escuta instaure processos
ra pedagógica dos professores pesquisados, conclui:
de participação social, oportunizando às crianças vivên-
O espaço da escuta, garantido no momento da coordenação
cias coerentes com seu lugar de ator social e tornando a
pedagógica, é importante para a sustentação de suas práticas,
escola um espaço de cidadania ativa.
pois [os professores] encontram apoio, parceria e uma pessoa
Para que as crianças falem – e elas continuam insistindo
que garante uma escuta sensível das angústias do dia a dia.
em fazê-lo, por meio de múltiplas linguagens – e sejam
Esse espaço de diálogo, em que a fala e a escuta são assegura-
escutadas, é preciso que os adultos possam considerar
das, significa um lugar de formação profissional e de crescimen-
a potência das crianças e dos atos de escuta. Para isso,
to pessoal. (MENDES, 2009 p. 152)
precisam se relacionar com essas situações de forma que
46
lizados, convidados a sair do papel de quem sabe tudo,
Em síntese...
reconhecida, o que requer, em muitos casos, dar novos
As narrativas que emergiram do campo de pesquisa, a
exercitar e praticar a escuta das crianças é perseguir a compreensão
tais para a consolidação da lógica da infância como
se sintam surpreendidos, desassossegados, desestabipara uma relação em que a criança seja efetivamente
partir da escuta dos 5 formadores, foram fundamen-
sentidos às ideias já construídas.
um paradigma estruturante da profissionalidade do-
de seus modos de sentir, pensar, fazer, perguntar, desejar, planejar.
cente e apontam para um movimento dialógico em
É também um modo de aproximar-se das tensões, das situações
direção à criança, que é reconhecida como sujeito
conflitantes, das cooperações, das interferências e das alegrias
potente, que atribui sentidos ao mundo e oferece aos
provocadas quando um grupo de crianças se encontra. (BRASIL,
adultos sua visão singular sobre ele. Mais do que isso,
2009, p. 102)
anunciam a potencialidade da atitude de escuta com
Para Dewey (1976), os professores devem conhecer os
um elemento importante na constituição da profissio-
interesses e as experiências das crianças e considerá-las
nalidade dos formadores, docentes e para outros pro-
como pontos de partida para atividades inteligentes e
fissionais que atuam com crianças.
experiências ampliadas. A escola e os educadores devem
As implicações dessa visão são revolucionárias porque
saber como extrair dos mais diversos ambientes tudo o
demandam mudanças de concepção, por vezes pro-
que pode contribuir para fortalecer experiências valiosas
fundas, sobre criança, professor e escola e exigem,
para elas. Quando isso ocorre, os efeitos em relação às
necessariamente, um processo formativo sensível a
suas aprendizagens são visíveis. Se as crianças estão vi-
estas mudanças. Para construir um arcabouço práxico
venciando situações que fazem sentido, que partem de
relativo aos atos de escuta é preciso ampliar as fun-
uma negociação sobre suas expectativas, as do grupo e
damentações, bem como exercitá-las, a partir de uma
o que é pertinente para elas naquele determinado espa-
disponibilidade para revisitar crenças, valores e práti-
ço/tempo, a possibilidade de mobilizarem seus saberes é potencializada4.
cas. É preciso, enfim, promover a articulação entre co-
Essa relação pedagógica pressupõe uma competên-
nhecimento e prática e essa é uma tarefa importante a
cia fundamental dos profissionais que atuam junto às
ser feita pelos formadores.
crianças que é a escuta sensível e que pode ser traduzida
Tomados os devidos cuidados, para que as crianças
pela ‘pedagogia da escuta’ como a concretização da ética
possam exercer um protagonismo protegido, conside-
do encontro, absolutamente comprometida com a alte-
rando a vulnerabilidade que é própria dessa etapa da
ridade do outro:
vida, a escuta de crianças, como dispositivo de forma-
Uma pedagogia da escuta – escuta do pensamento – exemplifica
ção docente, possibilitará uma práxis onde as teorias
para nós uma ética de um encontro e edificado sobre a receptivi-
valores dos profissionais, tencionando-as, fortalecen-
outro, para a vinda do outro. Ela envolve uma relação ética de aber-
do-as e, de qualquer forma, promovendo uma atitu-
tura ao outro, tentando escutar o outro em sua própria posição de
de reflexiva sobre concepções, práticas, educação de
experiência, sem tratar o outro como igual. As implicações para a
crianças e exercício de cidadania ativa.
educação são revolucionárias. (RINALDI, 2012, p. 42)
Concluindo, advogamos que a escuta de crianças como dispositivo de formação possa ser reconhecida, não somente como uma estratégia metodológica nos proces-
sos formativos, mas como um elemento constituinte da profissionalidade docente.
A escuta se constitui, no contexto dominante, em um
ato subversivo, uma força contrária – social e educa-
cional – que pode colaborar para uma outra forma de fazer ciência, de fazer educação e de se estabelecer relações efetivamente dialógicas.
Abrindo-nos a experiências como essas, podemos não só acessar o universo mágico e instigante da infância,
como ainda, revisitar nosso próprio universo, descobrindo novos e, talvez, mais interessantes modos de olhar.
Esperamos que, em breve, formadores e professores sin-
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sobre criança e infância dialoguem com as crenças e
dade e a hospitalidade do outro, uma abertura para a diferença do
tam-se mobilizados para fazer pesquisas sobre os efeitos
dos atos de escuta na constituição da sua profissiona-
lidade ou na sua práxis, pois aí está um novo campo de
Referências
escuta de crianças como dispositivo de formação.
Ariès, P. (1981) História social da infância e da família. Rio de
co importante para uma relação outra com a criança,
Barbosa, M. C. S. (2009) Como a sociologia da criança
investigação e ação que pode e precisa ser construído: a
Janeiro: LTC.
Esperamos, enfim, que ouvir as crianças seja um mar-
de William A. Corsaro pode contribuir com as
com a formação e com a profissão docente!
pedagogias das escolas de educação infantil? In:
Notas 1
MULLER, Fernanda e CARVALHO, Ana Maria A.
(orgs.) Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos
Roldão define profissionalidade “como aquele conjunto de atribu-
com William Corsaro. São Paulo: Cortez.
tos, socialmente construídos, que permitem distinguir uma pro-
Brasil. Ministério da Educação. (2006). Política Nacional
fissão de outros muitos tipos de actividades, igualmente relevan-
de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis
tes e valiosas”. (2005, p. 108). 2
anos à educação. Brasília.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil –
Carvalho, M. I. ( jan./jun. 2008) O a-con-tecer
DCNEI (2009) preconiza, em seus artigos 3º e 4º, que “o currículo da
de uma formação. Revista da FAEEBA – Educação e
Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que
Contemporaneidade, 17 (29), 159-168.
buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os
Corsaro, W. A. (2011) Sociologia da infância. Porto Alegre:
conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico,
Artmed.
ambiental, científico e tecnológico” e “que a criança deve ser o cen-
Dewey, J. (1959). Experiência e pensamento. In
tro do planejamento pedagógico.” 3
Palestra realizada em Salvador em 31 de julho de 2015.
4
Não por acaso, a qualidade da Educação Infantil na Bélgica é ava-
Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
Dewey, J. ( 1976). Experiência e educação. (1076) São Paulo:
liada por apenas dois indicadores: níveis de bem estar e de envol-
Companhia Editora Nacional.
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