CIÊNCIA E CULTURA POPULAR UMA OFICINA DE FÍSICA E CAPOEIRA

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CIÊNCIA E CULTURA POPULAR: UMA OFICINA DE FÍSICA E CAPOEIRA José Carlos Oliveira de Jesus a [oliveira@uefs.br] Álvaro Santos Alvesa [asa@uefs.br] Almiro Ferreira Santanaa [asa@uefs.br] Teresinha Fróes Burnhamb [burnhamt@ufba.br] a

Universidade Estadual de Feira de Santana, Departamento de Física, Projeto Física no Campus, BR-116, Km 03, Av. Universitária, 44.031-460, Feira de Santana - BA - Brasil b Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, Av. Reitor Miguel Calmon, s/n, Campus Canela, 40.110-100, Salvador – BA - Brasil

RESUMO Este trabalho relata uma experiência de Formação Inicial no Curso de Licenciatura Plena em Física da Universidade Estadual de Feira de Santana, BA. O projeto envolve um licenciando em Física e uma turma de ciências da 8a série do Ensino Fundamental. A capoeira é um dos traços culturais mais marcantes da região e encerra um enorme potencial no processo ensino-aprendizagem de Física. Por essa razão, foi escolhida como tema de uma oficina de mecânica, objetivando discutir qualitativamente vetores e equilíbrio de corpos extensos, numa vertente histórico-cultural da perspectiva freiriana.

INTRODUÇÃO Ensinar a partir da realidade do aluno. Esta é a máxima que condensa a obra de Paulo Freire, um dos mais destacados pensadores brasileiros, pioneiro em assinalar ampla e intransigentemente a importância do respeito ao contexto cultural dos aprendentes no processo ensino-aprendizagem. Krasilchik (1987, p. 53) observa que dentre os vários problemas do Ensino de Ciências, a falta de vínculo com a realidade dos alunos é determinante na limitação do rendimento do ensino. É preciso que os conteúdos tenham relevância para os alunos, partindo de seus interesses para que adquiram significados. Este e outros aspectos da dimensão humana que permeiam todas as formas, momentos e lugares da Educação Contemporânea são destacados por Edgar Morin (2000, p. 56), que defende a inter-relação de culturas, ou seja, a diversidade cultural, como um imprescindível pilar da educação do futuro. Essa perspectiva educacional tem conquistado adeptos no Ensino de Ciências. Em trabalho recente, Alves e Jesus (2003) relataram experiências com o Ensino de Física através de Oficinas, com ênfase na riqueza da musicalidade baiana e o seu papel no ensino da acústica. (Alves, Costa e Jesus, 2002). Esse preâmbulo aponta inapelavelmente para uma pergunta: o que a cultura popular tem que ver com o Ensino de Física? Uma das muitas respostas possíveis está bem colocada por Paulo Freire (1996, p. 30): “Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos”. Este pensamento se cristaliza atualmente nos conceitos de concepções prévias e concepções alternativas, muito empregados nos esquemas de explicação de como os alunos aprendem. Estes esquemas rompem com a idéia do aluno enquanto tabula rasa, posição esta fortemente combatida pela perspectiva freiriana e denunciada como educação bancária. Mas romper com a postura ideológica do aluno tabula rasa é traçar um novo referencial educacional, um outro horizonte pedagógico. Significa marcar um retorno ao sujeito cognoscente. Numa perspectiva dialógica (Freire, 1996, p.136; Morin, 2000, p. 109) este sujeito tanto pode ser o aluno quanto o professor, como qualquer outro indivíduo do ambiente social com quem o sujeito (com)partilha enunciados e significados (Rego, 1999, p.55). Como conseqüência imediata, a Escola perde o status de locus da educação. Neste pormenor Rubem Alves é bastante enfático:


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Por favor, não pensem em escolas quando eu me referir à educação. Escolas são instituições tardias e apertadas, enquanto a educação tem a idade do nascimento da cultura e do homem. (Alves, 1995, p.46)

A Escola é apenas uma das muitas dimensões da vida de qualquer indivíduo. À parte isso, ambos estão completa e inapelavelmente inseridos na correnteza da história, local e globalmente, sincrônica e diacronicamente. O indivíduo é ao mesmo tempo produto e sujeito de um conjunto de hábitos, crenças e atitudes, guardado por fronteiras móveis, abertas, indefinidas, cujas influências deixam marcas indeléveis em sua cosmovisão, em seu universo cultural, que são a amálgama do senso comum. É com essa cosmovisão que o indivíduo chega à escola. Se, felizmente, é impossível separar o indivíduo de sua cultura, então é imperativo que a Escola o acolha integralmente. Aqui, novamente, Paulo Freire é oportuno quando diz: Por que não estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? (Freire, 1996, p. 30). A relevância do senso comum nos processos ensino-aprendizagem já havia sido revelada por Gramsci, que o considerava o ponto de partida para o processo de formação cidadã, como acentua Ghiraldelli Jr. (1987, p.71): De fato, em Gramsci, o “senso comum” é a concepção de mundo do povo, das classes instrumentais e subalternas, que não puderam ter concepções elaboradas, sistemáticas e politicamente organizadas. Todavia, o caráter contraditório do “senso comum” não o torna de todo inútil, dado que ele sempre está enriquecido por um “núcleo válido” ou seja, o “bom senso”. Cabe então, à pedagogia, aproveitar esse “bom senso” e forjar um elo de ligação entre o saber popular e o conhecimento científico, o saber escolar organizado. O “bom senso” é o ponto de partida para a construção de uma ponte que resgate o saber do homem popular e, em seguida, possa integrar esse homem no âmbito do conhecimento filosófico e científico.

Este trabalho é um relato de experiência na área de Formação Inicial de Professores de Física, um estudo de caso no Curso de Licenciatura Plena em Física oferecido pelo Departamento de Física da Universidade Estadual de Feira de Santana - BA. O estudo tem como sujeito/objeto um estudante de graduação e alunos do II Ciclo do Ensino Fundamental (8ª série) de uma escola privada e objetiva levantar o papel da capoeira na aproximação aos conceitos físicos e sua apreensão, com ênfase na transposição didática e na modelização. Na Bahia, costuma-se dizer que a capoeira é apoio e giro, é equilíbrio e impulso. Para os praticantes de capoeira, a noção de equilíbrio é intuitiva (senso comum), faz parte da arte do jogo e se aprimora com ele, sendo fundamental na preparação de muitos golpes. O que se busca agora é o olhar do físico-educador sobre a capoeira, considerando a carga cultural e histórico-social de seus educandos. Neste ponto, há uma aproximação com a pedagogia de Paulo Freire (1996, p. 45) quando exorta educadores ao reconhecimento e assunção da identidade cultural dos aprendentes: A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nós por nós mesmos. É isto que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo.


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Na Formação Inicial Docente, um dos mais importantes objetivos é introduzir o licenciando na difícil seara da transposição didática. A formação do educador não pode prescindir dela, pois que se constitui numa ponte entre o senso comum e o saber científico (ou escolar). Nessa etapa da formação docente desenvolve-se a capacidade de saber quais conteúdos ensinar e, ainda, como, quando e onde ensiná-los, tendo sempre em mente a necessidade de conhecer profundamente seus interlocutores, para então realizar as imprescindíveis idas e vindas entre o saber científico, ancorado epistemologicamente, e os saberes dos educandos, enraizados em sua cultura e encharcados de senso comum. Segundo Freire, resgatar esses aspectos da prática docente é essencial à formação de professores, pois nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e de outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação. (Freire, 1996, p. 45)

METODOLOGIA E DISCUSSÃO Durante o acompanhamento do trabalho do licenciando, destacam-se importantes etapas na Universidade e na Escola. A primeira delas consiste no levantamento do domínio que o licenciando tem do conteúdo a ser “ensinado”. Este procedimento mostrou-se necessário, porque muitas vezes, apesar de terem sido aprovados nas disciplinas relacionadas ao seu tema, os estudantes apresentam uma certa insegurança, uma fragilidade conceitual. Adotou-se a técnica de apresentação de seminários de estudos, proferidos pelos licenciandos, pois que possibilita uma revisão dos conteúdos na literatura específica, uma etapa de preparação de suas palestras, na qual eles são levados a desenvolver estratégias de apresentação/exposição do conteúdo e, sobretudo, permite a observação de seu comportamento frente a um público não leigo. Durante os seminários, os professores-orientadores registram os pontos da exposição que carecem de aprofundamento teórico e prático. São recolhidas também as observações e críticas dos demais estudantes e tudo é repassado ao palestrante para que possa guiar seus estudos e aprimorar-se. Além disso, cada licenciando reúne-se por duas horas com o orientador, semanalmente, ou com maior freqüência quando há necessidade. Em geral, os orientadores realizam exposições dialogadas com o grupo, enfatizando as ausências verificadas na primeira etapa. Numa terceira fase, passou-se a uma discussão do que é possível ensinar sobre Física a partir dos recortes de capoeira escolhidos. Optou-se pelos aspectos estáticos da capoeira, que estão relacionados com a preparação de alguns golpes. A ênfase do trabalho está no equilíbrio de corpos extensos, que exigem a aproximação com os seguintes conceitos-alvo: vetores, movimentos de translação e rotação, centro de gravidade e centro de massa, força e momento de uma força, e, finalmente, forças e torques em equilíbrio. Por tratar-se de alunos do Ensino Fundamental, o foco das discussões é predominantemente qualitativo, centrado na elaboração de modelos explicativos, com alguns momentos quantitativos. De uma forma geral, modelos são formas de designar outras coisas a partir de algo conhecido ou concebido, uma construção que ajuda a aproximar-se do real, mas que não pode ser usada impunemente, pois que se limita em si mesma, como uma mera visão possível do real, como uma tentativa de explicação do real, dadas as informações disponíveis, sejam elas sensíveis ou não à experiência direta, isto é, mensuráveis. Cientificamente, modelizar é construir um objeto com propriedades que permitem que ele seja integrado a uma teoria física (Pietrocola, 2001, p. 30). Nesse contexto, qualquer tentativa de dar sentido ao real ocorre através de construções mentais acerca do que seria o real. Se essas construções dão bons resultados, se não entram em conflito com as informações (fatos e dados) empíricas, então elas são ensinadas a outras pessoas, que passam a ser guiadas por tal forma de fazer perguntas à natureza, gerando paradigmas. Tem-se aqui, grosso


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modo, a essência da educação científica, que Rubem Alves resume bem quando sentencia: ensinar ciência é ensinar modelos (Alves, 2001). Em resumo, durante a Oficina, os alunos realizaram, em várias posições de preparação de golpes de capoeira, leituras simples (Uma medida é o resultado de uma análise estatística sobre o conjunto de dados obtidos de leituras da grandeza em estudo) dos comprimentos e perímetros do tronco, dos membros superiores e inferiores, e das extremidades, bem como dos ângulos formados entre si. Para as leituras de ângulos foram usados goniômetros construídos com cabos de vassouras. Dessas leituras resultaram esboços em torno dos quais desenvolveu-se o trabalho de formação de conceitos a partir de modelos. Dentre as representações de corpo humano empregadas na análise a mais comum foi a justaposição de retângulos, com lados guardando proporções próximas àquelas das leituras realizadas. Fotografias digitais também foram utilizadas e editadas para indicar os vetores associados às posições das extremidades do corpo ou para ilustrar e destacar os diferentes ângulos entre as articulações. A metodologia empregada apresenta a vantagem de que para sair da posição de equilíbrio o capoeirista usa o próprio corpo, alterando os ângulos entre as partes. Conseqüentemente, há uma redistribuição de matéria que leva a uma mudança dos torques devidos aos pesos das partes do corpo, deslocando o centro de gravidade e provocando quase sempre uma rotação do sistema. O sujeito cognoscente enfim resgatado, política e pedagogicamente através do corpo (Alves, 1995, p.47). A próxima etapa do trabalho consiste na elaboração de medidas de verificação da formação de conceitos que permitam compreender melhor os resultados obtidos e reorientar a própria metodologia.

B IBLIOGRAFIA ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo: Ars Poetica, 1995. ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: uma introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Edições Loyola, 2001, 3. ed. ALVES, Álvaro Santos; JESUS, José Carlos Oliveira de. O Ensino de Física através de Oficinas. Curitiba: Atas do XV Encontro Nacional de Ensino de Física, 2003. ALVES, Álvaro S.; COSTA, Cláudio; JESUS, José C. O. de. Física e Música: surfando nas ondas sonoras. Oficina V Semana de Física da UEFS. Uni. Est. de Feira de Santana. Nov. 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GUIRALDELLI Jr., Paulo. O que é Pedagogia? São Paulo: Brasiliense, 1989, 4. ed.. KRASILCHIK, Myriam. O Professor e o Currículo das Ciências. São Paulo: EPU-EDUSP, 1987. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez; DF: UNESCO, 2000. Trad. Catarina Eleanora F. da Silva e Jeanne Sawaya. PIETROCOLA, Maurício. Construção e realidade: o papel do conhecimento físico no entendimento do mundo. In: PIETROCOLA, M (org.). Ensino de Física: conteúdo, metodologia e epistemologia numa concepção integradora. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001. REGO, Teresa Cristina. VYGOTSKY: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 1999. 7. ed.


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