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Referência: Publicado na Revista Islenha, nº 37 (Julho – Dezembro 2005), pág. 143-149.

A Freira da Madeira. Uma das aves marinhas mais ameaçadas do Mundo Dília Menezes Bióloga do Serviço do Parque Natural da Madeira

Uma das aves marinhas mais ameaçadas do Mundo que ocorre unicamente na Madeira, tendo sido considerada extinta até finais da década de 60. Desde então, tem apresentado uma evolução francamente positiva pelos esforços desenvolvidos em prol da sua conservação.

INTRODUÇÃO A Freira da Madeira Pterodroma madeira é uma ave marinha, endémica da Ilha da Madeira, classificada como Em Perigo no Livro Vermelho dos vertebrados de Portugal (www.icn.pt 2004) e está incluída no Anexo I da Directiva Aves e no Anexo II da Convenção de Berna (Oliveira e Menezes 2004). Actualmente apresenta uma população mundial de apenas 65 a 80 casais, com uma área de nidificação restrita ao Maciço Montanhoso Oriental, mais precisamente em pequenos patamares acima dos 1600 metros de altitude, localizados entre o Pico do Areeiro e o Pico Ruivo. A presença desta ave, dado o seu estatuto de conservação, é suficiente para conferir à área a designação de Zona de Protecção Especial (ZPE), sendo também um Sitio de Interesse Comunitário (SIC), por apresentar uma elevada biodiversidade, nomeadamente ao nível da vegetação onde são conhecidos vários endemismos. Reprodução As aves marinhas pertencentes à ordem dos Procelariformes, onde se inclui a Freira da Madeira, vivem exclusivamente no mar, apenas vindo a terra durante a época de reprodução. No caso deste endemismo madeirense, que passa o ano em paragens


desconhecidas, as áreas de nidificação são visitadas entre fins de Março e meados de Outubro. É nesta altura que ao longo de todo o Maciço Montanhoso Oriental se podem ouvir as aves ao cair da noite quando voltam para os seus ninhos; buracos escavados no solo, em locais cujo coberto vegetal se encontra em bom estado de conservação (Zino et al. 2001). Actualmente, esta situação e pela profunda e negativa influência do Homem, só acontece em pequenos patamares localizados em zonas inacessíveis de escarpa, denominadas de “mangas”. O período de reprodução tem o seu início em Março, com a limpeza e preparação do ninho em paralelo com o acasalamento e cópula. Após esta fase, no final de Abril, dá-se o êxodo pré reprodutor ao longo do qual as aves procuram maximizar o seu balanço energético, no sentido da gestação do ovo se dar nas melhores condições. De regresso em meados de Maio, dá-se a postura de um único ovo, sem possibilidade de reposição no caso deste se inviabilizar ou ser subtraído por um predador. No processo de incubação participam as duas aves que se revezam, ficando uma no ninho enquanto a outra vai se alimentar, até ocorrer a eclosão no início de Agosto. Durante a fase de crescimento, que se prolonga até meados de Outubro, os juvenis ficam no ninho e são alimentados pelos pais, que fazem visitas alternadas e cada vez mais espaçadas ao longo deste período. Finalizada esta época de reprodução, com a saída dos juvenis no seu primeiro voo para o mar seguindo a rota dos pais, esperamos o regresso das aves adultas no ano seguinte para ocuparem o mesmo ninho, iniciando uma nova época reprodutora. Quanto aos juvenis, estes só deverão regressar a terra após 4 ou 5 anos para iniciarem o seu período pré reprodutor, fazendo ensaios em pequenos ninhos, para posteriormente poderem dar o seu contributo no aumento do efectivo populacional da espécie.

HISTORIAL A Freira da Madeira foi descoberta pelo Padre Ernesto Schmitz em 1903, que perante um único exemplar encontrado nas serras de Santo António, o identificou como sendo uma Freira do Bugio Oestrellata feae (actualmente Pterodroma feae), da qual ele tinha conhecimento que nidificava no Bugio, Desertas. Mattews, em 1934, não concordou com esta classificação e perante a mesma ave, descreveu-a como sendo uma subespécie de Pterodroma mollis, endémica da Madeira a qual recebeu o nome de


Pterodroma mollis madeira, ficando a do Bugio como Pterodroma mollis deserta (Bannerman & Bannerman 1965). Após este período, pouco se soube sobre esta espécie, tendo sido dada como extinta até aos finais da década de 60. Em consequência da “persistência” de alguns naturalistas inconformados com este desaparecimento, onde se pode incluir G. Maul, C. de Andrada e P. Zino, entre outros ornitólogos estrangeiros, a Freira da Madeira foi redescoberta em 1969. É de salientar a dedicação por parte do João de Gouveia, que tendo participado nos primeiros trabalhos de procura de áreas de nidificação, acedeu à primeira manga que continha uma ave e um ovo. Este homem, que não pode ser esquecido pela história da Conservação da Natureza da nossa ilha, ainda continua, no vigor dos seus quase 75 anos, a ser um valioso colaborador activo do Projecto de Conservação da Freira da Madeira. Muitas gerações de naturalistas, biólogos e Vigilantes da Natureza ficaram a conhecer os cantos “à casa” pela mão deste Guarda Florestal aposentado. Na altura da redescoberta foram encontrados apenas sete casais, número que se manteve durante aproximadamente duas décadas, pois o sucesso reprodutor desta ave foi praticamente nulo, ou seja, foram poucos os ovos que resultaram num juvenil voador (Menezes & Oliveira 2002). Só a partir de 1986 a Freira começou a apresentar indícios de uma evolução positiva, embora lenta, que em 2001 estava estimada em apenas 30 a 40 casais. Este aumento populacional foi o resultado dos esforços de conservação implementados no terreno com o objectivo de minimizar o efeito de algumas ameaças sobre esta ave. Ameaças A conquista de novas áreas pelo Homem fez-se acompanhar pela introdução de espécies, de forma acidental ou mesmo intencional, que tem vindo a tornar-se um problema à escala global, da qual a Madeira não é excepção. Como reflexo destes acontecimentos temos o estado actual de conservação da Freira, que quase foi extinta num passado próximo devido à forte predação directa por parte de mamíferos introduzidos, nomeadamente o rato e o gato asselvajado e à degradação do habitat de nidificação por parte dos herbívoros, nomeadamente cabras, ovelhas e coelhos. A presença destes animais favorece a destruição do coberto vegetal rico em endemismos, o aparecimento de plantas infestantes e a ocorrência de erosão, fazendo com que esta a Freira fique apenas confinada a áreas muito restritas onde, o gado não consegue aceder.


Também a captura de ovos e de aves por parte de coleccionadores e comerciantes, o uso humano intenso e não controlado da área de nidificação e a falta de consciência ecológica generalizada, sobre a importância e necessidade de conservar toda esta área, foram factores importantes no declínio desta ave. MEDIDAS DE CONSERVAÇÃO Depois de uma grande descoberta para a ciência e contributo para o nosso Património Mundial, esta espécie não poderia já mais ser deixada ao sabor do tempo e de todas as ameaças às quais apresenta uma elevada vulnerabilidade. Perante o cenário de degradação de toda a área de nidificação e da predação directa sobre a Freira, desde 1986, está em curso um programa de conservação que tem actuado em múltiplas vertentes. Com o objectivo de minimizar a acção dos predadores, nomeadamente os ratos, sobre os ovos, juvenis e adultos desta espécie, foi implementado um programa de controlo de predadores (um dos mais antigos do Mundo com sucesso) na área de nidificação, que passa pela existência de um cordão de aproximadamente 120 caixas com veneno colocadas à volta da colónia. Os gatos também se mostraram bastante nefastos para a população, atendendo a que num só episódio resultou a morte de vários indivíduos adultos, tendo sido criado um programa de controlo dos mesmos, através da captura com armadilhas “gatoeiras” ao longo de toda a área de nidificação. De forma a dar continuidade a este esforço de conservação, desde 2001 a Secretaria Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais através do Serviço do Parque Natural da Madeira está a desenvolver um projecto intitulado “Conservação da Freira da Madeira através da recuperação do seu habitat”. Este projecto com a duração de quatro anos, co-financiado pelo Programa LIFE - Natureza, por uma ONG ( FFI - Fauna and Flora International) e pelo Governo Regional, tem como principal objectivo, recuperar todo o habitat de ocorrência da Freira da Madeira, providenciando as condições para que o Ecossistema do Maciço Montanhoso Oriental funcione em bom estado de conservação. De forma a ser concretizado este objectivo global e bastante ambicioso, várias acções foram implementadas na área de intervenção. No âmbito da recuperação da vegetação de altitude, a retirada do gado da área de nidificação, foi uma das acções mais importantes, possibilitando assim a recuperação do coberto vegetal, que está a ser


monitorizado e cujos resultados apontam para uma rápida melhoria. A aquisição da área de nidificação surge de maneira a facilitar a implementação de um plano de gestão específico para toda a área do Maciço Montanhoso Oriental. Outra das acções, não menos importante, passa pela divulgação e sensibilização do público em geral para a problemática da conservação desta espécie. Com o objectivo de melhorar o estado de conservação da Freira, várias acções são implementadas durante a época de reprodução, de forma a acompanharmos e progredirmos no conhecimento da sua biologia, ecologia e evolução da população.

Evolução da população Com o objectivo de melhorar o estado de conservação da Freira, ao longo da época de reprodução é desenvolvido um trabalho que passa pela monitorização dos ninhos conhecidos e pela procura de novos, que nos dará o verdadeiro crescimento da população, em áreas já identificadas. Este trabalho é realizado com base em quatro visitas a cada ninho, de forma a minimizar a perturbação causada pela presença humana nas áreas de nidificação desta ave. As visitas são efectuadas em alturas chave do ciclo reprodutor, nomeadamente limpeza dos ninhos, postura, eclosão e saída dos juvenis para o mar. Nesta última etapa, procede-se à anilhagem dos juvenis, com o objectivo de obtermos informação sobre a biologia desta espécie. Durante muito tempo, desde finais dos anos 80, apenas era conhecida uma única colónia de nidificação composta por cinco “mangas” relativamente próximas entre si, onde estavam distribuídos todos os ninhos e consequentemente toda a população. Embora ao longo de vários anos fossem desenvolvidos trabalhos de prospecção, só em 2003 foi localizada e acedida uma nova colónia de nidificação denominada por “Manga Life”, com 21 ninhos activos, que embora relativamente distante da anterior, também se situa no Maciço Montanhoso Oriental. Esta descoberta foi muito importante para a perenidade desta ave que, por um lado, quase duplicou o efectivo populacional que passou a ser de 60 a 75 casais reprodutores, e por outro a existência de duas colónias separadas no espaço reduzindo assim a probabilidade de um mesmo factor externo contribuir para a extinção de toda a população (Menezes & Oliveira 2003). Ainda não rendidos às anteriores descobertas e continuando os esforços neste sentido, os Técnicos e Vigilantes da Natureza do Serviço do Parque Natural da Madeira,


em 2004, encontraram mais uma pequena manga na colónia Life com mais seis ninhos novos. Este foi um ano francamente positivo, pois para além da nova manga foram descobertos mais cinco ninhos na antiga colónia, tendo sido anilhadas 25 juvenis de um total de 29 aves, número que antes nunca tinha sido conseguido numa época de reprodução. Em termos de conservação estes dados significam muito, porque estamos perante um contínuo aumento dos efectivos reprodutores de Freira da Madeira sendo actualmente na ordem dos 65 a 80 casais. Não obstante estes aspectos positivos é importante referir que esta espécie única no Mundo mantém o preocupante estatuto de conservação Em Perigo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bannerman, D. & Bannerman, W. (1965) Birds of the Atlantic Islands. A history of the birds of Madeira the Desertas, and the Porto Santo Islands. Edinburgh: Oliver and Boyd. Menezes, D. & Oliveira, P. (2002) Conservation of Madeira’s Petrel through restoration of its habitat. Proceedings do Workshop on invasive species on European Islands and Evolitionary Isolated Ecosystems and Group of Experts on Invasive Alien Species (Convention on the Conservation of European Wildlife and Natural Habitats), Horta Azores, 10-12 Outubro. Menezes, D. & Oliveira, P. (2003) Conservação da Freira da Madeira, Pterodroma madeira, através da recuperação do seu habitat. In: Rodriguez, J. (Ed.) Control de vertebrados invasores en Islas de Espana e Portugal. Consejeria de Medio Ambiente y Ordenación Territorial del Gobierno de Canarias. 35- 42. Oliveira, P. & Menezes, D. (2004). Aves do Arquipélago da Madeira. Serviço do Parque Natural da Madeira. Funchal. Zino, F., Oliveira, P., King S., Buckle, A., Neves, H., & Biscoito, M. (2001) The conservation of Zino' s Petrel , Pterodroma madeira, in Madeira. Oryx. 32: 128 - 135. www.icn.pt/documentos/Livro_Vermelho/Classif_Aves_Madeira.pdf - Lista de espécies de aves do Arquipélago da Madeira presentes no Livro Vermelho de Portugal.

Foto 1. Juvenil de Freira da Madeira Pterodroma madeira Foto 2. Ave adulta de Freira da Madeira Pterodroma madeira Foto 3. Ninho de Freira da Madeira. Foto 4. Manga de nidificação da Freira da Madeira. Foto 5. Vista panorâmica da área de nidificação. Foto 6. Vigilante da Natureza na vistoria e prospecção de ninhos. Foto 7. Nova colónia de nidificação descoberta em 2003. Foto 8. Caixa de veneno usada no cordão de controlo de predadores, nomeadamente o rato. Foto 9. Planta endémica, Geranium maderense.



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