EntreCortes

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Cortes -

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Patricia Francisco

-Entre Cortes -

ediçþes


Mulheres pintadas por homens. Mulheres pintadas por mulheres ficaram um pouco à sombra, fora da linha de tempo da História da Arte. Que caminhos dar para tudo isso? Mostrar. Vou mostrar o que descobri, o que encontrei nessas representações pictóricas, criando memórias dos cortes experimentados em vida.

Patrícia Francisco


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silêncio. O tempo está em silêncio, só os sons da rua me interessam, mas apenas os quase inaudíveis. Trabalho, mas o temp o está suspenso, houve um corte no tempo. Linguagens podem transformar-se em metáforas, mas não podem transformar-se em mim. Não nesse momento de espasmos, de clareira ou de escuridão, em que só o silêncio e a interiorização habitam o meu ser. Houve um corte, mudanças vêm por aí.

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ão sabemos o que pensar nesse momento. O tempo está acabando. Olho para essas imagens históricas que também olham para mim. Penso e vejo intensamente, muitas pessoas em minha frente. Perco a inspiração, respiração, não sei direito. Sinto falta de pessoas que não vejo mais. Algumas não voltaram aqui. Habito outro espaço. Provoquei um corte.

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stou no meio de um lugar de transição, de trânsito intenso, porém o meu tempo está em suspenso, entre parênteses; estou vivendo o corte, o espaço entre um tempo e outro tempo. Suspenso. Suspense. O tempo trará o fim desse corte e o início do outro tempo.

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or onde contar os anos? Como encontrar a escritura dos nossos tempos? Tenho esquecimentos, mas lembro constantemente de mulheres que lutaram e mudaram o seu tempo. A coragem não vem da força física, mas da inteligência. Hoje recordo os finais. Amanhã uma nova aurora surge e tudo recomeça com o sol, sua luz entrando pela janela do meu quadro. Os mistérios se dissipam e o corte vai terminar. Esse espaço nunca dura muito. Sei disso. Conto histórias.

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relógio faz um som constante e mostra as horas sucessivamente. O tempo precisa das horas do sol, da lua, o tempo precisa de nós. Nós envelhecemos. Colocar as horas para frente. Colocar as horas para trás. Brincar com o tempo. Ouvir músicas, contar o tempo, ver sua passagem, pensar no futuro.

O tempo que passou se reflete, consequentemente, se mistura com o presente, se enriquece, se imbrica, se limpa, se torna. O tempo passou e eu também estou passando com vida a todo instante. Não deixo o assunto acabar. Resgato uma lembrança e falo, articulo, misturo com outras ideias. Estou cansada de coisas velhas que não dão certo.

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ortes. Corte. É só sair em silêncio.

Construo uma linha tênue que vai do nada ao tudo. Parece exagero, mas é pensando assim que as coisas se constroem. Uma linha que circunda estrategicamente a cidade, que desenha, que se estende, que fabrica ideias. As intenções são múltiplas. A espera também. Diversas formas. É o tempo ocioso. Mas que tempo se constrói dessa forma? Primeiramente, um silêncio é estabelecido, uma imagem separa-se da outra. Então, ficamos pensando o que pode uni-las. Justaposição. Sobreposição. Incrustação. É o que faz o seu movimento ficar contínuo?! Acabou o corte.

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assa muito rápido e quando você vê colocaram-

no de novo no corte. Você vai em frente. Corre para

chegar. O tempo. Não deu tempo. Agora várias falas ficam a processar.

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ouve mais um corte. E o que fazer agora? Ainda não sei. Estou sob efeito do corte. (em estado de choque e triste) Mais uma vez a sensação de que o tempo passou. Ouço burburinhos ao longe, há uma conversa aqui perto, mas eu não consigo fazer parte dela. Tenho que me posicionar e tomar algumas decisões. Mas qual ou quais? Que decisões? Ela me diz que a vida adulta não é fácil e não é fácil mesmo. Eu preciso atentar para as mudanças e mover-me para isso. É preciso ficar atenta. E ágil!

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ntrecortes, fazia tempo que nĂŁo nos vĂ­amos... O corte chegando. Como seria o reencontro? Estava desabitada. Mas com o passar do tempo, os fragmentos foram se agregando e tomando o seu lugar na pintura, voltando Ă forma. Agora estou pronta para o renascimento.

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ntre CORTE Sou um retrato nesse momento, mas não é por isso que vou deixar de refletir. Ficar emoldurada dá um foco, um sentido ao pensamento.

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ui cortada? Estou dentro desse enquadramento a contemplar toda a perspectiva que essa paisagem me traz. Ouço ao longe uma canção, que rememoro por alguns momentos, antes de chegar nesse quadro. Queria ter lembrado antes essas coisas, mas agora que estou presa em minha própria memória, começo a lembrar de muitas memórias ao mesmo tempo. O que é estar dentro? O que é estar fora? Eu sei o que é estar fora, esse corte, esse não pertencimento, um clima de espera. O corte é estar em um limbo, banhado de recordações e de reflexões que tentam entender qual foi o momento exato em que me deslocaram para esse local - o lugar da pintura.

Vejo muitas pessoas me olhando e eu tento me comunicar. Mentira. Isso não é verdade. Fico imóvel. Só ouvindo os comentários, percebendo as qualidades e as falhas do meu enquadramento. Em muitas horas fico sozinha e é nesses momentos que penso mais nos meus erros e na minha vida. Eu tento me comunicar, mas é uma comunicação interna. Uma conversa que inicio todo dia comigo e que morre comigo. Um dia eu conheci um homem, ele rapidamente me beijou. Foi embora. Tudo acabou. Não foi só isso que aconteceu entre nós, mas eu não recordo a nossa história. Lembro quando acabou, do corte e de como eu me senti logo após esse momento. Um entrevidas abriu-se em mim. Eu vivia isolada, desenhando, percepções e circunscrições diversas, momentos de rebeldia controlada, euforia e alucinações.


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i que com o passar do tempo eu poderia me transformar (as partes vão se arruinando, se arrumando). Pior é a deterioração interna, um rasgo.

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ortes se estabelecem por diversas formas. Nessa semana ocorreram vários. Você tenta estabelecer o diálogo, mas a situação vai além do que seria o esperado. Sinto-me em um buraco profundo, com questões para resolver. Uma cançãozinha ao fundo, não lembro exatamente de que época, século XVI ou XVII? Quando se dura mais que um século é assim! Não é em que ano você nasceu. É em que século você nasceu? Tenho sono... será isso o isolamento? Essa canção ao fundo e o meu pensamento. Estou enquadrada. Como sair desse confinamento? O eco é maior que a canção. Eu estou no eco, no desvario, naquilo que é espesso e gélido, não penetrante, curioso. Deixaram entrar uma fresta de luz no meu quadro. Corta a emoção. Corte com o olhar.

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corte configurou-se e eu pensando que ele não vinha mais. O corte foi estabelecido e o silêncio, por enquanto, é bom. Estou tranquila. Vamos ver como será daqui para frente. Que silêncio, que alívio! Posso movimentar meus olhos. Posso alongar um braço. O museu escurece.

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stou ouvindo alguém caminhar, mas a pessoa está longe. Ontem uma pessoa ficou me olhando. Na verdade, estava pensando e não me olhando. Eu fiquei observando. Ela estava cortada. Era o olhar de uma pessoa cortada, olhos amargos, sonhos perdidos, processo inacabado. Hoje está tudo mais calmo. Entressafra.

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gora o corte é diferente. Ele não fala mais comigo. Por outro motivo, um silêncio absurdo acomete a sala. As palavras não falam. Eventualmente, algum som muito distante, mas como estou sob a pressão do quadro, não tenho como ver daqui. Entremeios. Como será minha próxima fase? Hoje o dia passou diminuto. Não pensei em quase nada. Só queria mesmo tomar um sol, lá fora, para que o corte se fechasse. A reflexão expandiu-se para outros momentos. Fez-me lembrar de outras coisas que tiveram o corte parecido. Eu já passei por isso. Por que os sintomas se repetem? Cada vez que eu me sinto cortada, vem a lembrança dos outros cortes, dos outros períodos entrevidas. Ruptura para reparação.

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orte entrecorte corte entrecorte corte. Da pintura, nada vejo. Espero o que não vai acontecer, mas espero. Espero nada, espero tudo. E quando penso que vai acontecer Acaba tudo. O problema é que acaba muito rápido. Dura pouco. O normal é algo que não suporto mais. A decisão fica próxima, melhoramos e ela se afasta, enjoamos e ela se aproxima. Na maioria do tempo estamos no entrecortes, pouco tempo bom, muito tempo ruim. Afasta. Sai de perto. Fica longe. Termina. Recomeça. Acabou de recomeçar.

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em uma lucidez. Clarividência. Se eu não penso logo em planejamento, ele escapa, some e não vem mais. Demora para vir e voltar. Tenho angústia. É tão pouco o que eu posso fazer nessa galeria. Eu quero fazer mais. Não quero mais ficar à mercê da escuridão barroca. Com a respiração presa, sufocando em um vidro. Uma ponte entre a razão e o emocional está sob navegação. Tenho me esforçado para ser.

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Referências Imagéticas

P.19

P.08 Retrato de uma Mulher (1470) de Petrus Christus P.10 Auto-retrato (1554) de Anguissola Sofonisba P.12 Retrato de Ginevra Benci (s/d) de Leonardo da Vinci P.14 A Bela Nani (1560) de Paolo Veronese P.16 Retrato de Jane Seymour (1536) de Hans Holbein P.18 A Boêmia (1642) de Frans Hals Auto-retrato como Alegoria da Pintura (1638-9) de Artemisia Gentileschi

P.20

Auto-retrato (1630) de Judith Leyster

P.23 Paola Adorno, Marquesa Brignole Sale (1620) de Anton Van Dyck P.25 Auto-retrato com um Cravo e uma Serva (1577) de Lavinia Fontana P.27 Auto-retrato como um Tocador de Alaúde (1615-17) de Artemisia Gentileschi P.29 Senhora Sabasa García (1806-11) de Francisco Goya P.31 Retrato de Madame Devauçay (1807) de Dominique Ingres P.33 Retrato de Jovem Veneziana (1505) de Albrecht Dürer P.35 Retrato de Lucrezia Panciatichi (1545) de Agnolo Bronzino P.37 Senhora Nelly O’Brien (1763) de Joshua Reynolds P.39 Anunciação, parte da Virgem (1475-78) de Leonardo da Vinci P.41 Henrickje Stoffels como Flora (1657) de Rembrandt P.45 Retrato de Susanne Fourment (1625) de Pieter Paul Rubens P.47 Dama da Corte (1590) de Lavinia Fontana P.49 Retrato de Emilie Sériziat e seu filho (1795) de Jacques-Louis David P.51 Retrato de Adelaide Binard (1796) de Marie Genevieve Bouliar P.53 A Senhora Siddons como Musa Trágica (1789) de Joshua Reynolds P.55 Dama do Cachorrinho (1532) de Pontormo Jacopo Carrucci P.57 A Mulher Velada (1516) de Raffaello Sanzio P.59 A Rendeira (1664) de Johannes Vermeer P.60 Auto-retrato (1548) de Caterina Van Hemessen P.62 Santa Catarina d’Alexandria (1597) de Caravaggio P.65 Infanta Catalina Micaela (1591) de Anguissola Sofonisba P.67 Auto-retrato no Cavalete, Pintar um Painel Devocional (1556) de Anguissola Sofonisba P.69 Senhora com Leque (1644-48) de Diego Velázquez (intervenção de Tiago Spina)


Breve currículo da autora Patrícia Francisco (1974, Porto Alegre/RS) Artista Plástica e Cineasta. Mestre em Artes pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-USP e Bacharel em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, IA- UFRGS. Trabalha entre o cinema e as artes plásticas, realizando filmes, instalações, fotografias, livros e intervenções urbanas em coletivos. Vem há alguns anos desenvolvendo uma produção de livros de artista, peças que já foram expostas em diversas feiras de livro e arte impressa pelo país. A partir dessa experiência, cria o selo edições Cinemapradois para abranger uma produção, em livro, voltada para o cinema.

Ficha técnica Entrecortes 2013 Edição experimental da autora tiragem

10 exemplares autora

(textos e imagens escolhidas)

Patrícia Francisco editora

Edições Cinemapradois revisão

Maria de Nazaré O. S. Ablas encadernação

Arrisca Encadernações projeto gráfico

Lab 62

São Paulo, 2013


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