“A mulher gloriana: a costura e as artes da agulha e do dedal” (Roberto Caneira) 1 - Introdução O termo património tem a sua origem etimológica associada ao conceito de “herança”, ou seja, aquilo que nos é transmitido pelas gerações anteriores, e é nosso dever preservá-la, para que as gerações futuras também
todas as expressões relacionadas com os provérbios, adivinhas, histórias, rimas de embalar, lendas, mitos, canções, rezas, cânticos, desempenhos dramáticos que transmitam o conhecimento, os valores e uma memória colectiva identitária”, este tipo de património contribui para o reforço da identidade de uma comunidade e é transmitido de geração em geração. A mulher gloriana é a grande detentora do património imaterial, nomeadamente ao nível da “costura” e das artes da agulha e do dedal. Ela compõe de uma forma espontânea, harmoniosa e de improviso várias peças bordadas, que depois utiliza na decoração do interior das suas habitações, na sua indumentária, nos trajes de infância, nos lenços de namorados ou na preparação do enxoval dos seus filhos. É um tipo de património cuja tradição lhe foi legada pelas suas avós, mães e outros familiares. É uma arte ancestral
Figura 1 – Ricardina Pereira
que
importa
preservar
enquanto
elemento
representativo da identidade cultural e da memória coletiva.
Figura 2 – Bordar “ao canto” com a luz de candeeiro a petróleo
possam usufruir deste legado cultural que é o património. A Glória do Ribatejo poderá não ter imponentes monumentos históricos, mas é detentora de um património que assenta na identidade cultural e memória social das suas gentes, e que se designa por património imaterial. Segundo a UNESCO, integra-se no património imaterial: “as tradições e expressões orais, incluindo a língua como vector do património cultural imaterial, abrangendo
Figura 3 – Ti “Parrachilas”
experimentadas pelas gerações que lhes transmitiram a indiferença pelo conforto e o sentido de providência e economia com que soube precaver-se.» [Margarida
Ribeiro] O Museu Etnográfico da Glória do Ribatejo ao organizar esta exposição está a construir memórias, que servem de narrativas e elos de ligação entre as diferentes gerações de glorianos, mas também promove o respeito pelo passado e perspetiva o futuro.
2 - Os bordados a ponto de cruz, uma arte funcional. A confecção de todos estes objectos é perfeita, admirável de acabamento, se atendermos às mãos que as executam, calejadas por todos os serviços mais violentos das fainas do campo. O sentido de aproveitamento de elementos vários para estas produções de arte singela é notável. (Alves Redol, “Glória, uma aldeia do Ribatejo”)
Figura 4 – Ti Maria Constância
As artes da agulha e do dedal nascem das mãos calejadas das mais árduas tarefas da faina agrícola, e não se inserem nas designadas artes decorativas, cuja função é o deleite esteticista, na Glória do Ribatejo as artes da agulha e do dedal tem uma outra função, os objetos são criados com a finalidade de serem usados no quotidiano diário e possuem uma ação social, funcional e viva, fruto de uma longa experiência transmitida de geração em geração. Este ano a exposição temática do Museu Etnográfico
Figura 5 – Pormenor das mãos a bordar ponto de cruz
aborda as artes da “costura”, da agulha e do dedal,
Os bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo,
expõem os variados trabalhos e as diferentes tipologias,
nascem na necessidade e do desejo de introduzir cor e
mas acima de tudo dignifica e realça o papel da mulher
alegria aos objetos usados no dia a dia. Os objetos
gloriana. Evocamos a descrição por Margarida Ribeira na
criados têm uma função social e intervêm no quotidiano
década de 60 do século passado e que ainda hoje se
das pessoas.
mantém atual:
É generalizado que os bordados a ponto de cruz, fazem
«Se a observarmos hoje, sentada no chão da sua própria
parte do binómio identidade/memória da comunidade
casa, de pernas cruzadas; se fixarmos o seu rosto queimado
da Glória do Ribatejo. A forma como eram usados,
pelas intempéries em contraste com a brancura das
diferencia-os das restantes comunidades locais e
têmporas, devido à proteção permanente do lenço, que põe
regionais. Os motivos aplicados, a escolha das cores e a
na cabeça; se perscrutamos a sua posição aprumada e
forma como eram empregados, contribuíram para a
silenciosa, teremos compreendido as longas vicissitudes
afirmação/diferenciação desta arte na Glória do
ao facto de as habitações glorianas não terem luz. Muitas
Ribatejo.
vezes estas peças eram “marcadas” à luz de uma candeia
Não existem dados concretos sobre a origem histórica e
de azeite ou de um candeeiro a petróleo, que davam uma
geográfica dos bordados a ponto de cruz da Glória do
luz mínima. Para além do uso do pano-cru, a utilização da
Ribatejo. Na recolha oral efetuada junto de mulheres que
serapilheira também era uma constante, dado que
hoje estão na faixa etária dos 80 anos, afirmam quem as
muitos proprietários agrícolas utilizavam sacas de
ensinou a bordar foram as suas mães e que estas por sua
serapilheira, por ser um material resistente, as mulheres
vez aprenderam com as suas mães.
glorianos, “desviavam” algumas sacas, aquelas que
Atendendo
a
estes
testemunhos,
e
tendo
em
consideração as peças bordadas existentes no Museu Etnográfico, datáveis de início do séc. XX podemos recuar no tempo e situar-nos cronologicamente em meados do séc. XIX, mas é bem possível que a sua origem possa ser ainda mais remota. No que respeita à sua elaboração, sabemos que no “antigamente” os motivos bordados eram mais finos, devido aos parcos rendimentos das famílias glorianas, as linhas compradas eram desfiadas e desta forma rendiam mais. As cores mais usadas eram o vermelho, o roxo e o verde. No que respeita ao pano, o mais utilizado era o pano-cru, que dificultava imenso a feitura dos bordados, acrescido
Figura 7 – No “quartel” à noite a bordar uma toalha
estavam
em
mau
estado,
para
as
utilizarem
posteriormente nos bordados a ponto de cruz. Os bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo, não eram feitos com o intuito de aumentar os rendimentos familiares, como acontece no caso dos bordados de Arraiolos ou dos bordados de Tibaldinho (Mangualde), onde as bordadeiras tinham esta profissão e viviam em exclusivo da venda dos seus bordados. Na Glória do Ribatejo, somente em tempos vagos é que se bordava e nunca com o intuito comercial, mas sim com um objetivo funcional: peças que vão integrar o enxoval da rapariga, decoração do interior da habitação, nos trajes, na identificação de peças de roupa entre outros aspetos.
Figura 6 – Interior de uma habitação, com mulher gloriana a bordar
3 – Lenços de namorado e sua simbologia A origem dos lenços de namorado está intimamente
lenço vai dar ao centro e é a partir dele que se constrói toda a decoração.
ligada aos lenços senhoriais do Séc. XVII e XVIII, que
No que respeita aos motivos decorativos dos lenços
posteriormente foram adaptados pelas mulheres do
encontrámos símbolos religiosos: pinto (cruz de cristo),
povo, que lhes conferiram características de índole
símbolos de afectividade: coroa dos corações, flores,
popular. Os lenços de namorados constituíam a dado
pombas e as iniciais dos namorados.
momento uma prova de declaração feita pela bordadeira ao seu namorado. Os namoros na Glória do Ribatejo eram arranjados (como o povo dizia) nos bailes. Rapazes e raparigas
Figura 9 – Lenço de namorado com a palavra “Amor”
trocavam os primeiros olhares, e depois timidamente iam dançar, mais tarde surgia a declaração e o pedido de namoro, que geralmente era aceite pela rapariga com o consentimento dos pais.
Figura 10 – Lenço de namorado com o motivo da coroa dos namorados e respetivos corações
Figura 11 – Lenço de namorado com motivos de jarras, pássaros e letras
A parte decorativa mais interessante em termos etnográficos deste lenço de namorado é sem dúvida as letras referentes aos namorados, e às colegas de trabalho (camaradas) e seus respetivos namorados, criando desta forma teias de amizade.
Figura 8 - Baile
Depois desta declaração a rapariga começava então a bordar o lenço de namorado para o rapaz. Quando o rapaz aceitava o lenço da sua amada e o exibia em público, desvendava aos olhos de toda comunidade o seu estado de comprometido. Os lenços de namorado, funcionavam como uma “escritura pré-nupcial”. A decoração destes lenços é baseada num modelo geométrico onde predomina a simetria e a forma. Na composição decorativa destes lenços, cada ângulo do Figura 12 – Lenço de namorado dobrado
Os folhos das toucas fazem lembrar as gargantilhas que 4 – A Infância
os nobres usavam no séc. XVIII.
No passado a indumentária da criança era feita pela mulher gloriana (avós/mães ou um familiar mais próximo). As toucas de infância juntamente com vestido e o babete constituíam o traje de infância. Estas peças eram verdadeiras obras de arte, todo o primor decorativo e a escolha dos motivos era feito a preceito pela mulher. As toucas de infância mais antigas e que o museu ainda tem alguns exemplares, eram constituídas por duas peças: “touca de baixo”, feita de pano branco e com o
Figura 15 – Touca de infância
5 – A indumentária da mulher gloriana O vestuário da mulher gloriana tinha características Figura 13 – Mulher gloriana com criança envergando touca e o respetivo fato de infância
bastante peculiares. Atualmente só algumas pessoas mais idosas mantêm o trajar do passado. Na indumentároa da mulher gloriana, sobressaem motivos bordados a ponto de cruz, nomeadamente no traje de trabalho, com destaque para o avental que apresenta vários motivos bordados. No lenço da cabeça são visíveis
Figura 14 – Criança gloriana
folho do mesmo tecido, e a “touca de cima”, feita de outro tecido que podia ser seda ou “gorgorina”, mas com o folho de pano branco, igual ao da “touca de baixo”. Posteriormente, estas duas peças tornaram-se numa só: a touca passou a ser forrada e com dois folhos “pregados” na mesma peça.
Figura 16 – Pormenores da indumentária da mulher gloriana
arrendados. As mangas levemente tufadas terminam em as iniciais bordadas da dona do lenço, na cinta que a mulher coloca à cintura também se verifica alguns motivos bordados a ponto de cruz.
punhos bordados com os mesmos motivos dos colarinhos. A cerca de seis dedos deste, a varanda – o que na linguagem das costureiras se conhece por encaixe. Toda a blusa é alindada com desenhos singelos, dispostos em sábia harmonia de cores e de motivos. [Alves Redol] Na indumentária feminina destaca-se ainda o avental, que está amplamente “marcado” a ponto de cruz e onde a mulher gloriana colocava por vezes a “molhadura das linhas” e o dedal, que era um sinal de compromisso de trabalho com um patrão, e aqui mais uma vez se verifica a importância dos bordados a ponto de cruz na Glória do Ribatejo. Finalmente, há ainda a salientar a “saia de costurina”, que era uma espécie de saia larga que as glorianas usavam sobre os ombros ou sobre a cabeça, a sua função era a de um agasalho, tanto para o frio como para a chuva, e também usado como manta nas noites de Inverno quando ficavam nos quartéis de trabalho. Esta saia era de cor preta, mas num dos cantos possuía
Figura 17 – Aspeto do traje da mulher, onde se destaca a saia de costurina com motivos bordados
bordados a ponto de cruz, cujos motivos eram as iniciais
Redol descreve-nos a indumentária de trabalho da
que identificavam a detentora da saia, acompanhado
mulher gloriana da seguinte forma: “(…) mulheres de Sor,
com um outro elemento bordado.
dos Foros de Salvaterra e da Glória. Só estas ficam na retina, pela beleza rústica que as suas mãos rijas, ao contacto da foice, das ervas daninhas e dos moços, vão criando às horas da sesta e depois do desferrar, bordando aventais e casacos em tão feminil desvelo (…). O trajo da mulher não tem o preciosismo, a riqueza da execução do da minhota, por exemplo. Constituem-no a blusa, a que chamam de casaco, a saia, o avental e o lenço. Mas nestas vulgaríssimas peças usadas pela maioria dos camponeses de Portugal, elas põem tal gosto de atavio que conseguem destacar-se, nos seus pobres riscados das outras minhas conhecidas. Todos os casacos sobem até meio do pescoço num colarinho, por vezes com pontas donde nascem de alguns para as costas, cabeções
Figura 18 – Aspetos e pormenores da Indumentária das mulheres glorianas
6 – Tipologia de “bicos”, letras e motivos decorativos
6.2 - Tipologia de Letras
6.1 - “Bicos”
Nos bordados a ponto de cruz, destacam-se vários tipos
Os “bicos” rematam a parte final de um pano ou outra peça bordados, tinham como função enriquecer do ponto de vista estético este objeto. Fruto da criatividade da mulher gloriana, eram feitos com uma agulha de bicos e podiam ter várias formas conforme a técnica e agilidade da mulher.
de letras, conforme a sua caraterística funcional e forma, por exemplo a letra dos passarinhos, tem um pássaro; letra das cerejas com um motivo de uma cereja, letra florida possui flores, letra da estrela tem a forma de uma estrela, destacam-se também a letra de um ponto, dois pontos ou três pontos de acordo com o número de pontos.
6.3 - Motivos decorativos
7 - Conclusão
Na confeção das peças bordados, encontram-se vários
As artes da costura, da agulha e do dedal, foram
motivos decorativos que caraterizam o espirito criativo
sabiamente preservadas pela mulher gloriana, dado que
da mulher gloriana. Podemos encontrar motivos
estas artes eram elemento essencial na vida social das
religioso e pagãos como exemplo o pinto e o cinco
mulheres glorianas. Costurava-se aos serões ou nos
saimão, simbologia associada à natureza: jarra das flores,
tempos livres, e faziam-se peças/objetos essenciais para
cercadura das cravinas ou motivos de origem animal:
o seu traje, na decoração de móveis e noutros locais da
cãezinhos, a pomba ou peixinho, entre outros inúmeros
sua casa, na indumentária dos seus filhos, no dia-a-dia
motivos decorativos
como exemplo os taleigos ou bolsas para o dinheiro e acautelava-se o enxoval dos filhos. Todo este saber-fazer e técnicas foram passando de geração em geração, através do uso prático, mantendose fieis à tradição dos seus antepassados. O Museu Etnográfico, enquanto repositório da história, etnografia e cultura da Glória do Ribatejo, a investigação e conceção desta exposição, que contou com o apoio massivo da população local, reforça o papel da mulher na comunidade gloriana, e relembra a importância das artes, da agulha e do dedal enquanto marcas da identidade cultural, que importa preservar e divulgar.
Ficha Técnica Edição: Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural da Glória do Ribatejo Textos: Roberto Caneira Ano: 2019