ATOS HUMANOS, um zine
Este projeto recebeu o apoio do Instituto de Tradução de Literatura da Coreia (LTI Korea)
Projeto gráfico, direção de arte, ilustrações: Patricia Baik Ilustrações pp. 13, 18: Ing Lee
SUMÁRIO O zine é o pai dos fandoms_______________________________________________ 04 Uma introdução ao universo de Han Kang por Leandro Sarmatz____________________________________________
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Feridas abertas da Coreia do Sul
por Daniel Benevides____________________________________________ 08
Memória e ressureição
por Daigo Oliva____________________________________________________ 12
Um gesto de amor à humanidade
por Tamy Ghannam_______________________________________________ 16
O zine é o pai dos fandoms O fanzine é pai do blog, pai da fanfic, pai do tiktok. O fanzine é o primeiro DIY (“do it yourself ”, ou “faça você mesmo”) da cultura jovem do século xx. O zine está entre os objetos de informação mais estimados dos últimos cinquenta anos. É a revistinha, é o barato de fã sobre alguma banda, é o folheto político de uma juventude consciente. O fanzine é, em suma, uma manifestação de afeto e liberdade. Era provavelmente em fanzines que os estudantes de Gwangju se manifestavam para celebrar sua juventude e criticar a velha ordem da Coreia do Sul daquela época. E a virada da década de 1970 para 1980 foi pródiga nessas publicações no mundo inteiro. Muito graças à estética punk, aos movimentos estudantis, à rebelião jovem. Para celebrarmos a chegada de Atos humanos resolvemos, pois, produzir o nosso fanzine. Textos sobre o contexto histórico da Coreia do Sul na época, a fervilhante cena literária de hoje, a obra de Han Kang. Tudo isso aparece aqui, escrito com o mesmo entusiasmo e a mesma fome de informação dos fanzines mais clássicos.
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Uma introdução ao universo de Han Kang
Em A vegetariana, a autora mesclava o elemento quase surreal com a descrição mais controlada; já em Atos humanos, o respeito aos mortos, o desamparo e a busca por sentido emergem de um acontecimento histórico carregado da energia de uma fabulista no auge de suas habilidades por Leandro Sarmatz
Poucas vozes na literatura contemporânea soam tão singulares quanto a da sul-coreana Han Kang. Diversos motivos para isso. O primeiro deles é que Kang, nascida em 1970, pertence a uma cultura literária que somente nos últimos anos começou a ser conhecida no Brasil (que abriga uma das maiores colônias coreanas fora do país asiático). Talvez tenha demorado um pouquinho, mas, de todo modo, tem valido a pena. E não só para a literatura. As artes da Coreia do Sul, em geral, vêm se impondo no panorama internacional. E isso vale para o cinema, a poesia, a música pop — de que o país hoje é um dos maiores exportadores de novos ritmos —, os quadrinhos. Outra razão para o lugar especial da autora na cena literária de hoje são as características de sua ficção. Desde A vegetariana, o romance que fez a carreira internacional de Han Kang, não se via uma literatura que, mesclando o elemento quase surreal com a descrição mais controlada, pudesse falar de desejos secretos, sonhos perturbadores, relações abusivas. E tudo num tom que evita o 5
derramamento, o barulho, a dramaticidade exagerada. É o caso, embora com características diversas, deste Atos humanos. Tudo no livro é um assombro. Em primeiro lugar, o trágico evento que levou à morte mais de cem pessoas. Conhecido como o “massacre de Gwangju”, quando cidadãos revoltados desafiaram a ditadura em maio de 1980 e foram aniquilados pelas forças da ordem, o episódio tem ressonâncias até hoje na democracia sul-coreana. Pegando esse acontecimento histórico como ponto de partida, Kang faz um concerto de vozes em torno de temas tão poderosos quanto perduráveis como o respeito aos mortos, o desamparo, a busca por sentido. Há mais um elemento que salta à vista na leitura e que faz de Atos humanos outro rebento muito especial entre os livros da autora. O acontecimento histórico, real, é retomado com as ferramentas mais poderosas de sua imaginação. 6
A violência do Estado, a incompreensão profunda de cidadãos atingidos pelo próprio governo, a reivindicação dos corpos: tudo isso, que produziu uma cicatriz profunda na trajetória da Coreia do Sul, está no livro. Mas metabolizado pela energia de uma fabulista no auge de suas habilidades. O resultado, de cair o queixo, é um romance que, partindo do real, nos faz mergulhar no universo (e na mente) de seus personagens ficcionais. Um livro que causa impacto do início ao fim. Boa leitura!
Leandro Sarmatz é editor e sócio na Todavia. leandro@todavialivros.com.br
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Feridas abertas da Coreia do Sul
Um panorama da nova e instigante literatura coreana contemporânea por Daniel Benevides
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O sucesso da cultura sul-coreana mundo afora coincide com a redemocratização do país asiático no final dos anos 1990. Depois de 35 anos sob o domínio japonês, a divisão da nação em duas, a Guerra da Coreia e uma sucessão de governos autocráticos, fenômenos como o k-pop, seriados de TV e filmes abriram espaço no mercado global. No século atual, Parasita ganhou quatro estatuetas do Oscar, e bandas como BTS chegaram ao topo das paradas em vários países do planeta incluindo o Brasil. Com a literatura não foi diferente, ainda que muitos hesitem em colocar os romances e contos contemporâneos na chamada Onda Coreana - a praia certamente não é a mesma. Fato é que, ao vencer o Man Booker International Prize em 2016, A vegetariana, de Han Kang, fez com que editoras e a crítica especializada voltassem os olhos para outras escritoras da Coreia do Sul. O uso do feminino se explica. Quase todos os melhores livros do país são escritos por mulheres (uma exceção é Kim Un-su, elogiado autor de The Plotters). Algo que certamente tem a ver com a difícil questão de gênero na sociedade sul-coreana. Problemas sociais que persistem e, em alguns casos, se agravam. Até hoje, Parasita, de Bong Joon-ho, desencadeia debates sobre a desigualdade no país, ao passo que Minari, de Lee Isaac Chung, revela como é a luta pela sobrevivência de imigrantes sul-coreanos nos Estados Unidos. Com narrativas diferentes e resultados semelhantes,
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livros como Por favor, cuide da mamãe, de Shin Kyung-sook, Kim Jiyoung, Born 1982, de Cho Nam-joo, e A vegetariana tratam das muitas violências cometidas contra a mulher, escancarando a misoginia e o machismo no sudeste da Ásia. Os três venderam, cada um, mais de 1 milhão de exemplares na Coreia, foram traduzidos para dezenas de línguas e levados ao cinema e TV, o que mostra seu alcance. O primeiro, lançado em 2012, conta a história de uma senhora que se perde numa estação de trem quando vem do interior para visitar os cinco filhos em Seul. Ao sair em sua busca, a família vai desenhando um retrato emocional da mulher que ignorou por cinquenta anos.
“Fenômenos como o k-pop, séries e filmes — a chamada Onda Coreana — abriram espaço no mercado global, e com a literatura não foi diferente. ” O romance de Cho, publicado em 2016, ampliou a discussão sobre a desigualdade entre gêneros, inspirando o movimento #MeToo na Coreia. Bandas do k-pop o recomendaram, fazendo com que sua popularidade aumentasse. O livro descreve a vida ordinária de uma dona de casa deprimida e frustrada. De uma hora para a outra, ela assume a personalidade de outras mulheres. A autora se baseou em estatísticas para compor a personagem-título, que virou símbolo da luta feminista. Outras feridas abertas, como o massacre de estudantes em Gwangju, foram retratadas em célebres romances sul-coreanos contemporâneos. É o assunto central de Atos 10
Humanos, de Kang, e também de I’ll Be Right There, de Kyung-sook. A poeta Cathy Park Hong, norte-americana de origem coreana, costura ficção científica a um testemunho da sangrenta revolta de maio de 1980 em seu livro Dance Dance Revolution. Num dialeto que mistura coreano, inglês, latim e espanhol, descreve uma cidade turística do futuro com as cores sombrias do passado. Seguindo por outros caminhos, Bae Su-Ah é talvez, ao lado de Han Kang, a maior escritora da Coreia do Sul. Com estilos únicos, ambas partem da realidade para chegar a lugares ainda mais estranhos e não menos simbólicos, próximos do surrealismo. Kang, também música e poeta, aplica uma pátina lírica no autobiográfico The White Album, que se desenrola em torno da morte de sua irmã. Noite e Dia Desconhecidos, romance mais recente de Su-Ah, é, por sua vez, um thriller metafísico, com elementos de xamanismo e uma atmosfera onírica perturbadora. Não se pode esquecer de Kim Sagwa e seu romance b, Book and Me, sobre bullying e a passagem para a vida adulta. Mais um soco no estômago desferido pela instigante nova literatura sul-coreana. Daniel Benevides é jornalista e tradutor.
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Memória e ressurreição
A revolta de Gwangju se destaca de outras manifestações do período tanto pela violência empregada pelo Exército quanto pela resiliência dos cidadãos por Daigo Oliva
Como se fossem duas mãos amparando um misterioso objeto oval, dois pilares de quarenta metros de altura recebem os visitantes do Cemitério Nacional 18 de Maio, na cidade de Gwangju. Ali, em uma grande área com mais de 166 mil metros quadrados, estão enterradas 778 pessoas, entre trabalhadores, agricultores, estudantes, religiosos e artistas, todos eles dissidentes que enfrentaram a ditadura militar que tomou o poder na Coreia do Sul no final dos anos 1970. Inaugurado em 1997 num país já redemocratizado, o memorial reflete não apenas o quão crucial foi a revolta de Gwangju para a história nacional coreana mas simboliza também um acerto de contas com a truculência dispensada aos manifestantes nos dez dias entre 18 e 27 de maio de 1980. Se hoje os ativistas pró-democracia são celebrados em um espaço coberto de homenagens, no passado os corpos de muitos dos que foram assassinados pelos militares foram levados em caminhões de lixo para serem despejados em um cemitério da cidade. Esse desprezo por civilidade e direitos humanos foi moldado pela turbulência contínua que os coreanos viveram nas décadas anteriores. Em 1961, apenas oito anos após o fim da traumática Guerra da Coreia, que deixou ao menos 2,5 milhões de mortos, o país já era comandado por outra ditadura militar. Os dezoito anos do regime autoritário de Park Chung-hee, um general apoiado pelos Estados Unidos em meio à Guerra Fria, só seriam interrompidos a tiros. Morto pelo chefe do serviço secreto do país, o ditador deixou um vácuo de poder que seria 12
preenchido por Chun Doo-hwan, alguém que, como descrito por um diplomata ocidental à mídia americana à época, era feito do mesmo barro do antecessor. A repetição de um golpe militar poucos meses após o assassinato de Park assegurou a continuidade de práticas de repressão à população e à imprensa, o que, por outro lado, também reforçou a atuação de grupos oposicionistas, sobretudo nas universidades coreanas. A criação da Associação Geral de Estudantes, na Universidade Nacional de Seul, em março de 1980, por exemplo, foi o detonador da formação de outros grupos similares por todo o país, em um processo que mais tarde seria chamado de era dos protestos acadêmicos por democracia e desembocaria naquele sangrento mês de maio. Antes de centenas — ou milhares, a depender da estimativa — de pessoas serem assassinadas em Gwangju, estudantes saíram às ruas do país para exigir o fim da lei marcial, determinada após a morte de Park, e a saída do general Chun, visto como um resquício do autogolpe aplicado pelo antigo ditador em 1972 para emplacar a Constituição que o manteria no poder sob verniz de legalidade. Os protestos, na verdade, eram apenas a ponta final de uma longa sequência de demonstrações antiditadura, de greves de fome a declarações contra a interferência em atividades estudantis, ainda que as manifestações tenham sido, de fato, o grande catalisador da repressão militar. O ato de 70 mil alunos de trinta universidades em Seul, em 15 de maio de 1980, foi sucedido pela prisão de 95 líderes estudantis e pela ampliação da lei marcial para todo o país, o que baniu atividades políticas e fechou faculdades. Assim, quando chegou o dia 18 de maio e cerca de seiscentos estudantes da Universidade Nacional Chonnam, em Gwangju, atiraram pedras num 14
destacamento militar após serem impedidos de comparecer às aulas, a reação foi brutal. Nos dias seguintes, as Forças Armadas enviaram brigadas especiais para a cidade, cortaram linhas telefônicas, fecharam estradas e, diante da resistência civil, abriram fogo contra a população. A revolta de Gwangju se destaca de outras manifestações do período tanto pela violência empregada pelo Exército quanto pela resiliência dos cidadãos. No dia 19, em uma demonstração de força, manifestantes bloquearam uma rua com cerca de duzentos ônibus, caminhões e táxis, provocando nova reação truculenta dos militares. Frente à censura dos meios de comunicação e à veiculação de reportagens que não contavam o que realmente estava acontecendo, ativistas incendiaram o prédio do canal de TV MBC. Outros chegaram a se armar em busca de proteção. A ditadura de Chun Doo-hwan só terminaria sete anos mais tarde, em 1987, mas a memória de Gwangju ajudou a pavimentar o caminho para a democracia na Coreia do Sul. Em 1998, Kim Dae-jung, que foi preso e condenado à morte devido à atuação na rebelião, tornou-se o segundo presidente eleito após a redemocratização. Em 2003, foi a vez de Roh Moo-hyun, que também teve ligações com a revolta, chegar ao poder pela via popular. Essas vitórias tardias lembram a mensagem que as colunas do cemitério construído para homenagear as vítimas de Gwangju carregam, já que o misterioso objeto de formato oval sustentado pela estrutura é, na verdade, uma pedra que simboliza ressurreição. Daigo Oliva é editor do caderno Mundo da Folha de S.Paulo, jornal no qual já trabalhou nas editorias de Cultura e Fotografia.
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Um gesto de amor à humanidade
O que é ser humano? O que temos que fazer para o ser humano não deixar de ser humano? O ser humano é um ser cruel por natureza? por Tamy Ghannam Essas são questões norteadoras da literatura de Han Kang. A autora sul-coreana era uma criança quando o massacre ditatorial de Gwangju aconteceu, resultando em prisões, desaparecimentos, torturas e mortes de milhares de civis, principalmente de jovens estudantes a favor da redemocratização. O episódio serve de ponto de partida para Atos humanos, obra que investiga a inerência entre humanidade e brutalidade. A sondagem da violência como traço constitutivo do ser humano, um dos impulsos centrais do romance anterior de Kang, A vegetariana, aqui se renova e fortifica pelas proporções coletivas que essa hostilidade alcança, manchando de forma cabal a história humana com seus miasmas. A força humanizadora das multidões conscientes é destacada mais de uma vez no percurso do livro, ao passo que a noção de coletividade se manifesta na própria estrutura do relato, uma construção polifônica acompanhando personagens à procura de entender o que é a nação enquanto se veem atacados por ela. Suas vozes em conjunto simbolizam um coral de vidas interrompidas pela fúria militar, milhares de desconhecidos unidos pelo perecimento e pela fragilidade 16
do que se chama humano, estilhaçados por ímpetos mundanos de poder e controle. Das pilhas de cadáveres amontoados despertam dualismos que o projeto literário de Han Kang perscruta com interesse, vegetal e humano, corpo e alma, vida e morte sendo alguns deles. Sem abrandamentos, ela esquadrinha tanto a experiência violenta da desumanização quanto seus efeitos definitivos naqueles que sobrevivem, reverberando indefinidamente em suas existências e causando no leitor o incômodo típico do choque com a muralha cascuda do real. Se há alternativas à falta de dignidade elas residem na prática do testemunho, função da qual o romance se encarrega em muitos sentidos ao tornar protagonistas do discurso aqueles que foram silenciados, propondo pela literatura um acerto de contas que a realidade não se dispôs a fazer. Apesar de objetivo na transmissão da mensagem, pontiaguda como cacos de um espelho em que se reflete a pior face do humano, a palavra “mistério” casa bem com o estilo narrativo de Han Kang. Sua prosa assume aspectos oníricos quando ressalta o irreal no real, locutora de um pesadelo partilhado, aproximando-se do terror pela exposição crua de uma verdade atroz. Contribuindo a essa impressão, novamente os sonhos surgem em sua produção como importante campo de apuração literária, o inconsciente dos personagens sendo indicativo de camadas mais profundas do texto, servindo aos efeitos que ele deseja imprimir. Nessa abertura para o fantástico cabe o sombrio, o sobrenatural tão distintivo da obra da autora sul-coreana, cuja maior representação em Atos
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humanos se dá pela narração cintilante do fantasma de um dos garotos mortos pelo regime autoritário. Tal qual um fio que conecta ficção e realidade, a autora delicadamente se coloca dentro do livro, depurando, enfim, a situação de leitura, sublime e trágico reunidos na intenção primeira da obra: fazer com que sejam ouvidos aqueles que não tiveram a oportunidade de falar. A condição de humano, esfacelada como uma borboleta despedaçada nas mãos de uma criança (sensação tão conhecida por aqui, nestes nossos lados do mundo), é devolvida por Han Kang a quem dela fora privado, fazendo do romance um grande gesto de amor à humanidade. Nesse momento, nós, apunhalados pela
“Sem abrandamentos, ela esquadrinha tanto a experiência violenta da desumanização quanto seus efeitos definitivos naqueles que sobrevivem, reverberando indefinidamente em suas existências e causando no leitor o incômodo típico do choque com a muralha cascuda do real.” lembrança de que todas as agressões narradas são atos humanos, nos sensibilizamos ao máximo por constatar que a literatura, instrumento de humanização, também os são — algo que compartilhamos para além da crueldade. Tamy Ghannam é formada em letras pela FFLCH-USP e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas. Desde 2015 é responsável pelo LiteraTamy, plataforma multimídia de conteúdo literário.
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Ing Lee é ilustradora e quadrinista coreano-brasileira, surda oralizada e bissexual, nascida e residente em Belo Horizonte. Patricia Baik é artista visual coreano-brasileira. Mora e produz em São Paulo.
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