Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho de Final de Graduação
Um estudo sobre narrativas em livros ilustrados
Paula Ayumi Kagueyama Orientação: Prof. Dra. Clice de Toledo Mazzilli 2015
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Agradecimentos Obrigada aos meus pais, meu irmão e avô. Aos meus amigos fauanos. À professora e orientadora Clice Mazzilli. À banca, Sara Goldchmit e Angela Rocha. E por último, mas não menos importante, a um local que
mudou meu modo de ver as coisas. Obrigada, FAU USP.
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Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Trabalho de Final de Graduação
Um estudo sobre narrativas em livros ilustrados
Paula Ayumi Kagueyama Orientação: Prof. Dra. Clice de Toledo Mazzilli 2015
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Sumário 7 Proposta 9 Motivações 11 O que é o livro ilustrado 15 O leitor de livros ilustrados 19 Origens do livro 25 Modos de narrativa 27 “Livro-imagem” - arte sequencial 31 “Livro-objeto” - livro como suporte 41 Relação texto-imagem 47 Processo - o início 49 Notas sobre “Shiba” 59 Inspiração - Peter Pan 63 Planejamento da história 79 Escolha do personagem 83 Estudo dos personagens e técnicas 93 Considerações finais 95 Bibliografia 96 Bibliografia Online
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Proposta Este trabalho visa realizar uma análise sobre os variados modos de narrativas em livros ilustrados, considerando seu texto, imagem e suporte - o próprio livro. Além do estudo, o trabalho tem como produto final o livro ilustrado autoral (“Shiba”), no qual será explicitado todo o processo e justificativa das escolhas tomadas.
capa livro “Shiba”
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Motivações A princípio, sabia apenas que queria abordar o tema “Livro Ilustrado” mas não sabia especificamente o por quê e quais as minhas motivações para isso. Um dos livros que eu mais lembro da minha infância é da lenda “Urashima Taro”. Esta história me marcou surpreendentemente por não ter um final feliz. Além disso, conseguia tirar minhas próprias lições da lenda e hoje eu, com a minha idade, tiro outras. Olhando para trás, percebo então que os livros precisam serem pensados com seriedade e estudados, dando margens à criatividade e interpretação de cada um. Daí meu interesse em estudar as possibilidades de trabalhar a narrativa dentro do livro olhando com preocupação e respeito para o leitor que já fui e que sou hoje.
Imagem lenda “Urashima Taro”. site: totally tortoise
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O que é o livro ilustrado Uma vez fiz um curso com o autor e ilustrador brasileiro de livros ilustrados, Odilon Moraes, e ele realizou uma comparação interessante para explicar o que diferenciava o livro ilustrado dos demais. A comparação era inusitada: livros ilustrados e novelas. As novelas antigamente eram passadas através das rádios e era necessário que a fala do interlocutor descrevesse tudo, cenário, roupas, fisionomias, para que o ouvinte pudesse compreender. Com a chegada da televisão e da “imagem”, não era mais preciso relatar todas as informações pois algumas já estavam explícitas nas próprias cenas. Nos livros ilustrados, algo semelhante ocorre. A partir do momento em que se adiciona a ilustração, o texto não precisa mais dizer tudo pois a imagem também exerce a função de narrar parte da história.
livro: “Pedro e Lua” - Odilon Moraes. ed. Cosac naify
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livro: “Para ler o livro ilustrado”, Sophie Van der Linden. ed. Cosac Naify.
No livro “Para ler o livro ilustrado”, a autora Sophie Van der Linden faz uma descrição mais direta do que seria um livro ilustrado:
“Obras em que a imagem é espacialmente preponderante em relação ao texto, que aliás pode estar ausente. A narrativa se faz de maneira articulada entre textos e imagens.”.
Portanto, a imagem no livro ilustrado pode ser a única responsável pela narrativa da história.
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O leitor de livros ilustrados Muitas vezes me perguntava: para quem o livro ilustrado se direciona? A princípio, pensava que os títulos que levavam ilustração eram exclusivamente para crianças, porém pesquisando mais sobre o assunto e conversando com profissionais da área, vi que essa minha visão estava bem equivocada. É comum, pelo menos posso dizer aqui no Brasil, as pessoas terem esse tipo de visão que eu tinha antes. Até porque ao irmos à livrarias, as alas infantis estão sempre mais recheadas de imagens atrativas do que as demais, o que nos leva a concluir isso. Não é totalmente errado pensar que se direciona ao público infantil porque, de fato, as imagens são comumente usadas para atrair a criança, em um primeiro momento, para o hábito da leitura. Mas os livros ilustrados podem se direcionar a qualquer faixa etária.
livro: “Para que serve um livro?” Chloé Legeay. ed. Pulo do Gato.
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Como exemplo temos os livros da Trilogia da Margem de Suzy Lee (Espelho, Onda e Sombra), que ganharam inúmeros prêmios literários e fazem grande sucesso entre o público infantil e adulto. Quando os releio, percebo que apesar do minimalismo dos traços da ilustradora, não são livros simples em suas narrativas. Eles possuem uma brincadeira com os personagens que mexem com a imaginação do leitor de forma inteligente e profunda, atingindo pessoas de todas as idades. Isso me fez ver que os temas para as crianças também podem ser mais complexos e com mais abertura à interpretações. Cada criança pode ter uma leitura diferente da outra, isso que torna a história interessante e única. O livros precisam dos leitores para que sua história fique completa.
imagens livro: “Espelho” Suzy Lee. ed. Cosac Naify
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Origens Quando se pensa em construir um livro ilustrado, inevita velmente há de se pensar no formato e em como encaixar a história dentro desse suporte. Mas afinal, como o livro chegou a esse formato que é hoje? Antes mesmo do surgimento da escrita, desde a Préhistória, homens já realizavam a chamada “arte rupestre” em paredes, que ilustravam cenas de caça, rituais, quotidianos, crenças, danças, organização. Isso já se caracterizava por um desejo do homem de registrar as suas atividades e cultura. Alguns defendem que era por pura vontade de produzir a arte. Outros dizem que seria para registrar o êxito do caçador. Independente da conclusão, é certo que essa documentação permitiu com que nós tivéssemos dicas de como era a sociedade e seu funcionamento na época.
pintura pré-histórica de pastores e gado,na Argélia. via site escola britannica
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A escrita surge no período da Antiguidade e seus primeiros suportes foram tabuletas de argila ou de pedra. Diferente da pré- história, esses suportes agoram eram móveis e poderiam ser conduzidos, levando informações.
escritura rúnica (de vikings) em pedra. via site www. historia.templodeapolo.net
Após sucedeu o “volumen” (rolo) no período romano, que consistia em um cilindro de papiro. Ele era desenrolado conforme ia sendo lido e seu comprimento total era de aproximadamente 6 a 7 metros. Quando enrolado seu diâmetro chegava a 6 centímetros, facilitando seu transporte.
“Volumen”. via: http://www.bicudi.net
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O “volumen” foi substituído pelo “códex”, formato do livro tal como o conhecemos hoje, que se tratava de uma compilação de páginas. Este surgiu entre os gregos como forma de codificar as leis, mas foi aperfeiçoado pelos romanos. Aos poucos o papiro (pedaço de planta) também foi substituído pelo pergaminho (excerto de couro animal) por conservar mais ao longo do tempo e pela maior facilidade de costurá-lo do que o papiro.
“Códex”. via: www.facsimilefinder.com
Até o século XVIII a única técnica que permitia compor ilustração e caracteres era a xilogravura. A técnica utiliza como base a madeira que depois da imagem entalhada, é possível imprimí-la sobre o papel, se assemelhando ao processo de carimbar.
Técnica de xilogravura. via: www.pascucci1826.it 23
Existiam outras técnicas como o uso do talho-doce, comumente chamada de impressão em alto relevo, em que a gravura era feita com cinzel ou ácido sobre uma placa de cobre. Ela permitia mais precisão no traço do que a xilogravura. No entanto, os caracteres ainda eram entalhados na madeira, o que fazia com que ilustração e texto fossem impressos separados, em corporações distintas
Talho Doce. via: www.brasiliana.usp.br
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No início do século XIX, começaram a aparecer as primeiras impressões com as técnicas em litografia, gravura feita em uma matriz de pedra calcária com lápis gorduroso. A litogravura se baseia na incompatibilidade da água com o óleo e não através de fendas e sulcos como ocorre nas técnicas de gravura citadas anteriormente. A técnica litográfica permitiu realizar desenhos acompanhados de textos manuscritos, feitos em uma única corporação. Ainda com a técnica do estêncil foi possível realizar impressões coloridas, com a aplicação da tinta através de corte ou perfuração em papel ou acetato.
Litogravura. via: www.sac-serigrafia.it
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Modos de narrativa Quando escolhi falar de narrativas em livros ilustrados, me deparei com um problema: as possibilidades eram infinitas. Quando se trabalha com esse gênero literário, percebi que a liberdade de experimentação é grande e portanto, é difícil definir fórmulas ou ditar em números de como a história pode ser trabalhada. Então, como que eu poderia abordar um tema tão amplo? Fui buscar referências no livro “Para ler o livro ilustrado” (Sophie Van der Linden) que fala das possibilidades gráficas, narrativas e técnicas utilizadas em um livro ilustrado. Observei que a autora separava em blocos aquilo que ela considerava pertinente e tentava em torno disso, estabelecer alguma linha de raciocínio sobre o assunto. Junto à isso, a autora cita exemplos ao longo dos textos, o que torna a compreensão melhor. Seguindo um pouco este modelo, também tentei encontrar aspectos semelhantes para poder fazer uma análise mais clara. Ao final, defini 3 grupos e, junto a cada um deles, 1 livro e autor para ilustrar sobre os assuntos que desejo abordar. São eles: 1. “Livro imagem” - Arte sequencial 2. “Livro objeto” - Livro como suporte 3. Relação texto e imagem
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“Livro-imagem” - arte sequencial Livros ilustrados podem ter suas histórias contadas apenas por arte sequencial, ou seja, só com ilustrações e ausência de textos. Para falar sobre o assunto, escolhi o livro “Um dia, um cão” da autora Gabrielle Vincent.
livro: “A day, a dog” - Gabrielle Vincent ed. 34
Sobre a autora. O nome real dela era Monique Martin, mas assinava como Gabrielle Vincent, os primeiros nomes de sua avó e avô. É mais conhecida pelos seus livros ilustrados, mas também era uma grande pintora. Nasceu na Bélgica em 1928 e morreu em 2000. “Um dia, um cão” é considerado sua grande obra-prima. A sua série de livros “Ernest e Celestine” foi adaptado para o cinema em 2012.
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Um cão é abandonado à beira da estrada. Depois disso, passa por inúmeros lugares sozinho. O personagem tem futuro incerto. As imagens, como dito anteriormente, são sequenciais e dispensam qualquer diálogo. A expressão dos traços e variação da cena ditam o ritmo do livro. O importante a se observar aqui é que a narrativa combinou com a ausência de diálogos. Creio não ter sido uma imposição desde o início, se em algum momento da narrativa o texto fosse necessário, a autora claramente colocaria. Como ocorre em algumas páginas do livro “Nascimento de Celestine”. Porém, mesmo com alguns diálogos, é evidente a predominância das imagens no trabalho de Gabrielle Vincent.
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As cenas parecem frames de filmes e possuem dinâmica. Neste caso, a ausência de textos se alia bem à introversão da história, captando a atenção do leitor.
imagens livro: “A day, a dog” - Gabrielle Vincent - ed. 34
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“Livro-objeto” - livro como suporte O próprio suporte - livro - pode ser utilizado para contar histórias, que é o caso dos “Livros Objetos”. Para tratar o assunto, escolhi a autora e ilustradora Suzy Lee e seus três livros Espelho, Onda e Sombra, os quais ela detalha melhor em seu livro mais teórico - “A Trilogia da Margem”.
livro: “A trilogia da margem” - Suzy Lee. ed. Cosac Naify.
Sobre a autora. Suzy Lee nasceu em Seul, na Coreia do Sul, em 1974. Estudou pintura na Universidade Nacional de Seul e concluiu o máster em Londres, na Camberwell College of Art. Seus livros têm repercussão internacional, ganhando prêmios como o de Livro Mais Bonito da Suíça (com “A vingança dos coelhos”, em 2002), e tendo participações nas feiras de Bolonha (2005) e Artist’c Book Collection em Londres (2003).
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Com o uso apropriado do suporte, é possível explorar ainda mais a questão do posicionamento dos personagens, diagramação, textura, formatos, entre outros detalhes. Assim, o livro-objeto entra como uma terceira narrativa, além do texto e da imagem. Juntos, é possível fortalecer ainda mais a atmosfera, ritmo e coerência do conto. Os três livros da Suzy Lee que detalharei agora, também não possuem palavras, igual ao da autora Gabrielle Vincent. Mas os deixei para falar durante este tópico pois a autora traz a participação do livro de forma mais evidente. “Espelho”, “Onda” e “Sombra” possuem mesmas dimensões, mas se abrem de formas distintas (falarei sobre isso a seguir).O que eles têm em comum é a grande participação da margem que fica entre a página dupla.
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livro: “Mirror” - Suzy Lee. ed. Cosac Naify.
“Espelho” foi o primeiro livro da trilogia. Ele é vertical e se abre do modo tradicional, de lado, da direita para a esquerda.
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Isso permite que, quando aberto, o formato das páginas permaneça vertical, direcionando a atenção e foco do leitor à personagem da história. A margem do livro funciona como o próprio espelho.
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livro: “Mirror” - Suzy Lee. ed. Cosac Naify.
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Em seguida, veio “Onda”. Ele se abre igual à “Espelho”, mas agora com formato na horizontal.
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Essa horizontalidade aumenta ainda mais quando o livro é aberto. Com isso, a autora quis evidenciar a paisagem. A divisão fica entre a menina e a coragem de entrar nas ondas.
livro: “Wave” - Suzy Lee. ed. Cosac Naify.
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O último da trilogia é “Sombra”. É horizontal igual “Onda” mas se abre de baixo para cima.
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livro: “Shadow” - Suzy Lee. ed. Cosac Naify.
A margem divide o “real” de sua projeção. Abrindo o livro debaixo para cima, temos a página dupla mais próxima de um formato quadrado, o que dá pesos iguais às duas páginas, que era exatamente o objetivo da autora ao falar sobre sombras.
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Relação texto-imagem Para falar da relação texto-imagem, escolhi o livro “Anjo da guarda do Vovô” da Jutta Bauer.
livro: “Grandpa’s Angel” - Jutta Bauer. ed. Cosac Naify.
Sobre a autora. Jutta Bauer, autora e ilustradora alemã, nasceu em 1955 em Hamburgo. Filha mais nova de uma grande família, a autora nunca teve condições de estudar desenho mas rabiscava em versos de panfletos e dava asas à imaginação com apenas lápis e papel. Após, entrou na Escola Superior de Desenho, onde se dedicou à ilustração e dentro disso, descobriu um modo delicado e bem-humorado de contar suas histórias. Ela é vencedora de inúmeros prêmios como o Deutscher Jugendliteraturpreis ( com “Mamãe Zangada” em 2001), possui selo de Altamente Recomendável oferecido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (com “A rainha das cores”) e foi consagrada com o nobel Hans Christian Anderson em 2010. 43
Escolhi o livro “Anjo da guarda do vovô” pois acho que ele aborda uma relação de texto e imagem interessante para falar sobre o tópico. Na história, o personagem menino visitava seu avô e este sempre lhe contava as histórias de quando ele era mais jovem e das “sortes” que ele teve durante a vida. Nas ilustrações o anjo está sempre presente o auxiliando, mas não
é relatado no texto. O anjo é um personagem que apenas os leitores podem ver.
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livro: “Grandpa’s Angel” - Jutta Bauer. ed. Cosac Naify.
A história é contada em um período de guerra e nem por ter um anjo da guarda, o personagem teve uma vida fácil. Mas ao final do livro, o avô diz feliz, “Tive muita sorte”. Esse tipo de relação é chamada “Função de contraponto”, pois texto e imagens apresentam ponto de vistas diferentes.
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O livro “Para ler o livro ilustrado” traz também outras funções, como: Função de repetição Induz uma redundância por repetir a mensagem prioritária. Pode ter como objetivo a ênfase na mensagem. Função de redundância Sobreposição, não possui sentido suplementar. Função de colaboração Consideram forças e fraquezas de cada código e trabalham em conjunto em vista de um sentido comum. Função de disjunção Texto e imagem não entram em estrita contradição, mas não se detecta nenhum ponto de convergência Função completiva Texto e imagem se unem para passar uma mensagem e não necessariamente se dialogam.
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“A ilustração, mais que uma tradução da palavra, é também uma forma de contar, de escrever a história. Escritor e ilustrador, juntos, criam uma terceira narrativa, a qual pode ainda usar do objeto, do suporte que é o próprio livro, como parte dessa narrativa, mesmo que de forma sutil.” Odilon Moraes, abril, 2015
imagem livro: “Lá e Aqui” - Odilon Moraes. ed. Pequena Zahar
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Processo - o início No início do TFG eu escolhi como tema “Personagens improváveis”. Queria fazer um livro com um personagem que não fosse tão óbvio, como por exemplo: a poeira, o vento, uma borracha, uma pedra. Qualquer coisa comum que geralmente não é tida como potencial personagem de uma história. Mas havia definido isso antes mesmo de ter alguma idéia. Presa à isso, as narrativas pareciam duras como se o objetivo delas fossem apenas justificar o tema escolhido. Com isso, optei mudar e realizar um estudo sobre narrativas em livros ilustrados e não me prender a nenhum tema. Decidi desenvolver alguma história qualquer, ver as possibilidades narrativas, realizar experimentações. Isso tornava o trabalho
muito mais interessante e com significado para mim. Vi que a minha intenção não era desenvolver um tema para o livro, mas sim ter como tema o próprio livro. Assim surgiu o conto “Shiba”.
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Notas sobre “Shiba”
O desenho da capa já explicita em parte do que se trata a história. A intenção também era criar uma certa curiosidade ou estranhamento.
Na contracapa coloquei um “pattern” já aproximando o leitor ao personagem.
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Este ĂŠ o Shiba.
Shiba passa a estranhar sua sombra, embora ela sempre estivesse ali.
Ela o segue...
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como o sempre seguiu...
mas agora que ele possui consciência, isso o irrita.
Shiba ataca para que a sombra se afaste. Neste momento, já é possível perceber que algo fora do normal ocorre.
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A sombra realmente se afasta e toma proporções gigantes! O que o Shiba fez?
Ele fecha seus olhos. Optei pela página escura para que o leitor se colocasse na visão do personagem.
Quando o personagem abre os olhos, a sombra aparece pela primeira vez desconectada de seu dono.
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Ela está assustada igual ao Shiba, como se também estivesse surpresa pela forma que ela mesma tomou.
Se apresentam. Não são tão diferentes assim.
Como crianças, as brigas acontecem com frenquência, mas possuem curta duração. Saem juntos para brincar.
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Aqui a sombra se estica novamente, mas isso nĂŁo assusta mais o personagem.
A chuva atravessa a sombra, molhando Shiba, que parece gostar da sensação.
Tiram um cochilo.
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Interessante como as sombras variam pelos lugares por onde passam.
A cena era deles esperando o ônibus, mudei para uma ação mais rotineira. Fiz a sombra encolhida, com vergonha do amigo.
A sombra nĂŁo deixa rastros por onde passa.
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Final do dia. Ou de algum dia? Quanto tempo se passou de fato?
Anoitece.
NĂŁo hĂĄ mais estranhamentos.
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Inspiração - Peter Pan Uma das grandes inspirações para trabalhar com o tema da sombra, foi com certeza o filme “Peter Pan” e a cena onde a sua sombra é capturada. Peter Pan é um personagem criado pelo escritor e dramaturgo británico James Matthew Barrie. A história se baseia em um menino que nunca quis crescer.
Imagem filme: Peter Pan - Disney.
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Bem no começo da história, Peter perde sua sombra e Wendy, a irmã mais velha dos irmãos Darling, o ajuda costurando-a novamente em seus pés. Segundo a psicologia analítica, a sombra se trata do nosso ego mais sombrio, a parte animalesca da nossa personalidade, considerada muitas vezes pela sociedade como imoral ou violenta. Mas essa parte sombria possui aspecto positivo, uma vez que é responsável também pela espontaneidade, criatividade, insight e emoção profunda, necessária para o pleno desenvolvimento humano. Muitas vezes a sombra é projetada em outra pessoa. A projeção ocorre como mecanismo de defesa, fazendo com que a mente não reconheça os pensamentos inaceitáveis ou indesejados. A mente evita o desconforto projetando as falhas em outra pessoa. Peter Pan tem sua sombra costurada, mas não a reconhece inteiramente como sendo parte dele. Como consequência, ele nunca cresce.
Imagem filme: Peter Pan - Disney.
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Em “Shiba”, o personagem se irrita com sua sombra de tal forma que ela se torna ainda maior. Em seguida a sombra aparece separada, como se fosse um outro ser. Neste momento ela está projetada. Aquilo não pertence mais a Shiba, pelo menos por enquanto. Neste caso, a projeção funciona como algo positivo também. Ao ver a sombra com distanciamento, Shiba a compreende melhor e passa a conseguir viver com ela de forma mais natural. Ao final, estão unidos novamente.
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Planejamento da hist贸ria
Primeiro rascunho da hist贸ria. Havia gostado da id茅ia da sombra se descolar do personagem, mas n茫o sabia como daria continuidade.
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Depois de separados, fiz com que a sombra latisse feliz para o Shiba.
Isso o perturba ainda mais.
Corre atras dela.
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Fica feliz por tê-la espantado.
Mas para a sua surpresa, ela dá uma “volta ao livro” e aparece à esquerda.
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Recebi alguns feedbacks sobre este caminho que eu estava seguindo. Foi quando uma amiga me disse: “Mas a sombra não parece uma sombra. Parece um outro cachorro!”. Fiquei surpresa com o comentário simples mas que continha uma excelente observação. A sombra é uma sombra, tem suas próprias características. Depois disso tentei encontrar algum modo que mostrasse as diferenças entre os personagens.
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Uma das outras idéias era que no momento em que o Shiba fosse olhar mais de perto a sombra que havia se descolado dele, ela o surpreenderia com um beijo.
Bravo, Shiba espanta a sombra que por sua vez sai correndo.
Nas páginas seguintes eu pensava em apenas sugerir a velocidade com que a sombra passava..
até ela voltar ao ponto onde estava. Foi tão rápido que o Shiba ainda está reclamando sobre o beijo recebido.
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A sombra pula sobre o personagem.
e tudo escurece.
Shiba acorda do sonho.
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Como nessa solução a sombra corre e se estende pelas páginas, imaginei que formatos diferentes poderiam ser interessantes, como o sanfonado. No entanto, o história ainda não me agradava. Estava pensando mais no efeito gráfico que daria o livro, do que o conto em si.
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Foi pensando em mais algumas idĂŠias que uma vez desenhei a cena acima, como se eles estivessem se despedindo ou fazendo as pazes. Pensei entĂŁo que ficaria legal se eles nĂŁo vivessem apenas se estranhando, mas curtissem momentos juntos.
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Comecei a imaginar como seria um cão passando um tempo junto com sua sombra. A partir disso, ilustrei uma série de cenas comuns, não deixando de explorar as características próprias de uma sombra, que se alonga, diminui, se molda. As cenas me pareciam mais naturais e isso me agradava. Resolvi fazer a história desta maneira.
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Após definir todas as cenas no storyboard, fiz um pequeno boneco pra simular alguns posicionamentos e conferir se as passagens de uma página para a outra não estavam confusas.
Optei pelo formato quadrado, pois quando aberto, a página dupla não fica tão comprida e se aproxima mais à proporção que eu vinha desenhando para o livro.
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Planejar o storyboard e o boneco faz com que eu sempre enxergue a história como um todo. Consigo ver qual o ápice da narrativa, se posso cortar alguma cena, se posso substituir por outra, se está confuso, e outros inúmeros detalhes. Além disso, é possível conferir o número de páginas. Dependendo das medidas do livro, conseguimos prever qual número de páginas é o melhor para ter mais aproveitamento do papel na gráfica. No caso de Shiba, o miolo tem dimensões de 14cm x 14cm e possui 48 páginas.
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Escolha do personagem
imagem capturada em banco de dados: Pinterest.
Esta imagem estava circulando pela internet com a legenda “Oh my God! I’m batman!” (Meu Deus! Eu sou o Batman!). Foi a partir disso que me veio um “insight” para a história: um cão que estranha sua própria sombra.
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No início dos rascunhos, estava fazendo um cão sem raça. Mas quando fui definir melhor o desenho do personagem, pensei que seria interessante adotar o cão que me deu a idéia para fazer a história. A raça deste cão se chama Shiba Inu. Inu é a palavra japonesa para “cão”, mas a origem do prefixo Shiba é menos clara. Shiba pode significar “mato” cujas folhas ficam vermelhas no outono, fazendo alusão à pelagem da raça. Entretanto, no dialeto antigo Nagano, a palavra Shiba também pode significar “pequeno”, referindo-se à estatura do cão. O Shiba do Japão é tido como um cão que traz sorte ao seu dono. Adotei o prefixo como título do livro.
imagem capturada em banco de dados: Pinterest.
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Estudos dos personagens e tĂŠcnicas Realizei alguns ensaios para entender minimamente como funciona a anatomia de um cĂŁo.
Depois fiz inĂşmeros rascunhos afim de definir como seria o personagem, se eu o faria mais estilizado, ou mais realista, e quais materiais seriam interessantes para fazer o acabamento.
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Treinei expressĂľes para ver como eu trabalharia com os olhos. Esta parte ĂŠ delicada, pois considero os pontos mais expressivos do personagem como um todo. Ao final, optei por olhos bem pequenos.
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Fiz testes com uma caneta pincel preta, para ter traços mais grossos. Gosto da expressividade que essa tÊcnica possibilitou.
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Mas ao final, optei pelo uso do låpis 6B, que tambÊm me permitia um traço mais firme, mas ao mesmo tempo me dava mais leveza no desenho, comparado ao pincel. A partir disso tambÊm defini que faria a pintura da pelagem do personagem de forma bem clara e solta.
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Para a finalização, desenhei todas as cenas com låpis 6B (sem a pintura) e scaneei. Fiz a pintura e a sombra no photoshop para ter mais controle das cores.
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Para o desenho da sombra eu não quis definir contornos, apenas trabalhar com volume. Isso permitiria com que ela pudesse ganhar qualquer formato e ser mais solta. Quando se trabalha com silhuetas, qualquer coisa pode ser imaginada dentro. Não há definições.
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imagens retiradas do site Nickelodeon.
Um canal de televisão infantil famoso propôs uma vez em suas redes sociais o exercício chamado “Fill this shape” (preencha a forma). Era divertido, as pessoas que participavam traziam soluções diversas. A minha intenção, de forma sutil, era parecida com a da brincadeira. Não definir contornos para dar ao leitor a possibilidade de imaginar o que ocorria no interior da massa de grafite.
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Considerações finais Foi um grande desafio para mim fazer um livro e ao mesmo tempo justificar todas as escolhas. Em um primeiro momento, me vi fazendo as coisas de forma muito técnica, afim de encontrar soluções ideais para a história. O que eu aprendi disso, é que muitas vezes temos que deixar a intuição nos guiar de vez em quando, pra só então conectarmos os pontos. No momento em que parei de me importar com o final da história, as coisas se desenrolaram com mais facilidade. Neste caderno de TFG também tentei colocar com as minhas palavras aquilo que aprendi. É realmente diferente quando nos esforçamos pra tentar explicar nossos aprendizados. Mesmo que seja de forma atrapalhada, é as vezes nesses momentos que sinto que absorvo algo de fato. Faz 4 anos que venho querendo me aproximar do tema dos livros ilustrados. Finalizar o curso realizando um, é uma sensação muito boa. Obrigada à FAU-USP que abre espaço para temas como esse. Obrigada a todos que me acompanharam por essa jornada que é a faculdade. Obrigada por todas as oportunidades que me apareceram durante esse tempo. E por fim... ... Obrigada a você, se chegou ao fim deste caderno.
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Bibliografia LINDEN, Sophie Van der. Para Ler o Livro Ilustrado. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2011. MORAES, Odilon. Traço e Prosa. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012. MORAES, Odilon. Lá e Aqui. ed. Pequena Zahar, 2015. ISODA, Gil Tokio. Sobre desenho: estudo teórico-visual. São Paulo, 2013. LEE, Suzy. A Trilogia da Margem: o livro-imagem segundo Suzy Lee. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012. LEE, Suzy. Onda. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LEE, Suzy, Espelho. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LEE, Suzy, Sombra. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010. VINCENT, Gabrielle. O Nascimento de Celestine. ed. São Paulo: 34, 2014. VINCENT, Gabrielle. A Pequena Marionete. ed. São Paulo: 34, 2009. VINCENT, Gabrielle. Um dia, Um Cão. ed. São Paulo: 34, 2013. TAN, Shaun. A Chegada. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2011. BAUER, Jutta. O Anjo da guarda do vovô. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
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Bibliografia Virtual Texto: The dark side of Peter Pan http://www.las.illinois.edu/news/2010/peterpan/ Texto: Sombra https://pt.wikipedia.org/wiki/Sombra_(psicologia) Texto: Projeção https://pt.wikipedia.org/wiki/Projeção_(psicologia) TCC - FAU USP - A partida do audaz navegante - Sandra Jávera - http://issuu.com/sandra.javera/docs/tfg_sandrajavera TCC - FAU USP - O que tem para o café da manhã - Aimeê da Silva Pereira - http://www.fau.usp.br/fauforma/2015/assets/ aimee_ferreira.pdf TCC - FAU USP - Ruído - Francesco Micieli - http://issuu. com/francescomicieli/docs/livro1-entrega Texto: Shiba Inu https://en.wikipedia.org/wiki/Shiba_Inu
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