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Hoffmann e as introvisões
O homem só é homem na superfície. Levante a pele, disseque: aí começa o maquinismo. Depois, nos perdemos numa substância insondável, alheia a tudo o que conhecemos e, todavia, crucial.
Paul Valéry
Muitas são as obras do acaso, termo adequado para se nomear o que ainda não se conhece, e sendo conhecido mostra camadas de reconhecimentos como no encontro de Juliana Neves Hoffmann de algo que havia sido guardado, as páginas datilografadas de O ser que nos surpreende, inédito de Ricardo L. Hoffmann, autor de A superfície e A crônica do medo, obras ficcionais que marcaram época no contexto da literatura em língua portuguesa, permanecendo atuais por causa da universalidade que aponta a crise humana, não a crise da linguagem que, no caso de ambas as obras, revitalizou-a tal como se apresenta na época da histórita catastrófica que o autor, em artigos recentes, pensa com fundamentações filosóficas para argumentar a possível regeneração da sociedade com os aparatos digitais.
Aproximações do acaso
Assim que Juliana descobriu o inédito do ser surpreendente, tive a boa sorte de ser escolhido para dar minha impressão sobre o achado, então adentrando o inédito de Hoffmann, que me arrebatou pela força do título e dos textos que são mentalizações com sabor narrativo, e narração incomum por condicionar a plenitude de sua idade, visionária quando entrou dantesco no meio do caminho da vida que o levou ao encontro definitivo consigo mesmo. Então o autor maturado pela linguagem de seu silêncio de rumores ao escrever, cabendo aos leitores a percepção de que são fulgurações do ser, esse ser que é facetado, multiforme no livro de Hoffmann.
No mesmo período da recuperação desta obra, outro vislumbre teve Juliana, doze desenhos a traço de minha autoria em uma pasta vermelha, reconhecidos por ela porque foram assinados, com apenas um datado, 1972, tempo de meu estar atormentado com a fatalidade do nascer e ser. Pois foi isso que fez Hoffmann e Juliana constarem que entre a poética de O ser que nos surpreende e os desenhos há um parentesco, o que de fato tem, mesmo porque foram feitos para ilustrar alguma edição que não sabemos qual daquela década.
Curvatura terrestre
Quem ler os relatos de O ser que nos surpreende logo vai saber que são regidos por monólogos, e o primeiro referencia a “floresta escura” de quem está no meio da vida com a herança que surpreende porque é casa e túmulo.
Essa imagem é poderosa, pois ser é estar sentado, o esperar viver ciclos, corpo em curvatura assim que nasceu com o tempo outro, antes dele para ir adiante com a sombra, ser da sombra que espanta e metaforiza o autor que vai nascer enquanto escreve – nasce ao escrever:
As várias histórias que terei de viver já começam a se manifestar dentro de mim. A partir deste momento sei que será impossível não nascer. E sei, por outro lado, que estou tão perto de minha extinção que jamais voltarei à mesma sabedoria.
O desvio de si, astro do ser que deixa um rastro de luz que o afasta da sabedoria, a única e que não se repete enquanto, quem a provou, jamais esquecerá o sabor e assim a sina de voltar sempre ao começo da história para se surpreender com o ser do outro, o estranho familiar que visita quem ousou se cobrir com cinzas no transepto de si mesmo para não acreditar e ser outra vez.
Essa é a história do retorno, a obstinação de quem escreve ou cavalga nas trevas até a próxima aldeia. O arcano diria que é inútil o prospectivo, tudo está no começo, nada foi dito ainda e poderá ser na leitura do livro para trás, na leitura da memória episódica.
Do primeiro monólogo e dos outros que seguem de Hoffmann, a arcada das palavras não cessa a narrativa de quem continuará “sentado” e percorrerá “o mundo” avistando cidades, sendo visto com receio, podendo fundar uma religião se a sua vulnerabilidade fosse reconhecida. E desconhecido poderá continuar sagrado, salvo mesmo depois dos sacrifícios:
Continuarei sentado para envelhecer minha pequena sabedoria.
Saber que surpreende o ser da escrita de Hoffmann na mesma figura da arcada terrestre, do mundo menor que parodia o mundo maior, daí a escrita de analogias que tem profundidade poética com introvisões que fazem escoar o passado do agora. O sentido poético reúne todos os tempos como se fosse a única idade do poeta.
Sentido trágico
Com a leitura vertiginosa dos relatos nucleares de Hoffmann, nos confins de si mesmo ele esteve e voltou suprassensível graças ao sentimento trágico da vida, sem o qual não há literatura de imaginação tal como nas grandes poéticas desde Rimbaud, Lautréamont, Eliot, Rilke e Jorge de Lima, que de circunstâncias humanas se elevam com a imagem que atinge um ponto do qual não se pode mais voltar.
Essa é a imagem para as evocações que beiram o símbolo esotérico, o corpo místico de O ser que nos surpreende, que reboa como um grande sino remoto e por isso mesmo atual, sino da tempestade que é a hora predileta da palavra anímica, quando se sobe a montanha onde está o cristal côncavo e convexo, mas a primeira pessoa deste ser não pode ultrapassar a montanha do nascer, mas se inscreve filtrado pelo trágico que somente tem uma idade, a da mente em constante ebulição, o pêndulo hoffmanniano o qual prossegue com o instante que se imobiliza para que se perceba as suas vibrações.
Sem o trágico nada poderia revelar a complexidade do ser que no fundo de seus nomes exulta, fulgura, vibra contra a “prisão da vontade” ao reconhecer a duração das perdas, mas não há perda na memória episódica. Mesmo assim desejar anima a vontade que poderá ter outro nome com reverberações da capacidade de ser e ir além do ser como, em prenúncio, se lê nos títulos dos poemas em prosa de O ser que nos surpreende , estranhos precursores do autor que abriga no tempo da escrita os tempos do que está se formando – escrita unidimensional que conduz o autor ao quadrimensional, onde sempre esteve.
Se fazer Ulisses
O poeta estava no começo da viagem a qual pode ser a de quem precisa deixar Ítaca, que se passará por louco ao jogar sal na terra arada. A ele está destinado o sal das palavras por mares e terras distantes.
E o poeta é quem aceita o destino e dele tenta escapar:
Nunca o que está atrás permite o passo adiante. A liberdade continua a semente do animal debaixo da planta dos pés. E o completar de nós mesmos esconde todos os riscos.
Esse é o ponto de mutação da poética evocativa de Hoffmann, um convite a viajar, exilar-se, sair de si para voltar com o ser que se surpreendeu e se tornou arguto para poder afrontar os deuses, os mitos. Ao afrontar soube ler o que diziam as legendas, os sinais do caminho, o símbolo de si mesmo que as armadilhas tentavam apagar:
Quem não se fizer outro Ulisses acabará por esquecer a forma de seu próprio corpo.
O corpo que deixou a casa, a matéria de seu portal, terá que voltar para ter o complemento do estar perto do tão longe.
Sombra de sombras
Quem não esquece, ou é a lembrança do ser que não deixa de se espantar com o tremor de existir. A cabeça estaria levando o homem, ou é o cérebro que tudo comanda e, antes de se curvar em parabólica ou espiral, deixa-se levar pela sombra, na sombra:
E a história incompleta da fuga esconde a verdade do encontro imortal da sombra e do corpo além da luta fictícia.
A ficção poética, a palavra que se diz do estranhamento, é que se deixou acontecer no livro de Hoffmann. Isso é tudo para quem foi guiado pela linguagem que inundou seu hipocampo, quem sabe o tom mesmo das sombras que retornam na imortalidade da sombra, o pensar, o começar outra vez a curva da história que não apela para os anjos, no máximo para as aves migratórias, as fiéis nos poemas elegíacos nos quais o que é humano é superável, o que não deixa de estar nas sequências de O ser que nos surpreende. E o ser se surpreende diante de si mesmo na tese da história como pesadelo. Tempo histórico do abutre que não se sacia, ave hegeliana com a envergadura do fim no começo, do escritor que exorciza as cinzas do sentido e redime a história das asas:
Olha nos olhos do pássaro e vê a asa primeiro. O interior do pássaro é asa pura. O voo é o complemento do que existe e o interior do pássaro é o interior da natureza.
A ave que paira sobre destroços no abismo e se move, gira, sonha a época seguinte assim como quem escreve:
Tu és o escritor e o poeta e eu, o teu espírito, o colhedor de lixo.
Essa é a inevitável lógica do mundo, e o poeta se revira com o oximoro para existir além do limite de si mesmo como a noite estrelada de van Gogh, cujos astros em turbilhão se afastam do peso do terreno.
Retorno da curvatura
A curvatura é o olhar multifacetado do poeta. A curvatura na linguagem tem a figura da imaginação que se afasta do ponto de partida e volta com sentidos não conhecidos ainda.
Curvatura de linguagem, como se a mente de Hoffmann fosse um caderno de esboços que se complementam de uma frase para outra e de um fragmento para outro, pois a matéria poética é una para que os sentidos sejam múltiplos, reflexibilidades de nomes que formam cúpulas de imagens que libertam sentidos ocultos, porém não obscuros porque têm luz própria. Imagens de claridade, de discernimento que somente a poética revela a fonte.
Qual seria essa fonte na poética de Hoffmann? A do círculo que o título prenuncia, o ser que no surgir resplandece e gostaria de voltar, estar no lugar quieto do elegíaco:
Tudo que é real se extingue atrás da casca do ovo. Tudo que espera continua na bolsa, os braços cruzados, a testa apoiada no umbigo. Nenhuma imagem pode contradizer a sabedoria que conserva o ser num círculo.
E ser do círculo que ninguém poderá dizer que se trata de evasão, e sim de recepção do que independe do espírito poético que, todavia, ousa dizer a palavra destinada em meio aos demais que empobrecem as imagens.
Quem, no tempo de homens-moscas, reconhecerá o ser hamletiano, o ser e o ser ainda?
No mundo digital outra não poderia ser a consequência com o excesso de comunicação com vazios, mitos vazios. A terra continua girando, o universo se expande no tempo astronômico, enquanto a terra envelhece prematuramente. A vida dos homens e de moscas é de frações. Não a poética do mundo, a visão da unidade no todo das introvisões superam o prometeico com o órfico.
O roubo do fogo foi a técnica, o poder, o explorar tanta energia armazenada quando foi vista da colina e os canteiros de obra arrasaram a terra. E edificou-se a torre de controle no lugar da casa ancestral incendiada, mas o ímpeto órfico sobreviveu, alguém na calada da noite transmitiu a mensagem, que se propagou em profundidade habitada. Com esse resquício órfico ergueu-se a poemática do ser que surpreende com o libelo já escrito, o de “A orla da floresta”, quando Hoffmann pensou que a ficção poderia transformar a “exasperação” pessoal:
Não sou mais um cronista do absurdo do racionalismo decadente europeu, sou o poeta de linguagem que se recusa a dizer o que é imposto. Portanto, no âmbito da elaboração volta a força do irracional.
Às forças prometeicas sobrevivem as órficas que dizem o mesmo nas mudanças históricas: não interrompam a respiração dos grandes vales, das colinas semeadas de animais, deixem o vento nos prelúdios, as aves imitam os crepúsculos da manhã e da tarde, o tapir leva à água:
Vela pelo ser escondido atrás da pedra. Tenta extrair dele a frase que é preciso antes que sua tênue respiração se extinga.
Apocatástase
A história pensada como cíclica, ou a história pode ser redimida com as abjurações humanas, promessas da apocatástase como símbolo de redenção:
O despertar que não for resistência contra a queda acrescenta outra pedra ao enterro da memória.
Na leitura diagonal de O ser que nos surpreende insinuava-se a presença do autor contornando as ausências, tarefa de si mesmo na inevitabilidade temporal. Na memória estavam as providências do passado, mas a redenção foge das cidades, embora o despertar possa estar na persona , sobretudo no poeta que não deixa de também ver o terrível, os olhos já sem fundo, o ser que sem tréguas se espanta com a multiplicação tecnológica dos homens imbecis. Mesmo que não haja redenção, o revelar não abandona a palavra que será dita, despertar possível do dizer, e quem se levantar em meio aos homens-bonecos plastificados e proferir o nome órfico será visto como louco e será banido da comunidade. Pouco importa que assim seja porque ele é o portador, o precursor, o liame, o escrito com sangue, mesmo que sejam as frustrações humanas:
O vácuo continuará reinando entre o som e a queda do corpo. Habitamos nossa paralisia de estátuas fingidas pela consciência que depositamos no chão a cada instante.
O chão está coberto de detritos, na consciência a luz que vem é fraca, mas ilumina a página de quem se lê ao ler o tempo até tarde da noite. Não que o ceticismo nas linhas de O ser que nos surpreende seja moderado, mas a probabilidade vai do provável ao improvável: o ser desaparece e transparece. Há, por um lado, “desejo mortal”, por outro o mar é saída “num lugar inesperado”. O começo e o fim podem ser ignorados provisoriamente com a perpetuação de reminiscências e pressentimentos para que permaneçam as introvisões do estar “enroscado em torno da árvore”.
Mesmo assim, o momento da morte não deve ser esquecido nem adiado como tentativa de ser de outro modo, ser substância que prescinde de filosofia, porém matéria filosófica do ser no que tudo seja.
Jayro Schmidt, ensaísta de arte visual e de literatura
1. The being that surprises us
The world’s appetite is terrible when we are its size. I established a long conversation with myself, and I feel the body that covers me evolved in a dark forest. Twisted legs among the trees, breasts sucked in by the clouds. The being that surprises us is our home and our grave. Here I burn as a seed, waiting for the time to imitate the exteriority of the future. I am like the bottom of a sea without fish. The air around my underground shelter resounds surrounded by invisible threads that vibrate with noises unimportant to my waiting. Everything resonates with me like the sea over the rock at its center. This swing is from another childhood, before mine. My lullaby makes the forest branches crack, the roots squeezing my heart. It will one day be torn away by the weight of the world. I’m not a clod of earth but I am close to it. This web of voices that make my cells vibrate at the beginning of recognition belongs to a time that I’ll drag with me on the waters of my birth. My position rotates in all directions at once, slowly. I open my mouth with a snap, but nothing enters it, not even the humidity of the walls. The various stories that I will have to live already begin to manifest within me. From this moment on I know it will be impossible not to be born. And I know, on the other hand, that I’m so close to my extinction that I will never go back to the same wisdom. This tent of light that waits for me outside will only exist to never belong to me. He who robbed me of the distance that separates me from the goal – and not the one who will put me in the world – is the true God.