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1. O ser que nos surpreende
É terrível o apetite do mundo quando somos do tamanho dele. Estabeleci um longo colóquio comigo mesmo e sinto o corpo que me reveste evolvido numa floresta escura. Pernas torcidas entre as árvores, seios sugados pelas nuvens. O ser que nos surpreende é a nossa casa e o nosso túmulo. Aqui ardo em semente, esperando a hora de imitar a exterioridade do futuro. Estou como no fundo de um mar sem peixes. O ar em torno do meu abrigo subterrâneo ressoa cercado de fios invisíveis que vibram com ruídos sem importância para a minha espera. Tudo repercute em mim como o mar sobre a rocha em seu centro. Esse balanço é de outra infância, anterior à minha. Minha canção de ninar faz estalar os galhos da floresta, e as raízes apertam meu coração. Ele será arrancado um dia pelo peso do mundo. Não sou um torrão de terra mas estou próximo disso. Essa teia de vozes que fazem vibrar minhas células no início do reconhecimento pertence a uma era que arrastarei comigo sobre as águas de meu nascimento. A minha posição gira em todas as direções ao mesmo tempo, lentamente. Abro a boca com um estalo, mas coisa alguma entra por ela, nem mesmo a umidade das paredes. As várias histórias que terei de viver já começam a se manifestar dentro de mim. A partir deste momento sei que será impossível não nascer. E sei, por outro lado, que estou tão perto de minha extinção que jamais voltarei à mesma sabedoria. Essa barraca de luz que me aguarda do lado de fora só existirá para não me pertencer nunca. Quem me roubou a distância que me separa da meta é que é o verdadeiro Deus, não quem irá me pôr no mundo.
2. The mystery is always elsewhere
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Off the page, everything is a repetition of what I haven’t read yet. The mystery is always elsewhere. Sitting on my heels I will travel the world, reaching the speed of the greatest inventions, to fall one day into a hole unnoticed. As I pass through the tops of the hills, I will see five or six similar cities. From within them I will draw milk and draw bread as from an oven. The men around me will be afraid to touch me with an outstretched hand. As long as I am unknown, I will be sacred and I will be saved. Later I will be too because I will be the victim of sacrifices. Betrayals and faith will alternate for the same reasons. Those who have joined the rows will watch me pass, expecting me to sit on a throne opposite them. But I will continue to watch them from above my mud mound. No one will be interested in acknowledging my vulnerability. With my hand always resting on the same tree, I will ward off all dangers with my eyes. Until being attacked from behind by the newcomer, I will lie on my back, and everyone will parade by my side mourning the death of their own hopes.
2. O mistério está sempre em outro lugar
Fora da página tudo é repetição do que não li ainda. O mistério está sempre em outro lugar. Sentado sobre os calcanhares percorrerei o mundo, atingindo a velocidade das maiores invenções, para cair um dia num buraco despercebido. De passagem pelo alto das colinas, avistarei cinco ou seis cidades iguais. De dentro delas mungirei leite e retirarei pão como de um forno. Os homens à minha volta recearão me tocar com a mão estendida. Enquanto for desconhecido, serei sagrado e estarei salvo. Depois estarei também porque serei a vítima dos sacrifícios. As traições e a fé irão se alternar pelos mesmos motivos. Aqueles que tiverem ingressado nas fileiras me olharão passar, esperando que eu vá me sentar num trono à sua frente. Mas continuarei a olhá-los de cima de meu montículo de barro. Ninguém se interessará por reconhecer a minha vulnerabilidade. Com a mão apoiada sempre à mesma árvore, afastarei com o olhar todos os perigos. Até que, sendo atacado por trás pelo recém-chegado, deitarei de costas, e todos desfilarão curiosos a meu lado lamentando a morte das próprias esperanças.
Obras do autor
Literatura:
A Superfície (GRD, 1967)
A Crônica do Medo (Livros do Mundo Inteiro, 1972)
O Trenzinho Fora da Linha (Tchê!, 1987) infantil
O Hotel dos Bichos Desamparados (FTD, 1988) infantil
O Circo das Plantas (Editora do Brasil S/A, 1988) infantil
Pequeno Coração (FTD, 1990) infantil
Obra e Morte de Gaudí (Edições de Percurso, 2015)
Casa da Matéria (Edição do autor, 2018)
O Ser que Nos Surpreende (Edição do autor, 2022)
Ensaios, Sociologia do desenvolvimento:
Abertura Operacional da Universidade (UDESC Editora, 1957)
Alienação na Universidade – Crise dos anos 80 (Editora da UFSC, 1985)
Pacto Social para o Crescimento com Distribuição e Desinflação
Modernização da Livre Iniciativa (Editora Fundação Universitária de Blumenau)
Conhecimento e Ação (Letras Contemporâneas, 2016)
Obras presentes nas seguintes antologias:
Panorama do Conto Catarinense Organizada por Iaponan Soares (Editora Movimento/UDESC, 1971)
Círculo 17 (Editora do Escritor, 1975)
Assim Escrevem os Catarinenses — Organizada por Emanuel Medeiros Vieira (Alfa-Omega, 1976)
Antologia do I Concurso de Poesia de Florianópolis (Edição da Prefeitura
Municipal de Florianópolis, 1977)
Este Mar Catarina — Organizada por Flávio José Cardoso, Salim
Miguel e Silveira de Souza (Editora da UFSC, 1983)
Antologia de Autores Catarinenses Organizada por Celestino Sachet (Editora Laudes)
Contos da Ilha (Editora Insular, 1996)
Este Amor Catarina — Organizada por Flávio José Cardoso, Salim Miguel e Silveira de Souza (Editora da UFSC, 1996)
Obras citadas nas seguintes publicações:
História Crítica da Literatura Brasileira, de Assis Brasil (Companhia Editora Americana, 1973)
A Literatura de Santa Catarina – Síntese Informativa, de Lauro Junkes (Edição do Autor, 1992)
16 Ensaios, de Jayro Schmidt (Bernúncia Editora, 2007)
Diálogos com a Literatura Brasileira, de Marco Vasques (Editora Movimento, 2010)
Esta obra foi composta em Crimson Text e impressa pela Gráfica Rocha em papel pólen bold FSC 70 g/m2, no verão de 2022/2023.
RICARDO L. HOFFMANN nasceu em Criciúma (SC), em 1937, em uma família de artistas — a mãe era poetisa e pintora, e o pai, músico e pintor. Formado em direito e mestre em administração universitária, foi colaborador dos jornais Diário Catarinense, O Estado (SC), O Estado de São Paulo e Correio Brasiliense (DF). Publicou os livros A Superfície, ficção revelação do ano no Brasil, em 1967, romance finalista do Prêmio Walmap, e A Crônica do Medo, também ficção. Publicou ainda Pequeno Coração, O Circo das Plantas, O Trenzinho Fora da Linha e O Hotel dos Bichos Desamparados, de literatura infantil. Na área de Sociologia do Desenvolvimento e Educação, publicou Pacto Social, Alienação na Universidade, Abertura Operacional da Universidade para o Desenvolvimento e Conhecimento & Ação.