A modelagem e esquizofrenia

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Casa das Palmeiras

A Utilização do Barro no Tratamento do Esquizofrênico

Pedro Baumgarten Botafogo Rio de Janeiro, dezembro de 2008


Agradeço à minha mãe por ensinar-me constantemente a alquimia da cerâmica ao meu pai que me possibilitou o estudo à Casa das Palmeiras que me permitiu relacionar duas áreas de interesse à Vera Macedo, grande mestra, que me disse: ‘seja você mesmo’ aos amigos que ganhei na casa das Palmeiras e me acompanharam nesta jornada aos clientes da Casa das Palmeiras que me ensinaram muito durante o ano aos meus amigos que me apoiaram reciprocamente nesta jornada

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SUMÁRIO I.

Introdução

II.

O Barro e a Civilização Humana: Uma Relação Histórica e Simbólica

III.

A Psicose - esquizofrenia

IV.

O Impacto do Barro como um dos Dispositivos Inovadores no Âmbito das Políticas de Saúde Mental.

V.

Um estudo de caso: um elo com a prática clínica

VI.

Considerações Finais

VII.

Anexos

VIII. Bibliografias

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Despojei-me Cobri meu corpo de barro e fui. Entrei no bojo do escuro, ventre da terra. O tempo perdeu o sentido de tempo. Cheguei ao amorfo. Posso ter sido mineral, animal, vegetal. Não sei o que fui. Não sei onde estava. Espaço. A história não existia mais. Sons ressoavam. Saíam de mim. Dor. Não sei por onde andei. O escuro, os sons, a dor, se confundiam. Transmutação. O espaço encolheu. Saí. Voltei. Celeida Tostes1

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In: arteonline.arq.br/museu/interviews/celeida.htm acessado em: quinta feira 20 de outubro

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I. Introdução O objetivo deste trabalho é expor uma alternativa viável à elaboração psíquica em um nível de realidade. Abordaremos a modelagem como alternativa de promover ao esquizofrênico uma 'válvula de escape' de suas questões, uma vez que o barro irá carregar a energia do sujeito que a modela. Assim, quando se produz algo material, seja através do barro, pintura, ou qualquer expressão simbólica, deslocase energia psíquica para o objeto, produzindo um esvaziamento das questões que, a princípio, produzem angústia. É necessário verificar como é manuseado o material. A emoção que se expressa nesse momento é a forma com que o sujeito lida com questões inconscientes. Se expressa agressividade, repulsa, ou delicadeza, por exemplo, será o modo exato como ele lida com o seu mundo interior mergulhado na escuridão. Jung fez uma metáfora de que o inconsciente é um quarto escuro e a consciência é o foco de uma lanterna iluminando e produzindo 'Sombras'. O trabalho com o barro neste momento é evocar imagens já existentes no mundo interior. Seria como uma associação livre mediante um trabalho espontâneo de produção. A função terapêutica refere-se ao fato de deslocar-se energia psíquica e produzir uma nova forma de ver aquele material, uma nova forma de lidar com ele proporcionando novas diretrizes em direção a um tratamento eficaz da esquizofrenia. É preciso ressaltar que Jung salienta em sua extensa obra, que não devemos patologizar o esquizofrênico já que este apresenta todas as características de um sujeito dito normal. Este modo de ver, estigmatizando o doente mental refere-se à marginalização imposta pela sociedade, muito próximo às torturas realizadas na ditadura. As práticas do eletro-choque e do coma insulínico se mostraram ineficazes para o tratamento do doente mental, a não ser para torná-los ainda mais tutorados e dependentes. Eles perdem amigos, família, vida, gostos e passam a 5


viver uma realidade institucional no qual são aprisionados. Assim, acabam, também, aprisionando-se no seu mundo interno, se as portas e janelas foram quebradas por eles próprios (como ocorreu na revolução anti-manicomial, por assim dizer), eles continuam imaginando-a naquele lugar por que a realidade social deles é ali dentro, dentro da instituição e dentro de si próprio. Esta revolução anti-manicomial não basta, é necessário haver mecanismos, como vem sendo elaborados ultimamente, de mostrar ao doente mental: "você é livre!". É a partir daí que a modelagem do barro se instaura. O barro irá proporcionar uma liberdade para as imagens inconscientes surgirem. Estas imagens serão de tal ordem que poderão expressar a história pessoal e coletiva. Segundo Jung há dois tipos de imagens: as imagens arquetípicas são universais e o sujeito diz ser aquilo que ela mostra e somente, e as imagens pessoais no qual há uma elaboração a partir de uma história pessoal. Por exemplo, o titã Cronos na mitologia grega é uma imagem universal de um pai devorador por que engole seus próprios filhos sendo, portanto, uma imagem arquetípica. Cronos, na história pessoal está ligado à um Complexo Paterno Negativo que irá impedir o desenvolvimento dos filhos, estando, assim, ligado à uma história pessoal e por isto mesmo é denominado complexo. Para Jung o inconsciente é pessoal e coletivo. O Inconsciente Pessoal é composto por complexos e o Inconsciente Coletivo constituído por arquétipos. Os complexos estão ligados à história pessoal enquanto os arquétipos à história da humanidade, inata e coletiva. O complexos, num âmbito mais profundo refere-se a um arquétipo. Isto nos faz tornar importante traçar como o barro era utilizado e visto nas culturas mais arcaicas para entender as imagens de esquizofrênicos que, Jung denominou como 'imersos no inconsciente coletivo', ou seja, sua consciência é tomada por imagens ditas arquetípica que, se manifesta, por vozes e alucinações. A partir do momento em que estas imagens tomam vida própria, pela modelagem, o limiar de angustia

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tende diminuir. Proporcionando uma ordenação mais eficaz das instancias psíquicas. II. O Barro e a Civilização Humana: Uma Relação Histórica e Simbólica Segundo Cooper (1981) a utilização do barro como meio de produção de objetos em cerâmica atravessou milênios na civilização humana, não se sabe ao certo aonde foi que surgiu, mas, que de fato todas as civilizações produziam cerâmicas a partir da matéria prima barro, seja a terracota dos índios brasileiros até a porcelana dos japoneses, devido a diversidade do solo de cada localidade, o que influenciou na tonalidade de cada argila. Acredita-se que a produção de cerâmica (barro levado ao forno) surgiu em meados de 6000 antes de cristo em regiões próximas da mesopotâmia, Síria e Ásia menor, no Oriente Médio. De 4000 a 3000 AC, com a criação do torno as peças em cerâmica começaram a ficar mais simétricas. No período de 3000 a 2000 AC surgiram as primeiras cerâmicas no extremo oriente: China, Índia, Coréia e Japão. Na Europa também era manifestado a produção de vasos, principalmente na Espanha, Holanda e Alemanha. Também, nesta época, foram encontrados as primeiras cerâmica no Equador. Desde tempos mais remotos o mito e a magia fizeram um importante papel na vida das diferentes comunidades e sociedades, e é mais provável que nesta etapa modelava-se com argila figuras simbólicas como parte dos rituais e cerimonias de fertilidade. Somente mais tarde, quando as cidades tornaram-se mais sedentárias, construíram vasilhas para conter comida para alimentação, ou para fins religiosos.2

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“Desde los tiempos más remotos el mito y la magia han jugado un importante papel en la vida de las diferentes comunidades y sociedades, y es más que probable que en esta etapa se modelasen con arcilla figuras simbólicas como parte de los rituales y ceremonias de la fertilidad. Sólo más tarde, cuandolas ciudades se hicieron más sedentárias, se construyeron vasijas para contener alimentos o semillas, o para fines religiosos” Cooper, Emmanuel (1981) p. 12

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Nos períodos denominados Halaf (aproximadamente 4500 – 4000 AC) e Ubaid (4000 – 3500 AC) foram muito importantes para o desenvolvimento da cerâmica pois o barro antes disso não era queimado, tornando-se muito frágil, o que no primeiro período, com a criação de fornos, a matéria prima tornou-se mais firme, podendo ser pintada, sem que suas cores perdessem a força, foi neste período que surgiram imagens de cabeça de touro e figuras femininas. Já no segundo período foi importante pela utilização do torno, tornando as peças mais uniformes, estabelecendo o perfeccionismo da época.3 Chevalier e Gheerbrant (1982) associam a cerâmica ao útero ou matriz. Partindo desta concepção, os Dogons4 produziram uma imagem do Sol em barro e o cobre em aspiral. O barro simboliza a parte fêmea e a espiral a parte macho fecundador. Os

Bambaras5 utilizam a modelagem em barro como instrumento de

conhecimento, tendo como objetivo principal da confecção de potes, alcançar o nível

dos mestres. O conhecimento, para esta etnia africana é sinônimo de

felicidade suprema. Esta concepção se aproxima, de certa maneira, do pensamento místico dos Sufis6, no qual todo o conhecimento é atribuído a Deus, assim, um estado de beatitude consiste na identificação por conhecimentos supremos. Os Fali dão à primeira esposa o nome da grande jarra em que se prepara a cerveja e milho; à segunda, o do jarro aonde se conserva a água; à terceira, o nome do alguidar comum; e à quarta, o do vaso de pescoço longo que serve para transportar água7

Gomes (2002) fez um estudos dos achados arqueológicos da amazônia, traçando a iconografia dos estilos empregados. Dentre eles o estilo Santarém dos índios 3

Cooper (1981) p.18 e 19 Segundo Wikipedia (in: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dogon) o povo Dogons habita Malii e Burkina Faso. Possuem grande conhecimento em Astrologia e um estilo de vida muito complexo 5 “Os bambaras são um grupo étnico que vive no oeste de África, principalmente em Mali mas também na Guiné, Burkina Faso e Senegal.” (Wikipédia, in: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bambaras) 6 Corrente mística e contemplativa do Islão segundo Wikipedia (in: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sufi) 7 Chevalier e Gheerbrant (1982), p. 221 4

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tapajós incluem representações ligadas ao xamanismo, imagens de animais (cobras, jacarés, sapos, onças, urubu-rei), representação de ancestrais, figuras do sexo feminino com boca ou olhos tapados. Nimuendaju (1949, apud Gomes, 2002 p. 97) “indica a possibilidade da interdição de cerimônias às mulheres, uma vez que estas figuras aparecem por vezes com as mão cobrindo os olhos e a boca”8. Já os homens eram representados com muito mais atributos: chocalhos, pulseiras, faixas, grinaldas, cobre-nuca, tendo estes objetos finalidade de urnas e vasos para conter bebidas destinadas a cerimônias religiosas, sendo viável a hipótese de um culto aos ancestrais – chefes e xamãs. As figuras geométricas também desempenhavam um papel importante na decoração das peças feitas por barro. Jung (1985) coloca a importância da psicologia primitiva, a respeito da mitologia, arqueologia e história das religiões. Tais conhecimentos enriquecem a história pessoal, isto se dá por fatores mitológicos, históricos e arcaicos que até mesmo Freud (apud Jung, 1985) observou em sua obra, denominado como resíduos arcaicos. Freud já havia observado que o inconsciente, vez por outra, produz representações, que provavelmente não há outra maneira de definir, a não ser como arcaicas. Encontramo-las sobretudo nos sonhos e nas fantasias em estado desperto.9

Estas questões arcaicas, seriam mais tarde taxadas de psicologia profunda. Mesmo sendo colocados por Freud, muitos autores “neo-freudianos” vem a distinguir o ponto de vista psicanalítico do da psicologia profunda, como é o caso de GarciaRoza (1994), que demarca a diferença entre o inconsciente proposto por Freud, a psicologia da consciência e a psicologia profunda. Ele propõe que o psicanalista 8

Gomes, Denise Maria Cavalcante (2002): Cerâmica Arqueológica da Amazônia, Editora da Universidade de São Paulo; p. 97 9 JUNG, C.G (1985): A pratica de psicoterapia, Petrópolis: Vozes; p. 114

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não é um escavador de solos em busca do inconsciente, que este não se encontra abaixo da consciência, nem se refere às naturezas infernais. Este sistema psíquico contrapõe à consciência que, em parte é inconsciente. O inconsciente para ele não há nada de arbitrário, e segundo Lacan (apud Garcia-Roza, 1994, p.171) ele é estruturado como a linguagem. Para Lacan (apud Garcia-Roza, 1994, p.171) os fenômenos lacunares permitem o estudo do inconsciente, ou seja, a partir do sonho, do lapso, do ato falho, do chiste e dos sintomas. Lacan (1979b, p. 30 apud Garcia-Roza, 1994 p.171) aponta que os sujeitos sentem-se atropelados por um outro que desconhece, mas através de sua fala apresenta troca de nomes, esquecimentos, tornando sem sentido naquele dado momento. Dizer que uma representação é inconsciente ou que está no inconsciente não significa outra coisa senão que ela está submetida a uma sintaxe diferente daquela que caracteriza a consciência. O inconsciente é uma forma e não um lugar ou uma coisa. Melhor dizendo, ele é uma lei de articulação e não a coisa ou o lugar onde esta articulação se dá10

No correlato simbólico do inconsciente, Levi-Straus (apud Garcia-Roza, 1994, p.175), a partir de uma visão antropológica, retrata a cultura sendo formada por símbolos, mas não pensamos símbolos por que a cultura é simbólica, ao contrario, a cultura é simbólica por que o inconsciente é permeado de símbolos. Portanto, ele vai designar a função simbólica como leis estruturais do inconsciente. Jung (1938) nos trás que até mesmo Freud verificou o caráter arcaico-mitológico do inconsciente. Jung observou que havia um Inconsciente Pessoal e um outro mais profundo: o Inconsciente Coletivo. O estudo dos povos primitivos

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Garcia-Roza (1994) p. 174

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proporcionou um avanço exponencial na psicanálise e psicologia. Tais povos deram grande importância a rituais religiosos, culto ao invisível e um estudo muito avançado sobre astrologia, como é o caso dos ‘Dogons’, propondo que o destino das pessoas está nas estrelas. Jung (1985) aponta o caráter a priori do Superego, refere-se à uma questão universal e primitiva, assim, ele diz: “Sabe-se que o que compõe o chamado Superego corresponde a ‘representations colletives’, conceito que Lêvy-Bruil estabeleceu para psicologia dos primitivos. São representações e categorias universais, baseadas em temas arcaicos e mitológicos, que regulam e dão forma à vida psíquica e social dos primitivos; são as convicções gerais, as concepções e os valores éticos nos quais fomos educados e que nos orientam no mundo e na vida. Elas intervêm, como todos sabem quase que automaticamente em todos nossos atos de escolhas e decisão, bem como na formação das nossas idéias.” 11

Jung (1938) aponta que tanto os dogmas religiosos, quanto as visões de pessoas comuns de santos e até mesmo de Jesus, tratam-se não de fenômenos recentes como a igreja católica, mas sim das épocas pré-históricas, pelo qual havia mistérios, estando presente no inconsciente coletivo, pré-histórico e arcaico, não nas religiões. Jung (1964) trata o sonho como uma expressão espontânea do inconsciente tendo como característica principal e fundamental a atemporalidade, pois, diz ele: Quando alguma coisa escapa da nossa consciência esta coisa não deixou de existir, do mesmo modo que um automóvel que desaparece na esquina não se desfez no ar. Apenas o perdemos de vista. Assim como podemos, 11

JUNG, C.G. (1985): A pratica psicoterapica; Petrópolis: Vozes, p.114

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mais tarde, ver novamente o carro, assim também reencontramos pensamentos temporariamente perdidos12.

Os sonhos produzem símbolos e imagens tanto de conteúdos pessoais quanto arquetípicos. Segundo Golvêa (1989) estas imagens irão proporcionar um movimento ao ser e o homem se expressa através de imagens, seja por imagens verbais ou não, buscando, a todo momento, colocar de uma forma palpável todas suas questões subjetivas, a palavra age como intermédio do ‘ser interior’ e mundo externo. Mas nem sempre esta linguagem vai desempenhar o papel de mediação entre o mundo interno e o mundo externo, haverá falhas nesta comunicação. A imagem, por sinal, ultrapassa o significado expresso pela palavra, como acontece com pessoas diante alguns quadros, dizem não ter palavras para dizer o que realmente acham sobre aquelas cores sobrepostas num papel. Algo se passa para além das palavras e muitas vezes as imagens muito claras, expressas nas linguagens ou em idéias gerais, não realizam todo o conteúdo da emoção. Torna necessário encontrar a forma para que essa imagem particular, que dá vida à imagem geral, possa sair da hipertrofia das imagens lingüísticas e retomar o momento inicial e criativo na dinâmica energética da matéria mesmo. E no silencio retomar o indizível.” 13

Golvêa (1989) nos traz de uma maneira simples a expressão do que a palavra não consegue comunicar, por meio de elementos da natureza, organizando-se de maneira quase inconsciente toda aquela vasta significação sobre o mundo interno. Por isto ele deixa claro que, a partir do momento em que se utiliza um material plástico, coloca-se em jogo mais um elemento na relação dual analista analisando, tomando como mediador destes o objeto material que, tornará uma chave para adentrar no imaginário do analisando. Esta relação se dará por meio de 12 13

Jung (1964) p. 32 Govêa (1989) p. 32

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ordenações, na medida em que o material plástico ainda não foi organizado pela linguagem. O processo analítico se voltará para a questão da criação, formação, sem ela não haveria a linguagem, objetiva, concreta e palpável. A utilização de materiais como o barro, a tinta, entre outros, direcionam o sujeito para uma ordenação. Posteriormente, o direcionamento do trabalho analítico caminha para uma organização do que foi trazido pelo objeto material, assim, este se torna uma forma de comunicação, sendo a linguagem elaborada a partir desta. Trata-se de um pensamento selvagem, que Lévi-Strauss (1989 apud PINTO, 2006) denominou em seu livro de mesmo nome. É um conhecimento primitivo que ultrapassa a razão e por intermédio da pele, contato com a natureza estabelece um “fazer que se confunde com o ser”14 Deste modo, estabelece-se uma relação do sujeito com a forma simbólica. O fazer e o ser tornam-se uma só coisa, ao mesmo tempo ação e resultado da expressão simbólica. Essa expressão se dá de variadas formas (através da música, da pintura, da modelagem etc.), mas tem em comum a possibilidade de comunicação entre consciente e inconsciente, para além do tempo e do espaço. Segundo Golvêa (1988), estes símbolos feitos no barro, ou em qualquer outra matéria, são ordenações interiores de processos afetivos. Pinto (2006) acrescentou que, para alcançar uma nova estruturação com a modelagem, é necessária uma desordenação amassando o barro a ponto dele atingir forma desestruturada, possibilitando, assim uma nova ordenação. É preciso criar situações que provoquem a desestrutura. Há necessidade de criar uma nova estruturação; desordenar para criar uma nova ordem. Investigar15

14 15

Pinto (2006) p. 79 (TOSTES, Celeida apud PINTO, 2006 p.80)

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Assagioli (1969) destacou o ponto de vista psicodinâmico dos símbolos, salientando a questão energética das imagens, os símbolos como “(...) recipientes e preservadores de uma carga ou voltagem psicológica dinâmica”16, os símbolos armazenam, modificam, conduzem e integram a energia psíquica. Símbolos são formas de escoamento da energia, a princípio alocados no mundo interno, são agora direcionados ao mundo externo, por meio da expressão em objetos materiais, estabelecendo uma ligação entre os dois mundos (interno e externo). Bachelard (1985) faz uma critica à posição: matéria com qualidades energéticas, acrescentando: Se nos limitarmos em dizer que a matéria tem propriedade energéticas, que ela pode absorver, emitir energia, que ela pode armazená-la, chegamos a contradições. Armazenando-se , a energia torna-se latente, potencial, fictícia, como uma soma de dinheiro subtraída aos guichês dos bancos, e energia não tem sentido real senão num desdobramento temporal tornar-se atemporal17

Golvêa (1988) acrescenta que é preciso estabelecer uma via, por meio de imagens das questões psíquicas, colocando que: Numa relação terapêutica, na maioria das vezes o Ego do analisando está atingido, o campo do consciente invadido por fatores impessoais carregados de dinamismos fortes, a concretização em imagens desses conteúdos será imprescindível18

Assagioli (1969) aponta a transformação do inconsciente por meio da utilização de símbolos, pelo fato destes estabelecer um efeito sobre aquele. Assim, o autor

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Assagioli (1969) p. 189 Bachelard (1985) p. 60 18 Golvêa (1988) p. 35 17

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destaca que comunicação por símbolos é como a comunicação com o inconsciente, já que este opera por meio de símbolos. A partir desta questão, a produção simbólica através da utilização de barro ou argila vai ser possível e possibilitar uma transformação. Segundo Bachelard (1989, apud PINTO, 2006) a argila compõe a imaginação dos homens, perguntando-se de qual lama, argila veio, pois a criação necessita da argila, que une a água da terra. Na mitologia grega, colocado por Chevalier & Gheerbrant (1982 p. 681), Zeus ordenou Hefestos que juntasse água e terra para modelar uma mulher à imagem dos deuses esta, chamada Pandora, foi dotada de ensinamentos dos deuses: Atena ensinou os trabalhos, Afrodite deu a ela a beleza e o desejo dos homens, Hermes, dá a ela a mentira e astúcia. Pandora foi um castigo de Zeus para Prometeu, que havia modelado o homem, e dado a eles o fogo, o que possibilitaria seu poder frente aos outros animais, o fogo era exclusivo dos deuses e Prometeu o roubou. Zeus então castigou o Titã a ficar acorrentado numa rocha, com uma águia comendo seu fígado, que regenerava todo dia devido sua imortalidade. Pandora foi o preço pago pelo fogo dado aos homens, estes homens que usam o fogo em seu benefício, suportariam muito bem as queimaduras do fogo do desejo de Pandora. Pandora, segundo Pinto (2006), levou consigo uma jarra ou caixa, que carregava todos os males mundanos, jarro este que era tampado, mas devido à curiosidade de Pandora, que o abriu e todos os males se espalharam pelo mundo, então correndo ela resolveu fechá-lo na tentativa de que permaneceriam os males dentro do jarro, mas a única coisa que restou, bem no fundo, foi a esperança. O analisando quando modela “(...) a massa, modela a si mesmo e, ao mesmo tempo que conhece o interior do barro, tem acesso ao seu próprio interior, reencontrando alegremente o poder de transformar e transformar-se, (...) vive a aventura pessoal. O tempo perde sentido, não

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existe presente. Penetra ao interior da matéria, do barro, do feminino Terra. Torna-se sua própria obra. (...) Se faz necessário exorcizar Pandora, ir até o fundo do jarro e renascer transformado (...)”19

Celeida Tostes (apud PINTO, 2006) levanta a questão para a característica uterina da argila em sua escultura-performance no qual ela adentrou dentro de um jarro de barro, como se estivesse voltando ao útero e, renasceu, se transformou, saindo daquele útero, daquele jarro de barro uma volta ao indizível, ao útero materno com objetivo de renascer novamente, recriar-se, com sua matéria prima, seu barro. (anexo 1) Isto se relaciona à sentimentos de morte e vida causados pelo contato com o barro que, segundo Golvea (1989), muitas vezes pode não ser prazeroso, pois o contato com o barro remete uma caminhada rumo ao self, si mesmo, trazendo experiências de vida e morte, a criação compete um nascimento e, ao mesmo tempo, a morte. Envolve, como observado na obra de Celeida Tostes: A Passagem, o renascimento. Isto viria a se relacionar com o processo de individuação proposto por Jung. Processo de individuação é o eixo teórico do pensamento junguiano. Descreve o processo pelo qual cada indivíduo vem a ser o que ele realmente é. Ele se torna realmente um in-dividuum, uma totalidade indivisível. Por este processo simbólico as potencialidades individuais são atualizadas ao nível consciente. Isso porque, na perspectiva junguiana, o individuo não nasce uma tabula rasa, mas tem suas potencialidades individuais já pré-figuradas em seu genoma, cuja representação psicológica foi definida como arquétipo de si–mesmo.20

19 20

PINTO (2006) p.98 BOECHAT (2007) p. 202

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O processo de individuação como um fator fundamental no desenvolvimento pessoal rumo a si mesmo ou, por outras palavras, Self. O que está relacionado à auto-realização, efetivação das potencialidades individuais, fazendo com que o individuo cresça, se transforme e se conheça, tomando consciência de si mesmo e proporcionando uma ampliação da consciência devido ao processo de autoconhecimento. Si-mesmo, segundo Boechat: É o núcleo central e ao mesmo tempo a totalidade dos processos psíquicos, conscientes e inconscientes. O si-mesmo pode ser considerado como o equivalente psicológico da idéia universal da existência de deus. Jung observou uma ordem, organização de uma teleologia (finalidade) nos processos psicológicos independentes da vontade consciente do ego. Percebeu esses processos de organização da totalidade observando série de sonhos de sonhos de muitos pacientes e também na finalidade dos processos psíquicos dos pacientes psicóticos mais regredidos (...). O simesmo se manifesta em sonhos como forma geométrica, o mandala, que traz a idéia de centralização e equilíbrio, diversos símbolos da natureza, a pedra que dá estabilidade e permanência, a árvore, o rio e a montanha. Também como figuras humanas como o velho sábio, o conselheiro e o tutor, o rei e o xamã.21

Assim, o processo de individuação só é possível por meio de uma comunicação simbólica entre o ego (centro da consciência) e si-mesmo. Assim, Boechat (2007) preza a importância da estruturação da criança por meio de contos de fadas e completa que no âmbito da doença mental o eixo ego-si-mesmo não se realiza de forma adequada propiciando uma invasão da consciência por temas mitológicos. Com isto o processo de elaboração a partir do barro irá se estruturar por meio do eixo ego-si-mesmo. Golvêa ainda completa esta afirmação com a contribuição Freudiana a respeito da natureza inconsciente do manejo do barro:

21

Boechat (2007) p. 198 e 199

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“O encontro inicial com o barro funciona a nível do que Freud denominou de “processo primário”. Desta forma, o encontro entre o analista, analisando e o barro é, antes de tudo, uma identidade de percepção que levaria o

analisando primeiro ao prazer que,

paradoxamente, pode ser um desprazer como é o caso em que o primeiro rosto ou máscara é feita pelo analisando com grande perplexidade, sofrimento e temor. O importante do ponto de vista terapêutico é que o analista favoreça o livre fluxo da energia psíquica que passa sem barreiras do analisando para o barro e desse para o analista. As vivencias são tão representativas que muitos dos analisandos não querem ver mais o que fizeram, enquanto outros (...) não se aventuram a fazer outros.”22

O barro, então, por estar relacionado ao prazer e desprazer vai remeter-se ao processo primário, permitindo um pensar inconsciente, ou um pensamento selvagem de Lévi-Strauss (p. 10). Este tipo de pensamento está relacionado ao processo primário, enquanto o princípio de realidade, com o processo secundário. O contato com o barro leva o sujeito a uma questão paradoxa: “o de pensar aonde nao penso"23. Assim, diz golvea (1989) os dois princípios: prazer e realidade se unem na produção simbólica no barro.

22 23

GOLVEA (1989) P. 68 GOLVEA (1989) P. 69

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III. A Esquizofrenia A história da esquizofrenia teve seus primórdios em 1852, quando Benedict Morel criou o termo Demence Precoce. Edward Hecker e Kahlbaum introduzem a Hebefrenia e Catatonia nos postulados psiquiátricos da época e em 1863 e 1874, respectivamente e Kraepelin acrescenta com Paranoide. Em 1896 é publicado o Tratado de Psiquiatria, unindo todos os conceitos acima descritos. O começo do século XX consistiu no marco da psiquiatria, no qual a Esquizofrenia deixa de lado o fardo de ser uma demência e passa a se chamar “mente cindida”, termo atual proposto por Bleuer. Jung trabalhou no Hospital Burghölzli, em Zurique, em que Eugene Bleuer era diretor. “Bleuer não se contentava com a descrição dos sintomas. Quis dar à psiquiatria uma base psicológica”24, para isto, recorreu ao Associacionismo da psicologia Clássica, Jung e Bleuer investigaram as associações de idéias dos esquizofrênicos com tempo de reação, isto possibilitou chamar a então Dementia Praecox de ‘Esquizofrenia’ que significa dissociação psíquica, conceito dado graças à pesquisa de Bleuer com ajuda de Jung sobre as associações dos esquizofrênicos. Jung interessou-se pelas associações até então desprezadas pela psiquiatria. Com a influencia de Freud e seu livro Interpretações dos Sonhos, Jung investigou os tempos de reação variados e denominou-os de ‘complexos de tonalidade afetiva’ ou seja: ‘complexos de idéias dotadas de forte carga afetiva’ ou simplesmente ‘complexos’. A partir da obra Psicogênese, Jung deu um enfoque psicológico aos sintomas: inconguências, absurdos, delírios, neologismos, estereotipias, passaram as ser, para Jung, dotadas de sentido, o que foi possível graças ao primeiro contato

24

Silveira (1981) p. 92

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que teve com Freud e seu método de análise e da interpretação dos sonhos. (SILVEIRA, 1981) “A princípio a pesquisa associativa parecia impraticável com os esquizofrênicos. Mas Jung não se deu por vencido. Recorreu a um estratagema: passou a empregar como palavras indutoras precisamente os neologismos e as estereotipias verbais dos doentes. Graças a este hábil recurso e a um labor infinitamente paciente, conseguiu significação de expressões delirantes...”

encontrar a

25

Com as associações de idéias, Jung chegou a conclusão que a origem das manifestações psíquicas dos esquizofrênicos se assemelhavam muito às associações de pessoas sadias. Jung propôs que ao vermos a doença como patológica deixamos de ver o outro lado sadio dos esquizofrênicos. Com base nessas afirmações Jung “completa que na demência precocee não existe sintoma algum sem base psicológica, sem significação. Mesmo as coisas mais absurdas são símbolos de pensamentos não só compreensíveis em termos humanos, mas que habitam também o íntimo de todos nós”26 Na dementia praecox, onde ainda existem de fato inúmeras associações normais, devemos esperar que as leis da psique normal ainda operem por muito tempo antes de podermos conhecer os processos certamente muito refinados que são, na verdade, específicos. Infelizmente nossos conhecimentos da psique normal ainda se encontram num estado bastante

embrionário.

O

que

significa

enorme

dano

para

a

psicopatologia, onde só existe propriamente consenso, quando se admite que os conceitos aplicados são ambíguos.27

25

OP CIT p. 94 OP CIT p. 95 27 JUNG (1971) p. 3 § 8 26

20


O livro Psicogênese das Doenças Mentais foi o marco de Jung no estabelecimento de uma descaracterização do patológico, tornando-o poético e criativo. Jung se interessou pelos estudos da esquizofrenia pelo fato de haver neles toda a estrutura psíquica dos neuróticos, histéricos e pessoas normais. Logo, é possível, através de Jung ter uma abordagem não focada nos sintomas, na patologia, mas sim no sujeito em sua totalidade, opondo-se à psiquiatria tradicional. Assim torna-se possível observar toda a organização psíquica dos esquizofrênicos. Freud (1924) relatou sobre a psicose no artigo Neurose x Psicose no qual é feito uma comparação entre tipos de conflitos existentes nas duas instancias: A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo28

Nas neureses, a unidade do ego mantém-se pelo menos parcialmente, entquanto na esquizforenia o ego fragmenta-se (...). A personalidade consciente, centrada no ego, sucumbe ao assalto das forças do inconsciente.29

A característica fundamental da Neurose Narcísica e Psicose é que a energia psíquica (denominada por Jung de Libido) volta-se para o Ego, abandonando os objetos. As idéias dos esquizofrênicos são impressionantes, o que levou Jung a investigar qual a origem daquelas idéias. Foi nesta época que um dos esquizofrênicos perguntou para Jung se ele via o pênis do sol mover-se de um lado para o outro. Esta imagem Jung pesquisou e encontrou semelhantes afirmações em civilizações 28 29

FREUD (1924) p. 167 SILVEIRA (1981) p. 95

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muito antigas. Isto leva-nos a questionar: como esta pessoa sem tomar consciência da civilização antiga trazia a mesma idéia em Burghölzli? Jung, a partir deste enigma e de muitos outros formulou o conceito de inconsciente coletivo. Foi a freqüente reversão, na esquizofrenia, a formas arcaicas de representação, que me fez primeiro pensar na existência de um inconsciente não apenas constituído de elemento originariamente conscientes, que tivessem sido perdidos, porém possuindo um estrato mais profundo, de caráter universal, estruturado por conteúdos tais como os motivos mitológicos típicos da imaginação de todos os homens.30

A esquizofrenia, dependendo do grau de regressão poderá ser acompanhada de imagens arquetípicas, míticas, arcaicas, o que torna necessário o estudo de mitologia para alcançar o significado do que o esquizofrênico traz devido sua fragmentação, o que faz com que ele veja as pessoas como monstros, desfiguradas, sofrem influência de feitiçaria etc. A apreensão de que podemos estar diante de uma evolução malograda, que pode acabar num mundo de fantasia caótico ou mórbido, não nos abandona. Esse tipo de evolução pode tornar-se perigoso para uma pessoa cuja personalidade social não esteja bem alicerçada. Aliás, o perigo de se topar com uma psicose latente, capaz de irromper numa crise, é uma eventualidade que não pode ser descartada em uma intervenção psicoterapêutica, qualquer que seja. Brincar com métodos psicoterapêuticos, com diletantismo e pouco senso crítico, é brincar com fogo e deve ser insistentemente desaconselhado. O caso torna-se especialmente perigoso, quando a camada mitológica da psique é posta a descoberto, pois esses conteúdos exercem, em geral, um impressionante fascínio sobre o paciente. Isto explica a enorme influência das idéias mitológicas sobre a humanidade.31 30 31

JUNG citado por SILVEIRA (1981) p. 97 JUNG, C.G. (1985): P. 13

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Nise da Silveira (1981) coloca-nos a par da relação estabelecida entre o esquizofrênico e o espaço, expôs que as imagens que foram produzidas nos ateliês revelam como o esquizofrênico vive seu espaço. “Bleuer havia observado que delírios e alucinações influem sobre a orientação do mundo exterior e que, na esquizofrenia, uma orientação falsa, motivada por fatores subjetivos, poderia coexistir com a orientação correta na realidade. (...) Interpretando a esquizofrenia do ponto de vista Junguiano, torna-se fácil entender que, se o consciente é invadido por conteúdo do inconsciente providos de forte carga energética e efeitos desintegrantes, as coordenadas de orientação no espaço (e no tempo) poderão deslocar-se, criando-se assim a possibilidade de múltiplas visões de mundo.”32

Em casos em que há uma regressão acentuada, em graves casos de esquizofrenia, aonde o esquizofrênico não comunica por meio de verbalização é necessário observar como que se organiza o espaço e tempo através do desenho e pintura. “O que garante o homem sadio contra o delírio ou a alucinação não é sua critica, é a estruturação de seu espaço (...). O que leva à alucinação é o estreitamento do espaço vivido, o enraizamento das coisas no nosso corpo, a vertiginosa proximidade do objeto” Merleau-Ponty33

A esquizofrenia apresenta sintomas principais, tais como alucinações, percepções delirantes, ouvir seus próprios pensamentos como sendo de fora, imposições de afeto ou pensamento, afastamento da realidade externa, denominado autismo. Outros sintomas, chamados segunda ordem, tratam-se de idéias delirantes,

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OP CIT p. 32 Merleau-Ponty, citado por Silveira (1981) p. 33

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sentimentos de empobrecimento emocional, alterações depressivas e eufóricas de humor, sintomas catatônicos, entre outros (NUNES FILHO, 2001). Dra. Nise da Silveira (1981) questionou a utilização do termo demência em esquizofrenia: “que validez terá o tão arraigado conceito de demência na esquizofrenia, ruína da inteligência, embotamento da afetividade?”34 Dra. Nise relatou que em sua experiência no Hospital Pedro II nunca encontrou qualquer vestígio de demência, ruína de inteligência e embotamento afetivo. Jamais encontrei em qualquer esquizofrênico o famoso ‘embotamento afetivo’. Decerto não se poderia esperar manifestações exuberantes de afetividade convencional da parte de pessoas que estão vivenciando desconhecidos estados de ser em espaço e tempo diferentes de nossos parâmetros, o campo do consciente avassalado por estranhíssimos conteúdos emergentes da profundeza da psique.35

Quinet (1991) conclui que o diagnóstico só é encontrado no simbólico, no que o sujeito está trazendo sobre sua vida, como por exemplo: sexo, maternidade, social, paternidade, etc. Ele coloca um modo de diagnosticar a partir da angustia trazida pela relação conflito e a lei, este que Lacan chama de Nome-do-Pai. Logo, ele coloca dois modos de negação do Complexo de Édipo, relacionadas à três estruturas clínicas: o primeiro modo trata-se de uma negação, conservando o desejo. O neurótico conserva no inconsciente e o perverso no feitiche (desmentido). Isto vai implicar o Édipo dentro do simbólico, o que não ocorre na foraclusão do psicótico. “Na psicose, o que é negado no simbólico retorna no real sob forma de automatismo mental, cuja expressão mais evidente é a alucinação. Como o retorno é no real, ou seja, fora do simbólico, emprega-se o neologismo 34 35

SILVEIRA (1981) p. 79 OP CIT p. 79

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‘foraclusão’ como versão do termo francês foroclusion, utilizado no âmbito jurídico para se referir a um processo prescrito, ou seja, aquele de que não se pode mais falar por que legalmente não mais existe. O termo foraclusão como forma de negação indica por si mesmo este local de retorno, a ‘inclusão’ fora do simbólico”36.

Os distúrbios de linguagem, que tratam-se de uma extensa carga energética dada à linguagem trata-se da relação do sujeito com o significante, este que direciona-se ao real, demonstrando os sintomas apresentados. “Por outro lado, a foraclusão do Nome-do-Pai implica a “zerificação” do significante fálico, tendo como homem ou mulher – efeitos que poderá manifestar-se em uma série de fenômenos, que vão de vivencias de castração à transformação em mulher”37

Hillman (1978) nos coloca uma questão sobre a infância, há uma região da psique chamada infância, isto está relacionado à manicômios de séculos atrás, no qual o “(...) louco era considerado uma criança sob tutela do estado, ou sob o olhar paternal do medico que cuidava de seus “filhos”, os loucos, como cuidava de sua família”38. Focaut (1965 apud Hillman, 1978) nos coloca a confusão que se estabelece entre a infância e a loucura. Isto nos faz levantar a seguinte questão: o louco e a criança a partir de suas fabulações remete-se às mesmas questões míticas, pré-históricas, arquetípicas, como por exemplo: “de onde vem a chuva?”. Sofocleto coloca esta afirmação da seguinte forma: “Crianças e loucos dizem a verdade por isto as primeiras são educadas e os segundos encarcerados”39 Jung (1969) utiliza o termo limiar de consciência para explicar o modo em que o sujeito se encontra. Num limiar muito baixo de consciência o sujeito torna-se mais 36

QUINET (1991) p. 19 OP CIT p. 20 38 HILLMAN (1978) p. 22 39 SOFOCLETO apud PIEDADE (2004) p. 205 37

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inconsciente e mais dominado pelos padrões arquetípicos, trazendo imagens mitológicas, o que, num limiar mais alto de consciência estabelece um padrão mais social e consciente, trazendo imagens individuais, o que Laing, em uma analogia com o oceano como o inconsciente, comparou o louco do artista e religioso, dizendo que o primeiro afunda enquanto os dois últimos bóiam. É claro que tanto os artistas quanto os esquizofrênicos podem apresentar-se em limiares baixos de consciência, quanto aquele pode estar num limiar mais elevado. Esquizofrênicos tem um memória muito aguçada, conflitos de alçada afetiva por eles vistos são recordados e tendem a permanecer na consciência, reproduzindo sem cessar em sua vida cotidiana. Que, segundo, Masselon (apud JUNG, 1971) tratam-se de distúrbios de memória, alem de um distúrbio de atenção presente na esquizofrenia, isto vem a se relacionar com o que Janet (apud JUNG, 1971) veio a denominar de abaissement du niveau mental, ou, como Jung denominou de rebaixamento do nível de consciência.

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IV. O Impacto do Barro como um dos Dispositivos Inovadores no Âmbito das Políticas de Saúde Mental. Segundo Basaglia (2005) a doença mental é produzido pela institucionalização. Aquele que perde a liberdade, perde amigos, laços sociais, modo de vestir, seus costumes, ainda são obrigados a tomar remédios para conter a agressividade de uma perda de quase tudo que se resume, num âmbito mais interior a uma perda da individualidade. Os médicos dão remédios na tentativa de trata-los, passando a assumir um papel de pai, de lei, de repressão, restringindo o sujeito com suas próprias regras institucionais. A descoberta da liberdade pela psiquiatria conduz, portanto, à uma questão do doente mental fora do manicômio. Na realidade, por toda parte ainda existem grades, chaves, barras, portões, pessoal com escassa preparação técnica e, muitas vezes, humana, mas a questão, de qualquer forma, está em aberto: a destruição do manicômio é um fator urgentemente necessário, se não simplesmente óbvio40

O processo de institucionalização, de construção de muros que não os deixam sair produz um sentimento de vazio emocional. O que, de fato ocorre, é que esta prisão dentro do manicômio acaba fazendo com que o doente mental se sinta preso dentro de si, trata-se de uma ‘interiorização institucional’ o que, concretamente, os fármacos ajudam a complementar esta prisão interior, emocional. Basaglia propõe uma série de medidas para abrir as portas dos manicômios e, com este clima de liberdade, promover um ambiente aonde possa se desenvolver o trabalho e as discussões. A ‘porta aberta’ - prova definitiva do abandono, por parte do médico, do mundo do engano – age sobre o doente demonstrando-lhe que o 40

BASAGLIA (2005) p. 26

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psiquiatra já não vive no culto ao pessimismo de que a sociedade ainda parece impregnada.41

Basaglia (2005) tem a iniciativa de colocar a doença mental em segundo plano, preocupando-se, inicialmente, em conhecer o sujeito que pensa, vive, se veste e é encarcerado pelas instituições manicomiais: Franco Basaglia pôs a doença mental entre parênteses a fim de dar voz, sem interpretar, e fazer emergir novos sujeitos no palco da história – os pacientes, os familiares, os não especialistas. A relação terapêutica devia instaurar-se dentro de um espaço no qual toda resposta pré-fabricada e todo preconceito ficassem entre parênteses: somente assim seria possível ir ao encontro do doente num plano de liberdade. (...) Basaglia possibilitou-nos escutar o Outro sem os preconceitos que invadiam a comunicação: uma capacidade rara, essa da escuta, afirmada mais com palavras do que com os fatos.42

É sabido que um sujeito retirado de seu meio familiar e social, no qual seus costumes são igualmente abolidos, assim como os seus modos de vestir, a comida que mais gosta de comer, simplesmente dopado por uma série de medicamentos, sofrendo da agressividade da sociedade (por meio de uma segregação excludente) não pode ser agressivo, deve viver passivamente todas as mudanças prisionais da institucionalização. Este que perde sua vida, naturalmente perde a si mesmo. A sociedade tem um papel no âmbito manicomial de exclusão do doente mental, como parte de uma prisão e com objetivo de deixa-los longe dos ditos normais os seres ‘desviante’, a prisão vai sendo internalizado como um pensamento de que, por haver doença, há a incapacidade. Alem de terem uma imagem corporal do corpo como sendo uma prisão do que realmente poderia fazer. O corpo passa a ser 41 42

BASAGLIA (2005) P.31 Ernesto Venturini prefácio de BASAGLIA (2005) p. 18

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observado não como parte de sua individualidade mas sim como algo que se apossa dela. Anteriormente à concepção de Franco Basaglia, na década de 50, uma expoente psiquiatra brasileira, Dra Nise da Silveira, já mantinha as portas do hospital psiquiátrico abertas. Sendo criticada pelo ato por acharem que os doentes mentais iriam consumir bebidas alcoólicas nos bares da redondeza, o que fez com que ela fosse em cada bar comunicando para que não vendessem bebidas alcoólicas para os pacientes do hospital. Dra. Nise da Silveira (1986) criou o projeto piloto Casa das Palmeiras que, tratase de um local aonde as portas ficam abertas e dão o direito aos clientes de irem e virem. A casa foi inaugurada no dia 23 de dezembro de 1956, um projeto piloto de clínica psiquiátrica aonde os clientes tem a liberdade de ir e vir, aonde as portas permanecem abertas. A idéia se deu ao longo do período em que Dra. Nise da Silveira permaneceu presa durante o período militar tornando-se então personagem do conto de Graciliano Ramos denominado Memórias de um Cárcere, ela esteve na mesma cela que Olga Benário. A partir desta experiência real de uma vida encarcerada, Nise da Silveira começa a elaborar o que viria a ser o maior objetivo dos psicólogos na atualidade: o estabelecimento da liberdade. Para que estes pacientes psiquiátricos, agora denominados de clientes, pudessem se expressar livremente nos diversos ateliês propostos por Dra. Nise, através do que é denominado de expressão simbólica, com objetivo fundamental de retirar as grades, as portas trancadas, que ainda existiam e existem dentro dos esquizofrênicos de uma forma figurada, como herança de tudo o que passaram durantes as constantes internações, com praticas de eletro-choque, entre outros exercícios de torturas que, Dra. Nise viu de perto durante o período reclusa na prisão.

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Rótulos e diagnósticos são, para nós, de significação menor, e não costumamos fazer esforços para estabelece-los de acordo com classificações clássicas. Não pensamos em termos de doença, mas em função de indivíduos que tropeçam no caminho de volta a realidade cotidiana.43

Dra. Nise da Silveira (1981) observou em Engenho de Dentro que, apesar da dissociação do consciente, havia uma tendência à organização, ou seja, produção de mandalas produzidas após a produção de imagens abstratas. As mandalas, para Dra. Nise, “davam formas a forças do inconsciente que buscavam compensar a dissociação esquizofrênica.”44

Estas imagens proporcionaram uma nova

compreensão da esquizofrenia. “Em regra a mandala ocorre em situações de dissociação ou desorientação psíquica (...) em esquizofrênicos cuja visão de mundo tornou-se confusa devido à invasão de conteúdos incompreensíveis emergentes do inconsciente.”45 As imagens circulares apresentadas mostram que na esquizofrenia não estão mortas as forças inconscientes de defesa em luta para compensar a dissociação do consciente. Essas forças emergem de maneira espontânea, sob várias formas, e muitas vezes mergulham de novo no inconsciente, perdendo-se, pois são enormes as dificuldades que se opõem à ordenação do tumulto que é a psique do indivíduo na condição esquizofrênica46

As tentativas de ordenação interna, bem como as simultâneas tentativas de volta ao mundo externo, tornam-se mais firmes e duradoutra se no ambiente onde vive o doente ele encontra o suporte do afeto.47

43

SILVEIRA (1986) p. 11 SILVEIRA (1981) p. 52 45 OP CIT P. 54 46 OP CIT p. 66 47 OP CIT p. 66 44

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Com isto, Dra. Nise da Silveira legitimou a Terapêutica Ocupacional, até então denominada como pratica auxiliar e subalterna, como um método legítimo de tratamento. O tratamento em si só é possível se o doente tiver ao seu lado um ponto de apoio, alguém pelo qual o esquizofrênico possa investir afetivamente. Com isto Dra. Nise utilizou-se de um termo da química para designar este fenômeno: Catalizador, que irá permitir a reação química. Na química, há substâncias que aceleram a reação (substância catalizadora) enquanto outras inibem a reação (substância inibidora). O mesmo ocorre no contato de médicos, psicólogos, monitores, enfermeiros com os esquizofrênicos, por exemplo: um psicólogo pode ser catalizador para um esquizofrênico, fazendo produzir imagens do inconsciente quanto inibidor para outro doente. Em oposição ao agente catalizador está o agente inibidor, que impede a reação (...). Sem dúvida o mesmo indivíduo poderá funcionar como catalisador para uma pessoa e inibidor para outra.48 A volta à realidade depende em primeiro lugar de um relacionamento confiante com alguém, relacionamento que se estenderá aos poucos a contatos com outras pessoas e com o ambiente.49

“A casa das Palmeiras é um pequeno território livre, onde não há pressões geradoras de angústias, nem exigências superiores às possibilidades de resposta de seus freqüentadores”50, é claro que com normas e regras. Mas ao mesmo tempo é difícil distinguir, partindo de um olhar leigo e externo à Casa das Palmeiras quem é cliente e quem é estagiário, quem é psicólogo, medico e cliente pois, dentre outras coisas, esta casa se opõe ao que se trata de instituição psiquiátrica de reclusão e:

48

OP CIT p. 69 OP CIT p. 75 50 SILVEIRA (1986) p. 12 49

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Portas e janelas estão sempre abertas na Casa das Palmeiras. Os médicos não usam jaleco branco, não há enfermeiras e os demais membros da equipe técnica não portam uniformes ou crachás. Todos participam ao lado dos clientes das atividades ocupacionais, apenas orientando-os quando necessário. E também todos fazem em conjunto o lanche, que é servido no meio da tarde sem discriminação de lugares especiais.51

A Terapêutica Ocupacional, idealizado por Nise da Silveira, trata-se de um trabalho de expressão simbólica do esquizofrênico no qual se realizando-se a medida em que houver uma vontade do cliente em realizar uma expressão artística. O trabalho é realizado, em primeiro momento de forma individual, no qual quatro ateliês compõem o quadro: ateliê de pintura e desenho, ateliê de colagem, ateliê de tapeçaria, xilogravura e modelagem e leitura e escrita. Para Nise da Silveira a pintura e modelagem constituem o núcleo central da pratica individual. O segundo momento, realizado apos o lanche, é constituído por atividades em grupo: entre eles: musica, teatro, conto de fadas, expressão corporal, baile e caralâmpia. Caralâmpia é uma atividade aonde se discute temas relevantes à Casa das Palmeiras, tratando dos passeios que são realizados duas vezes ao mês. Assim como o desenho, a modelagem, a tapeçaria produzem uma organização do psiquismo. Assim como há esta organização de atividades durante o mês, os clientes tendem a ficar num mesmo local, sentar numa mesma cadeira, na mesmo lado da mesa, ou numa mesa separada. Isto se refere à uma estruturação do espaço, o que irá promover uma estruturação psíquica de ordem concreta. “O que garante o homem sadio contra o delírio ou a alucinação, não é sua critica, é a estrutura de seu espaço... o que leva à alucinação como ao

51

SILVEIRA (1986) p. 12

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mito é o estreitamento do espaço vivido, o enraizamento das coisas no nosso corpo, a vertiginosa proximidade do objeto”.52

Horta (2008) expõe no livro lançado recentemente denominado Nise, arqueóloga dos mares, que Nise procurava pessoas que pudessem mergulhar profundamente na mente do esquizofrênico e retornar, com ele para a superfície. Para Silveira (1979), a modelagem e a pintura, ou qualquer meio de expressão através de imagens simbólicas é uma forma de “(...) encontrar um caminho de acesso ao mundo interior do psicótico, desde que com ele as comunicações verbais apresentavam-se tão difíceis e deixavam quase sempre o medico do outro lado do muro”53.

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Merleau Ponty (apud SILVEIRA, 1979 p. 44) SILVEIRA (1979) p. 32

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V. Um estudo de caso: um elo com a prática clínica (anexo 4) Ana nasceu em Pernambuco no dia 18 de outubro de 1965, sua mãe havia tido um casamento anterior no qual teve um filho, irmão. Ela nasceu de parto normal, prematura com 8 meses de gestação. Relatou que não conheceu o pai e, com quatro anos, veio para o Rio de Janeiro com a mãe. Segundo Ana, a mãe tinha diversos amantes mas, quando estava com doze ou treze anos aproximadamente a mãe passou a viver só com um companheiro, padrasto com o qual não se deu bem, pois não a deixava ver televisão. Aos dezessete para dezoito anos, Ana começou a namorar Roberto, então com 27 anos na época, que a decepcionou pois o mesmo voltou a reencontrar sua exnamorada, fato este que Ana considerou como sendo precursor de sue psicose: “já estava numa psicose” (SIC). Ana retornou aos estudos e se apaixonou por um professor de português com quem também teve uma decepção amorosa. Então começa a fazer Economia e pareceu atraída por uma professora de Sociologia, saindo posteriormente da faculdade por entender que todos os alunos tinham conhecimento do seu desejo. “Eu achava que todos sabiam que eu estava gostando de mulher – Eu resolvi arrumar um emprego e encontrei uma moça com decote, saí por que me senti atraída” (SIC) Em sua primeira relação hetero-sexual, Ana relatou sentir muita dor. Além disto, acreditava que através desta experiência poderia provar sua feminilidade pois sentia também atração por mulheres. “Eu estava insegura e achei que aquilo ia provar minha feminilidade. Eu senti muita dor e prazer nenhum. No outro dia eu me encontrei com ele mas ele me mandou para a faculdade. Eu fui e vi uma moça

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vestida com vestido colante. Sentia prazer a cada movimento dela” (SIC). Apos este evento só conseguia sentir dor nas relações sexuais. Ana Acabou se envolvendo com um homem casado, engravidando dele. Mas teve que realizar o aborto pois ele não assumiria um filho de uma mulher não virgem. Teve depois um relacionamento importante, iriam se casar, mas o rapaz acabou por falecer. Relatou que seu pai trabalhava numa delegacia delatando malandros, mas acabou se envolvendo num crime, matando um homem no jogo, sendo, portanto, perseguido. Ana nunca teve contato e nem soube mais dele. “Eu tenho maior desgosto de ter tido um pai que era um assassino. Acho que ele deixou uma semente má em mim.” (SIC), chegou a colocar, posteriormente que seu trauma referia-se ao fato de não ter conhecido seu pai pessoalmente e ser impossibilitada de ter uma figura masculina de referencia. Ana teve uma primeira consulta psiquiatria no Hospital Pedro II (atual Nise da Silveira) em abril de 1989, então estava com 24 anos, apresentou as seguintes queixas: escutava vozes, tinha visões e insônias. A sintomatologia tratava-se de alucinações auditivas e visuais, via um diabo ao invés da mãe e um monstro ao invés do padrasto. A própria reafirmou que a doença foi impulsionada pela traição de seu primeiro namorado. Entre maio de 1989 e maio de 1991 fez psicoterapia individual e estudou para o concurso do TRE, mas devido à angustia de não ter feito a prova, ingeriu, em 18 de maio de 1991 uma grande quantidade de remédios numa tentativa de suicídio por uso de Benzodiazepínico e Levopromazina. Estava então com 26 anos aproximadamente.

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A primeira internação psiquiátrica ocorreu no dia 22 de setembro do ano subseqüente à tentativa de suicídio, apresentava idéias delirantes de cunho autoreferencial (achava que as pessoas estavam tossindo por ela ser lésbica). Melhorou em um dia e retornou para casa. A segunda internação ocorreu quando ela estava com 30 anos de idade em 14 de dezembro de 95. Segundo o registro do medico plantonista a descrição foi a seguinte: “paciente muito exaltada (...) falando que não retornaria para casa pois seu padrasto vem tentando estuprá-la. Não aceita convivência com familiares (...).”, apresentou alucinações sinestésicas e idéias delirantes relacionados ao sexo. Foi internada por dois meses aproximadamente. A terceira e última internação aconteceu entre as datas 26 de fevereiro de 2000 e março do mesmo ano. Foi levada pela família junto ao bombeiro com a queixa de agressão.

Considerações sobre Ana: Ana, classe humilde, apresenta uma divergência entre ser empregada doméstica e ser universitária. Seus trabalhos na Casa das Palmeiras são muito simétricos e em nenhum momento ela deseja lidar com algo que não haja a “perfeição”. Costuma fazer tapeçaria, realizando trabalhos complexos de tricô e crochê negando, muitas vezes, os pedidos de estagiários de ir ao ateliê de pintura para fazer um desenho. Anteriormente os desenhos que Ana realizava eram de natureza geométrico e feitos muitas vezes com réguas e usualmente, em papel quadriculado, assemelhando-se com seus trabalhos realizados na tapeçaria, eram raros os desenhos sem a delimitação precisa. Durante o meu estágio convidei-a para realizar trabalhos sem a precisão que ela tanto aclamava, mas ela disse não saber desenhar, contanto, em sua pasta havia um desenho feito por ela no Parque Lage 36


no qual o tema tratava-se de árvores desenhadas de maneira muito natural. A sua exigência de “perfeição” levava ao erro freqüente na realização de seus trabalhos, como por exemplo na tapeçaria. Ela desmanchava diversas vezes o trabalho até achar o modo certo de fazer. Muitas vezes abandonava suas produções por não achar modo adequado. Aos poucos foi-se estabelecendo um vinculo de transferência dela para comigo. Durante a minha chegada na Casa das Palmeiras, como de costume, todos os clientes perguntavam sobre a minha vida, onde estudava. Eu insistia em convidá-la para desenhar ou fazer uma pintura, mas ela negava-se de uma forma contraditória, pois era evidente seu desejo por realizar tarefas sem a delimitação que tanto desejava, mas por outro lado havia uma auto-exigência para que ela fizesse tudo certo. Aos poucos ela foi contando sobre as vozes que ouvia no metrô, que dizia: “você não é capaz de fazer tricô, você tem que ser empregada domestica”, estas vozes eram determinantes para que cada vez mais ela realizasse trabalhos difíceis de tapeçaria, trabalhos cada vez mais precisos e altamente complexos de desenho sobre papel quadriculado. No ateliê de modelagem (no qual eu permanecia às sextas feiras), Ana sentava-se na mesa para conversar. Ofereci-a um pedaço de barro, ela logo aceitava dizendo que uma antiga estagiaria havia lhe dito que o barro ajudava muito trabalhar as emoções. Costumava falar amassando o barro, socando-o, batendo-o, jogando-o na mesa, num breve processo de desestruturação para, enfim, partir para a construção de uma forma concreta. Durante a manifestação de sua agressividade para no manuseio do barro começou a falar sobre as amigas do colégio, que todas tinham namorado, menos ela. Porém, disse que havia um garoto pelo qual ela não sentia muito atraída, que gostava dela. Num belo dia, Ana aceitou o convite para dançar, e eles começaram a namorar. Mesmo sabendo de que Ana não gostava de ir à praia perto da sua casa, ele a chamou, mas ela disse que só iria para praia se fosse na 37


Zona Sul. Então ele acabou indo à praia com uma ex namorada, e isso motivou o termino do namoro. Aproximadamente no mês de outubro ocorreu um evento que, de alguma forma repetiu sua história pessoal, envolveu uma triangulo entre Ana, eu e uma terceira pessoa, cliente da casa chamada Fabiana (que também havia realizado um vinculo positivo comigo). A história se desencadeou da seguinte forma: era um dia que haviam poucos estagiários e poucos clientes na casa. No ateliê de tapeçaria encontrava-se só Ana, enquanto na pintura estava a cliente Fabiana com uma monitora da casa. Uma monitora pediu para que eu ficasse no ateliê de tapeçaria com Ana enquanto ela fazia outra coisa. Acabei por deixar Ana sozinha no ateliê de tapeçaria e fui fazer um trabalho com Fabiana, inclusive convidando esta para fazer uma modelagem, no primeiro andar da casa, ela aceitou imediatamente. Quando fui lavar os instrumentos no tanque, Ana apareceu furiosa brigando comigo e adotando de maneira agressiva a natureza das vozes que ouvia, disse: “Você é um merda, nunca mais quero ver você na minha frente, SAIA DA CASA! SAIA DA CASA!” (SIC) e em seguida juntou as duas mão e me deu um soco na altura de meu ombro direito. Fiquei sem reação e, de uma maneira acolhedora, Fabiana, a outra cliente disse: “Eu quero dizer uma coisa pra você: não fica triste não, não foi ela que falou isto, foi um homem vestido de Ana que falou isto’ SIC. Ao longo da semana, Ana me pediu desculpa e voltou a falar comigo normalmente. Após as pazes, Ana passou a nomear Fabiana como ‘café com leite’ e não parecia se importar com vinculo estabelecido entre eu e Fabiana. Ana se autodenominava a “melhor da Casa das Palmeiras”, a que produzia as “melhores tapeçarias”. Mostrava-se agressiva para com os outros clientes, expressava frequentemente, um comportamento muito masculinizado, este aspecto se manifestou na produção de um falo, na modelagem e, ao ser perguntada o que tinha produzido ela começou a rir e disse ser uma ‘cenoura com dois ovos’ (SIC)

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(Anexo 2e). Depois que produziu este falo Ana passou a se mostrar de uma outra forma, mais feminina e não agressiva e masculinizada. O evento de abandono seguido de agressão, refletia os aspectos sua história pessoal de abandono, o episódio de dividir o(s) objeto(s) amado(s) com outra mulher. Então, a relação que estabeleceu-se entre Fabiana, Pedro e Ana assemelhou à uma triangulo amoroso em uma relação edípica, no qual Fabiana exerce um papel de mãe negativa que interdita uma relação de amor com o pai (Pedro na ocasião). É importante ressaltar na relação de abandono os Complexos Parentais Negativos que, no nosso caso observou uma mãe que a priva de possuir o amor do objeto amado e o pai que abandona Ana por um outro objeto de amor: a mãe. Em sua história pessoal, Ana apresenta uma visão negativa do pai e da mãe: viu o pai como um assassino, a mãe como um diabo e o padrasto como monstro. Estas representações parentais são tipicamente negativas no caso de abandono e compõem um complexo parental (paterno e materno) negativo. No vinculo estabelecido entre Ana e eu evidenciou-se tanto uma transferência positiva durante um tempo maior, quanto um vinculo negativo no caso do evento que desencadeou a agressão. O trabalho com barro possibilitou a Ana uma re-elaboração da questão do abandono. O símbolo mais significativo produzido através da modelagem foi o carimbo (anexo 2d), que poderia simbolizar a relação amorosa entre Ana e eu, como representação de posse e poder, da mesma maneira que o medico tem a posse da receita medica Ana tinha a posse do objeto amado através do carimbo. Os carimbos continham as imagens: ‘P’ de Pedro e Palmeira, estrela de cinco pontas, trevo de quatro folhas. O carimbo P o vinculo estabelecido entre Ana e o autor deste trabalho e um vinculo com a instituição Casa das Palmeiras. A estrela de cinco pontas segundo Chevalier & Gheerbrant (1982) tem uma característica de

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iluminação, “são faróis projetados na noite do inconsciente”54, sendo por muitos povos primitivos denominado de manifestação da luz. É um símbolo do microcosmo humano. O trevo de quatro folhas é um símbolo muito comum em nossa cultura que representa sorte. Poderíamos levantar a hipótese de que por meio de um vinculo estabelecido com a instituição e com Pedro, a luz da estrela e a sorte do trevo Ana poderia tomar conhecimento de sua sombra, caminhava em direção ao si-mesmo num duro processo de individuação. A modelagem do falo vem a imperar a relação de poder. Que, segundo Chevalier e Gheerbrant (1982) é um “símbolo do poder gerador, fonte e canal do sêmen, enquanto princípio ativo”. Segundo Sepher Yerira (apud Chevalier e Gheerbrant, 1982) o falo é o sétimo membro do corpo (o corpo é constituído por coluna vertebral, cabeça, braços e pernas), preenchendo também o emprego de estruturar o mundo, alem da função geradora, criadora. Em muitas culturas o falo é reverenciado como origem da vida e força criadora.

54

Chevalier & Gheerbrant (1982) p. 404

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VI. Conclusão Ao longo deste trabalho tornou-se possível observar a relação histórico e simbólico da utilização do barro no tratamento de esquizofrênico. Na medida em que o indivíduo produz símbolos através da modelagem, transforma a massa e, ao mesmo tempo, se transforma. Ana produziu imagens e tornou plausível a comunicação de seu sentimento de abandono. Para que pudesse lidar com este sentimento adotou, anteriormente ao trabalho,

uma

posição

defensiva

no

qual

ela

tornou-se

agressiva

e

“masculinizada”. Com o manuseio do barro, e a produção simbólica, especialmente pelos carimbos e o falo ela tornou-se uma pessoa mais feminina mais frágil. Pode-se dizer que, segundo Boechat (2007) é preciso o morrer simbólico em psicoterapia para que ocorra um nascer de uma nova estrutura psíquica. Criar está relacionado à palavra criação que, por sua vez está relacionado à palavra criança. Portanto, criar implica em acabar com algo pré-existente, significa nascer algo novo. O Inconsciente para Jung é criativo, por este modo trata-se de um inconsciente transformador, como é o caso da mitologia indiana no qual Shiva é, ao mesmo tempo destruidor e transformador. Assim, como a reciclagem do barro necessita de uma destruição o ser humano em sua totalidade necessita ser fragmentado, é um pedido para que ele possa nascer novamente, para que ele possa transformar-se e, só através da destruição em pequenos pedaços de psique, é possível transformar-se, é possível renascer.

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VII. Anexos Anexo 1. Performance de Celeida Tostes

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Anexo 2. Trabalhos de ana a. Trabalho em tricot

b. Pintura com tinta acrĂ­lica

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c. Modelagens figuras geomĂŠtricas

d. Modelagem: Carimbos


e. Falo denominado como: “Cenoura com dois ovos�

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f. Modelagens: Imã para atrair amor e coração

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4. Bibliografia BASAGLIA, F.: Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica, Rio de Janeiro; Garamond: 2005 BOECHAT, W.: A Mitopoese da Psique, mito e individuação, Rio de Janeiro; Vozes: 2007 CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A.: Dicionário de Símbolos; Rio de Janeiro: José Olympio; 1982 p. 221, p. 681 COOPER, E.: História de la Ceramica; Barcelona: CEAC; 1981 p. 12 Cadernos IPUB nº 22. Rio de Janeiro: UFRJ/IPUB, 2006 FREUD, S.: Obras completas de S. Freud: Neurose e Psicose (vol. XIX); Rio de Janeiro: IMAGO; 1924 GOMES, D. M. C. (): Cerâmica Arqueológica da Amazônia; São Paulo: Editora USP; 2002 p. 97 GARCIA-ROZA, L. A.: Freud e o Inconsciente; Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1994 GOLVÊA, A.P: Sol da Terra: o uso do barro em psicoterapia, São Paulo: Summus; 1989 at all HILLMAN, J.: Estudos de Psicologia Arquetípica; Rio de Janeiro: Vozes; 1978 p. 22-24 HORTA, B. C.: Nise: Arqueóloga dos Mares; Rio de Janeiro: e+a; 2008 JUNG, C.G.: Arquétipos e Inconsciente Coletivo; Barcelona: Paidós Ibérica; 1934 p. 10 - 14 _________ : O homem e seus símbolos; Rio de Janeiro: Nova Froteira; 1964 p.32 _________ : Psicogênese das doenças mentais; Petrópolis: Vozes; 1971 _________ : A pratica psicoterápica; Petrópolis: Vozes; 1985 p. 42, 43, 114, PIEDADE, É.: Psicologia Jurídica no Brasil 2004 PINTO, R. C.: Celeida Tostes; disponível em: http://www.arteonline.arq.br/museu/library_pdf/celeida_tostes.pdf ; 2006, At all, QUINET, A.: As 4+1 Condições de Análise, Rio de Janeiro: Zahar. 1991p. 18 – 20 __________: Clínica da Psicose, Salvador: Fator, 1990 SILVEIRA, N. : Terapêutica Ocupacional: teoria e pratica; Rio de Janeiro: Casa das Palmeiras, 1979, p. 16, 17 ___________: Imagens do Inconsciente; Brasília: Alhambra: 1981 ___________: Casa das Palmeiras: A emoção de lidar; Rio de Janeiro: Alhambra; 1986.

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