POLÍTICAS CULTURAIS, A GESTÃO CULTURAL E O ALGARVE

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POLÍTICAS CULTURAIS, A GESTÃO CULTURAL E O ALGARVE CONTRIBUTOS PARA UM PLANO REGIONAL JORGE QUEIROZ1 No quadro da proposta de elaboração de um Plano Estratégico Regional para o sector cultural no Algarve importará referir que, entre outras variáveis, os diagnósticos dos recursos culturais, periodicamente actualizados, integram e fundamentam as opções das políticas públicas, que corporizam ideias, objectivos e prioridades do Estado e das comunidades territoriais para sector da Cultura. Foi esta consciência profissional que, a par da constatação do elevado potencial patrimonial e cultural da região, levou a AGECAL - Associação de Gestores Culturais do Algarve em 2008, aquando da sua formação e com base no conhecimento de experiências positivas fora do País, a propor à Direcção Regional da Cultura do Algarve a elaboração de um Plano Estratégico Regional, que trouxesse mais dinamismo, consistência programática e melhor gestão dos recursos culturais. Os Planos Estratégicos são importantes instrumentos de conhecimento e planeamento, possibilitam análises mais questionantes e perspectivam linhas programáticas na acção e no financiamento. Contudo só serão eficazes se decorrerem da vontade de integração da dimensão cultural no desenvolvimento regional, o que pressupõe desde logo a existência nas regiões de mecanismos de decisão com autonomia, meios financeiros, a participação de gestores culturais, dos profissionais da cultura e dos diversos agentes culturais, nas diversas fases do processo. As políticas públicas expressam as linhas de força, não apenas do Estado, das Regiões e das autarquias locais, como também permitem conexões estratégicas com o sector privado, com os criadores, e as indústrias culturais. Convirá explicitar que o conceito de Políticas Culturais possui maior abrangência que as políticas do Estado para a Cultura. As intervenções do associativismo, das empresas, das Fundações, de instituições religiosas como a Igreja Católica, possuidora de parte significativa do património nacional, são determinantes na concretização de políticas culturais com larga expressão geográfica e social. O Estado Português estabeleceu ao longo das últimas décadas, os instrumentos legais de suporte aos programas de financiamento privilegiando a descentralização e a parceria em particular com as autarquias. Por sua vez o mecenato estimulou a conservação e construção de novas infraestruturas e o apoio a múltiplas actividades. No plano internacional são diversas as políticas culturais e experiências delas resultantes, distintas as concepções e modelos organizativos que sublinham desde logo 1

Sociólogo e Gestor Cultural Director do Departamento de Cultura, Património e Turismo da CM de Tavira Professor Auxiliar Convidado da Universidade do Algarve Presidente da Direcção da AGECAL – Associação de Gestores Culturais do Algarve

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diferenças de culturas organizativas entre o mundo angloxónico com o seu principio de “arm´s lenght” ou gestão indirecta2, da acção cultural desenvolvida nos países do sul da Europa de pendor mais intervencionista, com os agentes predominantemente apoiados pelo financiamento público. A afirmação dos direitos culturais fundamentou políticas culturais democráticas. A liberdade dos povos à expressão da sua própria cultura esteve historicamente sujeita a condicionamentos, na lógica de “superioridades” civilizacionais e “conversão dos povos selvagens” legitimando domínios territoriais e processos coloniais. Um longo caminho foi percorrido para o reconhecimento dos direitos culturais. O direito à cultura possui hoje uma dimensão individual e colectiva, fruto das transformações e da evolução ocorrida mais acentuadamente no pós II Guerra Mundial. O direito à cultura, é consequência da implantação de sistemas políticos democráticos, do desenvolvimento económico e social na Europa e em várias regiões do mundo, reafirmando-se sobretudo após o surgimento em 1945 da Organização das Nações Unidas e da criação de uma estrutura especializada para a Educação, Ciência e Cultura, a UNESCO. Esta organização definiu na sua Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (1982) um conceito mais amplo de cultura, como "conjunto de valores distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afectivos que caracterizam uma sociedade ou grupo social. Engloba, para além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e crenças." O direito à cultura integra o conjunto de direitos fundamentais considerados na Declaração Universal dos Direitos Humanos3, desenvolvidos e explicitados na “Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional” acordada em 1966 na 14ª reunião da Conferência Geral da UNESCO. 4 No artigo primeiro desse documento reconhece-se que a cultura “tem uma dignidade e um valor que têm de ser respeitados e protegidos”, refere que “qualquer povo tem o direito e o dever de desenvolver a sua cultura” e “todas as culturas fazem parte do património comum da humanidade”.5 A cultura é um território influenciado por valores simbólicos e suas representações que sempre reproduziram concepções ideológicas e se manifestaram por expressões comemorativas, monumentos e toponímias, onde os poderes assinalaram ideias, inscreveram presenças e promoveram permanências na memória colectiva. A arquitectura regista as marcas dessa história social, um dos atractivos do turismo cultural contemporâneo. A cultura é um território perpassado por interesses contraditórios onde se expressam conflitos de diversa natureza, nacionalismos e regionalismos, tradições e contemporaneidades, academismos e populismos, afirmações e exclusões, cooperação e 2

Nos Estados Unidos da América não existe Ministério da Cultura e as actividades são financiadas por Fundações e empresas. Em Inglaterra funcionam os Art Council, organizações não -governamentais. 3 Declaração Universal dos Direitos Humanos, Assembleia Geral da ONU, 10 de Dezembro de 1948. 4 Declaração dos Princípios de Cooperação Cultural Internacional, 14ª reunião da UNESCO realizada a 4 de Novembro de 1966, Paris, Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. 5 in Ibidem.

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antagonismos entre grupos e individualidades. Mas em tantos casos é um espaço de conhecimento e aproximação ao Outro, elemento central na construção de políticas de paz. Poder-se-á afirmar que as políticas culturais do pós-guerra se estruturaram em dois eixos interventivos. Numa primeira fase as políticas de oferta e difusão e a partir sobretudo dos anos 70 e integrando estas, as políticas de participação e desenvolvimento cultural. A cultura possui uma importante dimensão económica no campo da produção material e imaterial, também como elemento potenciador de mercados e empregos. O sector cultural pela sua importância social e económica não representa nem mais nem menos que qualquer outro, sendo natural e desejável que se desenvolvam políticas públicas que promovam a gestão eficaz e democrática dos recursos culturais. Obviamente, não se trata de interferir na liberdade de criação artística nem nas opções estéticas, mas de criar as infraestruturas adequadas de difusão do conhecimento (bibliotecas, museus, arquivos, teatros, monumentos, centros de ciência…), as condições e programas que permitam o acesso generalizado, a circulação das obras artísticas e a participação dos cidadãos. Historicamente o processo de intervenção e apoio assentou no mecenato real, religioso e da aristocracia no proteccionismo e integração dos artistas na vida das cortes e nas encomendas de obras. O proteccionismo real e papal conduziu à formação de algumas das mais importantes colecções de arte a nível mundial. O Renascimento e o humanismo impulsionaram o patrocinato por toda a Europa, como ocorreu também em Portugal. As políticas culturais assumiram particular visibilidade e relevância no pós II Guerra Mundial. Em França durante a V República surgiram os “affaires culturelles” num Ministério à época protagonizado pelo escritor André Malraux. Com a “politização do cultural” desenvolveu-se paralelamente a ideia de democratização do acesso dos cidadãos à cultura, como já vinha acontecendo com a educação e surgiram por toda a França as “Maisons de la Culture” e outros espaços de proximidade, com programas de “abertura” aos cidadãos. Esta concepção teve influência noutros países do sul da Europa. Em Portugal, no decorrer da I República, a atenção do Estado centrou-se no combate ao analfabetismo que atingia a esmagadora maioria da população portuguesa. Verificou-se a introdução do ensino primário obrigatório, políticas para o património e legislação sobre o ensino artístico, o apoio à acção das colectividades de cultura e recreio e instalação de bibliotecas. Uma época que produziu em Portugal importantes movimentos culturais como a Renascença ou o Modernismo. Durante o Estado Novo (1926-1974) o apoio do Estado à cultura confundiu-se com a promoção dos valores histórico-nacionalistas, a sobrevalorização do ruralismo, das corporações e profissões populares fazendo contraponto ideológico e combate à influência de ideias renovadoras provenientes dos meios urbanos, dos movimentos filosófico-artísticos do centro da Europa, dos movimentos sindicais e descolonizadores. Um modelo interventivo para a cultura foi organicamente estruturado com a criação em

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1944 do SNP – Secretariado Nacional da Propaganda, transformado nos anos seguintes em SNI – Secretariado Nacional da Informação e da Cultura Popular. Entre acções celebratórias do nacionalismo, o Estado Novo promoveu em 1940 as comemorações nacionais dos “Centenários”, com referência à Fundação do Reino em 1140 e a Restauração da Independência em 1640. A sua expressão mais emblemática foi “A exposição do Mundo Português”. O concurso a “Aldeia mais portuguesa de Portugal” promovido em 1938 pelo SNI foi ganho pela aldeia de Monsanto do concelho de Idanha a Nova. No Algarve, este concurso teve efeitos particularmente em Alte, no concelho de Loulé, onde surgiu um Rancho Folclórico que terá sido dinamizado por Lyster Franco e que se apresentou na “Exposição do Mundo Português”. O regime promoveu a folclorização da cultura popular e encenações como as “marchas populares”, utilizando e recriando episódios da História, promovendo selectivamente valores do universo sociocultural português, os bairros e as profissões. Na década de 60 do século XX Portugal possuía mais de metade da população sem qualquer grau de ensino, uma taxa de analfabetismo que rondava os 30% e que nas mulheres atingia níveis mais elevados. Todo o esforço realizado, sobretudo após 1974, não conseguiu anular totalmente as sequelas de muitas décadas de atraso e subdesenvolvimento, que estão na origem dos problemas actuais da sociedade portuguesa e explicam o ciclo pendular da emigração-retorno ao longo dos séculos, os desequilíbrios nas contas externas e as fragilidades no exercício da cidadania. A Fundação Calouste Gulbenkian exerceu na segunda metade do século XX um papel central na vida cultural e científica portuguesa, não apenas pela abertura ao público das suas instalações (Museu e Biblioteca, Auditórios, Centro de Arte Moderna, …) como pela estruturação da Orquestra e do Ballet Gulbenkian, constituição de bibliotecas fixas e itinerantes, bolsas para as artes e ciências, serviços e múltiplas iniciativas de divulgação artística. No âmbito das políticas culturais pós - 25 de Abril e de forma resumida detectamos a sua estruturação e evolução em fases distintas: Uma fase de transição democrática nos anos imediatamente a seguir a 1974 que colocou como prioridades do Estado a alfabetização, a reorganização dos escassos meios estatais dispersos e a reorientação orgânica, nomeadamente com a criação em 1977 das Direcções Regionais de Cultura, o apoio ao associativismo cultural. A acção cultural do Estado e das autarquias esteve centrado no acesso generalizado e gratuito a espectáculos, o comemorativismo celebratório dos direitos democráticos conquistados, o Dia da Liberdade, o Dia da Mulher, Dia do Trabalhador, … Seguiu-se na década de 80 um período de estabilização e estruturação de políticas culturais públicas que coincidiu com o surgimento do primeiro Ministério da Cultura (1983-85) dirigido por Francisco Lucas Pires e a entrada de Portugal para a CEE em 1 de Janeiro de 1986. As políticas culturais nessa década foram direccionadas para o Património Cultural (Lei do Património - 1985), a Rede de Bibliotecas Públicas, autárquicas e escolares, que reequipou o País de norte a sul e o Mecenato (Lei nº 258/86). A internacionalização da

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cultura portuguesa recebeu também um impulso com a criação de Centros Culturais nos PALOPs. A década de 90 corresponde ao aprofundamento das políticas de desenvolvimento cultural com a criação pelo Estado Português de vários Institutos especializados e afirmação da cultura portuguesa no contexto europeu (Europália, Expo 92 – Sevilla, Lisboa-94, Expo-98, …). Surgiram obras emblemáticas no domínio das actividades culturais como a construção do Centro Cultural de Belém ou o projecto da Fundação Serralves, entre outras A dinamização das políticas públicas para a cultura e a infra-estruturação do País resultaram de um momento de maior disponibilidade financeira do Estado, acrescida pela entrada de fundos estruturais europeus, facilidades de acesso ao financiamento com a descida dos juros praticados pelo sistema bancário. Contudo o surgimento na transição do milénio dos primeiros sinais de uma grave crise financeira internacional veio afectar a capacidade interventiva do Estado, colocar em debate os modelos e a eficácia gestão, a sustentabilidade dos equipamentos e a clarificação e redefinição das prioridades. GESTÃO CULTURAL - A NOVA DISCIPLINA E AS UNIVERSIDADES No decorrer da década de 80 do século XX verificou-se a emergência de uma nova disciplina, a Gestão Cultural. A Gestão Cultural é o resultado do investimento dos Estados e do sector privado no desenvolvimento cultural e nas indústrias culturais, da necessidade da formação adequada de recursos humanos e de gestão profissionalizada das infraestruturas construídas, de programação artística, da oferta educativa e de lazer e democratização das práticas culturais. A mutação informativa e tecnológica, a revolução nos meios de comunicação potenciou a concorrência entre estratégias para os cidadãos, públicos ou consumidores particularmente visível no debate sobre modelos de gestão e programação para televisão pública e privada. A Economia da Cultura, apesar da carência de especialistas, é hoje um dos domínios centrais da Gestão Cultural Existem museus e monumentos na Europa que recebem anualmente mais de 5 milhões de visitantes, valor superior à população total de alguns países e da maioria das cidades. Num estudo encomendado pela Comissão Europeia em 2003 constatou-se que a Cultura com 2,6% do PIB europeu tinha um peso económico superior à indústria química, borracha e plásticos (2,1 %), produtos alimentares e tabaco (1,9 %) e têxteis. Como seria possível gerir eficazmente um sector com esta expressão económica e social sem a existência de gestores culturais com o entendimento das suas especificidades, formação e especialização nas várias áreas e disciplinas que o integram? O termo “gestor”, com o colapso dos modelos tecnocráticos e o avanço de uma globalização desregulada, acabou por adquirir nas últimas duas décadas uma conotação negativa.

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A gestão cultural, como processo de desenvolvimento social afasta-se do mero exercício de um conjunto de técnicas, exige conhecimentos no âmbito das designadas ciências da cultura, de metodologias multidisciplinares e transdisciplinares, uma preocupação com a socialização e democratização do acesso ao conhecimento. A Gestão Cultural actual expressa duas tendências, uma mais técnico - operativa ligada à gestão de espaços, infraestruturas e programas, a outra de proposição transformadora e mediadora ligada aos processos desenvolvimento cultural, à requalificação de áreas problemáticas e às estratégias de valorização social e dos territórios. Como os hospitais, as escolas, as pontes e barragens, os aeroportos e as estradas, as infraestruturas culturais exigem, desde logo na sua fase de concepção a participação de gestores culturais e outros especialistas do campo da cultura. As limitações funcionais e problemas de sustentabilidade com que hoje se defrontam diversos equipamentos resultam do facto de não ter havido um diálogo inicial com vista à potenciação do investimento e economia de recursos. Até ao início da década de 90 do século passado não existia formação universitária em Gestão Cultural. Numa primeira fase os gestores culturais possuíam origens disciplinares diferenciadas, o que ainda hoje acontece, obtinham a sua formação na prática e na frequência de conferências, seminários, colóquios, debates, … Por outro lado desenvolveu-se sobretudo em Espanha o associativismo socioprofissional6 que possibilitou a cooperação entre os gestores culturais de diversas origens disciplinares e regiões, mas também iniciativas de promover a sua própria formação conduzindo-a as para as Universidades, através da organização dos primeiros cursos da nova disciplina. As Universidades, tomaram consciência da amplitude e complexidade do fenómeno cultural contemporâneo, do seu potencial económico e das necessidades formativas em Gestão Cultural. Iniciou-se sobretudo na última década a concepção e organização de cursos de pós-graduação e mestrados em Gestão Cultural, que registaram elevada procura. Em Espanha funcionam nos principais centros universitários e cidades do País cerca de meia centena de cursos de Gestão Cultural, na sua maioria mestrados e surgiram as primeiras licenciaturas. Em Portugal nos últimos anos existem Mestrados e Pós-Graduações em Lisboa (ISCTE/INDEG, U. Católica, Lusófona,..), Porto (ESMAE), Aveiro (ISCIA), Faro (U. do Algarve) e Funchal (U. da Madeira), entre outros mais recentes … De momento ainda não possuímos dados sobre o número de profissionais da cultura no Algarve. Os alunos do Mestrado de Gestão Cultural da Ualg são na sua maioria provenientes da região algarvia, com predomínio de técnicos originários de 6

Em Espanha, os dados indicam que cerca 35 a 40% dos gestores culturais trabalham no sector privado. Nas indústrias culturais serão no total cerca de 600 mil.

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departamentos e divisões de cultura das autarquias locais, gestores de infraestruturas e de organizações culturais, também jovens recém- licenciados As Universidades para além do contributo para a formação científica e profissional dos Gestores Culturais, têm duas outras importantes funções: a investigação do fenómeno cultural nos seus diversos domínios e manifestações , a transformação do próprio tecido universitário em produtor e difusor da cultura. OS DOIS ALGARVES E A CULTURA O Algarve é um olhar do sul europeu, uma das expressões culturais do Mediterrâneo. Significava o “Ocidente”, termo de origem árabe que se manteve após a Reconquista, singularidade e que permitiu um estatuto de Reino unido ao de Portugal 7, autónomo de D. Afonso III a D. Manuel, até que “outras regiões do mundo se lhe juntaram”… Esta identidade regional e as circunstâncias de isolamento físico e social, reflectiram-se em apreciações produzidas ao longo da História8 e que subsistem actualmente nalguns discursos reveladores de desconhecimento do património cultural milenar, material e imaterial. Poderemos de uma forma mais simplificada afirmar que hoje coexistem dois Algarves. Um resulta da identidade natural e histórica da região, periférica e ruralizada, onde as vivencias da serra e do mar se manifestam ainda no quotidiano de uma parte da população, uma região descrita com profundidade e critério por investigadores como Orlando Ribeiro ou José Matoso. O outro Algarve é uma construção da indústria do turismo durante o século XX e do seu imaginário criador de situações, produzindo sucessivos discursos e imagens que vão do “pitoresco” da carroça e da chaminé algarvia do Estado Novo ao anglosaxonizado e hipoteticamente cosmopolita “Allgarve” dos anos mais recentes. Ressaltar como elemento central e principal atractivo da região “o sol e praia” não é mais que, consciente ou inconscientemente, subvalorizar a dimensão social e cultural da região. A par desta perspectiva surgiu também o discurso saudoso de um Algarve anteriormente “preservado” apesar da pobreza das gentes, as memórias de extractos sociais em férias. O modelo de desenvolvimento centrado na conjuntura turística trouxe ao Algarve muitas oportunidades, enriquecimentos vários e empregos, mas também múltiplos problemas, tais como a litoralização demográfica e das actividades económicas, a densificação urbana, o emprego excessivamente dependente do turismo e da construção civil, a subvalorização de recursos estratégicos como as pescas e a produção agrícola.

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Matoso, José, Daveau Suzanne e Belo, Duarte, “Portugal - o Sabor da Terra”, Circulo dos Leitores, 2010, Lisboa 8 Raul Proença escreve no “Guia de Portugal” sobre os algarvios “… vivem fechados em si, nostálgicos e meditabundos, absortos no seu encantamento, chamam aos algarvios os últimos mouros que perderam o barco para Marrocos”.

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As relações entre turismo e cultura apresentaram desde sempre perspectivas contraditórias, resultado da autonomização dos respectivos domínios de análise, de enfoques parcelares e insuficiente estudo recíproco. Turismo e cultura, como outros fenómenos sociais, são realidades dinâmicas, em permanente evolução nos seus conceitos, valores e modelos de intervenção. Com relações intensas, possuem naturezas diferenciadas sendo esta a primeira razão de muitos equívocos e contradições. Um primeiro equívoco resulta do facto do turismo ter criado e estabelecido os seus próprios sistemas e lógicas de gestão. Como actividade predominantemente económica, procura estimular e atrair novos consumidores, sendo objectivos primordiais o crescimento dos mercados e a rendibilidade dos investimentos. Os bens culturais por sua vez para além do valor económico possuem valor simbólico e imaterial que não pode ser secundarizado sob pena de desvalorização. Por outro lado o turismo na sua lógica expansiva criou os seus próprios modelos ideológicos, que frequentemente sobrevalorizaram objectivos económicos e consideraram menos relevantes outros enquadramentos. A par dos problemas da gestão de recursos naturais, nomeadamente dos recursos hídricos e energéticos, também as questões do património cultural e da oferta de actividades culturais e artísticas começaram a ser equacionadas consequência da mutação da procura, do surgimento de visitantes mais cultos e informados, da preferência crescente por lugares ambientalmente preservados, com história e genuína identidade cultural e paisagística. Alguns dos modelos que se estabeleceram no Algarve ao longo do Século XX promoveram a turistificação da cultura regional e a produção descontextualizada de “eventos” destinados a ocupar sazonalmente visitantes. Em várias regiões do mundo se têm estabelecido com sucesso estratégias locais, estimulando culturas nacionais e regionais e integrando naturalmente visitantes tendencialmente mais interessados em enriquecer conhecimentos sobre a história, patrimónios e as práticas culturais. A gestão de um território e o desenvolvimento social são indissociáveis e multidisciplinares. Para garantia da sustentabilidade e resposta às necessidades actuais os gestores políticos, da ciência e do ambiente, do turismo ou da cultura deverão trabalhar e cooperar de forma conjunta e integrada estabelecendo as estratégias e programas mais adequados. No caso do Algarve, pela importância da sua dimensão turística, consideramos útil a criação de uma especialização em “Gestão Cultural para o Turismo”, perspectiva alternativa à tradicional visão instrumental da cultura como “produto turístico ” sublinhando a necessidade de produção e oferta culturais genuínas, equilibradas e sustentáveis, inseridas no território e nas comunidades, tanto no plano do património regional como da criação contemporânea. PRIORIDADES NO DESENVOLVIMENTO CULTURAL DO ALGARVE A primeira e primordial questão no plano operativo é conhecer com profundidade as práticas ancestrais e as memórias sociais que podem fundamentar as novas culturas da

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contemporaneidade, se as pretendermos diferenciadas dos processos homologadores e da massificação. Os bens culturais de uma comunidade são únicos, correspondem à produção filosóficoartistica de momentos históricos irrepetíveis. A sua destruição ou adulteração representa uma perda irreparável, também na perspectiva da economia regional. Neste âmbito a Universidade do Algarve e outros centros de produção de conhecimento da região podem acentuar o seu papel de agentes culturais, socializar a informação disponível, fomentando a coesão e a cidadania activa. A cultura, em sentido amplo, é imprescíndivel para enfrentarmos os problemas da contemporaneidade e da mutação civilizacional em que nos encontramos, com novas soluções mais amplas e partilhadas. Sobre o desenvolvimento cultural do Algarve considero três vectores primordiais: a adaptação dos programas de formação e de difusão à escala geográfica e à dimensão demográfica, a profissionalização de agentes culturais mais aptos e a sinergia e complementaridade regional na gestão dos recursos culturais, nomeadamente nos programas de infraestruturas e de difusão. O Algarve representa apenas 6% do território nacional, possuindo pouco mais de 400 mil residentes. Com um tecido económico pouco diversificado e problemas de intensa mobilidade sazonal necessita estabelecer sinergias de escala mais ampla, actividades e cooperação interna a par de relações estratégicas com as regiões vizinhas, como o Alentejo e a Andaluzia9, também na área da cultura. Durante as últimas duas décadas o Algarve, apoiado por fundos europeus e nacionais, reequipou-se e desenvolveram-se alguns programas de inquestionável valor social, de forma mais evidente no âmbito das Bibliotecas 10 e Arquivos, dos Centros de Ciência Viva (Faro, Lagos e Tavira) e com algum atraso também nos Museus 11, Teatros12 e Cine-Teatros. Importa referir que as infraestruturas construídas corresponderam a políticas de cidade autocentradas, com aproveitamento de programas disponíveis de financiamento mas sem estabelecimento de complementaridades supramunicipais regionais, temáticas e disciplinares. Em tempos de crise é necessário reavaliar e ver novas possibilidades de cooperação. Na região surgiram também bons exemplos de cooperação no domínio da cultura. Os museus, ainda pouco valorizados, são recursos essenciais para uma política cultural regional que integre a investigação, o registo da memória social e a preservação dos bens artísticos, também o estimulo para a concepção e projecção de uma 9

No âmbito da Gestão Cultural foi recentemente criada a AIGC – Associação Ibérica de Gestores Culturais que integra associações da Andaluzia ( GECA) , Extremadura (AGCEX) e Algarve (AGECAL) 10 O Algarve, de acordo com artigo de Graça Cunha (www.agecal.pt) possui 147 bibliotecas e mais de um milhão de documentos disponíveis, sendo importante a criação de um catálogo colectivo. 11 A Rede Portuguesa de Museus -RPM surge na transição do milénio integra mais de uma centena de museus. No Algarve estão nela integrados os Museus de Albufeira, Faro, Portimão e Tavira. 12 Os Teatros de Faro (Teatro das Figuras), Portimão (Tempo) e o auditório de Olhão foram inaugurados já na presente década e correspondem a uma nova geração de equipamentos culturais, melhor apetrechados.

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contemporaneidade que se relacione de forma equilibrada com o território, as pessoas e os conceitos mais avançados de reconstrução das identidades13. A criação nos últimos anos da Rede de Museus do Algarve – RMA é hoje considerada pela sua exemplaridade conceptual um modelo de estudo com possível aplicação adaptada noutras regiões do País. A RMA, constituída maioritariamente por museus tutelados pelas autarquias integra um museu do Ministério da Defesa14 e um museu privado15. Produziu em 2010, entre outras acções de cooperação, uma importante exposição conjunta “Do Reino à Região” sobre a história da região algarvia do período islâmico à actualidade, com complementaridades temáticas em função da história social e características de cada sub-região ou município. A produção artística profissional da região16 é ainda insuficiente para as necessidades de desenvolvimento da região e possibilidades de internacionalização, de forma particularmente acentuada na área da dança, sobretudo são escassas as respostas conjuntamente organizadas com as estruturas constituídas. A formação artística profissionalizante é essencial para o Algarve, sobretudo se impulsionada por programas estratégicos para a sua afirmação e desenvolvimento. A região, revelou já possuir neste momento recursos humanos e equipamentos capazes de produzir um programa de desenvolvimento cultural pluridisciplinar respeitador das especificidades e heterogeneidade das comunidades e ao mesmo tempo que possa interessar e atrair o turismo cultural. Um Plano Estratégico poderá contribuir para evidenciar e sugerir alguma correcção de assimetrias, melhorar a definição de prioridades, salientar a importância dos recursos culturais da região, valorizar uma história milenar, preparar recursos humanos e ao mesmo tempo criar oportunidades de inserção do Algarve numa contemporaneidade criativa alternativa a uma cultura de eventos, de importação e imitação. Por muitos motivos fará todo o sentido a estruturação de um Plano de Desenvolvimento Cultural para região algarvia sobretudo se este permitir a constituição e partilha de um “corpus” estratégico para a acção futura. Tavira, Setembro de 2011 Jorge Queiroz

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Refira-se sobre o Algarve o artigo da investigadora Catarina Oliveira “ Que significados para as paisagens culturais?” disponível no site www.agecal.pt 14 O Museu Marítimo Ramalho Ortigão em Faro encontra-se na dependência do Museu de Marinha. 15 O Museu do Traje Algarvio em São Brás de Alportel pertencente à Santa Casa da Misericórdia local. 16 São referências a Orquestra do Algarve apoiada pelas autarquias da região, a Acta – A Companhia de Teatro do Algarve e algumas outras estruturas em desenvolvimento mas claramente insuficientes (LAC, Al maSHRA, Musica XXI,...)

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