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Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Alberto Caeiro3
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Paisagens Invisíveis Pedro Balotin Borba orientação Eugenio Queiroga Trabalho Final de Graduação FAUUSP 2018
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Ao Daniel, Mario e Paulo
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Agradeço Ao Daniel, Mario e Paulo, por dividirem com tanto entusiasmo um pouco de seus mundos comigo, dando significado a este trabalho. Ao professor Eugenio Queiroga, pela carona em sua vasta sabedoria. À Silvia Valentini pela receptividade e conselhos geniais de sempre. Ao professor Barossi por aceitar fazer parte desta banca examinadora. Às minhas mães – minha guerreira, por cada batalha ao meu lado, e minha cantora, por me ensinar o sentido da palavra alegria. Ao meu pai e irmão, duas grandes inspirações. À Marli, por todo o zelo. Às famílias Balotin e Borba, especialmente ao pequeno Cauã, que me ensinou um novo tipo de amor. Ao Will, pela amizade incondicional e pela contribuição com desenhos encantadores. À Gabi Gennari, pelo apoio, carinho e dedicação para me ajudar com um trabalho amável. À Luenne, meu ombro preferido e minha inspiração, pelos infinitos conselhos e por toda contribuição à esta pesquisa. À Catarina, por construir comigo a paixão pela faculdade, pelos mais certeiros incentivos e por me empurrar “escada acima”. À Atlética FAU USP, por ter colocado pessoas incríveis no meu caminho ao longo de suas gerações. À gestão de ouro de 2012. Aos times de voleibol e futsal, por todas as emoções que vivemos juntos em quadra. Aos 28, amigos que levo no coração. À faumília, por tantos anos de convivência, repletos de carinho. À Unnamed. Aos amigos do colégio, por estarem juntos nessa empreitada. Aos queridos amigos do intercâmbio, que deixaram uma grande saudade da convivência diária. À Luli Hamburger, por compartilhar comigo seu amor pela arquitetura com tanta maestria. À equipe Zoom, pela alegria de poder dividir os obstáculos da arquitetura com esperança todos os dias.
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Resumo Este é um ensaio sobre a percepção espacial de pessoas com deficiência visual. O objetivo desta investigação é compreender e apontar barreiras físicas e culturais que a Arquitetura impõe para pessoas que não enxergam com os olhos e buscar formas para romper com esses obstáculos. Numa sociedade em que o sentido da visão prevalece sobre os demais canais de percepção, os espaços projetados são elaborados de maneira a satisfazer as expectativas de aparência, isto é, a Arquitetura muitas vezes perde a oportunidade de propor experiências sensorialmente interessantes para o corpo humano e promover seu contato com o mundo, a fim de comover os olhos distantes. O esforço de investigar a percepção espacial de pessoas que não enxergam, a partir da vivência conjunta e de depoimentos, surge no sentido de entender como o arquiteto pode atuar de maneira mais ativa para contribuir com a inclusão social dessas pessoas.
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Sumário
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Introdução Objetivos Premissas Justificativa Metodologia Contribuições Teóricas
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1. Percepção da Paisagem Urbana Terminologias e Concepções Percepção Arquitetura Visual Arquitetura Acessível?
36 37 39 41 43 45 47 49 51 61 66
2. Não Enxergo, logo Percebo Deficiência A Deficiência Visual Aproxime-se Relato 1 – Encontro com “Protagonistas” Daniel Mario Paulo Convivência Relato 2 – Paulo no IMS Relato 3 – Mario no IMS
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3. O Sentido da Arquitetura Referência e Ritmo
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Considerações Finais
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Referências
Introdução “O deficiente visual brasileiro, isso é dito nos meios acadêmicos ou do terceiro setor, ele sai menos pro mundo do que os deficientes visuais na França, por exemplo. Dizem que na França os deficientes visuais saem muito mais, frequentam muito mais os espaços públicos. (...)Acho que pelas questões do projeto de cidade, provavelmente por uma mobilidade muito mais acessível, acessibilidade dentro do museu muito melhor, com conteúdos: independência para chegar e significação do conteúdo do lugar muito mais acessível.” PAULO
1. VALENTINI, Silvia. Os Sentidos da Paisagem. Tese de Doutoramento – FAU/USP, 2012, p. 84
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Esta pesquisa foi elaborada a partir da perspectiva de que a atuação do arquiteto pode e deve propor melhorias em relação à inclusão de todas as pessoas. A partir da vivência conjunta com pessoas que experimentam na pele, cotidianamente, a agressividade de uma cidade excludente, buscou-se entender como o planejamento dos espaços pode impulsionar a inserção social. Do entendimento de que barreiras arquitetônicas e barreiras sociais convivem de forma interligada, infere-se que investigar a percepção espacial de pessoas com deficiência visual em São Paulo significa esbarrar em questões de exclusão e preconceito. Se os espaços podem impulsionar, lesar ou impedir o convívio interpessoal, o arquiteto tem o compromisso de se esforçar para desenhar espaços que contribuam para a diminuição das adversidades de convívio. Caminhar nas calçadas de São Paulo é um exercício penoso para qualquer pessoa. São raros os trajetos em que o piso é adequado, a largura da passagem comporta o fluxo de pedestres e o caminho é livre de obstáculos. Essa desafiadora realidade é grandemente responsável pelo fato de pessoas cegas permanecerem a maior parte do tempo em casa1. O planejamento para sair de casa e realizar atividades em ambientes externos envolve aspectos como: de transporte público problemático (com falta de padrão e despreparo dos funcionários), preconceito das pessoas, enorme quantidade de obstáculos que não podem ser rastreados pela bengala e, principalmente, o medo de se perder. Todas as referências para orientação e mobilidade são visuais, planejadas para o ritmo dos veículos e da produtividade sem parar. São Paulo é extremamente hostil com pedestres cegos. A análise deste trabalho consiste na busca por atribuir identidade única aos espaços livres públicos e espaços privados de uso coletivo. Como afirma Paulo, uma das pessoas que contribuiu para essa pesquisa, “pessoas cegas têm direito de se sentirem atraídas pelo espaço”, o que é um sentimento extinto para todas as pessoas cegas que pude conversar. Dar acesso não deve ser apenas permitir
o acesso físico aos lugares, mas permitir a atribuição de percepções e emoções sobre o espaço que se habita. Como ser inclusivo? Como contemplar diferentes expectativas construídas sobre um espaço? E ainda, como explorar as potencialidades do corpo humano através da arquitetura? Como Kevin Lynch diz na introdução de “A Imagem da Cidade”, “Esse estudo é uma exploração preliminar, uma primeira palavra e não a última, uma tentativa de atrair atenções e sugerir como ideias podem ser desenvolvidas e postas à prova” (LYNCH, 1988, p. 13). Este ensaio escrito levanta mais questões do que as responde, provoca mais do que conclui e tenta contribuir com uma discussão em curso, por entender que essa é a função de um trabalho final de graduação. Este é o registro dos meus primeiros passos ao questionar a função do arquiteto em promover uma sociedade mais inclusiva, enquanto agente que desenha lugares.
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Objetivos O principal objetivo desta pesquisa é investigar como as pessoas com deficiência visual percebem a paisagem urbana. A partir de questionamentos sobre a relação sensorial do corpo humano com seu entorno e da averiguação de que existe uma “hegemonia da visão” na sociedade em que vivemos, buscou-se formas de compreensão do espaço urbano desassociadas desse sentido. O desenvolvimento não linear deste trabalho fez com que os objetivos fossem sendo reestabelecidos a cada etapa. O convívio junto a pessoas com deficiência visual determinou o desenvolvimento da pesquisa no sentido de contribuir para pautas como inclusão, percepção espacial e antropometria. Assim, houve uma tentativa de contribuir para a averiguação de que é necessária uma reavaliação metodológica, em relação ao desenvolvimento de projetos de arquitetura em São Paulo. O que deve ser formulado para incluir a questão da acessibilidade como parte conceitual dos espaços projetados, com intuito de se alcançar espaços urbanos mais amigáveis, inclusivos e legíveis para todos. Para isso, o procedimento de pesquisa aqui empregado, propôs a participação ativa de pessoas cegas na discussão sobre a paisagem de nossa cidade, procedimento essencial para que direitos sejam garantidos e afetos pelo espaço sejam desenvolvidos. Ainda, o processo de construção desta investigação propõe uma reavaliação do entendimento separatório entre pesquisa e proposição dentro da Arquitetura. As proposições levantadas no terceiro capítulo deste caderno foram elaboradas como um exercício de aprofundamento na pesquisa sobre percepção, e não produtos/respostas às investigações.
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Premissas Vivemos em uma sociedade na qual a visão prevalece sobre as demais formas de percepção, domínio que pode ser chamado de “Hegemonia da Visão”. Nosso modo de vida, com alastramento dos dispositivos móveis e, portanto, estreitamento da relação entre as atividades do dia a dia e as diferentes tecnologias, impulsiona esse domínio. Por transfigurar o enfoque perceptivo, essa hegemonia influencia no exercício de projetar espaços. Isso justifica em partes a arquitetura pós-modernista “do espetáculo”, na qual a forma é o cerne. O desenvolvimento de softwares digitais para arquitetura também influenciou nesse sentido por possibilitar que o arquiteto simule visualmente os espaços projetados e crie abundantes imagens deles, o que o induz a pensar esses espaços somente sob a perspectiva ótica. O fato das pessoas videntes condicionarem tanto suas percepções a partir do que veem, as afasta do uso de outros aparelhos sensitivos e, consequentemente, empobrece suas experiências diante da paisagem urbana. A visão permite uma leitura rápida e abrangente dos espaços, mas que é mais rasa e distante. Pessoas que não enxergam com os olhos precisam direcionar suas atenções para outros aparelhos sensoriais e formas de apreender o espaço. Assim, percebem-no de maneira diferente das que colocam a visão como principal forma de contato com a paisagem. Essa percepção pode trazer indicações que contribuam para a ação de projetar e transformar lugares mais receptivos e menos agressivos na cidade. Pessoas com deficiência visual, no Brasil, saem pouco de casa. Facilitar o acesso de pessoas cegas aos espaços urbanos e incentivar que diferentes tipos de convivência sejam mais frequentes para essas pessoas são movimentos que desencadeariam um ciclo de convivência cada vez mais amplo para que pessoas com essa condição possam participar das atividades da cidade.
“Não posso dizer qual edifício é mais atrativo porque não é um hábito meu, percorrer com calma. Posso estar falando besteira, mas esse não é um hábito no geral, para as pessoas com deficiência visual.” MARIO
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diagrama de metas, objetivo e contribuiçþes 18
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Justificativa “O mister da arquitetura é ‘tornar visível como o mundo nos toca’, como Merleau-Ponty se referiu às pinturas de Cézzane“ 2. PALLASMAA, Juhani. Os Olhos da Pele. Porto Alegre: Editora Bookman, 2011, p. 43.
Juhani Pallasmaa2 Com uma abordagem paralela a dos estudos sobre a relação da deficiência visual e arquitetura – que geralmente tratam apenas de questões técnicas e normativas –, esta pesquisa se justifica pela investigação de como as pessoas que não enxergam com os olhos vivenciam e constroem a paisagem urbana. É também um registro de averiguações de como a sociedade e o espaço urbano paulistanos são agressivos com seus cidadãos cegos, o que pode ser uma ferramenta. Assim, há a preocupação em contribuir com a discussão sobre a percepção espacial de pessoas com deficiência visual, uma área de conhecimento ainda pouco explorada na literatura de arquitetura no Brasil. Ainda, a construção argumentativa neste caderno foi elaborada para estimular que a acessibilidade seja interpretada de forma mais abrangente e sensível, de forma coerente com os fundamentos do design universal.
“Eu acho que realmente os projetos precisam contemplar todas essas necessidades e o que era carência, o que era desvantagens de um público acho que precisa ser visto como um elemento necessário no projeto, um elemento indispensável cada vez mais nesses diversos setores de acessibilidade.” PAULO
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Metodologia A inquietação de compreender como a arquitetura é influenciada pela “hegemonia da visão”, não somente a partir das constatações de arquitetos fenomenológicos escritores, mas também pela minha própria vivência em escritórios de arquitetura e mesmo nos estúdios da faculdade, motivaram a curiosidade por viver experiências que não fossem pautadas por esse sentido. A partir do suporte de bibliografias, de profissionais que trabalham com pessoas cegas e do contato com instituições de amparo, julgo que a convivência com pessoas que não enxergam com os olhos foi a forma mais ingênua e aproximada de lidar com uma questão com a qual não possuía intimidade alguma. O convívio ressignificou a pesquisa. Se em um primeiro momento havia uma linearidade de raciocínio, uma janela fechada “E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, / Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.”, as experiências que compartilhei com Daniel, Mario e Paulo abriram incontáveis janelas. Isso é, a aproximação lançou novos questionamentos, muito mais profundos e significativos, a respeito da percepção espacial. Dessa forma, essa experiência tornou-se o próprio enfoque da pesquisa.
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Contribuições teóricas
3. Mirk Michael Hennrich é pesquisador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, CFUL/Fundação para a Ciência e Tecnologia, FCT. Possui doutorado pela Universidade de Lisboa (2014) e mestrado pela University of Basel/Switzerland (2003) em Filosofia, Literatura Alemã Moderna e História. Hennrich ministrou a palestra “Filosofia da Paisagem: Aspectos Fundamentais da Crise Ambiental” no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo no dia 25/05/2017.
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Em virtude dos questionamentos levantados tratarem de temas interdisciplinares, com os quais não possuía intimidade, uma intensa busca por bibliografias de autores com diferentes expertises e abordagens se fez necessária. Apesar da terminologia corresponder a significados distintos, acredito que em uma pesquisa com buscas em fontes primárias, o exercício prático e a busca por embasamento teórico estão entrelaçadas. Desde o primeiro passo, notei a associação entre a minha própria vivência da paisagem no dia a dia e a bibliografia que estava investigando. Acredito que, dessa forma, as contribuições teóricas foram muito mais proveitosas Bachelard (1984), Certeau (1999), Foucault (2009), Heidegger (1954) e Merleau-Ponty (1999) contribuíram para uma conceituação filosófica, por discorrerem sobre o comportamento do homem ocidental, de sua relação com diferentes paisagens e por analisarem a questão do crescimento da hegemonia da visão como fonte sensorial ao longo do tempo. O seminário ministrado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo pelo professor Dr. Mirk Michael Hennrich3 auxiliou para o entendimento dos significados de “paisagem”, em termos universais, e de como o corpo humano esteve associado a esse conceito em diferentes períodos desde que essa terminologia existe. Queiroga (2014), Sandeville (2012), Santos (2014), Lefebvre (2001) e Kohlsdorf (1996) orientaram o entendimento da paisagem urbana. A apreensão dessa paisagem, a apropriação dos espaços públicos, o uso coletivo e o desenvolvimento das cidades (e do homem na cidade) são temas que esses autores investigaram; essas leituras enriqueceram a compreensão do espaço urbano tanto em questões perceptivas quanto ao entendimento de lugar dentro do exercício de projetar. Além das leituras e seminários, os arquitetos que tentaram entender como alguns conceitos da percepção do espaço poderiam ser discutidos através da arquitetura contribuíram para justificar e revelar a aplicabilidade dessa pesquisa para a metodologia de um projeto de fato. Pallasmaa (2011), Janeiro (2010 e 2012),
López (2009)4, obras notáveis de Hermam Hertzberger, Peter Zumthor, Alvar Aalto e Jan Gehl deram suporte nesse sentido. Dentre esses, destacam-se os escritos de Pallasmaa, por ressaltar o valor de aspectos multissensoriais para a arquitetura, por desconstruir, através de uma linguagem simples, a característica abstrata do tema e, assim, encorajar e influenciar alguns dos vieses da pesquisa. Por fim, por abordar a percepção da paisagem de uma maneira inovadora considero a tese de doutoramento de Silvia Valentini (2012) como a principal influência deste trabalho. Por fazer uma leitura muito próxima e completa dos questionamentos aqui levantados, essa tese deu suporte ao esclarecer e compartilhar bibliografias precisas para todas as áreas citadas. Além disso, a metodologia empregada, a experiência de Valentini quanto a convivência junto a pessoas com deficiência visual e suas inferências foram suportes fundamentais para os objetivos aqui levantados, assim como o método de aproximação de um tema subjetivo e da busca pelo contato interpessoal.
4. Carlos López é o arquiteto argentino que dirigiu o documentário “Um Arquiteto na Paisagem” (2009), exibido e discutido no Sindicato dos Arquitetos de São Paulo (SASP) no dia 30/05/2017, com presença do diretor.
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1. Percepção da Paisagem Urbana “A arquitetura urbana comunica-nos informações de várias naturezas, expressando suas diversas características por meio de signos captáveis pelo nosso sistema dos sentidos. Portanto, sua apreensão é expectativa social básica para a avaliação do comportamento dos lugares como resposta às demais aspirações dos indivíduos. “ Maria Elaine Kohlsdorf5
5. KOHLSDORF, Maria Elaine. A Apreensão da Forma da Cidade. Brasília: UNB, 1996, p. 26.
“Passar esse tipo de coisa, do que a arquitetura faz sentir ou o que a paisagem faz sentir é bem importante, é importantíssimo. Eu não tendo o acesso visual à coisa, ter acesso à informação, ou audiodescritiva ou tátil, é muito importante.” PAULO
Conforme Kohlsdorf (1996) ressaltou, a apreensão do espaço urbano por parte de seus habitantes é capital para que ele cumpra as funções às quais foi designado para que esteja em acordo com a perspectiva desses. A partir de noções de pessoas que estudaram percepção espacial, esse capítulo busca explorar como a percepção do espaço se estrutura, desde a construção de expectativas, até a atribuição de valores e afeto. Há, ainda, uma tentativa de esclarecimento dos significados de conceitos relevantes que foram elegidos para essa pesquisa. Termos subjetivos possuem interpretações e definições distintas e cada ponto de vista carrega opiniões diferentes, por ser baseado em uma bagagem de experiências única. Assim, o objetivo de esclarecer alguns termos não é de dar definição, mas investigar diferentes leituras e apresentar as que são mais pertinentes para a abordagem desta pesquisa e as que possuem um sentido mais convergente com o que acredito, neste momento.
Terminologias e concepções 24
O conceito de Paisagem, por exemplo, que atravessa diversas áreas da ciência, surgiu no Renascimento, como um gênero da pintura. No século XX foi feita a primeira reflexão filosófica contemporânea sobre o termo quando houve clara
dissociação entre Paisagem e Natureza. A teoria de Georg Simmel inaugurou essa nova perspectiva, enriqueceu a palavra para além de seu significado objetivo de configuração espacial e configurou uma leitura da paisagem a partir da percepção dos indivíduos. A descrição simmeliana considera Paisagem como um meio termo entre a característica indivisível da Natureza, “a infinita conexão das coisas” (SIMMEL, 2009, p. 5), e das partes singulares colocadas e identificadas lado a lado. Para Simmel, a percepção da paisagem se dá em um momento no qual o indivíduo, a partir de uma temporalidade finita, reconduz os elementos separados a uma unidade sentida, em um processo de síntese (SERRÃO, 2013). Essa interpretação é uma associação de objetividade (o conteúdo) com subjetividade (a percepção), que se tornou base para delineação do termo de quase todos os pesquisadores que propuseram suas próprias leituras. Importantes mudanças ao longo do tempo, como o crescimento da vida urbana, acrescentaram diversas pautas para a discussão sobre a definição de Paisagem. A noção de Paisagem adotada nesta pesquisa foi a do arquiteto paisagista Eugenio Queiroga, que define o termo exatamente a partir da profunda transição entre subjetividade e objetividade.
1 – Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção. 2 – Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. [...]
“Se não tiver acesso à informação é só um caminhar (...). A riqueza da paisagem a gente acaba perdendo. A gente não está enxergando, estamos passando pelas coisas e não estamos tomando contato com as coisas do mundo. Aí na sua pergunta eu me conscientizei que isso acontece tanto na paisagem, como nos ambientes internos. Nos ambientes internos a gente vai passando, vai andando por lugares, sobe escada rolante, sobe escada comum, sobe elevador, desce elevador, entra, sai, mas o que tem ali do lado? Tem quadros? Tem pôsteres? A parede tem texturas? As entradas dos ambientes, como são? Como é o estilo de decoração, é clássico, é moderno?“ PAULO
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6. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1985, p. 101.
“Toda hora precisamos relembrar, nos situar novamente para formar o mapa espacial.” MARIO
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3 – Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo [...] e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma [...]6 A partir da nota preliminar de Fernando Pessoa para Cancioneiro, Queiroga define que a “A paisagem está na relação entre sujeito e objeto, atravessando, ou melhor, transitando sincronicamente entre a subjetividade e a materialidade” (QUEIROGA, 2014, p. 22). A subjetividade, nesse caso, se dá pelo “estado de alma”, citado por Pessoa, que faz referência à percepção humana e suas relatividades. Além da questão de como as pessoas percebem e sentem a paisagem, o autor discorre sobre a atuação delas. Para ele, as pessoas fazem parte, se apropriam e alteram a paisagem, tornando-a o lugar do “movimento da vida” (QUEIROGA, 2014, p.22). Segundo essas conceituações pode-se inferir que a paisagem se altera a todo instante, não só pela mudança da disposição dos elementos materiais, mas por todos os movimentos, fenômenos biofísicos ou até mesmo por uma alteração de humor. Assim sendo, conclui-se que o conceito de paisagem em si não carrega qualquer delimitação temporal, porém possui um limite espacial que se dá pelo alcance dos canais sensoriais da pessoa que a percebe. Queiroga, em sua explanação, ainda considera o “direito à paisagem” que se dá pela capacidade dos espaços de serem inclusivos. Aqui, é importante pontuar que este trabalho tem como premissa: ser inclusivo não se trata apenas da possibilidade de que todos acessem fisicamente todos os pontos de um lugar, mas que esse espaço seja legível espacialmente falando. A legibilidade de um lugar, como pontua Kohlsdorf (1996, p. 27), é a capacidade desse de ser decodificado. Kevin Lynch explorou essa ideia no primeiro capítulo de “A Imagem da Cidade”. Segundo o autor, a legibilidade é primordial para uma cidade e ela se dá na medida em que a estrutura organizacional de suas diferentes partes seja coerente e facilmente assimilada por seus habitantes.
Essa interligação deixa claro que, dentro de sua responsabilidade social e política, e como agente que altera a paisagem, o arquiteto tem a obrigação de se fundamentar em uma tentativa de entendimento da paisagem (tanto física/exterior, quanto em relação ao ‘estado de alma’) a ser rearranjada, quando no exercício de proposição. E mais, deve atuar para que a legibilidade de seu projeto seja adequada e coerente com os demais elementos componentes da paisagem de seu entorno.
Percepção
O espaço é onde tudo acontece. Componente da paisagem e diferente do vazio, o espaço é onde as coisas se relacionam. Diante de uma perspectiva filosófica e de maneira irreverente, Jonas Malaco define o espaço como “o que há entre os corpos” (MALACO, 1990, §7). O autor sugere assim que o espaço é o vazio existente entre elementos perceptíveis e/ou que percebem. De forma similar, mas balizado e aplicado à sua disciplina, Milton Santos compreende que “o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá” (SANTOS, 2014, p.63). Assim, Santos analisa a mudança dos sistemas de objetos e dos sistemas de ações ao longo da história. A análise do geógrafo considera que esses dois são indissociáveis, de forma a argumentar que os objetos de análise de sua disciplina não são contemplados totalmente pela geografia física, mas também pela geografia humana. Ainda, o antropólogo americano Edward Hall, que estudou a percepção espacial humana durante o século XX utilizou-se de uma classificação interessante para identificar três tipos de espaços: “Espaços de Características Fixas”, “Espaços de Características Semifixas” e o “Espaço Informal” (HALL, 1977, p. 95). O espaço de Características Fixas refere-se às características materiais e ocultas que são determinadas em um dado lugar e que regem o comportamento humano; espaço de Características Semifixas são os elementos (de novo, não apenas visíveis) que são frequentemente alterados na paisagem de um determinado espaço. E o espaço
“Para mim, a descrição dos ambientes não prende a minha atenção e parece que eu não absorvo o que as pessoas falam.” DANIEL
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7. “We shape our buildings, and afterwards our buildings shape us” é uma frase de Winston Churchill ao discursar sobre a restauração da Câmara dos Comuns após a guerra. HALL, Edward. A Dimensão Oculta. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977, página 99.
“Se a pessoa estiver atenta, ela vai ter condições de perceber, mesmo diante da percepção que eu tive e falar. Talvez num primeiro momento eu não teria condição de saber se estava entrando nele ou não, mas talvez, exatamente fazendo o que a gente fez agora, vai ter condições de perceber. (...) É só fazer o que estamos fazendo, ou seja, conhecendo.” MARIO
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Informal aborda o encontro, a relação interpessoal, ou seja, a dimensão do espaço no contato humano. A abrangência e relevância do espaço, como cenário e ator das experiências humanas sobre o mundo, se enriqueceu ao considerar que, além de moldar as pessoas, ele também é moldado por elas7. Verificada nas três concepções da palavra espaço aqui apresentadas, essa interpretação deriva dos questionamentos da filosofia sobre a psicologia perceptiva ao longo do século XX, encabeçados pelos filósofos alemães Edmund Husserl, chamada fenomenologia. A partir de uma crítica à práxis da ciência empírica de buscar êxito em respostas ao entendimento do mundo através da prática-instrumental, a fenomenologia coloca o corpo e suas capacidades perceptivas como fonte de conhecimento primária e inesgotável. Para os autores fenomenológicos, o entendimento das coisas não pode ser desligado da percepção humana, ou seja, “a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas na nossa experiência e porque ela se põe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigação sensorial que a investe de humanidade” (MERLEAU-PONTY, 1999, 429). Dessa afirmação se depreende que o processo de percepção e apreensão das informações do mundo não é feito de maneira passiva pelos sentidos sensoriais das pessoas, mas age de maneira ativa, “investindo de humanidade” o objeto percebido. Se em um primeiro momento a fenomenologia surgiu como uma crítica de conformismo e ingenuidade aos modelos de desenvolvimento científicos, numa segunda etapa ela incitou os estudos sobre a percepção espacial e os sentidos sensoriais. Martin Heidegger e Merleau-Ponty construíram raciocínios à luz da fenomenologia sobre o espaço e abriram uma porta à (e de certa forma, através de críticas, reivindicaram uma) interpretação da fenomenologia dentro da arquitetura. O entendimento do espaço, tal qual expressado nos parágrafos acima, foi essencial para uma reinterpretação da função da Arquitetura. O arquiteto português Pedro Janeiro, à luz da fenomenologia merleau-pontiana, explica o conceito de objeto arquitetônico por meio de uma bonita analogia que toma partido do teatro:
(...) o objeto arquitetônico é um cenário que limita – no sentido em que constrói limites – a interpretação de uma determinada narrativa; ele institui os termos em que a cena pode ou não pode acontecer; de certa maneira, como o cenário da ópera, é ele – o objeto arquitetônico – quem prevê, quem possibilita, quem engendra e que articula os gestos, os rituais, dos seus usuários; é em função dele que a narrativa pode acontecer.8 Dessa analogia infere-se que, se o cenário de uma peça é o produto da arquitetura (quando entendida por projeto), os intérpretes são os homens e a narrativa é a própria vida. Assim, e conforme observam autores como Edward Hall, Juhani Pallasmaa, Peter Zumthor e Steven Holl, a arquitetura é uma forma de conexão do ser humano com o mundo: a conexão entre o cenário e a pessoa. No mesmo texto, seguindo a ideia do “revestimento de humanidade” sugerido por Merleau-Ponty, Janeiro ainda pontua que a arquitetura deixa de ser um objeto e passa a ser um lugar no instante em que a pessoa que vivencia seu espaço toma consciência da distância física entre seu corpo e aquilo que o envolve. O objeto arquitetônico deixa de ser objeto – com pura dimensão física – e passa a existir como uma expansão do corpo que o vivencia. Isso significa uma comunhão entre corpo e o espaço que o circunda no ato de habitar. Nessa convergência, o conhecimento passa a revestir a arquitetura de significação e a ressaltar a experiência do ser humano, enquanto lugar de convite de interpretação mútua das coisas do mundo.
8. JANEIRO, Pedro. A Imagem Por-Escrita: Desenho e Comunicação Visual entre a Arquitetura e a Fenomenologia. São Paulo: FAUUSP, 2012, p. 16.
Arquitetura visual “A arte da visão, sem dúvida, tem nos oferecido edificações imponentes e instigantes, mas ela não tem promovido a conexão humana ao mundo“
9. PALLASMAA, Juhani. Os Olhos da Pele. Porto Alegre: Editora Bookman, 2011, p. 19.
Juhani Pallasmaa9 O entendimento fenomenológico da arquitetura é uma tentativa de um reencontro da função do arquiteto ao planejar espaços de maneira a realçar a importância do entendimento das necessidades corporais, não somente de maneira
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racional. Ao assumir esse ponto de vista e sugerir que a experiência sensorial e a criação de “atmosferas” devem ser pauta da metodologia de projetos de arquitetura, esses autores fazem uma crítica à arquitetura pós-modernista e à produção arquitetônica contemporânea. Essa desaprovação justifica-se por uma crescente valorização da forma do edifício em detrimento da percepção emocional das pessoas que irão vivenciar o lugar. Nossos edifícios transmitem um latente distanciamento entre corpo e objeto arquitetônico no ato de projetar. “Eu comecei a compreender ou criar uma hipótese de que a configuração visual de um ambiente tende a promover, provocar certos sentimentos (claro que não univocamente, todos os ambientes vão provocar o mesmo sentimento em todos), mas eu acho que cada formatação de ambiente tende a provocar certos sentimentos. Ou de aconchego, ou de ficar impressionado, deslumbramento.” PAULO
10. JACQUES, Paola Berenstein. Corpo e Cidade: Complicações em Processo. Revista UFMG, Belo Horizonte, v.19, n.1 e 2, p.142-155, jan./dez. 2012.
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A redução da ação urbana, ou seja, o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a uma perda da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem corpo, espaços desencarnados. Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez mais privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do cidadão. A cidade não só deixa de ser cenário mas, mais do que isso, ela ganha corpo a partir do momento em que ela é praticada, se torna “outro” corpo. Dessa relação entre o corpo do cidadão e esse “outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea.10 Motivada pelo mesmo sentido, o de indicar a desconexão entre o corpo e os espaços que o mercado mobiliário tem produzido nas cidades brasileiras e, ao mesmo tempo, buscar alternativas para essa situação, a antropóloga Paola Berenstein Jacques criou o conceito de corpografia urbana. Segundo a autora, esse conceito indica uma forma de micro-resistência e de enriquecimento da relação das pessoas com o que ela chama de “outro corpo urbano”, na passagem acima, de forma a reaver a participação dos cidadãos na existência de sua cidade. Trata-se da síntese da leitura feita pelo corpo das estruturas urbanas, a partir de sua pura vivência, o que inclui um registro espacial afetivo do lugar. Para isso a autora traça algumas estratégias de ocupação dos espaços livres urbanos, como a errancia.
Em “Os Olhos da Pele”, Pallasmaa afirma que essa mudança faz parte de uma ‘hegemonia da visão’ que vivemos atualmente e influencia diretamente no projeto de arquitetura. Os teóricos franceses Debord e Baudrillard revelaram como o advento da televisão causou uma mudança estrutural no modo de vida da sociedade ocidental. Segundo esses escritores, o televisor disseminou um modo de vida nomeado ‘Sociedade do Espetáculo’. Pode-se presumir que essa teoria sustenta os apontamentos dos autores situacionistas, Jacques inclusive cita Debord e utiliza o termo “espetáculo” frequentemente para adjetivar instâncias físicas e comportamentais. A teoria de Debord e Baudrillard considera que o convívio com os aparelhos de transmissão de imagens nos afastou da realidade e nos aproximou de um mundo virtual. Se isso já era uma verdade na segunda metade do século XX, quando essas ideias reverberaram, certamente ela se acentuou mais tarde com o “boom” das redes sociais. Acredito que esse distanciamento da realidade é prejudicial à experiência sensorial humana como um todo e, assim, essa lógica toca a interação do ser humano com a arquitetura.
Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.11 Portanto, é esse tipo de produto da arquitetura pós-modernista que o arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa critica: que se justifica pela forma e que tem como prioridade a estética, colocando em segundo plano os conceitos que estimulam a conexão intrapessoal e entre pessoas e mundo, descrita acima.
“Esses ônibus são cada vez maiores no tamanho, espaçosos sim, mas com menos banco” MARIO
11. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. P.25
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“Andar em ambietes amplos é muito difícil. Preciso de referências para me localizar. Tem regiões que você não precisa saber muito, eu consigo identificar ruas largas ou estreitas. Agora se você fizer a proposta “vamos ao parque do Ibirapuera”, eu já vou ficar meio... porque é um local muito grande né, então eu penso “qual portão eu vou entrar”. Ir sozinho em um local desse para mim é inviável. Tipo, estádio de futebol, tem que ir com alguém.” DANIEL 12. Essa é uma prática que também seus anúncios de vagas para estágio ou de arquiteto muitas vezes explicitam isso, por priorizar o conhecimento de modelagem em softwares específicos.
13. PALLASMAA, Juhani. Os Olhos da Pele. Porto Alegre: Editora Bookman, 2011, página 12.
Aqui, vale ressaltar que no campo da arquitetura a tecnologia influencia diretamente nesse sentido. O desenvolvimento de renderings fotorrealistas (imagens computadorizadas que fazem uma simulação gráfica da realidade) na arquitetura é uma prática cada vez mais recorrente e tornou-se quase que requisito nos projetos, mesmo acadêmicos, desde os primeiros períodos da faculdade. Durante intercâmbio nos Estados Unidos, verifiquei que a criação dessas imagens é uma prática muito consolidada nos estúdios das faculdades de arquitetura de lá; a apresentação gráfica do projeto tem muito mais destaque do que seu próprio partido conceitual. Acredito que de certa forma as faculdades brasileiras caminham para essa direção12. O uso de softwares de modelagem e representação, além de permitirem acesso a infinitas ferramentas de simulação, descomplicam diversas necessidades que um projeto tem em todas as suas fases. No entanto, faz parte de um mundo de simulação muito rico apenas visualmente, o que estimula o apego à forma do edifício, diminuindo suas expectativas perceptivas sensoriais. Pallasmaa utiliza a expressão “manipulação visual passiva”13 do objeto arquitetônico ao se referir a esses softwares, alegando que isso cria um distanciamento entre arquiteto e projeto. Por outro lado, o autor argumenta que o desenho à mão e a criação de maquetes exigem um contato tátil entre esses, o que cria uma identificação corporal e mental. Desse modo, o uso dessas ferramentas é um fator que contribui para promover a arquitetura do espetáculo. Saber criar um modelo tridimensional virtual notável confunde-se com apresentar conceitos arquitetônicos interessantes para pessoas. Assim, evidencia-se como o planejamento de espaços muitas vezes se desconecta de sua função central para suprir necessidades de um mercado que é alicerçado pelo bombardeio de imagens comerciais.
Arquitetura acessível?
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Desde o início desta pesquisa, o objetivo de agregar conteúdo a uma pauta pouco explorada no meio acadêmico era claro para mim, porém as reflexões e conversas com as pessoas que colaboraram com essa pesquisa evidenciaram a ausência de disciplinas e pesquisas que tocam o tema da acessibilidade para além da Lei de Acessibi-
lidade. De uma maneira geral, infelizmente a acessibilidade é um tópico que corre em paralelo aos projetos de arquitetura, paisagismo e urbanismo. Acredito que essa seja uma consequência de um ciclo vicioso do qual o meio acadêmico faz parte. A criação da NBR 9050 (Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos) na década de 1980 e suas revisões seguintes ampliaram muito a discussão sobre a inclusão das mais de 45 milhões de pessoas que possuem algum tipo de deficiência no Brasil. Tanto no que diz respeito à implementação das exigências técnicas, quanto no aprofundamento das discussões houve um grande avanço (que fica evidente pelo próprio histórico do texto dessa norma). Contudo, basta um passeio por qualquer rua de São Paulo para constatar a forma burocrática como a norma é aplicada, pelo simples cumprimento de lei. Apesar de que exista um incentivo à (auto)crítica sobre a atuação do arquiteto e sobre o processo de projetar, temas como acessibilidade, legibilidade, inclusividade e percepção sensorial são temas que não foram abordados com a devida relevância ao longo da minha formação acadêmica. A partir do envolvimento com essas questões no decurso deste projeto, as julgo como essenciais para a formação de arquitetos e urbanistas que irão planejar espaços. Além de um problema estrutural de metodologia de projeto abordada nas faculdades de arquitetura de São Paulo, esses temas são secundários também no mercado civil. Muitas vezes somente ao esbarrar em questões de normas, já no projeto legal, é o momento em que arquitetos e empreiteiras pensam, sem muita profundidade, em como pessoas com diferentes deficiências irão interagir com o espaço em questão Nos estúdios de projeto na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP a acessibilidade é, geralmente, abordada em uma etapa do projeto básico na qual todos os ambientes do edifício estão definidos e ilustrados. Assim, os alunos são incentivados a considerar as normas de acessibilidade e “adaptar” seus projetos baseados nessas exigências. Isso faz com que as questões técnicas sejam atendidas pelos projetos, mas impede que a inclusão seja medular, parte do programa desde sua conceituação e que, assim, impulsione indagações sobre o tema e propostas criativas de fato inclusivas.
“Essa é uma das grandes dificuldades, você não ter nos ambientes, nos espaços públicos a informação das coisas legais que tem naquele lugar, se não fica tudo muito igual. Pro deficiente visual você tem escadas rolantes, elevadores, escadas não rolantes, o máximo que pensam é o piso tátil, só isso que tem no mundo? Não tem um monte de coisa legal no mundo, tem teto de madeira furado vermelho, tem muitas coisas legais que são atrações do ambiente, que o deficiente visual não é atraído porque não tem acesso à informação.” PAULO
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Ao invés de discutirmos como criar espaços confortáveis, receptivos, legíveis, inclusivos e que proporcionem experiências sensoriais interessantes para todas as pessoas, ainda discutimos apenas como pessoas com deficiências irão chegar em todos os lugares e como implantar uma rampa com inclinação de 8% em uma planta já resolvida. Certamente, se esse cenário fosse diferente, já teríamos alcançado soluções mais eficientes e criativas em todos os pontos de vista e a tentativa de projetar espaços com as características citadas acima estaria enraizada na metodologia de projeto.
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2. Não enxergo, logo percebo Estudar a percepção espacial e o acesso à paisagem pode ser feito por meio de infinitos vieses. Escolhi essa abordagem por entender que a visão, cada vez mais, prevalece sobre os demais sentidos sensoriais e que de alguma forma os aliena; e por acreditar que a percepção de pessoas com deficiência visual pode revelar características espaciais que contribuam para lugares amigáveis para todos. “Eu sinto muito, eu tenho emoções de saber dessas coisas. Eu fico feliz mesmo!” [Sobre informações às que Paulo não interagiu sensorialmente de forma direta]. PAULO
14. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1985.
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Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.14 Esse poema de Alberto Caeiro – que me inspirou durante toda a pesquisa, escrito na capa do meu caderno de campo – ilustra o caráter fenomenológico desta investigação. Como qualquer processo de desenvolvimento científico, o presente estudo passou por um movimento de amadurecimento até que seu enfoque e objetivos fossem esclarecidos e delineados, contudo, em todas as fases o contato/convívio direto com pessoas, foi seu mote norteador. Para mim esta pesquisa não possuiria relevância alguma se fosse feita com “janelas fechadas”, simplesmente por se tratar da percepção de pessoas. Assim, vivenciar em conjunto e escutar narrativas sobre os fenômenos da interação do ser humano com o espaço é o tema desse capítulo e essência deste trabalho.
Tentei escrever e descrever o que as pessoas, com as quais tive a oportunidade de conviver no percurso deste projeto, expressaram sobre esse tema da melhor forma. Nossos discursos se confundem ao longo do texto porque a vivência, a troca de experiências, o ato de repensar concepções e a apropriação de ideias foram efetivas. Logo, esse foi um processo espontâneo e que marca meu discurso. É importante frisar que não há intenção de falar por essas pessoas, mas de apresentar, a partir do ponto de vista arquitetônico, o que elas tinham para relatar a respeito de suas próprias vivências espaciais. Ainda, apesar de mostrar a sensibilidade sensorial que as pessoas com deficiência visual possuem, não há a intenção de romantizar a falta de visão.
Deficiência
A Organização Mundial da Saúde define “deficiência” como um termo que engloba as deficiências em si, a limitação de atividades e a restrição de participação. Ou seja, além de apresentar um problema funcional ou estrutural do corpo, a terminologia também se preocupa em carregar as questões práticas e sociais que as pessoas nessa situação são obrigadas a lidar. Tratar essa palavra apenas como uma questão de saúde é ignorar as barreiras sociais e ambientais impostas pela sociedade em que vivemos. O uso da linguagem adequada, quando se fala de pessoas com deficiência, trata de respeito às conquistas de espaço e voz na sociedade ao longo do tempo. Na linguagem, que é um instrumento de conexão entre as pessoas, se expressa respeito, empatia e equidade ou preconceito, indiferença e discriminação. A busca pela inserção das reivindicações linguísticas e de outros direitos de pessoas com deficiência comprova os avanços que as iniciativas em prol desses direitos alcançaram nas últimas décadas. Houve um enriquecimento e aprofundamento das discussões em torno das barreiras socais e ambientais e das ques-
“Na maioria das vezes, quando estou dentro do vagão de metrô, as pessoas vem falar comigo, mas alguns até exageram. Só faltam querer pegar no colo, 8 ou 80,” MARIO
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“Na maioria das vezes, quando estou dentro do vagão de metrô, as pessoas vem falar comigo, mas alguns até exageram. Só faltam querer pegar no colo, 8 ou 80,” DANIEL
15. “Accessibility”, in this publication refers to a feature or quality of any physical or virtual environment, space, facility or service that is capable of accommodating the needs of users of varying abilities or disabilities to understand, get access to or interact with. Accessibility also refers to technical standards that are mandated nationally or internationally for the design and construction of a physical or virtual environment, space, facility and servisse”. DESA. Practices of Accessible Urban Development. Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da Organização das Nações Unidas. Ebook disponível em: http://www.un.org/disabilities/documents/desa/good_practices_in_accessible_urban_development_october2016.pdf
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tões de acessibilidade. No Brasil, as alterações nas leis de discriminação, criação de estatutos e a elaboração de normas, ainda que de forma experimental, contribuíram muito nesse sentido. A NBR 9050, Norma de Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamento urbanos, que teve sua primeira versão elaborada na década de 1980, marcou essas conquistas e o histórico de suas revisões apresenta progressos por ampliar as consultas às pessoas com deficiência e os conceitos de design universal. A obrigação do cumprimento das diretrizes da NBR 9050 ampliou o acesso de pessoas com diferentes deficiências aos espaços públicos e privados de uso coletivo. Ainda, em sua última revisão, essa norma teve grandes avanços em direção à percepção, consideração dos sentidos sensoriais e antropometria. Porém, a acessibilidade ainda é vista e empregada de uma maneira limitada, o que contribuiu para o termo “acessibilidade” ter um cunho apenas técnico, de modo que corresponda apenas à capacidade de se chegar em um lugar, no senso comum. Acessibilidade é a qualidade atribuída a um ambiente físico ou virtual que se refere à capacidade de receptividade de pessoas com diferentes habilidades e deficiências no que diz respeito ao entendimento, acesso e interação das pessoas com esse ambiente15. Essa definição, traduzida pessoalmente de uma publicação do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU, abrange a compreensão e a apropriação do espaço exercidas pelo ser humano, questões que usualmente são desprezadas pelas normas. Adaptar um projeto a fim de implementar mecanismos de locomoção para torná-lo acessível conforme as exigências da NBR 9050 é possível. Mas para que a essência de um espaço seja inclusiva e para que ele estimule a interação e sentimento de pertencimento é necessária uma formulação conceitual com esse intuito. Essa função cabe ao arquiteto nos estágios iniciais de um projeto, mais especificamente na elaboração do partido arquitetônico. Um rápido passar de olhos sobre as estatísticas que apresentam os quadros numéricos sobre deficiências é o suficiente para entender que acessibilidade não deveria ser um tópico secundário para arquitetos. De acordo com o Relatório
Mundial sobre Deficiência, elaborado pela Organização Mundial da Saúde em 2011 e concedido para tradução para a Língua Portuguesa à Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, a World Health Survey de 2010 estimou que 785 milhões de pessoas com 15 anos ou mais no mundo possuem algum tipo de deficiência, o que representa 15,6% da população total mundial. No Brasil, como na maioria dos países emergentes, essa porcentagem é ainda maior. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, 23,9% da população brasileira declararam ter algum tipo de deficiência.
A deficiência visual
Para a Convention on the Rights of Persons with Disabilities (CRPD)16 e dentro da Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF)17, o ambiente é essencial para estimular ou desencorajar o rompimento de diversas barreiras, não somente físicas, como sociais existentes na vida de pessoas com deficiência.
A arquitetura articula a experiência de se fazer parte do mundo e reforça nossa sensação de realidade e identidade pessoal 18 Como Pallasmaa ressalta, a arquitetura tem o papel de promover as conexões interpessoais e entre pessoas e o mundo. Considerando a importância dessa articulação para a inclusão das pessoas com deficiência, no que diz respeito ao rompimento de barreiras entre indivíduos e sociedade, evidencia-se a necessidade de que os arquitetos atentem a prática de projeto para a acessibilidade. Entender os anseios do maior número de pessoas possíveis, considerando as práticas de Design Universal e a incorporação de pessoas com diferentes necessidades no processo de planejamento de espaços deve se tornar uma prática mais frequente. Infelizmente, existem muitos preconceitos envolvendo a perda de visão. Ao conviver com pessoas que não enxergam, fica claro como elas são rotuladas por
“Às vezes dá vontade de não sair, eu tenho que me policiar. Por isso que eu estou fazendo essa reciclagem no Cadevi, que envolve a parte psicológica, a parte de mobilidade e da AVD [Atividades da Vida Diária].” MARIO
16. Convention on the Rights of Persons with Disabilities (CRPD) é um corpo da ONU que se reúne duas vezes por ano para discutir a implementação de sua convenção sobre acessibilidade nos Estados, o que é feito através de relatórios dos países em que esse documento foi ratificado. É uma medida recente, de 2006, e atualmente tem 147 assinaturas. 17. Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF) é um documento elaborado pela Organização Mundial da Saúde que faz parte de um conjunto de classificações. Seu objetivo é criar um padrão de linguagem unificado para palavras do domínio da saúde. Criado em 1980 com o nome de Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (ICIDH), sua última revisão é de 2004. 18. PALLASMAA, Juhani. Os Olhos da Pele. Porto Alegre: Editora Bookman, 2011, p. 11.
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“Os lugares que eu frequento bastante, em geral, eu sou bem atendido porque as pessoas passam a me conhecer, já sabem que eu não sou um bicho de sete cabeças (risadas). (...) É um relacionamento gostoso, tranquilo, que é o que o deficiente visual mais deseja: ser tratado e ser sentido com naturalidade. A questão da deficiência foi ultrapassada porque eu já fui lá várias vezes. Nas primeiras vezes era uma questão: ‘como é que ele vai ser atendido?’, ‘como é que ele senta?’, ‘ele vai tropeçar nas coisas aqui, ou não vai?’. Aí chega um momento que isso já não é mais questão porque o convívio aconteceu ali.” PAULO
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sua deficiência e pelas crendices que existem em torno dela por quase todas as pessoas que cruzam ao longo do seu dia. Ser subestimado faz parte da rotina diária dessas pessoas. Desde pequenos, dentro de casa, muitas crianças cegas passam por um processo de acomodação da família, que desvalorizam seus potenciais e não encorajam o desenvolvimento cognitivo delas. Com os adultos cegos essa situação não é diferente, as pessoas videntes raramente têm a sensibilidade de entender as dificuldades e capacidades daqueles. O preconceito muitas vezes cria situações bizarras, que tendem tanto para menosprezar, quanto para a associação de valores sobrenaturais. Com Daniel, com Mario e com Paulo pude presenciar situações em que as pessoas os desqualificavam, muitas vezes ignorando suas presenças e dirigindo a palavra para mim, que os acompanhava, mesmo quando o assunto era sobre o prato ou a forma de pagamento deles. Esta é uma situação delicada pois acontece em quase todos os lugares que frequentam. Sentir-se inferiorizado gera um grande estresse em uma situação que deveria, muitas vezes, ser agradável, como um jantar em um restaurante, por exemplo. Conviver com essa situação de forma mais amena foi um exercício para Paulo, que considera que se ele tiver que contestar todos os atendentes que o tratam de forma inadequada, ele não aproveita seus momentos de descontração com sua esposa ou com amigos. Ou seja, é mais um desafio a ser enfrentado para conseguir sair de casa. Diversos paradigmas são associados às pessoas que não enxergam com os olhos, Paulo certa vez me contou que uma desconhecida ficou indignada por ele dizer que não conseguia delinear o rosto das pessoas por suas vozes. Me relatou também que são muito raras as pessoas que o perguntam como podem o ajudar:
Perguntar é muito difícil. Geralmente as pessoas têm uma impressão assim ‘eu já tenho que saber como tenho que ajudar’, essa tranquilidade de dizer ‘olha, eu não sei como te ajudar, como é que eu faço?’, isso daí precisa ter uma personalidade tranquila. (...) Uma pergunta básica que acontece é ‘o senhor gostaria de ajuda?’, ‘o senhor precisa de ajuda?’, isso rola. Agora, perguntar ‘como que eu posso te ajudar?’, ‘como é que eu
te guio?’, por exemplo, as pessoas acho que ficam meio tensas e não tem essa tranquilidade, não tem esse insight de pensar ‘ele pode me explicar como que eu faço’.19 Por outro lado, em quase todas as oportunidades que tive, perguntei para pessoas cegas como eram seus convívios com atendentes de comércios, nos bairros em que moravam e trabalhavam, ou seja, comércios que são frequentados com regularidade, e todas as pessoas me relataram experiências tranquilas. Em visita ao Instituto de Cegos Padre Chico, a coordenadora Luciana Ruiz mencionou que o entorno do colégio é muito frequentado por pessoas com deficiência visual, por ser um local no qual muitos deles estudaram. Então, os comércios da região, habituados a receber pessoas cegas, têm atendentes que sabem lidar de forma adequada e natural para atende-los, o que é essencial para a autoconfiança de qualquer um. Isso constata como o convívio quebra as barreiras sociais e que se existisse acesso garantido aos lugares da cidade para pessoas com deficiência visual, consequentemente existiria maior coexistência entre videntes e não videntes. Isso impulsionaria maior harmonia nas relações sociais, hoje problemática, para esses. É nesse sentido que quebrar barreiras arquitetônicas pode significar quebrar barreiras sociais.
19. Fala de Paulo, caminhando na Avenida Paulista, no dia 19/05/2018
[Se esperava perder totalmente a visão] “Não, nunca trabalhei com isso não. Na verdade, no último ano eu enxergava muito pouco, mas essa condição de cegueira total eu não esperava. Para eu me aceitar como cego demorou um pouquinho. Eu estava no final do mestrado, foi doloroso.” DANIEL
Aproxime-se
Nesse subcapítulo, finalmente vou revelar um pouco mais sobre a identidade das pessoas que construíram essa pesquisa comigo. Assim como a linguagem falada sugere, o vocabulário é menos acadêmico, com mais intimidade e maior uso da primeira pessoa; em algumas passagens possui o formato de um relato pessoal. Ao longo deste caderno encontram-se depoimentos diretos e indiretos das pessoas que contribuíram para a minha pesquisa, nas notas laterais. Essa foi uma forma de mostrar como a convivência com essas pessoas está intrinsecamente conectada com todas as outras faces desta pesquisa. A convivência e os textos não se desassociam: cada leitura foi feita com a interpretação de uma pessoa que estava vivenciando coisas específicas, enquanto que minhas
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“Uma das coisas que eu estou compreendendo nessa conversa com você é que tudo isso envolve enriquecimentos existenciais, psíquicos. Permitir conhecimentos e afetos de coisas que não são oferecidas por padrão.” PAULO
20. Em sua tese de doutorado, Silvia Valentini se refere aos deficientes visuais que colaboraram com sua pesquisa como “Protagonistas”, uma forma de fazer apresentar a importância que a colaboração dessas pessoas teve no desenvolvimento de sua pesquisa. VALENTINI, Silvia. Os Sentidos da Paisagem. Tese de Doutoramento – FAU/ USP, 2012.
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interpretações textuais se faziam presente em cada encontro pessoal. No mundo acadêmico, infelizmente a arquitetura tende a separar o que é pesquisa prática e teórica, ou o grupo dos arquitetos pesquisadores e dos arquitetos projetistas. Além de fazer alusão clara à aproximação temática, o título “Aproxime-se” faz referência aos sentidos sensoriais que se fazem presente na relação interpessoal de pessoas que não enxergam ou que o fazem com dificuldade. A visão é o sentido que nos permite maior distanciamento para ter contato com as coisas. Muitos autores descrevem a visão como o sentido do preconceito, o que cria impedimentos para a aproximação. Essa afirmação fez muito sentido quando estive presente no Instituto de Cegos Padre Chico, um colégio para crianças com deficiência visual e baixa visão, onde pude verificar como o contato físico é intenso. As crianças lá possuem uma dinâmica de convivência mais próxima, muitos grupos andam de braços dados e se auxiliam no deslocamento pela escola no intervalo. Da mesma forma, todas as vezes que tive a oportunidade de encontrar com Paulo, Mario e Daniel, esse contato físico direto e constante existiram. Daí vem o convite à aproximação. A pesquisa de doutorado “O Sentido da Paisagem” e as conversas com sua autora, Silvia Valentini, foram essenciais para legitimar a relevância deste estudo e para indicar os meios pelos quais esse contato fosse feito. Após um primeiro contato pessoal, Silvia gentilmente me incentivou e me apresentou os “Protagonistas”20 de sua tese no dia 11 de novembro de 2017.
Relato 1 - Encontro com “Protagonistas” O dia 11 de novembro de 2017 foi um dia enriquecedor para mim e para esta pesquisa. Foi o dia em que tive a oportunidade de conhecer pessoas que contribuíram com a tese de doutorado de Valentini e que se tornaram essenciais para a construção deste projeto também. Saí com alguma antecedência de casa rumo à Granja Viana, onde encontraria a Silvia para seguirmos juntos rumo à lanchonete na qual o encontro aconteceria, próximo à estação de metrô Vergueiro. Os Protagonistas se sentiam mais confortáveis ali por ser um local de mais fácil acesso, já conhecido e que possuía cardápio em braile. Durante o percurso, pude dividir com a Silvia quais eram as minhas expectativas para esse encontro. Apesar de tentar me livrar dos meus próprios achismos e ansiedades, havia um receio de entrar em alguma conversa incômoda ou não saber lidar da melhor forma em alguma situação mais específica. Quando chegamos, Mario já nos aguardava. Após as apresentações e um papo inicial, pela primeira vez vi uma pessoa lendo braile pessoalmente e com uma leitura muito ágil: “peito de peru, queijo, rosbife, alface, tomate e maionese. Será que dá para tirar a maionese? “. Foi a primeira sutileza, dentre tantas outras que notei desse dia e ao longo do meu projeto, que contribuiu para que a minha percepção sobre as atividades do cotidiano deles fosse ressignificada. Depois de discutir sobre maionese, percebi que para Mario, o molho não era agradável por uma questão tátil e não somente pelo sabor, já que favorece aos outros ingredientes deslizarem entrei si e assim dificultarem a tarefa de comer. Depois chegaram Daniel, Toninho e Paulo. Três pessoas que entraram na lanchonete com muita disposição tanto para ouvir as questões que eu gostaria de expor, quanto para dividir as suas próprias questões, o que rapidamente extinguiu qualquer receio anterior. Além de discutir algumas questões iniciais da minha pesquisa, abordamos assuntos pessoais e profissionais. Quanto mais intimidade dividíamos, mais eu me esquecia do propósito inicial da conversa e da existência de deficiências
“É uma questão de perder o preconceito, a convivência ajuda nisso. As pessoas começam a perceber que [as pessoas cegas] são pessoas, nem melhores, nem piores, só tem uma característica a mais que é a cegueira né. Mas cada um tem a sua característica, como todos.” DANIEL
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“Saio pouco, se considerarmos a necessidade do aprimoramento das percepções espaciais, imprescidíveis para o meu dia a dia. Eu tenho essas inseguranças que eu falo né? Ônibus, metrô sem parede nas costas. Dá aquela aflição. Se tem a parede atrás de você, beleza, como a Santa Cruz, a Vila Mariana, Vergueiro. Mas se você desce aqui na Brigadeiro, não tem de imediato a parede atrás de você. Mas claro, é falta de treinar, de confiar também.” MARIO
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visuais. Confirmei, através da minha própria experiência, que quanto mais tempo eu dividia com aquelas pessoas, menos eu as caracterizava por suas deficiências e mais natural a conversa se tornava. Não ser rotulado e identificado pela deficiência visual e ser tratado como pessoas comuns são anseios muito evidentes nas pessoas com as quais convivi ao longo do meu trabalho. Estar em contato com pessoas que possuem necessidades diferentes das suas é uma forma muito eficiente de entender que o mundo é plural. Tentar observar sob a perspectiva do outro muda, inevitavelmente, a sua forma de perceber o mundo. A partir desse dia, muitas das atividades que eu sempre realizei automaticamente passaram a ser acompanhadas da reflexão de como as pessoas que não enxergam com olhos as cumpriam, o que me vez perceber diferentes qualidades tanto dos objetos, como do próprio ato de realizá-las.
Daniel
Daniel Hirata tem 56 anos, é engenheiro elétrico formado pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e mestre na área de reatores nucleares pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Ele trabalha há 26 anos na Marinha do Brasil, no edifício que fica na cidade universitária da mesma universidade que cursou sua graduação. Portanto, possui uma grande familiaridade com esse campus, onde conviveu por muitos anos mesmo antes de perder a visão totalmente. Apesar de ter tido uma perda gradual, Daniel deixou de enxergar totalmente há aproximadamente 10 anos, quando estava nos meses finais de seu mestrado. Nessa ocasião, trancou seu mestrado para ganhar tempo e pode contar com a ajuda de amigos para concluir sua tese. O engenheiro considera que em um primeiro momento a perda de visão gerou uma grande ansiedade no sentido de aprender a se orientar e locomover sozinho, de modo que tentava fazer frequentes passeios sozinho em seu bairro. Apesar de ter tido uma perda gradual, nunca considerou que passaria a viver com a condição de cegueira total, o que dificultou sua readaptação. Porém, com o tempo passou a assimilar o fato de não enxergar com os olhos e conseguiu aprender a se orientar de maneira mais tranquila. Outra dificuldade de adaptação se deu na relação com sua filha mais velha, que com 10 anos já entendia a gravidade do que estava acontecendo e, mesmo sem nunca ter andado de ônibus, foi a companhia de Daniel nos primeiros treinamentos de mobilidade que ele fez. Por isso acredita que a filha mais velha sofreu bastante nos meses iniciais de cegueira. Em contrapartida, sua filha mais nova, na época com 4 anos, não entendia bem a questão e, por isso, a assimilou com mais facilidade. Daniel gosta muito de correr e já completou diversas provas de rua com auxílio de uma amiga que o guia. Suas corridas preferidas são na própria Cidade Universitária da USP, onde ele sabe exatamente cada trecho em que está, devido à memória visual que tem daquele local, o que lhe confere muito mais conforto. Embora não goste de correr na esteira, por considerar uma coisa entediante, essa é a única maneira de Daniel para treinar sozinho, diante disso ainda está
“Meu lugar favorito é na praia, com a água do mar batendo na altura da minha canela. Lá eu posso andar muito tempo sem auxílio de ninguém e sem perder a referência de onde eu estou. A água, o vento e a areia não deixam eu me perder.” DANIEL
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“O que eu acho que eu procuro nos ambientes é mais conforto, menos barulho para poder tranquilamente, andar e ter autonomia. Acho que isso é o que eu mais busco nos espaços, diferente do Paulo que tem essa percepção das coisas mais bonitas ou não.” DANIEL
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buscando formas de tornar esse treino menos monótono ouvindo música – com caixa de som, já que o fone de ouvido o deixa desorientado por não permitir escutar o som da pisada na esteira. Outra coisa que considera desagradável é a corrida em altas velocidades, porque o deixa muito inseguro em pisar em falso ou não conseguir passar por algum obstáculo. Apesar de morar na Vila Alpina, bairro muito distante do Butantã, onde fica a Universidade de São Paulo, Daniel considera sua rotina de deslocamento muito tranquila. Sua esposa, Nice, trabalha no Instituto de Biociências da USP, por isso ele conta com sua companhia diariamente para ir até o trabalho. Eles vão de carro até um estacionamento que fica próximo a um ponto de um ônibus fretado para a USP e assim Daniel desce na porta de seu trabalho, local com o qual já adquiriu grande familiaridade. Além desse deslocamento do dia a dia, ele frequenta alguns locais próximos de sua residência, “na mesma calçada”, principalmente um bar, onde gosta de tomar cerveja, e uma pizzaria. Mas não tem costume de sair muito aos finais de semana porque considera sua rotina muito cansativa e utiliza esses dias para descansar e executar outras tarefas, como a faxina de sua casa. Andar na beira da praia, com a água no tornozelo é uma das coisas preferidas de Daniel, assim como andar pelas calçadas da USP. Em ambos locais ele consegue andar longas distâncias sozinho, sem auxílio de ninguém e sem ter que estar totalmente alerta, o que lhe permite vivenciar a caminhada com maior intensidade. A USP possui longas calçadas sem a necessidade de travessias. A recente substituição das placas de argamassa armada – reiteradamente quebradas e completamente irregulares – pelo cimento polido diretamente assentado no solo facilitou muito a mobilidade de pessoas com deficiência pelo campus. A tranquilidade que Daniel encontra nessas caminhadas se dá pela compreensão dos referenciais táteis e sonoros que esses ambientes fornecem para ele: o ruído dos carros e do mar de um lado, a textura da grama ou da areia do outro e as árvores são elementos que impedem com que se sinta desamparado em meio a um vazio, ou em um local intransponível cheio de obstáculos físicos.
Mario
Mario Luiz Brancia tem 56 anos e há 22 trabalha na prefeitura regional do Ipiranga auxiliando o público na praça de atendimento. Ele tem cegueira total, adquirida quando ainda era bebê e passou 40 dias em uma incubadora em razão do nascimento prematuro. Nesse momento ficou exposto ao oxigênio, o que queimou e escureceu sua retina (Retinopatia da Prematuridade). Mario é uma pessoa muito alegre que gosta de fazer piadas, conversar sobre música e futebol, e de se relacionar com pessoas de uma forma geral. Uma conversa simples, de alguns minutos, é o suficiente para se notar a memória invejável que possui. Suas lembranças são um verdadeiro acervo sobre música brasileira. Considera que, como acontece em muitas famílias independente de haver uma criança com deficiência visual ou não, passou por uma proteção familiar excessiva. Ele diz que compreende totalmente e fala com carinho sobre a forma como sua mãe o criou: “ela sempre acreditou que as escolas fossem suprir o que eles não estavam tendo condições de dar pela falta de conhecimento e pelo excesso de zelo e amor”. E apesar de considerar que seus pais buscaram conhecimento para lidar com a deficiência visual da melhor forma possível, sempre o estimulando para fazer reabilitação em instituições como a Fundação Dorina Nowill para Cegos e Instituto de Cegos Padre Chico (onde fez o primeiro grau completo), isso de certa forma o privou de vivenciar alguns problemas comuns fora de casa. “Mas isso não deve servir de motivo para a pessoa cega falar o tempo todo ‘olha o que eles fizeram comigo’, ‘eles são culpados’, nada disso! Tem que dar a volta por cima, a vida sempre se oferece, a gente tem que estar aberto também para a vida”. Por acreditar nisso, Mario está fazendo um processo de reciclagem no Centro de Apoio ao Deficiente Visual (CADEVI), voltada para a área da psicologia, Orientação e Mobilidade e também para as Atividades da Vida Diária (AVD), como forma de resgatar sua autonomia. Busca conquistas que estão acima do que ele e sua mãe imaginavam antes e, por isso, trabalha diariamente e continua fazendo idas e vindas pela cidade de São Paulo. Mario considera que muitas das iniciativas em prol das pessoas com deficiência visual são deixadas de lado ao longo do processo. Por essa razão entende
“Seja como for, nós que temos que ir até a cidade, não a cidade até nós. Ninguém vai bater na nossa porta, a gente tem que se mostrar.” MARIO
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que profissionais como arquitetos e engenheiros, que trabalham na área pública deveriam escutar mais as pessoas com deficiência durante a elaboração e execução de projetos. Segundo ele, normalmente esses profissionais entendem e concordam com as demandas de acessibilidade, mas mudam o projeto de última hora, por interesses políticos. Dessa forma, deixam de atender necessidades técnicas e inclusivas, e assim faltam com o cumprimento legal de normas. Sabe que não existe um projeto perfeito que contemple as expectativas de todos, mas a grande distinção entre espaços internos e externos e, principalmente, em relação aos ônibus da rede de transporte público – já que cada ônibus é de um jeito –, atrapalham muito a segurança para do deslocamento de pessoas com deficiência visual.
Paulo
Paulo Augusto Colaço Monte Alegre, 51 anos, é graduado, mestre e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Hoje, é consultor em audiodescrição, recurso que possibilita acesso de pessoas com deficiência visual a eventos culturais e sociais, tais como cinema, teatro e exposições. Além disso, ele faz parte da equipe da ONG Ritmos do Coração, que tem como objetivo contribuir para que os direitos humanos fundamentais de igualdade, participação, solidariedade e liberdade sejam garantidos a todos, por meio de projetos focados em pessoas com deficiência21. Paulo possui uma perda de visão gradual, que se iniciou quando tinha 5 anos de idade. Por esse motivo ele considera que cada época de sua vida representou uma perda específica com relação à visão. Atualmente apenas enxerga a presença de luzes muito fortes. Talvez devido à sua formação acadêmica, Paulo manifestou em todas as nossas conversas que possui um grande interesse em discutir sobre percepção espacial – tivemos longas e profundas conversas ao longo de minha pesquisa. Pude verificar isso não somente através de seus depoimentos, mas pela curiosidade que apresentava em interagir com as minúcias dos espaços que pudemos frequentar juntos. Seja por meio de sua própria experiência sensorial ou das des-
Fotografia 1. Mario desce as escadas do IMS. Encontrar gravações em braile no corrimão dessa escada o deixou alegre.
“Acho que uma coisa legal de registrar, é que eu acho que a sua forma de contar, com uma certa informalidade nas palavras tem uma força. Se espaços culturais forem fazer audiodescrição dos ambientes, a naturalidade no descrever tem uma força muito grande, que a formalidade perde. Por exemplo, se você me fala desse bar, as garrafas, essa vivencia, ela tem uma humanidade que eu acho que merece uma certa informalidade na descrição porque é bar. Bar não combina com formalidade.” PAULO
21. http://www.ritmosdocoracao.org.br/
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crições que eu fazia dos ambientes, ele sempre tinha considerações sensitivas interessantes a fazer. Suas atividades de lazer também revelam como Paulo preza por explorar seus sentidos sensoriais. Tem o costume de frequentar restaurantes e bares, de assistir filmes, peças de teatro e musicais – quando há recursos de acessibilidade –, e já fez alguns cursos de modelagem em argila. Além disso, gosta de tocar violão e ir à shows de rock e de música erudita. Essa busca propiciou uma grande habilidade de deslocamento e orientação espacial através de sua bengala, porém, reconhece que está perdendo gradativamente essa capacidade por fazer a maioria de seus deslocamentos atualmente de carro, o que deixa de ser desafiador. Paulo parou de utilizar os ônibus municipais, o que fazia cotidianamente, por considerar o espaço urbano muito agressivo, com muitas barreiras físicas e sonoras, calçadas estreitas e com situações frequentes que geram medo. Relatou que em diversas situações era esquecido pela pessoa encarregada de o avisar sobre o ponto em que ia descer, o que ocasionava situações muito desconfortáveis por ter que desembarcar em locais desconhecidos e, apesar disso, conseguir chegar em seu destino. Mesmo assim, o consultor em audiodescrição considera que utilizar transporte público é uma atividade valorosa para sua autonomia e vivência, e por vezes tem vontade de voltar a realizá-la.
Convivência
Como citado na introdução desta dissertação, o método de investigação baseou-se muito no contato direto com pessoas com deficiência visual que se dispuseram a dialogar sobre o papel que a arquitetura tem em suas vidas. Tive a oportunidade de estar em diferentes situações com essas pessoas: reuniões, almoços, viagens, passeios e visitas. A partir do que, pude conhecer iniciativas extremamente relevantes para a busca de inclusão para pessoas com deficiência, o que também foi estruturador em vários pontos desta pesquisa. Tivemos uma certa dificuldade para agendar o encontro que aconteceu no dia 11 de novembro de 2017, relatado anteriormente. Foram algumas semanas
Fotografia 2. Paulo tateia as letras do nome de exposição em cartaz no IMS, de Mauro Restiffe. Curiosamente o nome da exposição remete à dificuldade perceptiva que a cidade de São Paulo impõe à ele no dia a dia.
“Chegou-se a pensar que eu não ia conseguir ter a mobilidade para andar sozinho. Imagina se você é um professor de mobilidade, como que você vai liberar uma pessoa se você está vendo na prática que ela não está oferecendo condições seguras para se conduzir no dia a dia. Agora, claro, vale a persistência da pessoa sim.” MARIO
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“Quando eu tinha a visão, eu curtia mais as atrações culturais, principalmente escultura. Pintura não porque já não enxergava legal, então não via as sutilezas, mas escultura sim.” DANIEL
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para agendar uma data que contemplasse a maioria do grupo. Inicialmente formávamos um grupo de dez pessoas comunicando-se por e-mail, que diante da dificuldade de acordarmos uma data, marcamos uma conversa entre seis pessoas, relatada anteriormente. A complexidade logística encontrada nessa primeira reunião fez com que eu mudasse um pouco a estratégia da minha pesquisa. Passei a preferir conversas individuais, que além de não ter a necessidade da conciliação de datas entre muitas pessoas, possibilitava maior espaço para cada pessoa se revelar ao seu próprio modo. Em uma conversa coletiva, as pessoas mais tímidas acabam tendo menos voz diante do grupo. Ainda, esse tipo de convívio com maior pessoalidade fez com que as conversas com Daniel, Mario e Paulo motivassem amizades para além da pesquisa sobre percepção. Além do convívio pessoal, busquei informações em algumas instituições que trabalham com a questão de inclusão de pessoas com deficiência visual na sociedade. Eliana Ormelezi, doutora em Psicologia e Educação pela Faculdade de Educação da USP, apresentou-me o Laramara – Associação Brasileira de Assistência à Pessoa com Deficiência Visual, local em que trabalha há 22 anos. Ormelezi desenvolveu tanto seu mestrado, como seu doutorado na área de Educação de crianças com cegueira. Além de me explicar um pouco sobre os trabalhos de orientação e mobilidade realizados na Laramara, ela tornou-se uma referência para meu entendimento sobre desenvolvimento cognitivo de pessoas cegas, desde bebês até a fase adulta. O Instituto de Cegos Padre Chico (IPC), que é um local muito receptivo, foi a primeira escola para crianças cegas em São Paulo (fundado em 1928), o que a torna um modelo a ser seguido em vários aspectos. Curiosamente, o IPC passou por um processo contrário à maioria das escolas fundamentais, já que anteriormente só atendia crianças com cegueira ou baixa visão e passou a aceitar também crianças que enxergam. A presença consolidada desse colégio por tantos anos no bairro do Ipiranga faz com que a região seja muito frequentada por pessoas com deficiência visual. Segundo a coordenadora Luciana Ruiz, nos estabelecimentos que circundam o IPC, os funcionários compreendem e sabem lidar com as neces-
sidades das pessoas que não enxergam. Existe um trabalho interdisciplinar que possibilita aos alunos a oportunidade não somente de aprender sobre as disciplinas básicas, mas de realizar atividades como teatro, dança, música, orientação e mobilidade (na qual aprendem a utilizar a bengala e se locomover pela cidade) e atividades do cotidiano (desde atividades básicas como se alimentar, até tarefas mais complexas de casa). Outras duas iniciativas que tive oportunidade de conhecer a convite de Mario e que instruíram este trabalho foram o Cadevi – Centro de Apoio ao Deficiente Visual, instituição em que ele é diretor, e o projeto Ampliando Horizontes, criado pela turismóloga Audmara Veronese. O Cadevi foi criado em 1984 com a missão de reunir e promover a inclusão social de pessoas com deficiência visual através do esporte, atividades sociais e culturais22. A sala principal do edifício que abriga o Cadevi possui uma estante cheia de troféus de xadrez para deficientes visuais, com premiações sul-americanas. O Cadevi conta com uma exposição temporária de maquetes táteis elaboradas pela arquiteta Dayse Tarricone, referência nesse assunto, que teve participação intensa nas atividades dessa instituição. Já o projeto Ampliando Horizontes busca garantir lazer, por meio da elaboração de roteiros sensoriais desenhados especialmente por pessoas com baixa ou nenhuma visão, acompanhadas de pessoas que enxergam. O objetivo é garantir uma experiência rica sensorialmente para todos ao explorar nossas capacidades sensoriais, que não a visão. A chance de interagir e conviver um dia inteiro com um grupo de 10 pessoas cegas, em visita à cidade de Holambra, foi extremamente enriquecedora por me tirar da zona de conforto, na medida em que o contato pessoal, nesse caso, não poderia nunca se pautar pela visão. Cumprimentar, conversar, descrever a paisagem, falar sobre objetos e guiar.... De certa forma, necessitei me desligar das referências visuais para interagir com os companheiros de viagem, o que me forçou a olhar às coisas não somente a partir de suas aparências, mas através de diversas outras qualidades. Quando comecei a imergir no tema da percepção espacial, não sabia qual rumo esta pesquisa teria, como expliquei na minha trajetória ao tema. Reescre-
“Quando eu estava passeando com você, dando entrevista, mais uma vez eu tive a confirmação de que esses sentimentos estão ligados ao conhecer os espaços, não necessariamente visualmente. Esse passeio com você e outros que eu já fiz na minha vida, fizeram com que eu tivesse sentimentos muito especiais, muito interessantes, muito ricos e importantes. Importante que as pessoas cegas tenham certas informações do mundo, do mundo ao redor porque se a gente não está enxergando, ou essa informação vem por uma informação verbal, ou pelo tato (tato direto ou tato de maquetes). Ou de forma complementar, tateando e com informações verbais, que foi o que aconteceu no nosso passeio.as depois acabei usando mais metrô.” PAULO
22. http://www.cadevi.org.br/ index.php/missaovisaovalores/
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ver meus objetivos foi uma atividade que fiz repetidas vezes ao longo do meu TFG porque as experiências não aconteciam em um sentido linear de aprofundamento em busca da aproximação a uma resposta. Desde minhas primeiras experiências na oficina de mapeamento afetivo no Espaço Cultural Jardim Damasceno23 e do workshop de arquitetura em Cartagena24, o objetivo da minha pesquisa passou por grandes alterações.
Pessoas que não enxergam com os olhos precisam de referências que indiquem onde estão e para onde podem ir. Esse foi o ponto mais recorrente em todas as conversas que tive com pessoas com deficiência visual. A sensação de não saber onde está, gera um grande medo em qualquer um. Muitas áreas de São Paulo seguiram a lógica do automóvel e foram projetadas para serem vistas a partir da velocidade desse. A desconexão sensorial que o automóvel impõe aos passageiros impede o envolvimento desses com o mundo ao seu redor, permitindo apenas uma visão embaçada, com ruídos devido à rapidez estranha ao corpo humano, que não permite nem mesmo a identificação do rosto das outras pessoas que caminham na rua. Os edifícios raramente interagem entre si e são indiferentes às suas intersecções com o meio urbano público. Os resultados são muros altos e extensos, passeios longos sem sombreamento, calçadas estreitas, ruído, pouca vegetação e escassez de locais para permanência, ou seja, espaços que não priorizam as necessidades humanas, agressivos à convivência. Se o espaço urbano em São Paulo não é acolhedor para ninguém, de forma geral, para as pessoas com deficiência visual o cenário é ainda mais hostil. Essas pessoas têm que estabelecer padrões de orientação no espaço através das ferramentas sensoriais e tecnologias que são independentes da visão, o que se transforma em uma tarefa fatigante nas calçadas precárias de São Paulo. Portanto, ao caminharem sozinhos pelas ruas, seus estados de alerta precisam ser absolutos, o que torna a atividade exaustiva em razão dos obstáculos físicos nas calçadas, à indiferença de muitas das pessoas que passam apressadas, ao risco eminente de desnortear-se e
Fotografia 3. Maquete tátil desenvolvida pela arquiteta Dayse Tarricone sobre acessibilidade. Notável delicadeza para representar inclusive a expressão das pessoas. 23. Exercício de criação de um mapa afetivo (afetivo tanto no sentido de “ser afetado”, quanto o de “afeto”) junto à comunidade da Brasilândia no Centro Cultural Jardim Damasceno no qual uma das etapas foi caminhar vendados pelo Parque Linear do Canivete. Atividade realizada no dia 20/05/2017. 24. Atividade realizada durante o Taller Internacional de Arquitectura, realizado pela Universidad de los Andes em Cartagena, Colômbia. Motivado pelo tema de meu TFG, propus ao meu grupo que realizássemos o exercício de Deriva com os olhos vendados. Ali, tivemos a oportunidade de perceber, de forma intensificada, diversas características da cidade. Como o forte ruído das buzinas dos veículos, as calçadas curtas, a brisa do mar mais forte nas vias leste-oeste, e etc.
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“A gente está, por exemplo, caminhando na Paulista, a gente não sabe se do lado da gente tem uma casa antiga, um casarão da época dos barões do café ou se tem um prédio altíssimo, um arranha-céu, se é todo de vidro ou se ele é em concreto, ou uma coisa mais antiga, com janelinhas arredondadas, enfim... tudo passa. Se a gente não tiver acesso à informação, se não tiver algum recurso de acessibilidade, é só um caminhar. Eu tomo contato com a calçada, as vozes das pessoas, os sons dos carros, algum som eventual de alguma lanchonete com uma música ou um liquidificador, coisas muito iguais, muito repetitivas e a riqueza da paisagem a gente acaba perdendo.” PAULO
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à falta de referências efetivas – além de todas as outras questões pelas quais todas as pessoas passam, como violência, falta de sombreamento e etc. Buracos, pisos soltos, bueiros destampados, orelhões, pessoas em situação de rua, bancas de vendedores informais, bancas de jornal, pontos de ônibus; os obstáculos físicos são infinitos nas calçadas de São Paulo, o que aumenta muito o risco de queda de pedestres. Quase todas as oportunidades que tive de caminhar com Paulo e Mario foram nas imediações da Avenida Paulista, em São Paulo. A escolha do local foi pautada por algumas razões: pela grande variação de ofertas de lugares abertos ao público ali encontrados, independente de pertencerem à esfera pública ou privada (a própria rua, parques, museus, praças, shopping centers, cafés e restaurantes). Além disso, Mario e Paulo demonstram familiaridade com o ambiente da Avenida Paulista, devido ao acesso, comparativamente, simples por possuir algumas estações de metrô e corredor de ônibus. Ainda, a Avenida Paulista possui um potencial muito grande para ser um catalisador de soluções urbanas pontuais, já que é experimentada por uma diversidade de público enorme todos os dias. Mesmo tendo uma das calçadas consideradas acessíveis na cidade, com piso podotátil em grande parte de sua extensão, a tarefa de caminhar com autonomia por ali não é simples. O piso podotátil possui duas texturas diferentes, o “piso direcional” com relevo de linhas retas no sentido que é indicada a caminhada e o “piso de alerta” com relevo de círculos, que indica a mudança de direção ou presença de obstáculos. O uso desse tipo de piso foi ampliado nos últimos anos devido às exigências da última revisão da NBR 9050 que determinou método de produção e de aplicação para esse tipo de piso. Além de possuir qualidade tátil, esse pavimento tem a função de ser um destaque cromático em relação ao piso que o cerca, a fim de que pessoas com baixa visão consigam se orientar por meio do contraste de cores. Há uma grande discussão sobre a adoção de piso podotátil. A maioria das pessoas cegas com as quais tive contato confirmaram que esse tipo de piso gera mais segurança para elas ao caminhar. Contudo, verifiquei que existem outras questões apontadas vistas como negativas como a limitação da área caminhável das
pessoas cegas, que são obrigadas a andar em linha reta, muitas vezes em trajetos mal desenhados. Daniel confessou-me: “eu gosto de piso podotátil, mas só funciona para mim em locais que eu conheço. Tudo bem, você consegue andar, mas anda perdido né”. Ou seja, o piso podotátil é uma primeira referência de orientação, mas sua aplicação não é o bastante para que as pessoas que não enxergam se sintam confortáveis ao se deslocarem a pé. Na Avenida Paulista, num dos locais com maior utilização desse piso, pude verificar diversos problemas como placas quebradas, placas instaladas sobre a grelha de respiro do metrô, pisos direcionais que acabam em paredes ou em nada (sem continuidade) e obstáculos, como lixeiras, sobre a linha guia. Além dessas precariedades, esse piso não oferece a autonomia que pessoas com deficiência visual buscam, já que não indicam locais importantes, como bancos, pontos de ônibus ou mesmo a entrada de estações de metrô. Dessa maneira, outros tipos de referências são necessários para que o passeio fosse mais bem aproveitado por pessoas cegas, sem que o estado de alerta as impedissem de desfrutar das qualidades sensoriais que a Avenida Paulista tem a oferecer. Investiguei com Mario, que utiliza o metrô com muita frequência, se haviam indicações em braile nos corrimãos da estação Consolação do metrô, e nos decepcionamos ao verificar que não há. Mario se lamentou pontuando “Poderia ter uma indicação com o nome da rua em que estamos saindo”. O metrô é uma referência importantíssima para pessoas com deficiência por possuir espaços que atendem à norma de acessibilidade, por possuir funcionários treinados para atendê-los e por haver, de forma geral, um padrão entre estações e trens, tornando-o o meio de transporte mais acessível. Mario é uma pessoa que sempre se dispôs a explicar com minúcias as possibilidades de caminhos que eu tinha para chegar nos locais que nos encontrávamos e eu sempre ouvi com atenção suas descrições por entender que elas eram interessantes para entender seus referenciais. Por ter perdido a visão logo que nasceu, ele não possui memória visual, o que torna seus parâmetros muito diferentes dos de Daniel e Paulo. 57
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Agora que me liguei que você já está para o lado do Rio Pequeno, teria que pegar o 477P sentido Ipiranga. Engraçado, sei de explicar o caminho da ida, mas não sei o caminho da volta. Como Rio Pequeno teria que descer no ponto do Center Castilho na Avenida Jabaquara, seguir no sentido do ônibus, até tem umas correntes ali. Aí tem que atravessar as três pistas para continuar na Avenida Jabaquara, bem de esquina com a Rua Oriçanga, tem um mercadinho pequeno que chama Mercado Souza. Aí desce a Rua Oriçanga, onde tem uma casa de esfihas – que eu vou te contar hein, meu caro – daí você já está na rua do Cadevi. Como plano B, você poderia pegar o metrô, descer na Praça da Árvore, pegar a saída da Rua Guaraú e atravessar para outro lado. Daí você estaria justamente na esquina da Rua Guaraú com a Avenida Jabaquara. Você tem que descer a Rua Guaraú, com a parede à sua direita e o trânsito para a sua esquerda. Aí vai, vai, vai, aí tem o final dela, onde ela muda de nome, que é a Rua Embaré aí você atravessa para continuar subindo a Embaré, com a parede para sua esquerda e a rua para a direita. Aí vai, vai, vai, é uma quadra um pouco comprida, chegando na Oriçanga vira à esquerda, ainda com a parede para sua esquerda e a rua para sua direita. Na faixa, você atravessa para pegar outro pedaço da Oriçanga, do outro lado da calçada, com a parede para sua direita e a rua para esquerda, agora. Aí você anda uns 20 metros e já vai estar na Rua dos Heliotrópios. 25 Sua descrição de como chegar ao Cadevi foi muito significativa para mim. Claro que isso é resultado de um exercício que foi repetido algumas vezes por Mario, mas revela como a descrição detalhada feita para deslocamentos é essencial para ele. Sua eficiente memória (no sentido prático e sensorial) fica muito evidente, o que acredito ser resultado dos recorrentes estímulos que ele tem que fazer para conseguir se orientar sem depender de outras pessoas e exercitar sua autonomia com independência e segurança. A diversidade dos elementos que utiliza para se localizar: paredes, ruído dos carros, correntes, o olfato de restaurantes, esquinas e faixas de pedestre mostram-se como referências importantes que lhe permitem se deslocar do metrô até a Rua do Heliotrópios. Ademais, a própria atitude
Fotografia 4. Mario colhe crisântemo em estufa de flores em Holambra com auxílio de Audmara Veronese. Passeio sensorial do projeto Ampliando Horizontes.
“Em metrô eu vou de boa de pé, mesmo com o metrô cheio, só para descer que eu tenho problema, mas dentro dele eu fico de boa. Porém no ônibus, nossa, eu sou péssimo de equilíbrio. Eu cheguei a fazer treinamento, mas depois acabei usando mais metrô.” MARIO
25. Áudio de Mario enviado pelo whatsapp no dia 24/05/18.
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de enviar um áudio explicando todos esses detalhes foi uma iniciativa própria dele, o que mostra sua preocupação quanto ao meu deslocamento até um local que não me era familiar seu convite. Dessa forma, pode-se dizer que saber como é a melhor forma de chegar ao local de destino é uma questão essencial para que Mario possa sair de casa. Isso pode parecer banal numa época em que as pessoas deslocam o tempo todo a partir da indicação de smartphones, contudo Mario me deu uma aula de como perceber os caminhos percorridos. Essa questão da descrição do espaço é um outro ponto intrigante. Uma das atividades que realizei tanto com Mario e quanto com Paulo foi fazer caminhadas na Avenida Paulista e exploração de um edifício com o qual eu já tinha uma certa familiaridade, mas que eles não conheciam, o Instituto Moreira Salles. Em encontros individuais, fomos ao espaço e exploramos com bastante calma tudo o que pudemos. Apesar da dinâmica do exercício ser a mesma com os dois, as investigações tiveram vieses e percepções muito diferentes para cada um.
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Relato 2 - Paulo no IMS No dia 19 de maio de 2018 tive mais uma reunião com Paulo. Marcamos em uma cafeteria do Shopping Center 3 da Avenida Paulista. Quando cheguei ele estava acompanhado de sua esposa, Maria José. Após uma conversa e um café inicial, Paulo e eu saímos pela Rua Luís Coelho, subimos a Rua Augusta e pegamos a Avenida Paulista sentido Rua da Consolação até o Instituto Moreira Salles (IMS, Av. Paulista, 2424), que fica na quadra entre a Rua Bela Cintra e a Rua da Consolação, com os prédios à direita e a rua na sua esquerda. Paulo adora aprofundar conversas sobre percepção, por isso logo chamou minha atenção para o fato de a Avenida Paulista estar calma, transmitindo paz, o que para ele era surpreendente: “não sei se fechou o farol”, disse ele. Por ser um sábado, o fluxo de pedestres e carros era muito inferior ao usual. Apesar do céu nublado, havia muita claridade e uma brisa leve. Paulo conseguia perceber de onde vinha tanta luz e disse que esses momentos lhe geravam muita curiosidade em saber mais sobre aquele ambiente, por lhe provocarem boas sensações. Estimulado por essa curiosidade, explicou-me rapidamente sobre o de desenvolvimento do aplicativo “Smart Audio City Guide”, que criado há cerca de 8 anos, para o qual ele colaborou. Esse aplicativo consistia em uma plataforma colaborativa de informações auditivas georreferenciadas com intuito de amparar, orientar e estimular a caminhada independente de pessoas com deficiência visual, como uma forma de inclusão social urbana.26 Para isso, contava com ferramentas de localização, descrições das calçadas, descrições arquitetônicas e outras informações úteis e específicas para esse público enquanto caminha. Após algumas descrições sobre as fachadas dos edifícios que estavam próximas a nós, entramos no edifício do IMS. Fiz uma breve descrição acerca das texturas do térreo desse edifício: o piso que possui uma textura e cor semelhante ao asfalto, as placas de metal perfurado nas laterais, a parede de concreto polido e os buracos herdados por sua fôrma, as madeiras dos bancos, os vidros do restaurante e o jardim vertical no fundo do lote.
“Eu lembro de uma amiga, quando eu estava desenvolvendo há um tempo atrás o projeto das maquetes táteis, ela me disse “eu tenho muita curiosidade de saber como é o MASP”. O MASP é uma coisa razoavelmente simples de descrever, a descrição do MASP é bastante simples em relação a outras edificações, e fazer o MASP em maquete também é muito mais fácil do que mil outros edifícios que tem uma dificuldade de detalhes, de volumes e enfim... Então, uma pessoa cega pode desconhecer completamente até uma coisa super padrão para quem enxerga. O MASP é um negócio que marca muito visualmente e é até fácil de lembrar, mas pra uma pessoa cega fica um grande desconhecido, um grande mistério.” PAULO
26. http://nap.usp.br/naweb/?projetos=smart-audio-city-guide
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27. Fala de Paulo, em visita ao Instituto Moreira Salles em São Paulo, no dia 19/05/2018
Olha só que interessante, só de saber que existe um jardim lá trás me deu um sentimento gostoso. Eu estava imaginando inicialmente concreto, vidro, ferro, alumínio... aí você fala que tem um jardim lá, isso me dá imediatamente um sentimento gostoso. Eu acho que os espaços públicos deveriam ter estratégias de informar isso (...), não somente informações práticas como elevador, escada rolante, mas informações ligadas ao “sentir a cidade”, aos afetos. 27 A atenção e a forma como Paulo se envolveu com a conversa deixou evidente seu desejo em investir um tempo para compreender detalhes do espaço que geralmente “passam em branco” para uma pessoa com deficiência visual, como ele mesmo relatou. Apesar de ponderar que a cidade tem infinitas coisas interessantes, e que não é possível descrever tudo, disse que muitas vezes as pessoas que o acompanham não têm paciência para descrever os espaços para além do básico, e quase que inexistem recursos de acessibilidade informacional sobre os espaços. Explicou-me que os espaços acabam não tendo identidade e unicidade para ele porque apenas entra em contato com os mesmos elementos em todos os lugares: escadas e elevadores.
28. Fala de Paulo, em visita ao Instituto Moreira Salles em São Paulo, no 62 dia 19/05/2018
Se não tiver acesso à informação é só um caminhar (...). A riqueza da paisagem a gente acaba perdendo. A gente não está enxergando, estamos passando pelas coisas e não estamos tomando contato com as coisas do mundo. Aí na sua pergunta eu me conscientizei que isso acontece tanto na paisagem, como nos ambientes internos. Nos ambientes internos a gente vai passando, vai andando por lugares, sobe escada rolante, sobe escada comum, sobe elevador, desce elevador, entra, sai, mas e o que tem ali do lado? Tem quadros? Tem pôsteres? A parede tem texturas? As entradas dos ambientes, como são? Como é o estilo de decoração, é clássico, é moderno?28
Informações que parecem superficiais mostraram-se essenciais para Paulo. A descrição do ambiente para ele se mostrou muito rica sentimentalmente. Mesmo os elementos com os quais ele não teve a oportunidade de ter contato sensorial, provocaram sentimentos diferentes por meio das minhas descrições – “Eu sinto muito, eu tenho emoções de saber dessas coisas. Eu fico feliz mesmo!“. Explorar o edifício através da descrição e vivenciar o espaço com calma foi um exercício que deu identidade à arquitetura do IMS para a percepção de Paulo. Outras sensações interessantes foram expressadas por Paulo: o vislumbre ao entender como a fachada era constituída (que o fez lembrar da caracterização de Kant sobre o “grandioso”), o cheiro único da galera de exposição, o elogio ao tratamento acústico e a curiosidade em saber do comportamento das outras pessoas diante daquele lugar. A intensidade das experiências que pudemos ter naquela tarde e a conexão que criamos com o edifício, numa exploração conjunta, foi tão grande que tivemos a ideia de conversar com algum representante do museu sobre os recursos de acessibilidade que eles possuíam. Fomos bem recepcionados, ao contrário do que comumente acontece com Paulo nessas situações: “em geral você pergunta uma coisa desse tipo em um espaço despreparado e eles vão dizer ‘eu não sei disso não’”. Contudo, o funcionário nos informou que o material de audiodescrição estava em desenvolvimento, que poucas exposições tiveram esse recurso e nenhuma que estava em cartaz possuía. Isso me motivou a tentar entrar em contato com a coordenação do instituto para sugerir um projeto de audiodescrição arquitetônica, mas não recebi retorno ainda. Portanto, essa vivência com Paulo no Instituto Moreira Salles foi relevante em diversos aspectos: motivou o surgimento de algumas ideias a serem testadas no futuro, a sugestão de melhoria do projeto de acessibilidade do próprio IMS e, o mais importante, instigou a percepção espacial de Paulo. Segundo ele, aquela experiência fez com que se pegasse pensando “qualquer hora vou voltar aqui sozinho para sentar lá embaixo e ler um livro ou ouvir uma música”, um sentimento que não lhe é frequente. Paulo revelou-me que a perda da visão fez com que ele deixasse de ter contato com muitas qualidades dos espaços e, consequentemente, não tenha o prazer de curtir um lugar, apenas pelos valores desse local, de forma recorrente.
“Certos sentimentos que eu tenho durante sonhos em que eu enxergo me geraram essa questão: porque estou tendo esse sentimento nesse sonho e não tenho esse tipo de sentimento quando estou sozinho em algum ambiente?” PAULO
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mapa afetivo - relato 2 - paulo no ims
“Nossa, mas isso é uma extravagância arquitetônica incrível, né?” 64
PAULO
“Nesse momento me deu um sentimento gostoso. Estamos numa cidade barulhenta, mas olha, um momento de silêncio. Eu percebo uma luminosidade vindo de lá e acho que aqui tem um prédio. Esses momentos me despertam uma curiosidade grande.” PAULO
“Quando eu era moleque, vinha passear na Paulista e eu parava em alguns lugares para escrever e para ler. Conforme eu fui perdendo a visão, eu parei de fazer essas coisas, eu acho que por não ter acesso a essa curtição do ambiente. Aí sabendo de tudo isso que você está me contando, me deu vontade: ‘qualquer hora eu vou voltar aqui sozinho pra sentar lá embaixo para ficar escutando música ou ler um livro.” PAULO
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Isso fez com que deixasse de ter o costume de frequentar espaços culturais com o objetivo de realizar atividades para “passar o tempo”, por exemplo, algo que fazia quando era mais novo. Essa frase de Paulo ressignificou esta pesquisa.
29. Fala de Paulo, em visita ao Instituto Moreira Salles em São Paulo, no dia 19/05/2018
As pessoas com deficiência visual têm o direito de serem atraídas para os ambientes legais e pelas coisas culturalmente interessantes. A arquitetura tem significado, tem valor. É conhecer o mundo, curtir o mundo.29
Relato 3 - Mario no IMS
“Em uma palavra só, meu maior receio quando vou sair é o espaço. Sinceramente, outras questões existem, mas a minha maior questão é o espaço, mobilidade mesmo, urbana.”
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MARIO
No dia 02 de junho de 2018 esperei por Mario nas catracas do metrô Consolação, que veio acompanhado por um funcionário cortês do metrô. De lá, nos dirigimos para a saída mais próxima sentido Instituto Moreira Salles, discutindo sobre os instrumentos de acessibilidade que o metrô (não) disponibilizava. Tateamos os corrimãos das escadas de saída para verificar se haviam sinalizadores em braile, o que foi decepcionante. Após subir a longa escada, chegamos na calçada da Avenida Paulista e mesmo estando a apenas uma quadra do IMS, encontramos algumas dificuldades para caminhar. Devido a uma obra na fachada de um edifício entre a Rua Haddock Lobo e Rua Bela Cintra, havia um andaime, que diminuía o espaço caminhável da calçada. Tentei fechar os olhos ao caminhar embaixo do andaime, o que foi assustador porque ouviam-se os passos das pessoas andando e pedras caindo sobre o suporte, ao mesmo tempo que uma névoa de poeira era depositada sobre as cabeças dos pedestres. Mario também se assustou e sugeriu: “nossa, que poeira! Vamos acelerar”. Chegamos na frente do IMS e investimos um bom tempo tentando entender a entrada do edifício. Mario ficou muito curioso porque tinha a percepção que ainda estávamos na calçada, mesmo tendo adentrado o lote do edifício. A praça desse prédio, no nível da calçada da Avenida Paulista, possui um piso que tem a textura e cor muito semelhantes às da calçada, o que, juntamente com a ampla abertura dos portões e os bancos de madeira, cria um ambiente receptivo.
Mas gozado, isso daqui para mim ainda é calçada, embora estou ouvindo o som das pessoas conversando. Para mim a ideia que dá, tateando com o pé e sentindo assim, é como se o prédio estivesse à direita, mas não que você tivesse entrado nele, entendeu?30 Conversamos sobre essa característica por algum tempo, tateando o piso, as paredes que delimitavam o comprimento frontal daquele lote e o portão, que estava aberto. Mario disse que de certa forma aquilo era confuso para ele e ficamos na dúvida se essa confusão era positiva ou negativa. Para ele, em um estado perceptivo um pouco mais alerta e com a disposição de buscar algumas pistas, pessoas com deficiência visual poderiam sim perceber que adentravam no térreo de um edifício. Ainda, pensamos algumas possíveis soluções para tornar essa transição mais evidente, como uma valeta de 2 ou 3 centímetros de espessura, que garantiria a percepção através da varredura de uma bengala e não teria alteração estética alguma. Depois de adentrar alguns metros nessa praça no nível da rua, Mario passou a perceber que acusticamente estávamos em um local com menos ruídos e, portanto, mais tranquilo. Porém, devido à sombra acústica estabelecida pela parede em que nos encontrávamos próximos (parede lateral direita, olhando o edifício de frente), percebi que Mario estava confuso quanto à nossa orientação dentro daquele local. Ele tinha a percepção de que a calçada estava para nossa esquerda, enquanto que na realidade essa encontrava-se atrás de nós. Demoramos para entender o por quê de tal incerteza, que era a sombra sonora provocada pelo muro, mas tive a ideia de apresentar a geometria do lote em que estávamos, através do tato ao meu caderno de campo, já que ambos possuem geometrias retangulares. Esse exercício elucidou algumas questões de Mario e contribuiu para que ele formasse uma concepção do todo daquele edifício, mesmo sem a volumetria protuberante. Também caminhamos lateralmente até o centro dos limites do IMS, de onde Mario pôde constatar que realmente os ruídos da rua vinham detrás de nós mesmos. Essa dinâmica mostrou-se desafiadora para Mario, que com grande empenho buscou ao longo de toda nossa conversa pistas que indicassem nossa localização
30. Fala de Mario, em visita ao Instituto Moreira Salles em São Paulo, no dia 02/06/2018
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em relação à Avenida Paulista. Tive mais dificuldade de apresentar o edifício para Mario por ainda não conseguir me desvencilhar totalmente das referências visuais e encontrar âncoras que dessem segurança para sua orientação. Me via o tempo todo buscando comparações e elementos que contribuíssem para que ele conseguisse compor a volumetria do prédio em sua mente, mas percebi que não obtive sucesso e por vezes acrescentei aspectos verbais nessa “composição” que a tornaram mais nebulosa. Diante dessa minha dificuldade, acredito que na visita ao mesmo espaço com Paulo, que possui memória visual por ter perda de visão gradual, talvez esse obstáculo da minha descrição tenha sido mais simples de ser superado. As referências óticas de quando enxergava ajudaram Paulo a associar mesmo as palavras que faziam referência as minhas descrições verbais daquele espaço. Apesar de constatar que minha descrição verbal e o tato ativo de uma visita não foram suficientes para que Mario arranjasse todas as informações espaciais, me vi em situações de esforço para descrever um lugar por meio de analogias e referências espaciais que talvez nunca tenha assimilado ao longo de minha formação. O que quer dizer que foi mais uma experiência rica de observação (não somente com os olhos) e de entendimento de que a arquitetura é uma linguagem, como descreve o arquiteto Pedro Janeiro:
31. JANEIRO, Pedro. A Imagem Por-Escrita: Desenho e Comunicação Visual entre a Arquitetura e a Fenomenologia (p. 13)
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É quando reconhecemos, ultrapassando o visível, a arquitetura como fato de comunicação que, e mesmo sem delas excluirmos a funcionalidade, chegamos a um ponto em que podemos admitir uma evidência: os objetos arquitetônicos não só comunicam a sua função, como podem comunicar outros significados como sentimentos ou atmosferas 31 O exercício de descrever um espaço para uma pessoa que não o vê com os olhos é interessante e demonstra como a arquitetura é uma linguagem com símbolos multissensoriais. Descrever o lugar, indicando elementos perceptíveis através da audição, do tato, da sinestesia, do olfato... a essas pessoas foi um exercício de tradução desses símbolos para a linguagem verbal. Essa visita possibilitou que eu
entendesse e refletisse sobre essa outra faceta: da Arquitetura como linguagem. Pensar nessa vivencia como uma ação de tradução me fez ponderar que tudo o que eu expressava verbalmente carregava valores próprios, o que é inerente à linguagem verbal. Portanto, vi que de um lado a descrição do espaço pode provocar sensações muito intensas, mas por outro, se desconectada de uma experiência sensorial própria, trata-se de experimentar o mundo através do outro.
“Como para mim, eu sempre tenho que estar trabalhando essa reciclagem, como eu preciso fazer essa reciclagem de orientação espacial, tudo o que vier, qualquer pesquisa é lucro, é um reaprendizado. Agora o prédio em si, eu não achei muito atrativo não. Mas nada como você ir ao local, tatear, ter a informação verbal, constatar na prática, então só a reciclagem por si só, remete a qualquer lugar e passa a se tornar útil pelo meu momento presente.” MARIO
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mapa afetivo - relato 3 - mario no ims
“O vazio não é no sentido de não ter ninguém. É no sentido de não ter nada, é no sentido de ser amplo. Você não tem esse ângulo fechado, como aqui.” MARIO
[No 50 andar do IMS] “Andar lateralmente aqui me daria bastante tensão. Caminhar aqui em cima me dá muito mais receio.” 70
MARIO
“Esquecendo o medo, tem outras sensações que são recursos e pistas que você tem que tentar utilizar para se localizar. Por exemplo, esse piso [metálico, na entrada da escada ro-lante] e a vibração remetem a uma escada rolante. Então, a ideia é desligar o medo para trabalhar as outras percepções, quais sejam elas.” MARIO
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3. O Sentido da Arquitetura
“Tratar do urbanismo não é só tratar de edifícios, calçadas, pontos de ônibus. O arquiteto tem que pensar em questões de gente né, questões humanas. Ter interfaces com ciências humanas.” PAULO
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Escrever sobre a percepção do outro e descrever a partir de referenciais perceptivos do outro, objetivamente esses foram os movimentos para a aproximação e aprofundamento temático realizado no Capítulo 2. Por trás disso, está a reflexão do significado da arquitetura a partir de um ponto de vista antes totalmente invisíveis para mim, numa perspectiva de pessoas que encontram diariamente conflitos nos espaços que habitam e, por isso, muitas vezes desinteressam-se por interagir e compartilhar os espaços públicos. Não se trata da busca por uma definição para essa ciência/arte que possui infinitos lados, mas da exploração de como é interpretada por pessoas que geralmente são esquecidas por ela. Por um lado, foi muito frustrante tentar entender a arquitetura sem os olhos. Na primeira reunião que tive com 4 pessoas cegas houve um silêncio absoluto quando perguntei que espaços elas tinham prazer em frequentar... nenhum lugar. Por outro, foi emocionante perceber o esforço dessas mesmas pessoas em buscar, através das minhas palavras e de pistas sensoriais, como era o lugar que estavam e de sentirem-se tocadas por ele. Pallasmaa considera que “Ao experimentar a arte, ocorre um intercâmbio peculiar: eu empresto minhas emoções e associações ao espaço e o espaço me empresta sua aura, a incita e emancipa minhas percepções e pensamentos” (PALLASMAA, 2011, p. 11), mas minha vivência mostrou que a arquitetura tem falhado enquanto experiência de arte para as pessoas com deficiência visual. Uma das principais potencialidades dessa arte, envolver o corpo humano por um ambiente, permite a exploração de todos os aparelhos sensoriais e desperta sentimentos de afeto. Compreender uma textura, lembrar-se de um cheiro, meditar ao som do vento: essas atividades têm sido desprezadas. Pautada, quase sempre exclusivamente, por expectativas comerciais, projetos de arquitetura muitas vezes jogam fora oportunidades de construir espaços que despertem afetividade, que “emprestem suas auras” e que incitem e emancipem percepções e pensamentos”.
A desconexão da escala dos projetos com o corpo humano é evidente em São Paulo. Jan Gehl, em “Cidades para Pessoas”, descreve a “Dimensão Humana” através de análises antropométricas, dos comportamentos perceptivos a partir das distâncias e das sensações de uma maneira bem prática. Com base em suas análises, o autor fala de diferentes arquiteturas a partir das velocidades às quais os espaços foram projetados para serem observados. A “arquitetura de 5 km/h”, é considerada por ele como a arquitetura adequada para o corpo humano, por ser a velocidade de deslocamento de uma caminhada. A arquitetura que mira essa velocidade se propõe a apresentar elementos para serem percebidos pelo pedestre, de forma que impulsiona o passeio a pé. Constata-se, porém, que na maioria dos trechos de São Paulo, andar não é uma atividade agradável: “um passeio numa arquitetura feita para 60 km/h é uma experiência sensorial empobrecedora: desinteressante e cansativa” (GEHL. 2013, p. 54). Os autores que discutem fenomenologia na arquitetura propõem que o enfoque das experiências seja o corpo humano e suas percepções. Gehl buscou entender as características práticas desse conceito e classificou os aparelhos sensoriais em “de distância” – visão, audição e olfato – e em “de proximidade” – tato e paladar. Para ele, promover o uso desses sentidos, aproximando as conexões entre pessoas e espaços, é uma forma de estimular cidades vivas. Portanto, a atuação do arquiteto em promover espaços amigáveis passa pelo conhecimento das escalas do corpo e pode promover ou dificultar a participação das pessoas na paisagem urbana. Em outras palavras, estudar a percepção espacial das pessoas é também uma forma de aproximação ao conhecimento da escala do corpo humano. Nesse sentido, o entendimento de que a percepção espacial de pessoas com deficiência visual poderiam suscitar questões que contribuiriam para a construção de paisagens amigáveis para todos se confirmou ao longo desta pesquisa. Conviver e ouvir as expectativas espaciais de Daniel, Mario e Paulo foi o meio pelo
“Se você tem a parede próximo a você, você se sente mais seguro. O que é uma questão de ângulo.” .” MARIO
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32. A grade pedagógica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo divide-se entre três departamentos: AUT – Departamento de Tecnologia da Arquitetura, AUH – Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto e AUP – Departamento de Projeto. “A Faculdade está organizada em torno de três departamentos que exercem papel estruturador e conceitual na formação em Arquitetura e Urbanismo. Esta estrutura não é impeditiva de trocas e aproximações de saberes que poderão ocorrer, nas práticas de ensino, tanto a partir das disciplinas interdepartamentais quanto da flexibilidade de oferta de disciplinas e professores ministrantes internamente aos departamentos, ou ainda, na proposição de conteúdos para disciplinas obrigatórias e optativas que articulem os professores por proximidades temáticas e conceituais, e não apenas pela organização formal.” Excerto da revisão do Plano Político Pedagógico 2014-2018 da FAU-USP, que cita a integração entre os departamentos, movimento que na prática é muito tímido.
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qual tentei olhar para o sentido da arquitetura e isso enriqueceu minha forma de entender o espaço através dos outros sentidos que não a visão. Assim, valida-se a ideia de que a Arquitetura, para se tornar mais inclusiva, tem a necessidade de envolver a participação das pessoas com deficiência em seu processo de criação (de normas e de desenho em si) e não somente pensar a acessibilidade como a partir de um checklist. Isso envolve a reflexão sobre a metodologia de projeto utilizada, não considerar a acessibilidade apenas na etapa de “projeto legal”, mas como componente de todas as etapas – desde o partido arquitetônico e levantamento de programa – é uma medida importante a ser levada adiante. O meio acadêmico, que é um ambiente catalisador de ideias, é o lugar que poderia abordar a acessibilidade de uma maneira menos técnica e incentivar esse raciocínio. Dentro da FAU-USP, a acessibilidade geralmente é um tópico discutido dentro do Departamento de Tecnologia da Arquitetura32 e raramente alcança os estúdios de projeto, o que a mantem como um dos temas que cabem aos “arquitetos pesquisadores”. Acredito que a divisão conceitual entre arquitetos que projetam e arquitetos que pesquisam – uma aura que existe sobre docentes e estudantes dentro da FAU-USP – é prejudicial para a integração temática ao longo da graduação. Prática e teoria são termos que podem servir para categorizar atividades, mas são indissociáveis. A pesquisa deve ser parte do planejamento dos espaços e projetar deve ser uma forma de pesquisa. Por isso a importância da comunicação entre as diferentes temáticas que compõem o curso de Arquitetura e Urbanismo é muito relevante para a congruência de diferentes pontos de vista e a observação de diferentes facetas desse campo. O Ateliê Interdepartamental (A.I.), considerado como o “quarto departamento” dentro da FAU, que tem o objetivo de unir os questionamentos dos três primeiros departamentos, não tem impulsionado esse movimento e perdeu força nesse sentido. Apesar do espaço físico adequado, perdeu seu conceito. Além disso, as disciplinas interdepartamentais, que são propostas por professores advindos dos três departamentos muitas vezes possuem programa confuso e são preteridas pelos docentes responsáveis. Apesar de possuir um plano pedagógico interessante, são necessárias estratégias para
avançar essa comunicação interdisciplinar dentro da FAU-USP. Repensar a nossa dinâmica de projeto incentivaria o desenvolvimento de projetos mais coesos conceitualmente, ao mesmo tempo que testar soluções de desenho, enriqueceria as possibilidades e ideias de execuções técnicas. Assumir a interdisciplinaridade como uma das essências da Arquitetura e reconhecer que teoria e prática são sincrônicos, fomentaria a criação de projetos que não sejam somente acessíveis no sentido de se chegar até os espaços propostos, mas também de interação efetivamente, tanto com as pessoas quanto com o próprio lugar. Acredito que teríamos soluções mais criativas, legíveis e a acessibilidade não seria mais um obstáculo, com o perdão do trocadilho, para o planejamento dos espaços. É notável como nos últimos semestres muitos estudantes estão desenvolvendo seus trabalhos finais de graduação (TFG) e iniciações científicas com temas que tocam a relação do corpo humano com o espaço, abordando as questões sensoriais. Penso ser esse um efeito contrário à constatação de que os espaços públicos e espaços privados abertos de São Paulo, em sua maioria, não contemplam a “Dimensão Humana” e, consequentemente, não geram um sentimento de pertencimento e não seduzem as pessoas que o habitam. Reconhecer-se no ambiente e sentir-se como parte integrante, que remodela a paisagem, gera satisfação e confere inclusividade. Ainda, considero que este trabalho é parte de uma busca para ressignificação da Arquitetura não somente para os arquitetos e urbanistas, mas para quem habita os espaços, isto é, todas as pessoas. Essa inquietação conjunta certamente foi estimulada por autores, com diversos enfoques, que questionam a formação dos espaços urbanos pautada pelo uso do automóvel.
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Referência e Ritmo O quadro agressivo e insalubre das cidades para a saúde do corpo humano apresenta-nos uma conjuntura grave que parece muito bem consolidada e cristalizada. No entanto, ao mesmo tempo em que a especulação mobiliária continua prevalecendo sobre a formação da cidade, criando loteamentos e edifícios que são isolados em si, sem comprometimento em existir conjuntamente com a cidade, iniciativas de sucesso mostram mudanças na realidade de algumas cidades. Dois grandes conceitos, intrínsecos, se estabeleceram a partir da elaboração desta pesquisa como essenciais para iniciativas de melhoria dos aspectos de inclusão de pessoas com deficiência visual a partir da arquitetura, quais sejam: referência e ritmo. “Há dez anos, quando eu perdi a visão, aí eu estava meio pilhado, aí todo domingo eu saía para andar, queria aprender a andar, a localizar as coisas, mas hoje em dia já deu... Eu saía no meu bairro e aqui na USP eu andava na hora do almoço também. Mas com o tempo você vai perdendo o ânimo, com a idade você fica mais preguiçoso. E a rotina é meio sufocante, é cansativa. A cidade te engole” DANIEL
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Orientação e Mobilidade são duas concepções essenciais para qualquer pessoa, mas a maioria não reflete sobre eles por se deslocar de forma automática. Para as pessoas com deficiência visual, se orientar nos ambientes e saber se deslocar sozinho é um desafio. Orientação é a capacidade que as pessoas têm de conseguir captar informações sobre o ambiente em que se encontram, utilizando simultaneamente todos os seus canais sensoriais, de forma a distinguir onde estão, onde querem chegar, bem como qual o percurso para se chegar lá. Já a a mobilidade é a capacidade de organização muscular (coordenação) para realizar os movimentos pretendidos de forma eficaz. Superar o desafio de se orientar e andar sozinho é uma questão de independência, o que fortalece a autoestima e a inclusão de pessoas cegas na sociedade. Entretanto, para se localizar e entender como devem ser os deslocamentos e alcançar a liberdade de ir e vir, é preciso a identificação de referências. Por não possuir a informação visual, as pessoas cegas precisam de outros elementos que lhe garantam segurança para não se perder. Os relatos de Daniel, Mario e Paulo revelaram um sentimento de medo
muito grande em se perder e não encontrar os elementos que lhes indiquem para onde ir ou pessoas dispostas a ajudá-los. Daniel me contou que certa vez saiu pela saída errada do metrô República: “Queria sair de um lado do metrô e saí do outro, depois não conseguia mais voltar”. Apesar da norma ABNT 9050 prever, dentro do item “5 – Informação e sinalização”, o princípio dos dois sentidos, as ruas de São Paulo e mesmo os locais considerados mais acessíveis, como as estações de metrô, ainda não estão totalmente preparados para abrigar e orientar as pessoas cegas de forma adequada. “Deixar a segurança da casa nessas condições demanda coragem e determinação” (VALENTINI, 2012, p 77). Por esse motivo, algumas estratégias de orientação urbana ajudariam muito para tornar as ruas espaços mais receptivos e incentivar que as pessoas cegas as ocupem. Em primeiro lugar, é importante entender quais são as estratégias utilizadas por pessoas cegas para observar os espaços. Diversos centros de apoio e instituições fornecem atividades e cursos para capacitar as pessoas a caminharem sozinhas, buscando elementos que as guiem pelo espaço. Essas aulas são denominadas de Orientação e Mobilidade. Daniel, Mario e Paulo fizeram esse treinamento em diferentes instituições, como Laramara – Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual e Fundação Dorina Nowill para Cegos. Mario atualmente está passando por um processo, o qual chama de “reciclagem”, que prevê o reestímulo para sair de casa, com atividades físicas e atendimento psicológico no CADEVI – Centro de Apoio ao Deficiente Visual, instituição em que é diretor. O instrumento mais utilizado pelas pessoas cegas para caminhar é a bengala longa. Uma haste com a qual as pessoas podem fazer o rastreamento do piso de forma preventiva, já que a bengala alcança pontos no chão que serão pisados com o pé no passo seguinte. Para fazer esse rastreamento, a bengala possui uma espécie de rolamento na ponta que toca o chão, assim ela é deslizada sobre esse. Esse contato transmite, por meio das vibrações que o piso provoca na bengala e que são absorvidas pela mão da pessoa, sinais sobre o
“Você precisa ter uma referência então, alguma música, algum som, ou tátil, mudar a textura. Talvez não precise exatamente do piso tátil, mas mudar a textura. “ DANIEL
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piso que está à frente. Conforme a pessoa cega desenvolve bem a capacidade de se locomover e se sentir segura a partir desses sinais, a bengala passa a ser uma extensão de seu corpo, sem a qual caminhar tornar-se-ia inviável.
33. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999, p. 199.
“Nós que temos deficiência visual, passeamos pela cidade e toda a cultura arquitetônica e paisagística da cidade fica em branco, a gente não fica sabendo de nada. Então, rola muito essa curiosidade de como são as construções e de que vista tem ali daquele local, isso é uma coisa que tecnicamente dá para implementar, por sistema de GPS isso seria viável.” PAULO
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A bengala do cego deixou de ser para ele um objeto, ela não mais é percebida por si mesma, sua extremidade transformou-se em zona sensível, ela aumenta a amplitude e o raio de ação do tocar, tornou-se o análogo de um olhar. Na exploração dos objetos, o comprimento da bengala não intervém expressamente e como meio termo: o cego o conhece pela posição dos objetos, antes que a posição dos objetos por ele. A posição dos objetos está imediatamente dada pela amplitude do gesto que a alcança e no qual está compreendido, além da potência de extensão do braço, o raio de ação da bengala. Se quero habituar-me a uma bengala, eu tento, toco alguns objetos e, depois de algum tempo, eu a “manejo”, vejo quais objetos estão “ao alcance” ou fora do alcance de minha bengala.33 Como aponta Merleau-Ponty, a familiaridade com a bengala faz com que suas vibrações passem a ser signos perceptíveis e não somente pressões. Trata-se de um tato ativo, pelo meio do qual a pessoa cega percebe o mundo além de seu corpo original, de maneira a prevenir acidentes e interpretar o mundo. Para o deslocamento eficiente, o uso da bengala depende de uma linha-guia, que conduza a pessoa do ponto em que está para o ponto em que pretende ir. Essa linha guia pode ser tanto uma textura perceptível, quanto um elemento linear, como a fachada de edifício ou uma mureta de um canteiro, que bloqueie o movimento do arco ao ser chocado pela bengala, garantindo que esteja andando na direção correta. Também devido a outras possibilidades de linha guia existe a discussão sobre o piso podotátil, apresentada no capítulo 2. Mario certa vez me confessou que tem críticas ao piso tátil e, principalmente, à forma com que é implantado em alguns lugares, porém as reprimi com receio de que pareça falta de reconhecimento aos avanços das normas e suas implementações. Mas a verdade é que os melhores elementos referenciais são muito diferentes de pessoa para pessoa
e o desenvolvimento de novas tecnologias alteram essa percepção ao longo do tempo. De qualquer maneira, o empenho em descobrir e desenvolver os melhores instrumentos de locomoção, independente das conquistas do passado, é válido para as pessoas cegas que caminham ainda com muita dificuldade por São Paulo. Há alguns anos atrás os smartphones, por exemplo, não eram comuns e suas ferramentas de acessibilidades eram muito limitadas. Hoje os aparelhos tornaram-se itens quase que obrigatórios para as pessoas cegas que circulam pela cidade. Existem inúmeros aplicativos que facilitam o deslocamento dessas pessoas, principalmente os que trabalham a localização através de GPS. Uma grande vantagem de utilizar smartphone é a segurança de que, em caso de se perder, a pessoa cega terá uma ferramenta para entender em que local da cidade está, ou ainda pedir ajuda a algum conhecido. Os próprios sistemas operacionais dos celulares agora possuem acessibilidade e o preferido da maioria das pessoas cegas é o sistema iOS, que possui uma ferramenta chamada “voiceover” e dá acesso a todas as possibilidades do celular. Daniel utiliza seu iphone com muita facilidade, faz questão de o carregar sempre e me explicou o funcionamento do “voiceover”. Um dos aplicativos que usa é para saber a localização e o tempo estimado dos ônibus que pretende pegar: uma ferramenta útil que o habilita a ter uma boa noção se o ônibus que está passando é o correto ou não. Mario, por outro lado, confessa que usar o celular foi uma luta para ele: “Eu tive que vencer as barreiras internas e externas, eu não queria usar o celular, achava que não ia conseguir”. Todavia, possui um celular há seis meses, tempo que estivemos em contato semanalmente e é notável como podemos nos comunicar cada vez melhor através do celular. Não existem verdades absolutas sobre o que é melhor ou pior. A percepção corporal de cada um possui limites e potencialidades diferentes. Entretanto, o conceito de Design Universal, que propõe a meta de que as criações sejam acessíveis para o maior número de pessoas possível, é cada vez mais mencionado. A partir desse conceito e dos entendimentos que desenvolvi convivendo
“Há muita controvérsia em relação ao piso tátil, até para as pessoas com deficiência. Mais do que ele, não que ele não seja importante, eu estava conversando com uma pessoa com deficiência visual mesmo, muito mais segura do que eu, mas é saber onde você está e para onde vai. Ou seja, conhecer o espaço. Não adianta ter um piso tátil aqui se eu não sei o que tem à direita ou à esquerda. Eu vou virar mas e aí? O que eu tenho para esquerda? O que eu tenho para direita? Eu acho que ele ajuda, mas ele não é tudo. O tudo é você ter um bom senso de colocação espacial, para isso claro que tem que treinar.” MARIO
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“Isso é dar acesso a elementos que são importantes na existência das pessoas, que é sentir o clima das coisas do mundo, sentir os afetos que os ambientes possuem. Um passeio numa floresta, um passeio num parque. A pessoa cega não tem a possibilidade de contato autônomo, de contato direto com es-sas informações externas.” PAULO
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e estudando a questão da mobilidade de pessoas cegas, idealizei alguns elementos que deveriam ser implementados na cidade como uma forma de facilitar a orientação espacial e a mobilidade dessas. Mesmo as pessoas que gostam e utilizam o piso podotátil de maneira eficiente e segura, concordam que mesmo que não haja implementação das placas direcionais e de alerta, uma pavimentação plana, bem assentada e com diferentes texturas pode ser tão eficiente quanto o podotátil para o deslocamento. Essa elucidação é muito relevante, já que as grandes avenidas com piso de acessibilidade, como a Avenida Paulista e Avenida Faria Lima, são exceções em São Paulo. Apesar de que o deslocamento sobre a cidade é um direito de todos os cidadãos, é muito comum ouvir que os elementos de acessibilidade encarecem os projetos, sendo que a simples da implementação de pavimentos com texturas diferentes invalida esse argumento. É muito comum encontrar calçadas com tratamentos estéticos, com aplicação de pisos de cores diferentes, porém com texturas iguais. Isso acontece com o mosaico português, que é amplamente utilizado nas calçadas do centro de São Paulo (e que também foi colocado na praça do 5º pavimento do Instituto Moreira Sales) com as cores branco e preto, mas que tem exatamente a mesma consistência tátil. A obrigatoriedade, prevista em norma, da implementação de uma textura guia continuada, ao menos em ruas com alta e moderada circulação de pedestres nas calçadas, como a Alameda Santos ou a Avenida Rebouças, seria uma medida importante para incentivar que as pessoas cegas tomem conhecimento gradativamente de mais ruas da cidade de forma autônoma. Apesar da complexidade legislativa em alterar grandes metragens de calçadas, existem outros elementos que são pontuais e que, diante do tamanho de São Paulo, deveriam estar instalados pelo menos nas áreas centrais. Me chamou muito a atenção como no Instituto de Cegos Padre Chico o chafariz, que fica localizado no centro do pátio, é uma referência essencial para os estudantes dali. Essa fonte é um marco sonoro que organiza a orientação e auxilia no deslocamento, a tarefa de montar fazer uma planta mental da escola a partir dela é muito mais simples.
Em intercâmbio aos Estados Unidos, todas as cidades que tive a oportunidade de conhecer possuíam sinais de pedestre com dispositivo sonoro para auxiliar pessoas cegas na travessia de ruas. Mesmo Savannah, na Georgia, uma pequena cidade de 150 mil na qual morei por 10 meses, todos os semáforos possuíam um alerta que dizia “wait!”, quando fechado, e “go!”, quando aberto, palavras sempre intercaladas pelo nome da rua a ser atravessada. Apesar das cidades americanas muitas vezes serem mais monótonas e pobres para a experiência dos pedestres, o que resulta em calçadas longas e desertas, existe o entendimento de que a referência sonora para a pessoa cega é um elemento básico para todas as esquinas, tanto quanto o próprio sinal luminoso. A instalação de referenciais sonoros nas esquinas da Avenida Paulista é uma medida simples e urgente para incentivar que pessoas cegas caminhem por ali. A Paulista é uma avenida com mais de dois quilômetros de comprimento, com muitas travessas e quatro estações de metrô da Linha Verde. Apesar de grandes falhas anteriormente citadas, possui piso podotátil em quase toda extensão de suas calçadas, de modo que talvez seja a maior referência de acessibilidade na cidade. Assim, considero o lugar ideal para implementação desse tipo de dispositivo, que estimularia o acesso de pessoas cegas a participar das infinitas atividades culturais e artísticas que ali ocorrem tradicional e frequentemente. Cada vez que tive a oportunidade de atravessar com Mario ou com Paulo alguma rua da Avenida Paulista, eles suscitaram a dúvida de qual era aquele cruzamento. Nessas ocasiões, a presença de um guia-vidente facilitou para sanar as dúvidas, mas devido à semelhança entre as esquinas dessa grande avenida, o mesmo não aconteceria se eles estivessem caminhando sozinho. A sinalização em braile é um outro instrumento que, mais do que transmitir informações úteis para a orientação de pessoas com deficiência visual, produzem grande contentamento quando localizadas. Notei que a presença de braile nos corrimãos dos locais que visitei com Mario e com Paulo tiveram o mesmo efeito que um aperto de mão para eles, como se aquele espa-
“O pessoal é legal, mas falta mais gente porque acontece de esperar muito às vezes.” [sobre os funcionários do metrô de São Paulo] MARIO
“Muito legal a descrição que você está me fazendo porque provoca sentimentos que eu não costumo ter, pois dificilmente existe um passeio com audiodescrição sobre arquitetura. Até uma ideia: criar um passeio turístico em São Paulo com áudiodescrição e de repente tatear alguns elementos.” PAULO
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“Os interiores dos ambientes têm todo um detalhamento de questões estéticas, de decoração, de planejamento arquitetônico que é bastante pensado no aspecto visual e até esse aspecto visual fica sem vias, sem estratégias de comunicação para o público com deficiência visual. Ali no passeio que a gente fez, a gente teve chance, quer dizer, eu tive a chance de tatear coisas que tinham uma significação tátil, porque às vezes uma parede pode ser simplesmente pintada em tons diferentes e a textura não tem nenhuma diferença de um ponto para o outro, o que exigiria realmente uma descrição das coisas para que tenha algum significado. Mas ali no nosso passeio tinha bastante diferença de textura, de chão, de pedras, madeira com furos, inclinações de paredes. Tudo isso era compreensível de forma tátil, era possível conhecer diretamente ali vários aspectos.” PAULO
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ço estivesse dizendo “olá, você é bem vindo aqui!”. Infelizmente, essa não foi uma situação muito recorrente. Procurei com Mario se haviam placas com gravação em braile nos corrimãos da estação Consolação, mas não encontramos. Como o metrô é o meio de transporte público no qual as pessoas cegas sentem-se mais confortáveis e, portanto, é o mais utilizado por elas, ter marcações nessa linguagem nos corrimãos de cada saída, indicando em qual saída a pessoa se encontra, potencializaria muito a sensação de pertencimento àquele espaço e facilitaria muito o deslocamento independente. Na primeira reunião individual que tive com Paulo, em sua casa, ele me revelou um antigo projeto de desenvolver maquetes táteis para o desenvolvimento cognitivo de pessoas cegas, principalmente para crianças. Além da representação volumétrica de edifícios, que seria o primeiro passo do projeto, Paulo pretende criar outros elementos que seriam utilizados para disciplinas da Educação Básica, por exemplo miniaturas táteis de animais, de relevo e de árvores. Por ser membro da ONG Ritmos do Coração, Paulo está tentando reiniciar esse projeto como uma iniciativa dessa instituição social e me convidou para colaborar com a ideia. Ele me revelou ter percebido que a falta de estímulos cognitivos durante o aprendizado de crianças cegas gera um grande desinteresse na aquisição de conhecimento espacial. Paulo e eu chegamos à conclusão de que “poderia estar em norma a necessidade de ter uma maquete tátil, dependendo do tipo do edifício”. Uma das grandes dificuldades das pessoas com deficiência visual é o entendimento do “todo” quando a coisa percebida possui dimensões que não cabem nas mãos. Pessoas que não enxergam têm a necessidade em utilizar os sentidos “de aproximação”, de acordo com a terminologia utilizada por Pallasmaa, o que as obriga a ter contato parcial com os elementos de grande porte, para então formar uma composição mental do todo daquela coisa. O problema é que muitas coisas não são tateáveis, como por exemplo um animal selvagem ou o MASP. Para entender a composição do “todo” de um edifício, por exemplo, a melhor estratégia é o alinhamento da vivência do espaço com a utilização de um modelo em escala, que tenha dimen-
sões que caibam dentro do limite de envergadura de uma pessoa e o acompanhamento de uma descrição do lugar. Se Daniel e Mario têm dificuldade de associação perceptiva a partir de descrições verbais, as maquetes táteis são unanimidades. Seria muito enriquecedor se os espaços icônicos de São Paulo possuíssem mapas e maquetes táteis, isso estimularia a capacidade de orientação e mobilidade das pessoas cegas e ampliaria a ressonância do corpo com o ambiente ao propor o entendimento da escala dos lugares. O vão livre do MASP deveria abrigar uma maquete de seu edifício, assim como o Parque Ibirapuera e outros parques e centros culturais.
“A questão de ter uma boa orientação espacial passa pela educação que ela teve de criança até a fase adulta, dos estímulos – por ela ser bem conduzida e estimulada. E depois, na fase adulta, passa pela vontade dela em querer treinar. Por exemplo, por que eu levei quase dois anos para completar o curso de mobilidade? Por conta disso aí, das dificuldades de entender os caminhos que estavam sendo feitos, e ali sim também tinha uma coisa de memória, de tentar conseguir montar um mapa na cabeça e de fazer o movimento. Aí, também pela ansiedade. Aí ficaria um pouco grande a história, mas eu queria que você se ativesse a esse ponto. Se ela tem uma educação bem calcada, bem embasada no estímulo, vai ficar bem mais fácil depois, não que seja impossível senão eu não estaria aqui. Acho que eu sou um dos exemplos.” MARIO
Além de buscar elementos que dariam segurança e estimulariam que as pessoas cegas saíssem mais de casa, esse convívio realçou a minha percepção sobre a velocidade desmedida dos acontecimentos em São Paulo. Os relatos de Daniel, Mario e Paulo me fizeram entender que as pessoas que não enxergam com os olhos possuem um ritmo de contemplação do mundo mais cauteloso e arraigado. Nos primeiros encontros, em muitas oportunidades fui interrompido por um “olha, vamos tentar sentir isso” diante das ansiedades de minhas descrições dos espaços. Aos poucos consegui me adequar aos seus ritmos durante nossos passeios, caminhando e observando a paisagem com mais calma, buscando uma conexão direta entre corpo e coisa percebida. O raciocínio das velocidades descritas em “Cidade para Pessoas” por Gehl representa não somente a velocidade “adequada” para se observar os objetos arquitetônicos, mas também um ciclo no qual o comportamento humano faz parte. É notável a impaciência, as vezes em conflito com a tentativa de ser gentil, com a qual as pessoas cegas são interrogadas sobre a necessidade de ajuda, todos eles me relataram acontecimentos em que foram puxados por pessoas que “queriam ajudá-los”. Mais uma vez, as calçadas da Avenida Paulista são bons exemplos de como a velocidade com que os pedestres caminham também
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é um quadro indicador do estresse, da pressa e do raciocínio “time is money” predominante em nossa cidade. Paulo relatou que
“Já aconteceu comigo, pegarem meu braço e saírem puxando: ‘vamo, vamo, vamo!’”34
34. Fala de Paulo, em visita ao Instituto Moreira Salles em São Paulo, no dia 19/05/2018
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Algumas pessoas cegas possuem um desenvolvimento enorme de orientação e mobilidade e conseguem caminhar em ritmo acelerado, porém a maior parte caminha com mais cautela, com passos menores, até pelas más condições e grande números de obstáculos nas nossas calçadas. A visão permite uma leitura breve sobre os ambientes e funciona como alerta para problemas distantes e próximos, sua ausência acaba por diminuir esse ritmo como uma forma de prevenção. Então, como aconteceu com Paulo nessa situação, existem pessoas que se dispõem a guiá-los, mas ao mesmo tempo não alteram o ritmo de suas caminhadas. A bengala é um alerta para o próximo passo, mas para enquadrar e perceber o ambiente é necessário que esse compasso seja adequado. Cabe também à arquitetura pensar possibilidades de diminuir o ritmo de São Paulo e baixar a “velocidade de nossos espaços”. São Paulo é carente de locais de permanência e de contemplação, os espaços abertos geralmente são inaugurados já saturados, com mais pessoas do que comportam. Por isso, por menores que sejam, as iniciativas que propõem a criação de ambientes abertos, com mobiliários adequados e adaptáveis para vazios urbanos têm obtido sucesso e qualificado espaços residuais da cidade. Além da necessidade dos espaços de permanência, São Paulo é desprovido de passeios confortáveis, com pavimento adequado, elementos que sugerem um ritmo de passada e referências para serem contempladas são formas de convidar as pessoas para caminhar de uma forma contemplativa. Isso faz com que andar torne-se mais do que o cumprimento de um deslocamento terrestre, mas uma experiência sensorial rica.
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Considerações Finais
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Acredito que este ensaio propiciou para mim uma nova percepção sobre a Arquitetura em um momento extremamente relevante. Terminar uma graduação é um momento significativo na carreira de qualquer um e, devido a tamanha importância, autoquestionamentos e a busca para entender a sua função diante de uma sociedade tão complexa, são constantemente levantados. Assim, esta pesquisa me propiciou a ressignificação do entendimento do que é Arquitetura, dos objetivos a serem perseguidos e da atuação do arquiteto(a). Falar sobre percepção espacial é complexo, por ser um tema que possui infinitas variáveis de investigações sob a perspectiva de inúmeras disciplinas. A abordagem e a argumentação aqui elaboradas estão inscritas dentro dos limites que cabem a uma dissertação do fim de uma graduação em Arquitetura e Urbanismo, que tentou tocar de maneira legítima concepções não dominadas. Por isso, as vivências que tive a oportunidade de experimentar durante um ano e meio estiveram muito presentes mesmo quando explorei conceituações teóricas (o que é sugerido pela presença de citações de Daniel, Mario e Paulo em todo este caderno). Em outras palavras, a apuração prática e as leituras coabitaram – às vezes de maneira harmônica, às vezes de maneira contraditória – meu caderno de campo e as minhas ideias durante este trabalho. A partir disso e das críticas aqui abordadas, penso que um dos grandes valores deste texto é a comprovação de que, na carreira de arquitetura, pesquisa e projeto não devem ser dissociados. Ao longo de 10 meses tive a oportunidade de conviver com pessoas que abriram seus canais perceptivos para dialogar comigo sobre o espaço urbano. Se em um primeiro momento as conversas eram mais retraídas, com o passar do tempo construímos amizades, sentimos medo, deslumbramento, insegurança, paz, frustração, alegria... perceber a conexão de Daniel, Mario e Paulo com a paisagem (algo incomum em suas vidas) foi emocionante. Esses momentos propiciaram debates informais e profundos que deram a identidade para este trabalho.
Infelizmente, o prazo obriga o fechamento deste texto em uma circunstância em que o convívio configura as experiências mais instigantes. Em tempo, mais do que escrever sobre a conexão do corpo humano com a paisagem, este estudo suscitou algumas iniciativas práticas que pretendo levar adiante. Por exemplo, a colaboração com o projeto de maquetes táteis de Paulo, a participação em debates e elaboração de um mapa tátil do bairro onde fica o CADEVI, juntamente de Mario, e correr algumas provas de rua ao lado de Daniel. Como disse Eugenio Queiroga, em uma de nossas reuniões, o meu TFG “se encerra em um início”...
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