Cézanne Arte Moderna e Razão Sensível

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PEDRO ANDRADE MOTA CÉZANNE ARTE MODERNA E RAZÃO SENSÍVEL

A FENOMENOLOGIA DO PINTOR E O PINTOR DA FENOMENOLOGIA

2016

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«É preciso estudar a Antiguidade para ver a Natureza”, Denis Diderot. «Sim, quero saber. Saber para melhor sentir, sentir para melhor saber.”, Paul Cézanne. «No fundo, não penso em nada quando pinto. Vejo cores.”, Paul Cézanne. «o percepcionado, o concebido, o vivido”, Henri Lefebvre.

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EXÓRDIO Só é arte – em sentido estrito e nobre (distinguimola, não só das obras feitas com técnica grosseira por incompetência na expressão e na representação dos motivos, sejam figurativos ou abstractos, mas também do artesanato, da decoração, do entretenimento e da repetição de fórmulas estéticas, mesmo com pretensões sérias) – o que se inscreve em movimentos inovadores, formais ou informais, numa escola assumida expressamente ou de maneira individual, em movimentos tais que não são apenas criativos mas que visam representar esteticamente, mediante formas sensíveis, novas maneiras de pensar, de experimentar e de apreender globalmente o mundo ou algum dos seus aspectos e dimensões, com o homem incluído. A arte – no nosso conceito – deve interpelar os estereótipos e as expectativas da nossa percepção e conhecimento actuais. Deve elaborar esteticamente novas propostas e realizações relevantes para a compreensão da realidade, do mundo objectivo e da subjectividade, novas maneiras de a experimentar. Deve propor-se reinventar a unidade orgânica da forma e do conteúdo, das expressões estéticas e das ideias e questões com importância para a transformação do homem e das coisas que lhe importam. Deve criar uma unidade que seja original pela forma e pelas ideias, que, para esse fim, se têm de encontrar numa circunstância de motivação mútua. Tal – julgamos nós – é o papel da arte. É esta a medida de Paul Cézanne, artista.

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A ARTE MODERNA E RAZÃO SENSÍVEL O que Cézanne descobre na pintura é um problema, não uma verdade: como se forma a percepção da objectividade? O que nos deixa é um paradoxo: analisar a paisagem para recuar a uma visão imediata. São estas duas questões (sobre o percepcionar e sobre a “experiência primordial”), entre outras correlatas – a que subjazem os domínios da ética e da ontologia –, cuja complexidade e significação procuraremos iluminar nesta “obra em progresso”.1 Segundo Mário Dionísio, Cézanne é o primeiro a romper decisiva e efectivamente com a estrutura tradicional do “ver” no/através do quadro. Ao espaço abstracto, de princípios euclidianos, cúbico, isotrópico, perspectivado de um ponto geometricamente determinável, desabitado pelo homem, vem ele substituir a procura, sem teorias prévias, daquilo que acontece de facto no olhar humano imediato quando o olhar sincreticamente é cor, é densidade, peso, profundidade de objectos, variando em simultâneo com a percepção. Mas, para que seja humano, esse olhar é também um olhar doador e apreendedor de um sentido mais ou menos estável, formador de conhecimento. É, pois, um olhar que, como diria o fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty – admirador e comentador de Cézanne –, procura a permanência das coisas na estabilidade do mundo através da síntese perceptiva, isto é, da síntese do perfilar temporalizador do visível.

Enquanto “Work in Progress” (James Joyce), será para desenvolver e articular sem um termo previsível, pois, se o tempo humano tem um fim, o seu mundo é inesgotável. 1

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Fenomenologicamente, recuando a Edmund Husserl, mestre de Merleau-Ponty, podemos dizer que o sujeito se dá a si mesmo os próprios objectos através da intuição sensível onde se pré-manifesta o mundo, o qual, posto estar ali de imediato para o sujeito, que está de imediato no mundo, começa já com um sentido para ele. A constituição das coisas do mundo inicia-se com a percepção, esse intentar da consciência pela qual o que se dá de imediato, ou de imediato se começa a dar, com o sentido que tem para ela, é o próprio objecto por si visado. Os objectos não estão lá, numa realidade absoluta, indiferente ao sujeito, do mesmo modo que este não é uma substância autónoma, como um continente fechado e que repele o exterior da sua fronteira proteccionista, nem consiste numa função assimiladora, como uma teia. Pelo contrário, os objectos constituem-se numa experiência espontânea, através dos sentidos e das cinestesias, isto é, do movimento corporal sensível, que é o sujeito na sua carne viva, conferindo ao dado, numa postura natural reciprocamente determinada (essa incompletude do “ver” face ao “visível”), o sentido da coisalidade como um estilo ou um padrão objectivos específicos, sentido que é unidade que transcende as percepções parciais mas não sendo nada para além da sua unidade virtual. A percepção, segundo a filosofia original da Fenomenologia, é ver qualquer coisa na sua realidade mesma, não é um sinal, não é uma representação, o signo de um significado ou de um objecto, ou a conformação subjectiva, impressionista, de um enxame de sensações, pois estas já estão, assim que se manifestam no sujeito, carregadas de sentido ou de valor. A percepção visa o mundo com o sentido perceptivo da sua transcendência, com a sua objectividade essencial e necessária. A percepção é a visão da coisa mesma, com o seu sentido e o seu valor, na

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sua presença mesma directa e real. Na percepção, que apreende o objecto nesse quiasma da experiência sensível, em unidade com a inteligência, que ajuíza fundada naquela, o conhecimento conhece qualquer coisa, tal como essa coisa é. Mas a realidade mesma da coisa não é, como fizemos notar, independente da intencionalidade do sujeito. Sendo ela o objecto intencional da consciência, também não consiste, todavia, numa representação, no conteúdo imponderável da sua esfera interior, mas é a própria coisa em si. À semelhança da de Husserl, da qual provém, a filosofia de Merleau-Ponty é partidária de um intuicionismo perceptivo. Cézanne será, por sua vez, segundo este último autor, a expressão artística de tal filosofia. O olhar de Cézanne não é uma visão plástica original que se elabora a partir de uma nova técnica de apreender bidimensionalmente o espaço motivada por uma procura de clareza, como no caso da compensação das distâncias por sobreposição e certa ortogonalidade dos planos na arte oriental, ou pelo interesse ocidental em geometrizar e uniformizar metodicamente a perspectiva subjectiva da distância. O olhar de Cézanne – considerará Merleau-Ponty – não é uma prospectiva científica ou tecnológica nem a aplicação acrítica de uma visão moldada por um estilo de vida que a encara, seja por uma norma justificada, seja pela natureza da própria percepção. O olhar de Cézanne é um trabalho de desconstrução em vista da forma originária e basilar da relação perceptiva entre homem e mundo, quando o homem vai ao encontro do mundo e na medida em que este, já provido do sentido que o sujeito lhe encontra, isto é, lhe atribui, solicita-o a percepcioná-lo pelo facto da sua presença. Portanto, o sujeito faz-se motivar pelo objecto de acordo com o facto do próprio sujeito

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existir na situação em que se encontra com ele, quando o sensível anuncia ao sujeito o que este lhe estabelece como sentido. Sujeito e objecto são apenas momentos de uma unidade indissolúvel efectuada na percepção, correlativa e co-presente, na medida em que constituem a unidade da intenção e do intentado, da visão e do visado, da doação de sentido e do sentido objectivo correspondente que a apela a manifestar-se neste. O sujeito vive, globalmente falando, nessas objectivações determinadas por ele, na apreensão perceptiva dos objectos, no valor que têm para si enquanto sujeito que estabelece relações determinadas com estes, sendo correlativamente determinado pelas intuições perceptivas e pelos motivos naturais, axiológicos e práticos, com os quais, pelo facto de os sentidos e as sensações correlativas possuírem originalmente sentido, faz originalmente corpo, intuições e motivos que o ligam intencionalmente aos objectos, intuições intencionais que o fazem nascer no mundo. Só há intuição se há intuído. O sujeito apenas pode percepcionar se houver um percepcionado, só pode desejar se houver um desejado, só pode agir se houver um agido. O sujeito só pode ser se houver nesse seu ser, como momento desse seu ser, o outro de si. Um objecto – dirá o autor de O Olho e o Espírito, no seguimento de Edmund Husserl – não existe sem um sujeito que, activa, intencionalmente, o percepcione e que lhe atribua o valor de um objecto, e um sujeito da percepção não existe sem um objecto que a percepção apreende, pois não há percepção sem percepcionar nem visar um objecto sem objecto visado. Visar é visar qualquer coisa que o motiva, como o preencher de uma antecipação de sentido perceptivo ou de um bem que a liga por tal valor ao sujeito.

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Não há – repetimos – nada para um sujeito que não exista por intermédio dele e não há sujeito que não seja a consciência ou a intuição de um conteúdo que objectiva. O objecto não pode ser concebido sem a actividade perceptiva e cognitiva do sujeito, não havendo maneira de se pensar um objecto sem o sujeito que o concebe, e o sujeito, na sua intencionalidade, não é sujeito sem os objectos visados, que todavia se constituem nessa actividade, ao mesmo tempo que a transcendem, enquanto objectos. O mundo só existe para o sujeito na medida em que, simultaneamente, este faz, por um lado, existir as coisas para si e as coisas, por seu lado, enquanto postas por essa mesma actividade objectivadora, se fazem existir para ele, portanto na medida em que o acto de percepção é doador do próprio objecto nas suas determinações e na sua objectividade. São duas faces da mesma moeda, que se constituem na simultaneidade, porém talvez não bidireccional e simétrica por inteiro, de dois sentidos opostos. O objecto, com as suas determinações, só é tal na medida em que o sujeito o apreende com essas determinações gerais e particulares. Correlativamente, só há sujeito na medida em que visa um objecto e as suas determinações. O sujeito vive, globalmente falando, nessas objectivações determinadas por ele, na apreensão perceptiva dos objectos, no valor que têm para si enquanto sujeito que estabelece relações determinadas com estes, sendo correlativamente determinado pelas intuições perceptivas e pelos motivos naturais, axiológicos e práticos, com os quais, pelo facto de os sentidos e as sensações correlativas possuírem originalmente sentido, faz originalmente corpo. São intuições e motivos que o ligam intencionalmente aos objectos, intuições intencionais que o fazem nascer no mundo. Só há intuição se há intuído. O sujeito apenas pode percepcionar se houver um percepcionado, só pode

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desejar se houver um desejado, só pode agir se houver um agido. O sujeito, um tanto à maneira de Fichte, só pode ser se houver nesse seu ser, como momento desse seu ser, o outro de si. O sujeito é, por isso, indissociável do seu mundo objectivo. Não é um seu reflexo, nem uma função operativa reflexiva nem uma entidade autónoma. O sujeito é sujeito com o seu próprio mundo. É, na sua unidade intencional, como unidade de noese e de noema, de intenção e de conteúdo objectivo, indiscernível, enquanto é essa unidade intencional, da sua relação com o mundo. O sujeito é relação com o real exterior, não uma relação de contacto sensorial ou de assimilação de um conteúdo estranho na forma de representações, ou seja, de imagens e abstracções conceptuais, portanto heterogéneas, dissemelhantes, pela sua essência diáfana e abstracta, inconcreta ou geral, dos objectos representados. Maurice Merleau-Ponty prolonga esta intuição básica, esta raiz distintiva da tradição idealista, onde ele vê também a arte de Cézanne, de antepor a consciência ao seu objecto, mesmo que agora se apresente como correlação, como uma existência que é no mundo, embora fazendo depender o objecto de um relacionamento com a consciência e esta da possibilidade de visar esse seu objecto. As ciências físicas laboram, pois, no erro de julgarem estudar uma coisa em si mesma, que nada deve ao sujeito. Há, mesmo assim quem conclua dentro da ciência, como Heisenberg e a interpretação pela Escola de Copenhaga da mecânica quântica, à semelhança da teoria psicogenética do antigo Protágoras, que as teorias são indissociavelmente subjectivas na sua interpretação do mundo experimentado por cada um, na medida em que este só pode ser visto por meio de uma experiência. Cer-

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tas filosofias e psicologias caem nesse mesmo erro oposto ao realismo tradicional, o das crenças de que há uma vida interior e de que a percepção é uma função psíquica puramente subjectiva, distinta da realidade dos objectos, de que apenas recebe estímulos, os quais elabora à sua maneira nas sua faculdade íntima. Sem oferecer uma explicação final, porque não se trata de explicar, que inevitavelmente procura causas, neste caso da percepção e do conhecimento em geral, mas de descrever como este ocorre no processo, nos momentos e essências ou aspectos necessários do seu próprio acto, sem ir a antecedentes naturais que o produzem predeterminando-o, preconcebendo-o numa doutrina (de inspiração funcional, mecânica, biofísica, bioquímica ou apenas espiritual, fantasmática, seja de orientação mística, quer dizer, transcendente, seja subjectiva) que antecipa a sua compreensão ou o seu acompanhamento, Merleau-Ponty instala-se nesta ambiguidade, nesse quiasma irresolúvel e escreve no seu livro Fenomenologia da Percepção: «A coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efectivamente em si, porque as suas articulações são as mesmas da nossa existência, e porque ela se põe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigação sensorial que a investe de humanidade. Nessa medida, toda a percepção é […] a realização, no exterior, das nossas potências perceptivas e como um acasalamento do nosso corpo com as coisas.»1 Se ocorre o misticismo do sentido de objecto na percepção, é um fenómeno que se dá no interior da correlação fenomenológica sujeito-objecto. No conhecimento

MERLEAU-PONTY, Maurice, Phénoménologie de la Perception (1945), Gallimard, Paris, 2008, p. 376. 1

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das coisas, o sujeito supõe o objecto e o objecto o sujeito – nada de mais fundamental se pode dizer. Apesar, e em razão, desta ambiguidade radical, irresolúvel, da fenomenologia de Merleau-Ponty, devemos sublinhar que, segundo ele, o mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser, do ser fenomenológico, que é o único do qual me é dado ter noção alguma, que «O mundo fenomenológico é, não o ser puro mas o sentido que transparece na intersecção das minhas experiências e na intersecção das minhas experiências com as das dos outros, pela engrenagem de umas nas outras, é portanto inseparável da subjectividade e da intersubjectividade que fazem a sua unidade pela retomada das minhas experiências passadas nas minhas experiências presentes, das experiências alheias na minha.»1 Merleau-Ponty é, de resto, no mesmo Prefácio, citando Husserl, bem claro no fundamento subjectivo em última instância da realidade, apesar de recusar também uma razão prévia a determinar um ser pré-existente, pois, em vez de serem indiferentes na sua origem, são correlativos na sua génese: «Mas o ego meditador, ‘o espectador imparcial’ [uninteressierter Zuschauer] não se une a uma racionalidade já dada, “estabelecem-se” por uma iniciativa que não tem garantia no ser e cujo direito repousa inteiramente sobre o poder efectivo que ela nos dá de assumir a nossa história. O mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio mas a fundação do ser […] A racionalidade não é um problema, não há por detrás dela um desconhecido que temos que determinar dedutivamente ou que provar indutivamente a partir dele: nós assistimos a cada instante a esse prodígio da conexão das 1

Ibidem, p. 20.

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experiências e ninguém sabe melhor do que nós como ele se faz porque somos nós esse nó de relações.»1 Será útil também citar José Barata-Moura no seu livro Da Representação à Práxis quando comenta essa frase: «Tudo se passa como se para Merleau-Ponty o facto de haver mundo fosse correlato de uma determinada intenção subjectiva originária e originadora. A objectividade, a materialidade, não são, a bem dizer, para ele, categorias ontológicas primeiras; são sempre já fruto de uma estrutura possibilitadora geral onde a subjectividade – uma subjectividade especial, mais radical do que a reflexão analítica ou uma operação particular – desde sempre está já suposta. É essa a função do comportamento, do corpo, da ‘carne’, do entrelaçamento quiasmático, etc.»2 Contudo, dando de barato esta base metafísica subjectivista e passando adiante, Merleau-Ponty esboça uma teoria da percepção que labora com um plano esquecido da mesma e que Cézanne, o qual possuía também algo de semelhante aos propósitos metafísicos do fenomenólogo, já havia procurado transpor para a tela. É o plano da subjectividade autêntica, imediata, vivida, não explicada – que Merleau-Ponty confunde com a possibilidade do conhecimento e, metafisicamente, com os limites do ser pensável e, por conseguinte, o único existenciável para nós. Esse plano da subjectividade, que nada contém de reflexão teórica, de inspecção científica, de reconstrução causal, mas apenas de descrição e de compreensão, mostra-nos um mundo correlativo, subjectivamente existente, que nos damos a nós próprios – no

Ibidem, p. 21. BARATA-MOURA, José, Da Representação à Práxis, Caminho, Lisboa, 1986, p. 142. 1

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contacto indissociável com ele, cuja objectividade e determinações se constituem através de nós. E Merleau-Ponty quer que Cézanne seja o artista que lhe dá visibilidade, que nos mostra a maneira como, aquém dos preconceitos científicos, efectivamente vemos e, portanto, o que vemos na percepção anterior a qualquer juízo explicativo. Tal mundo assim percebido é o que define a própria percepção, é o que lhe dá um conteúdo e, por aí, a possibilidade de o nosso corpo se organizar – na medida em que o corpo é uma síntese perceptiva, isto é, uma percepção integrada dirigida intencionalmente para o seu objecto correlativo – ao doar de maneira intuitiva, ao perceber a unidade da coisa percepcionada. Merleau-Ponty, apesar de tudo, almeja permanecer na ambiguidade do cruzamento do sujeito e do objecto, e escreve na Fenomenologia da Percepção: «Afinal, só apreendemos a unidade do nosso corpo na unidade da coisa, e é a partir das coisas que as nossas mãos, os nossos olhos, todos os nossos órgãos dos sentidos nos aparecem como tantos instrumentos substituíveis. O corpo por ele mesmo, o corpo em repouso, é apenas uma massa obscura, nós percebemo-lo como um ser preciso e identificável quando ele se move em direcção a uma coisa, enquanto ele se projecta intencionalmente para o exterior […] Não se pode, dizíamos, conceber coisa percebida sem alguém que a perceba. Mas, além disso, a coisa apresenta-se àquele mesmo que a percebe como sendo coisa em si, e ela põe o problema de um verdadeiro em-si-paranós.»1 É este problema que Merleau-Ponty afirma que Cézanne, com os seus meios de pintor, procura resolver.

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MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., p. 378.

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De acordo com Merleau-Ponty, a relação perceptiva não é originária, basilarmente, teórica nem simbólica, não é por força, ou de maneira necessária, uma função cultural. Há nela uma génese pré-simbólica e préjudicativa, mas já dotada de sentido, que urge destapar. Ela tem uma consistência, uma base firme, seja ontológica ou natural – resta saber –, subjacente às esquematizações culturais, teóricas, técnicas e simbólicas que a assimila e a condiciona. É que também não se trata de um retorno à ingenuidade, à cultura irreflectida das representações primitivas, porque estas são igualmente representações simbólicas. Trata-se, antes, de um retorno à essência originária do ver. Observaremos que o que Cézanne procura é também o equilíbrio perceptivo entre o homem e o mundo, essa relação supra-historicamente originária na qual nem um nem o outro disputam a primazia. Eles nascem simultaneamente um do outro. E, cremos nós, de maneira ainda mais ambígua ou quiasmática do que em MerleauPonty. Quanto a isto, em termos mais próximos de Cézanne do que, em última análise, de si mesmo – o que, aliás, é frequente –, Merleau-Ponty escreve: «Mais geralmente, existe uma lógica do mundo que o meu corpo inteiro esposa e pela qual coisas inter-sensoriais se tornam possíveis para nós. O meu corpo, na medida em que é capaz de sinergia, sabe o que significa para o conjunto da minha experiência tal cor a mais ou a menos, de um só golpe ele apreende a sua incidência na apresentação e o sentido do objecto.»1 Em apreço a este contacto imediato e antepredicativo do sujeito com o mundo, Cézanne, diz Merleau-Ponty, 1

MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., p. 383.

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«aprendeu pouco a pouco que a expressão é a linguagem da coisa mesma e nasce da sua configuração. A sua pintura é uma tentativa de encontrar a fisionomia das coisas e dos rostos pela restituição integral da sua configuração sensível. É isso que a cada momento a Natureza faz sem esforço. E é por isso que as paisagens de Cézanne são “aquelas de um pré-mundo onde ainda não havia homens”.1»2 Escreve Mário Dionísio que «A novidade de Cézanne consistirá em que uma paisagem sua, por exemplo, começa sem qualquer preconceito.»3 Para este estudioso, o Impressionismo, em cujas primeiras exposições Cézanne participou e do qual recebeu alguns ensinamentos, em particular a substituição do tema, caro ao seu romantismo inicial, pelo estudo do ver e do pintar e pela descoberta, depois relativizada, de que até a sombra tem cor, «nada alterou quanto à transcrição do espaço e a composição continua a obedecer ao esquema renascentista.»4 Devemos principiar este estudo por lembrar o significativo facto histórico de que o Renascimento desenvolveu uma concepção do espaço, solidária duma ideia de composição, que teria resistido até aos primeiros ataques à atitude coisista, figurativa e alegórica da pintura tradicional. Essa investida inicial deu pelo nome de Impressionismo, e, pelo que diz Erwin Panofsky, contrariamente ao da Antiguidade, «o movimento moderno [...] pressuNOVOTNY, F., Das Problem des Menschen Cézanne im Verhaltnis zu seiner Kunst, in Zeitschrift für Aesthetik und allgemeine Kunstwissenschaft, nº 26, 1932, p. 275. 2 MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., pp. 378, 379. 3 DIONÍSIO, Mário, A Paleta e o Mundo, 3, Europa-América, Lisboa, 2ª ed., 1974, p. 122. 4 Idem, Op. Cit., 3, p. 122. 1

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põe sempre a existência de uma unidade superior, que está para além, que ultrapassa o espaço e os corpos vazios. Daí que as suas observações se revistam, automaticamente, de direcção e de unidade. O Impressionismo logra, assim, desvalorizar e dissolver as formas sólidas sem, no entanto, pôr em perigo, uma vez que seja, o equilíbrio do espaço e a solidez dos objectos isolados.»,1 opinião que parece ser uma contradição em termos, embora aponte o sentido da dissidência de Cézanne: a redução por esse movimento da realidade sensível à impressão sensível subjectiva dessa mesma realidade. Panofsky chama, no entanto, por caminhos ínvios, a atenção para uma espécie de retorno do moderno à arte da Antiguidade Clássica que, segundo ele, «reconhecia apenas o tangível e o visível», embora se possa reconhecer nela, assim como na arte medieval, pelo menos uma noção espontânea, não geometrizada, da perspectiva. Mas não se pode atribuir a Cézanne, como já dissemos, um simples retorno a tal visão ingénua dos primitivos. O que se verifica nele é o desaparecimento da noção do espaço puro abstracto em favor de uma modelagem do espaço pela interacção dos objectos, prenunciando a revolução que a própria ciência da Física iria promover contra o espaço absoluto de Newton. A perspectiva renascentista ignora aquilo que a ocupa. De acordo com o mesmo autor, que não deixa de aproveitar este pretexto para exemplificar a sua tese do carácter simbólico da perspectiva, desde o fim da Idade Média, pois, com o surgimento do espaço absoluto, e não

PANOFSKY, Erwin, A Perspectiva como Forma Simbólica, trad. de Die Perspektive als “symbolische Form”, in Vortrage der Bibliothek Warburg, Warburg Institute, Warburg, por Elisabete Nunes e revisão de Carlos Morujão, Ed. 70, Lisboa, 1999, p. 43. 1

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moldado por uma noção empírica, intuitiva e ética e teologicamente hierárquica dos objectos, aparece a relatividade do ponto-de-vista, antecipando-se com isso à criação da física moderna. Assim, «o espaço conhecido foi sendo, pouco a pouco, substituído pela perspectiva central, com o seu espaço que se prolongava ao infinito e se centrava num ponto de fuga de existência arbitrária. Consumava-se, então, a ruptura definitiva e óbvia [...] com a visão aristotélica do mundo. [...] Nasceu assim o conceito de infinito, um infinito não só prefigurado em Deus, mas corporizado na realidade empírica (em certo sentido, o conceito de um energeiai apeiron [energia indefinida] na Natureza).»1 Quer dizer, «O infinito real, totalmente inconcebível da parte de Aristóteles, só entendido pela Escolástica sob a forma de omnipotência divina [...] tornou-se a natura naturata. A visão do Universo está, por assim dizer, esvaziada de Teologia.»2 A perspectiva renascentista idealizou um espaço de ponto de fuga, como o nome indica, projectado no infinito, assim com as linhas que recuam para aquém do plano visual, primeiro cúbico e depois piramidal, estendendo-se sem limite. Bruneleschi e Alberti foram os italianos teóricos desta geometrização pura. Ora, escreve Rudolf Arnheim que «A geometria ensina-nos que as três dimensões bastam para descrever a configuração de qualquer sólido e as localizações dos objectos relativamente aos outros em qualquer momento.»3

Idem, Op. Cit., pp. 60-61. Idem, Op. Cit., p. 61. 3 ARNHEIM, Rudolf, Art and Visual Perception, The New Version, University of California Press, Berkeley, 1974, p. 218. 1

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No entanto, o mesmo autor avisa-nos de que a geometrização do espaço não é uma intelectualização da percepção imediata nem a pura estrutura analítica da faculdade intuitiva do espírito. Muito menos é adquirido que não passe de um artifício inconsciente que simplifica para distâncias relativamente curtas a ordem e as medidas a que se sujeitam os seus conteúdos. Arnheim alvitra que o desenvolvimento da criação artística (da infância aos adultos mais dotados) constitui um signo da actividade genética subjectiva construtiva do espaço: «Psicologicamente, podemos dizer que embora nos movamos livremente no espaço e no tempo desde o início da consciência, a compreensão activa destas dimensões pelo artista desenvolve-se passo a passo, de acordo com a lei da diferenciação»1, ou seja, do círculo e da linha originárias para as relações de inclusão, de desvio de direcção e de divisão, indicando um enriquecimento progressivo e por saltos da percepção consciente das configurações “objectivas”.2 É normal replicar-se que o problema com que se depara um artista não é o de percepcionar conscientemente a tridimensionalidade do meio envolvente mas o de transpô-la para uma superfície na qual o efeito de profundidade deve resultar de artifícios próprios das dificuldades de criar uma ilusão de realidade, os quais precisam de ser aprendidos independentemente do conhecimento que se tenha das relações espaciais e dos seus objectos.

ARNHEIM, Rudolf, Art and Visual Perception, The New Version, University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 2004, p. 218. 2 O autor considera que estas suas ideias derivam do seu estudo da teoria da Gestalt. 1

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Todavia, Arnheim, como mostrámos, contrapõe que esse mesmo conhecimento está longe de consistir numa mera associação de estímulos ou, em alternativa, num quadro intuitivo a priori a partir do qual seria possível esquematizar e conceituar o espaço em termos geométricos e matemáticos. Na pergunta que Arnheim coloca - «Por que vemos a profundidade?»1 - apresentam-se respostas divergentes possíveis. Para este teórico, a origem do problema e a sua solução deve ser buscada primeiramente na fisiologia e no mundo físico. A fisiologia ensina-nos que os estímulos provenientes do meio se projectam na retina, cuja forma é a de uma superfície côncava constituída por três tipos de receptores sinápticos. Os sinais que aí chegam estão, pois, distribuídos numa curvatura bidimensional. É neste momento que se começa a constituir a imagem que temos diante de nós. A questão que se põe ao corpo humano, como unidade anatómico-fisiológica, é o mesmo, formalmente, que verificámos ocorrer no caso do artista. Deveríamos ver a “realidade” em duas dimensões, até porque a visão binocular não gera sempre a estereoscopia; sendo talvez condição necessária, não é suficiente: acontece, por força de certas ilusões ópticas “naturais”, parecer-nos dois objectos encontrarem-se à mesma distância, quando estão bem longe um do outro. «O mais efectivo desses indicadores de determinação em profundidade é a visão binocular, a qual produz estereoscopia. Mas, tal como Wittgenstein indicou [numa das suas incursões pela psicologia], é tudo menos autoevidente que a cooperação entre os dois olhos conduza à

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Idem, Op. Cit., p. 247.

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percepção de profundidade; pode até produzir uma imagem desfocada.»1 A questão, aliás, é difícil de resolver. A origem do problema está contido no problema da sua origem. Todavia, Arnheim opta por uma hipótese: considera a profundidade gerada pela resolução perceptiva de um conflito geométrico denominado paralaxe espacial. Na figura 200 da página 270 da obra citada o autor representa um dilema visual que mostra como o sujeito constrói activamente o seu espaço numa relação com o objecto estimulador. Remetendo para o livro, faremos aqui apenas uma espécie de legendagem da figura apresentada: face a duas manchas a distâncias e ângulos diferentes dos olhos, cada um destes recebe uma imagem distinta (um dos olhos vê as manchas mais afastadas que o seu par), que a percepção “funde” com a outra através da única maneira que lhe é possível: a tridimensionalização pelo princípio da simplicidade, o fundamento gestáltico (tese de Arnheim) da organização perceptiva segundo o qual os dados são estruturados por modo a diminuírem as tensões, as contradições entre eles quando estes aparecem como dilemáticos para o sistema perceptivo. A visão inteligente combina as duas imagens planas das retinas: resulta, com efeito, em paralaxe espacial: os objectos do olho esquerdo são percepcionados com uma abertura ou convergência angular maior que os mesmos percepcionados pelo olho direito devido à diferente distância relativa entre os estímulos recebidos pelas duas retinas, que assim parecem ter para uma e outra dimensões relativas diferentes. Com isso, possuem uma disparidade, uma paralaxe temporal, isto é, têm um movimen1

Idem, Op. Cit., p. 269.

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to de translação e rotação na percepção inversamente proporcional à distância às retinas. Produz-se além disso uma diferença de tamanho dos mesmos objectos maior para o olho direito que para o esquerdo. A estereoscopia é o produto deste processo complexo: a combinação nas áreas de projecção e de associação cortical, que envolve as células binoculares do córtex visual, das diferenças de percepção de cada retina. «Confrontado por duas imagens diferentes, o sentido do olhar enfrenta um dilema. O padrão dos estímulos gravado pelas retinas permanece invariável, mas ainda aqui, tal como nos casos da figura e fundo e da sobreposição, a terceira dimensão oferece uma avenida de liberdade, a qual permite a fusão de duas imagens planas numa imagem tridimensional. Mais uma vez, a tridimensionalidade é provocada pela tendência para a simplificação e redução das tensões».1 Na sequência do texto citado, Arnheim, procura definir a emergência da profundidade para o conhecimento humano: «Na estereoscopia o conflito entre imagens deriva da paralaxe espacial, isto é, da diferença entre imagens devida à distintas localizações entre os dois olhos.»2 Esta tese não tem o ar de ser apoiada por Charles Osgood, segundo a qual a binocularidade nem sequer é uma condição necessária da visão estereoscópica (dos corpos sólidos), se bem que dir-se-ia ser suficiente: é um caso de estereoscopia mas não uma sua necessidade. Quem tapar um dos olhos, continua a ver em profundidade e até com os limites mais nítidos. Osgood considera verificada a contraprova da necessidade da correlação da disparidade retinia com a da espacial, começando por 1 2

Idem, Op. Cit., p. 270. Idem, Op. Cit., p. 270.

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perguntar: «A sensação de ausência de profundidade resultará necessariamente quando se estimulam os pontos correspondentes?»,1 ou seja, quando os pontos estimulantes estão à mesma distância e ângulo dos dois olhos e, portanto, creio, afectam os mesmos (correspondentes) lugares retinais (equidistantes das duas fóveas 2 e na mesma direcção). «A viva discussão de Koffka (1930, pp. 163-67) [continua Osgood] acerca do cubo de Necker [transparente e visto duma perspectiva oblíqua] e das figuras planas relacionadas constitui uma hábil negação desta posição.»3 O cubo de Necker é visto sempre como tridimensional, apesar de ser “objectivamente” bidimensional. É um facto que aponta para a ideia de que, uma vez que essa figura é visada por ambos os olhos segundo o mesmo ângulo e igual distância, «as sensações de profundidade podem ocorrer sem a disparidade retiniana»,4 e de que, portanto, podemos também perceber monocularmente certa profundidade nos objectos. Não sendo possível evitar de todo o uso dos termos técnicos de campos demasiado especializados, a tese neurofisiologista, que deveria vir em auxílio da tese da origem da profundidade por fusão da diplopia, fazendo entrar a ideia do quiasma óptico, e do paralelismo psicofísico, segundo o qual «os fenómenos espaciais no campo subjectivo devem estar em paralelismo [simétrico] com OSGOOD, Charles, Método e Teoria na Psicologia Experimental, trad. Énio Ramalho, FCG, Lisboa, 1982, p. 300. 2 Lugar da córnea em que há mais densidade de foto receptores e na qual a imagem é focada. Cf. SHEPHERD, G., Neurobiology, Oxford University Press, New York, 1994, 3ª ed., p. 354. 3 OSGOOD, Charles, Op. Cit., p. 300. 4 Idem, Op. Cit., p. 301. 1

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os processos espaciais equivalentes no campo material do cérebro»1 acaba igualmente num paradoxo, enunciado por Polyak e citado por Osgood: «”Dinamicamente, todo o sistema visual dos primatas, de carácter essencialmente ciclópico, está organizado à volta do ponto de fixação binocular comum. O mesmo é, também, verdadeiro, quanto ao “olho cerebral”, com a diferença de que aqui o ponto de fixação está dividido em dois, um em cada pólo dos dois lóbulos occipitais, embora, mesmo assim, os pontos de fixação cerebral possam ser considerados funcionalmente como um único ponto, operando sempre como uma unidade”.»2 Mas como poderão estes dois pontos de fixação anatomicamente separados “trabalhar como uma unidade” uma vez que não existem providências para semelhante trabalho de equipa? Há dados consideráveis (Curtis, 1940; Bonin, Carol e McCulloch, 1942; LeGros Clark, 1942) de que nenhumas vias neurais ligam as áreas colaterais 17 por meio do corpus callosum, e a transmissão difusa da área 17 para a 18 pode parecer que limita as integrações binoculares através desse meio. Nenhuma forma de resolver o problema se torna evidente nesta altura; ele merece um estudo concentrado, tanto dos neurologistas como dos psicólogos.»3 Assim, pelo menos pela altura em que MerleauPonty escreveu as suas principais obras de fenomenologia do comportamento e da percepção, a explicação fisiológica desta deparava-se com dificuldades aparentemente

Idem, Op. Cit., p. 304. POLYAK, S., The Retina, University Chicago Press, Chicago, 1941, p. 442. 3 OSGOOD, Charles, Op. Cit., p. 305. 1

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insolúveis e que reclamavam uma mudança de paradigma de pensamento (assumida pela corrente fenomenológica) ou, no menor dos casos, de modelo de causalidade. A construção subjectiva do espaço supõe elementos que a neurofisiologia não parece considerar. Por tal motivo, e por outros que não vêm agora para o caso, a fenomenologia apresentou-se como uma alternativa, tanto ao reducionismo fisiológico quanto à matematização do espaço perceptivo. A geometria no espaço, como é comum dizer-se, devia significar antes, segundo os fenomenólogos, uma geometrização do espaço. Para estes, não se conquista objectividade – apenas imaginária – mas rompe-se a unidade, prezada na Antiguidade, do subjectivo e do objectivo. Foi precisamente nessa virgindade do olhar da pequena sensação que Cézanne intuiu muito antes a possibilidade e a necessidade duma radical modificação do ver e duma noção correlativa do espaço. À sua racionalização (passe o paradoxo fenomenológico) pode talvez dizer-se que Merleau-Ponty terá dedicado toda a sua obra de filósofo, desde o primeiro ao último escrito. É escusado lembrar que não foram somente os fenomenólogos a criticar a tendência clássica para a identificação entre perspectiva psicológica e geométrica, mas é sobretudo a eles que se deve o ataque aos fundamentos duma ciência cujos alicerces Euclides havia implantado, Descartes reforçado e a mecânica relativista, desde Galileu, aplicado à modelização dum universo real, absolutamente independente do sujeito que o conhece, ao mesmo tempo que, de maneira ambígua, na aparência, era perspectivado por este. Panofsky afirmava – aliás na esteia de Ernest Cassirer – que a perspectiva central, cume do desenvolvimento

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renascentista do estudo do espaço, tomada como estrutura da percepção para a arte pictórica e, em concordância com o realismo estético, para a visão perfeita, parte de dois erros: «Deixa no esquecimento o facto de vermos não com um olho imóvel, mas com dois olhos, em movimento constante, que geram um campo de visão esferoidal [portanto, nem cúbico nem piramidal e sem um ponto-de-fuga absoluto]. Não toma em consideração a diferença imensa que há entre a “imagem visual”, psicologicamente condicionada, através da qual tomamos consciência do mundo visível, e a “imagem na retina”, condicionada mecanicamente, que se imprime no olho físico. Verifica-se, na nossa consciência, uma tendência equilibradora muito particular, originada no trabalho conjunto da visão e do tacto, para atribuir aos objectos apercebidos tamanho e forma definidos, adequados.»1 Precedendo Merleau-Ponty, Panofsky, que entretanto recebera contributos importantes de outros autores, interpretava a percepção como o resultado da actividade total do corpo próprio.2 A novidade de Merleau-Ponty consistiria talvez no interpretar a noção de Cézanne de que há um espaço de objectos visíveis anterior a todas as preconcepções e com-fundido com a percepção virgem que lhe confere a visão ôntica, o ser visível, o conascimento do espaço de objectos. Um ser que se pensa pela luz. Segundo Mário Dionísio, parafraseando Herbert Read, «Antes dele, o princípio da composição era arquitectónico. Quer dizer: o espaço-pintura era “organizado”

PANOFSKY, Erwin, Op. Cit. p. 34. Desconheço a importância que terá tido o teleologismo de Kurt Goldstein em Panofsky, se teve algum, mas sabemos que foi a base das especulações fundamentais do fenomenólogo francês. 1

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como um arquitecto organiza o seu edifício, tomando antecipadamente em consideração problemas de equilíbrio e de simetria. O quadro era antepensado.»1 Agora, porém, dá-se uma mudança em toda a linha, o que faz de Cézanne o ancestral directo da arte moderna: «Em Cézanne, tudo é desconhecido do próprio autor antes de começar a acção de pintar. Tudo nele depende da fidelidade a essa faculdade organizadora dentro do sistema nervoso, sem a qual a própria percepção visual não teria sentido. Aludindo à teoria da percepção, Read lembra que não seríamos capazes de haver-nos com a multiplicidade de impressões que a vista recebe se, ao mesmo tempo, não fossemos capazes de organizar essas impressões num padrão coerente.2 A afirmação deste padrão, pessoal e variável para cada caso, em termos de absoluta independência perante os padrões já afirmados [...], eis o ponto inicial e fundamental da revolução de Cézanne.»3 É claro que é precisamente esta procura da unidade da objectividade e da subjectividade a conduzir a ambiguidades que se tornarão talvez o principal motor das futuras grandes inquietações estéticas da arte ocidental e que marcarão também o discurso de filósofos como Merleau-Ponty, que viram na pintura um meio privilegiado de aceder à actividade do espírito. Este mesmo autor escreve, no texto Le Doute de Cézanne, em Sens et NonSens, a propósito do seu pintor preferido: «A sua pintura haveria de ser um paradoxo: procurar a realidade sem deixar a sensação, sem tomar outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem rodear os contornos, sem

DIONÍSIO, Mário, Op. Cit., p. 122. Cf. READ, Herbert, The Philosophy of Modern Art, New York, 1955, pp. 21-22. 3 DIONÍSIO, Mário, Op., Cit., pp. 122-23. 1

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enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a perspectiva nem o quadro. É a isto que Bernard chama de suicídio de Cézanne: este visa a realidade e interdita-se dos meios para a alcançar.»1 Teria, porém, Émile Bernard razão? Merleau-Ponty discorda e considera que o artista de Aix-en-Provence perseguia o bom caminho, sem, no entanto, deixar de duvidar do mesmo. Este “bom caminho” é, como aconteceu amiúde na arte modernista, tanto um avanço quanto um relativo retorno a ideários antigos, uma confiança no homem e um desencanto com o progresso.2 Cézanne, ao recusar as premissas do Impressionismo, manifesta-se tanto contra o fim da segurança tradicional duma subjectividade ancorada na constância das coisas habituais pelo sincretismo próprio da percepção primordial, portanto contra a dissolução da substância das coisas nas tonalidades atmosféricas, na permanente mutação meteorológica de que Turner, com a sua tela do Fighting Téméraire,3 a caminho de ser desmantelado conduzido pelo novidade do arrastão, uma das descritas por Constable como “visões etéreas, pintadas com vapor MERLEAU-PONTY, Maurice, “Le Doute de Cézanne”, in Sens et Non-Sens, NRF Gallimard, Paris, 1966, p. 17. 2 Aquele movimento que agora se denomina pós-modernismo e se afirma como uma descrença nos prestígios da técnica e da ciência, resulta ideologicamente do equívoco que é fácil surgir na expressão “modernismo”: bastaria reflectir em correntes como o Dadá, o Expressionismo, o Surrealismo, mesmo as mais próximas do realismo, para nos apercebermos da atitude crítica que sempre o modernismo dispensou à vida e à sociedade do seu tempo, assim como às promessas duma racionalidade cujas vantagens se destemperam com a miséria do quotidiano e a violência intelectualizada da guerra, da especulação monetária e da exploração laboral. 3 Um dos veleiros militares de Nelson na batalha de Trafalgar, cujo contributo heróico está reduzido a palavras, cinzas do tempo. 1

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colorido” (o vapor da máquina industrial de James Watt), foi um ambíguo percursor. Quanto ao falado sincretismo, Merleau-Ponty esclarece por que o pintor conhecido por ter fixado para a posteridade, sem as ter paralisado numa fórmula geratriz, essas maçãs vivas, carnosas e virgens, rompeu com o Impressionismo: «Cézanne não procura sugerir pela cor as sensações tácteis que dariam a forma e a profundidade. Na percepção primordial, estas distinções do tocar e do ver são desconhecidas. É a ciência do corpo humano que nos ensina depois a separar os nossos sentidos. A coisa vivida não é reencontrada nem construída a partir dos dados dos sentidos, mas oferece-se de imediato como o centro a partir do qual irradiam. Nós vemos a profundidade, o aveludado, a morbidez, a duração dos objectos – Cézanne dizia mesmo: o seu odor. Se o pintor quer exprimir o mundo, é preciso que o arranjo das cores transporte em si esse Todo indivisível; de outro modo, a sua pintura seria uma alusão às coisas e não as apresentaria na unidade imperiosa, na presença, na plenitude insuperável que é para nós a definição do real.»1 São tantas as ideias que se encontram condensadas nesta pequena passagem que um pequeno ensaio como este apenas servirá para colocar em jogo algumas delas. Assim, devemos começar por compreender que Cézanne passou por um período juvenil (desde 1859 até 1870, mas só encerrado de maneira definitiva em 1877), período simbólico-romântico, no qual imperou o claroescuro das cenas melodramáticas. Nelas procurava exorcizar os seus medos e aplacar com justificações transcen-

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Idem, Op. Cit., pp. 20-21.

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dentes ou vagamente sócio-críticas, os desejos mal assumidos.1 Depois, a partir de 1870, passada essa fase romântica que deveu muito a Delacroix, a Ingres, à frequentação de círculos impressionistas, à crítica social do seu amigo escritor Zola e ao maniqueísmo jesuíta, cujo Liceu havia frequentado, fase que se ficou todavia por uma infeliz caricatura de um dos grandes pintores da Revolução, do heroísmo e da grandeza das paixões, Cézanne, embora com algumas recaídas até 1877, vai sublimar esses traumas na busca persistente duma certa serenidade, a qual reconhece que só pode ser atingida através da unidade ou sinergia artística entre homem e natureza. O segredo místico dessa unidade foi-se-lhe revelando pouco a pouco. Entrementes, teve de mediar esses dois extremos dialécticos por um período Impressionista que já despontava, por influência e inclinação, na sua juventude, e que o permitiu emancipar-se dos motivos hipostasiados e da pintura de género, fechada na estreiteza duma imaginária catalogada. Melhor dizendo, o Impressionismo, enquanto período confuso, intersectou, como ponte estética e existencialmente indispensável, a fase final do período romântico e a fase inicial do período construtivista e pode dizer-se que se funde ou se mistura criativamente com o Romantismo que decai e um certo Construtivismo que se desenvolve e matura entre os anos de 1870 e 1895. Aliás, podemos afirmar que o seu Romantismo tem traços de Impressionismo e que o seu Construtivismo, ou segundo período, se desenvolve através de uma luta, que começa por ser mal resolvida, entre a subjectividade da impressão cromática e a objectividade substancial e es1

Uma herança substancial do cristianismo.

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trutural da matéria da cor, assim como, em termos mais gerais, entre o ponto-de-vista e o objecto como um todo, prenunciando o cubismo. É uma época que resulta em quadros estruturalmente consistentes mas artificiais, constituídos num espaço próprio, distinto daquele do espectador. Nesse espaço construído, acontece por vezes que os objectos ainda obedecem à perspectiva, ao ponto-devista, no detalhe e na degradação cromática, ao passo que, noutras telas – mais conseguidas e originais –, eles se manifestam na presença absoluta do seu diálogo através dos perfis privilegiados de cada um – tornado ostensivo pelo Cubismo –, compondo, conjuntamente, um sistema de equilíbrios de compensação mútua, que forma o espaço mas que se opõe, pela exibição de uma estrutura construída, à posição subjectiva e, mais ainda, à vivência espontânea do espectador, quer dizer, àquela visão sem evidência construtiva. Tal que seria, pelo contrário, imaginável numa tela que, apesar de ser uma criação plástica, e dotada de um estilo de representação, se ofereceria na figura de um lugar habitável, por coerência com a maneira de ser humana mais livre em termos psicomotrizes e morais. Podemos concordar, com Liliane Brion-Guerry, que o período construtivista procurou estabilizar o movimento caprichoso da atmosfera impressionista, na qual os objectos ameaçam dissociar-se em elementos sem substância. O construtivismo consolida e estabiliza os objectos através de uma simplificação abstracta. Só que, assim, mediante este processo, a imagem afasta-se do modelo original e tende, de maneira intelectualista, para agregar os elementos e unificar a paisagem num esquema exageradamente notado, impondo-se como um diagrama à ordem dos elementos, não sugerindo, portanto, a esponta-

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neidade do olhar e a casualidade livre, embora necessária, da Natureza, na qual o homem pode realmente habitar. Finalmente, temos o seu período final, o terceiro, de maturidade, que podemos designar de Sintetismo – decorrendo mais ou menos entre 1895, talvez um pouco antes, e 1906, ano da sua morte –, período no qual a impressão contemplativa se converte, no domínio da expressão artística, que não é inteiramente fechado à experiência real de quem a contempla, em manifestação de vida num espaço concreto formado por uma estrutura ou construção perfeitamente dissimulada na representação da percepção imediata, casual e presencial das coisas. Neste último período, todavia nem sempre sereno e estável, nem sempre coerente consigo próprio, o subjectivo e o objecto conseguem harmonizar-se às vezes perfeitamente. Trata-se de um retorno, por superação, ao Impressionismo, doravante estabilizado pela substancialidade espacial, profunda, das coisas, ainda que realizadas numa espécie de matéria translúcida, fazendo corpo na atmosfera do lugar, concretizando o espaço com a cor da luz, que a visão contacta. O mundo volta a vibrar luminosamente mas agora são as coisas substantivas que têm cor, ou melhor, que são em simultâneo cor e substância ou substância cromática. Já não é, como no Impressionismo, a cor o tema, a cor sem objecto, cor flutuante, mero reflexo momentâneo, mas as coisas substancialmente cromáticas. O olhar retoma também os afectos, deixa de ser um mero geómetra. Cézanne consegue exprimir um espaço lírico, afectivo, vivencial em toda a pluralidade das suas dimensões, em suma, e como diz Liliane Brion-Guerry, barroco.

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A mesma autora escreve: «Espaço pacificado, musical, todo animado por uma palpitação viva, que integra a obra de arte no sopro do Tempo. Como as pinturas do Extremo-Oriente, às quais não é possível impedir-se serem comparadas, as últimas composições de Cézanne convidam o espectador a penetrar o mundo da recriação poética desposando musical e progressivamente o ritmo que o anima; como certas obras de Macke ou de Kandinsky, de que fazem prever as experiências, tornam ilimitado o campo visual em todas as direcções.»1 O Impressionismo, com efeito, já lhe tinha aberto as portas de casa, já o tinha levado para lá das sombras fantasmagóricas projectadas nas paredes familiares e iniciou-lhe os primeiros passos, ainda imprecisos, ainda inseguros, na plenitude respirável dos campos abertos cuja lição aprendeu com os mestres dessa corrente artística, nomeadamente com o ubíquo e experimentador Pissarro. Faltava apenas torná-los habitáveis na unidade de todos os domínios (intelectuais, psicomotrizes, afectivos, estéticos) da vivência humana. A arte deixou de ser para Cézanne escape e confrontação, «a incarnação de cenas imaginadas”2 mas emocionalmente reais e opressivas. O Impressionismo ensinou-o a ver na pintura «o estudo preciso das aparências, menos um trabalho de estúdio do que um trabalho sobre natureza, [...].»3 No entanto, esta corrente estética, embora sua contemporânea e que o marcou para ser assimilada e transformada por ele, de facto coadunava-se fracamente com o

BRION-GUERRY, Liliane, Cézanne et l’Expression de l’Espace, Albin Michel, 1966, pp. 20-21. 2 MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., p. 16. 3 Idem, Op. Cit., p. 16. 1

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carácter, melhor, com a personalidade de Cézanne, cujo plano psicológico enunciava coincidentemente as contradições humanas, de vários tipos, que a industrialização capitalista carregava no seu seio e que se exprimia de maneira “plástica” nos “fumos coloridos” e bairros cor de cinza. Mas a burguesia lucrava nessa década imperial de setenta e é com irónico contraste que lemos estas palavras de Mário Dionísio: «O fumo que sai das chaminés das locomotivas e enche as estações de caminho de ferro de Monet é rosa e azulado. O suave colorido das telas de Sisley ou de Pissarro, a intransigente limitação da realidade à observação dos efeitos de luz, a crença dos artistas num método científico para produzir arte e o doce encanto que os transporta em face da superfície do mundo são contemporâneos desse período de optimismo e fugaz sossego que a sociedade atravessa depois dos dias violentos de 71.»1 Ora, em que consiste em termos estéticos o Impressionismo? Todos os fenómenos têm as suas facetas, de nenhuma das quais podendo prescindir mas que a inteligência é capaz de separar para um estudo do que as torna específicas, análise que, segundo alguns, é simultaneamente abstracta (porque isola e tende a colocar a unidade donde provém para segundo plano) e concreta (uma vez que o todo só o é mediante uma unidade de determinações enquanto processo de atracção/repulsão entre elas ou de causa/efeito recíprocos). Ao considerar o Impressionismo colocando-se, de maneira discriminante, “exclusiva”, do “ponto-de-vista” sociológico, psicológico, ou da problemática estética, que envolve questões perceptivas, gnosiológicas e ônticas, es1

DIONÍSIO, Mário, Op. Cit., p. 15.

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tamos simultaneamente a abstrair dos outros elementos e a concretizar um conhecimento mais profundo do fenómeno, desde que se tenha noção desta dialéctica e que se reconstitua, depois, na medida do possível (em termos de dados e de progresso epistemológico e histórico) o todo de que se partiu como uma massa de observações e impressões sincréticas, superficiais e limitadas, no que consiste o “objecto” fenoménico de que já falava Francis Bacon. É assim que Mário Dionísio, sem descurar mais adiante, na sua obra, outras dimensões, começa por se concentrar nos motivos e condicionantes sociais que contribuíram para o aparecimento desta corrente artística. 1 De acordo com ele, as grandes invenções tecnológicas da primeira metade do século e a relativa estabilidade social reforçada pela derrota dos levantamentos operários de 1871, castigadas com três mil e novecentas condenações à morte no rescaldo da Comuna, elevaram, acompanhados pelo estimulante espectro da crise, os índices de confiança da classe média nas vantagens do capitalismo, que, para fugir da sua sombra, incentivava a inventividade técnica, investia célere na sua aplicação, o que se reflectia no incremento de velocidade das modificações mundanas e na acuidade, transformação e orientação dos sentidos. 2 Repare-se que a consequência de uma condição é um fenómeno necessário mas não suficiente para o eclodir dum outro. O progresso tecnológico, o optimismo social e a relativa estabilidade política foram condições facilitadoras, não bloqueantes, do Impressionismo mas não causas da sua existência. As interacções causais não constituem a totalidade das conexões fenoménicas, objectivamente reais para os materialistas, que não, por exemplo, para os idealistas críticos. 2 Arnold Hauser escreve a respeito da dialéctica crise/desenvolvimento que marca os períodos mais activos da Histó1

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Tudo isto criou as condições para o surgimento, em indivíduos particularmente sensíveis aos aspectos mais inconscientes das mudanças, duma arte luminosa, optimista e que nada sabia (ou nada queria saber), na prática artística, das contradições humanas nem daquelas que se haveriam de se manifestar entre o crescimento industrial e a placidez doce, viva, colorida, espontânea da Natureza. 1 ria: «Os enormes desenvolvimentos técnicos que têm lugar não nos devem induzir a esquecer o sentimento de crise que pairava no ar. A própria crise deve ser vista, antes, como um incentivo para novas realizações técnicas e aperfeiçoamentos de métodos de produção.» (HAUSER, Arnold, História Social da Arte e da Literatura, trad. Álvaro Cabral, Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 896, do original alemão Sozialgeschichte der Kunst und Literatur, Oscar Beck Verlag, München, 1953). Um pouco à frente, escreve o mesmo autor: «Assim, a tecnologia moderna introduz um dinamismo sem precedentes em toda a atitude perante a vida – e é, sobretudo, essa nova sensação de velocidade e mudança que encontra expressão no impressionismo.» (Idem, Op. Cit., p. 896). 1 A complexidade de todos os fenómenos históricos e do seu contexto oculta-se na simplificação que um pequeno conjunto de parágrafos impõe e manifesta-se, por exemplo, no facto do movimento impressionista não ser homogéneo, nem sequer em termos estritamente estéticos, bastando comparar Monet, Renoir e Degas. A sua diversidade está patente também nas orientações políticas opostas dos mais proeminentes mestres, desde o conservadorismo de Renoir até à inflamada paixão humanista de Pissarro, que, apesar disso, nunca produziu uma arte socialmente empenhada. Mas já foi dito que registos satíricos e denúncias plásticas da alienação não são necessariamente sinónimo de grande contributo para a transformação humana da realidade, quando feitos por artistas que confundem crítica com transcrição, exposição “empírica”, da miséria e da cobiça ou com agressão visual gratuita, duvidosa, ao passo que o desinteresse completo pela política em Renoir tinha uma correspondência directa no seu desprezo pelo ascetismo e no seu amor anticlerical pela vida, o que faz da sua obra um manifesto revolucionário, enquanto hino à alegria, à sensualidade, e afrontamento da

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Esta “ingenuidade”, como não é raro, produziu obras magistrais (pela primeira vez expostas em 1874), enriqueceu o sentido visual, ainda que à custa de alguns equívocos relacionados com os primeiros desenvolvimentos duma ciência experimental recente: a psicologia.1 Mário Dionísio escreve que tal confiança «explica as condições de eclosão e o próprio estilo do impressionismo, que, de acordo com as investigações da óptica, levara a consequências extremas, “científicas”, o naturalismo, apenas sentimental, de Courbet.»2 Essas “consequências extremas”, e equivocadas, são as do “pós-impressionismo”, sobretudo o que levou o estudo da imagem a uma interpretação divisionista como o de Signac e, sobretudo, de Seurat, de cuja técnica do pon-

hipocrisia e do desprezo pelo indivíduo dissimulados nos valores burgueses da família, do lucro, do trabalho e da fé. 1 O aparecimento desta ciência, nas suas metodologias introspectiva e experimental, reflecte também, paralelamente ao Impressionismo, na forma do interesse na descrição, ou na medição tecnológica, pormenorizada dos fenómenos de excitação mental, essa sensibilidade exacerbada pela aceleração social sem paralelo na História. Apesar das aparências, afirma Hauser, «O impressionismo é uma arte urbana, e não só porque descobre a qualidade paisagística da cidade e traz a pintura de volta do campo para a cidade, mas porque vê o mundo através dos olhos do cidadão e reage às impressões externas com os nervos tensos do moderno homem técnico. É um estilo urbano porque descreve a mutabilidade, o ritmo nervoso, as impressões súbitas, intensas mas sempre efémeras da vida citadina. E justamente como tal é que implica uma expansão enorme da percepção sensorial, um novo aguçamento da sensibilidade, [...] – o impressionismo constitui o clímax do desenvolvimento no qual se dá reconhecimento aos elementos orgânicos e dinâmicos da experiência e que dissolve completamente a cosmovisão estática da Idade Média.» (Idem, Op. Cit., pp. 896-97). 2 DIONÍSIO, Mário, Op. Cit., 3, p. 13.

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tilhado saiu a célebre tela da Grande Jatte, e ao qual teremos oportunidade de voltar. Para já, o que interessa a Mário Dionísio é o de vincar essa íntima ligação entre uma certa consciência social da época e o estilo em si próprio revolucionário, recusado pelos salões oficiais, o que vem provar a complexidade e as contradições inerentes ao próprio reflexo projectado de uma realidade ela-mesma conflituosa e às relações entre ambas as instâncias. Entretanto, podemos ler no nosso autor: «Pintura clara e alegre, forjada à margem dos conflitos sangrentos a que o seus criadores se haviam furtado, o impressionismo exprimiu o deslumbramento perante os jogos de luz na superfície das coisas, a paz duma sociedade aparentemente tranquila e a alegria quase infantil de ser possível revelá-la com fidelidade, graças aos progressos da investigação científica e do fabrico de tintas»,1 assim como à sua embalagem em tubos que permitia aos pintores abandonarem as poses do estúdio para aproximarem o seu olhar, tanto da espontaneidade da vida quotidiana quanto dos dados do objecto em situação natural, sem o intermédio do esboço a grafite ou carvão e os efeitos do tempo sobre a imaginação pseudo-reprodutiva. Em resumo, progresso tecnológico e relativa pacificação social constituíram os elementos exteriores que suscitaram e sustentaram esta original atitude prática e visual diante dos motivos, eles mesmos adaptados ao mais optimista do espírito da época. As cenas mitológicas já haviam sido arrasadas escandalosamente pelo premonitório Déjeuner sur l’Herbe (1863) de Manet, o amor e a festa tornam-se mundanos e urbanos com o Moulin de la Galette de Renoir (1876) e Monet, que haveria de glorifi1

Idem, Op. Cit., 3, p. 13.

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car a Natureza simples, abandonando o panteísmo maneirista, cheio de ambiguidades éticas e todavia não sem virtudes, realizando a série dos Nenúfares, surpreende, também em 76, a beleza própria das locomotivas no conjunto de quadros da Estação de Saint-Lazare. Mas que há de especialmente estético no dogma impressionista do progresso, tal como a mentalidade positivista o intuía? Sem dúvida que temos de ter em conta a recusa do dramatismo do claro-escuro, cuja dualidade semiótica é de raiz cristã e vai até aos romantismos revolucionários de Delacroix e trágicos de Géricault, e que teve os últimos estremecimentos escatológicos na fase inicial de Cézanne, projecções e defecções violentamente juvenis de medos a respeito da profundidade inamistosa da vida, visão agravada pelo seu maniqueísmo supersticioso, sempre à espreita de espíritos inseguros, e dos conflitos religioso-sexuais que o oprimiam. Se até a sombra tem cor, a cor mais escura é o violeta. Pissarro, o eterno experimentador, ensinara-lhe a ver perceptualmente segundo este e outros princípios impressionistas. Merleau-Ponty, no prisma da sua fenomenologia, esclarece-nos esta mudança na mente de Cézanne, a qual permitirá entender melhor o elemento estético do Impressionismo e o seu significado: «Os seus primeiros quadros, até cerca de 1870, são sonhos pintados, uma Ressurreição, um Assassinato. Eles provêm dos sentimentos e querem provocar, desde logo, sentimentos. São, pois, quase sempre pintados em grandes traços e apresentam a fisionomia moral dos gestos, mais que o seu aspecto visível. Foi aos impressionistas, e em particular a Pissarro, que Cézanne pôde ter concebido posteriormente a pintura, não como a incarnação de cenas imaginadas, como a projecção de sonhos no exterior, mas como o es-

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tudo preciso das aparências, menos um trabalho de estúdio que um trabalho sobre natureza, além de ter deixado a factura barroca, e que procura em primeiro lugar representar o movimento, pelos pequenos toques justapostos e pelos pacientes tracejados sombreadores.»1 Cézanne, denotando a conflitualidade permanente entre o indivíduo e a sociedade, às vezes latente, outras manifesta sob várias formas, cedo se afastará daquilo a que há-de considerar a superficialidade impressionista, apesar de não renunciar nunca aos seus ensinamento duradouros. Esta atitude, não deixando de ser uma reacção afectiva à mudança anterior, comporta com ela um juízo intelectual, que não é apenas justificativo mas também construtivo. Ele quererá ir ao fundo substancial das coisas e ao mesmo tempo fugir dos fantasmas subjectivos que o assombraram na juventude. A serenidade buscada, procurá-la-á na interminável identificação entre a projecção original de si e a objectividade sensível na pureza do olhar, não intelectualmente delimitante, a priori, e que se entrega à impressão perceptiva imediata como à verdade do ser, que, virgem, se dá na visão. Espírito e Matéria, sujeito e objecto, são o mesmo para ele. O Impressionismo, pelo contrário, é um sensismo. O Ser não lhe interessa: apenas, ao modo positivista, importa a sensação enquanto tal, facto psíquico, e nunca a realidade substantiva que supostamente seria ou de que seria o sinal. Tal como o tempo de euforia e confiança, que antecede a borrasca, tido por uma das suas condições, também esta corrente estética teve uma glória criativa breve, e a “superficialidade” de que a acusaram dirse-ia uma frivolidade inquietada pela suspeita das corren1

MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., pp. 15-16.

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tes profundas de que se apartara mas que haveriam de voltar a emergir para agitar o mundo social e obrigarem o homem a enfrentar as suas alienações. O homem tem de implicar-se nas obras ao mesmo tempo que as obras lhe dão forma: é impossível permanecer na ideia de que a sua suprema expressão consiste em torná-las numa transposição contemplativa do sensível sem juízo ou sem qualquer espécie de transformação voluntária, subjectiva, dos elementos. Teria sido este, talvez, o grande erro do Impressionismo e, simultaneamente, o seu paradoxo sublime, genial, pois é impossível negar-lhe grandeza, recriação do ver e interpelação sensível que humaniza o olhar e confere um novo e elevado valor à relação do homem com as coisas que o rodeiam. A brevidade da época produtiva foi compensada pela perenidade dos efeitos nos afectos e na inteligência, que lhe é correlativa, das gerações que por ele foram “impressionadas”. A doutrina, ou a intuição geral, dum movimento artístico não se identifica com os seus resultados e efeitos nos fruidores, ou seja, com a arte produzida. Tudo o que acaba terminou o seu tempo (“tudo o que vive merece morrer”, dizia Engels citando um outro autor) por causa duma qualquer contradição, de que não se exime no interior de si próprio ao não se poder isolar do todo da situação, contradição que se auto-resolveu negando-o, suprimindo-o. Foi o que aconteceu ao Impressionismo. Mário Dionísio afirma: «A sua ruína processa-se dentro de si mesmo, desde a primeira hora. A luta por captar objectivamente, passivamente, “cientificamente”, tão impessoalmente quanto possível, a realidade implica uma outra luta, subterrânea e implacável: a luta do ho-

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mem que se recusa a negar-se, mesmo quando paradoxalmente ele próprio o tenta.»1 Se Monet foi o mais dotado dos mestres do Impressionismo e o que levou mais longe o seu desiderato, terá sido Seurat, no ocaso do movimento, o doutrinário mais radical e aquele que o conduziu, de certo modo, ao absurdo, com o divisionismo. Neste resultado último patenteiase o sentido íntimo que, do ponto-de-vista estético, o motivou. Seurat reinterpretou a ideia de Constable de que a pintura é “um ramo da filosofia natural”, um inquérito experimental das leis da natureza. Fê-lo, afirmando que a pintura é uma investigação experimental das leis da percepção, ela deve transpor na tela o visível, sendo este e a sua tradução plástica tudo o que interessa ao artista. Não há aqui realismo nem espaço para uma subjectividade produtiva mas aplicação das leis objectivas que ligam os reflexos de luz na superfície das coisas à percepção cromática impessoal. Pouco antes do grande paisagista inglês, Diderot, filósofo, escritor e crítico de arte, materialista biológico, aconselhara, em todo o caso de maneira ambígua, duvidando do naturalismo estrito, a ser-se discípulo das cores do arco-íris (que os fauvistas, discípulos de Gauguin, não seguiriam) mas não escravo da Natureza, pois devia-se iluminá-la com o Sol próprio do criador, que deixara de ser Deus para dar lugar ao artista. Mas o arco-íris é um efeito do Sol natural, pelo que urgia, a fim de combater este círculo-vicioso, ir mais além

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DIONÍSIO, Mário, Op. Cit., p. 20.

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no combate ao objectivismo estético. O Impressionismo não o quis lograr.1 Esta decisão resultou na tentativa de copiar na tela os efeitos dos reflexos da luz na retina segundo as leis da psicologia “científica” da época e que corresponderiam às formas e radiações objectivas. Para se executar esta tarefa um paradoxo entrava em acção: subtrair dela as actividades prática, afectiva e racionalmente estruturante implicava aplicar sobre os dados sensíveis uma teoria da percepção. A atitude contemplativa estava contaminada pela aplicação de uma técnica descoberta pela análise do ver. Como diz Mário Dionísio de Seurat: «Não é um discípulo da Natureza.»2 Ele, aliás, a instâncias de Signac, seu amigo e seguidor, em prol da “luz” limpou das suas telas todas as “terras”, os ocres matéricos que Cézanne, apóstata do movimento, iria fazer reviver. Quanto à técnica, o próprio Seurat esclarece-nos: «Admitidos os fenómenos da duração da impressão luminosa na retina: «A síntese impõe-se como resultante [da composição dos elementos básicos analisados]. O meio de expressão é a mistura óptica dos tons, das cores (dos locais

É evidente, para quem está dentro do assunto, que esta afirmação não é universal. Escapa-lhe, por exemplo, a derradeira fase de Monet. Porém, falamos aqui desta corrente estética em termos gerais, pondo em relevo aquilo que a distingue, abstraindo dos cruzamentos com outros estilos e dos percursos individualizados e progressivamente divergentes de cada artista. Trata-se duma escolha metodológica que compreende tanto a inesgotável complexidade de qualquer fenómeno quanto o facto dessa complexidade possuir uma unidade qualitativamente distinta, ainda que não absoluta, da dos outros fenómenos, condição mesma dos seus cruzamentos e transformações. 2 Idem, Op. Cit., p. 49. 1

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e da cor iluminante, sol, candeeiro de petróleo, gás, etc.), quer dizer, das luzes e das suas reacções (sombras), conforme as leis do contraste da gradação, da irradiação.»1 Os neo-impressionistas, ao utilizarem apenas cores puras, recusando-se à mistura de pigmentos, “sujandoas”, como haviam ainda feito os pouco metódicos primeiros impressionistas, justapuseram-nas por pontilhismo, conseguiam, a partir duma certa distância do espectador, e pelas leis universais da combinação das opostas e das complementares, uma síntese óptica, uma nova cor, e um brilho nunca antes alcançado. Com a sua obsessão positivista pelo método, os neoimpressionistas comprometeram a espontaneidade do acto perceptivo e, fazendo-se servos, já não da Natureza mas da ciência, sempre datada, em vez de projectarem uma realidade humana, é certo que modelando-a em função do meio expressivo, experimentavam uma teoria da mistura das cores na visão baseando-se nas últimas descobertas da fisiologia e da psicologia da percepção. O que é que Seurat e Signac entendiam por mistura óptica, distinta da mistura objectiva, agora no sentido de exterior ao sujeito, de pigmentos? Carlo Argan esclarecenos: «Remetendo-se às pesquisas de Chevreul, Rood e Sutton sobre as leis ópticas da visão e, principalmente, dos “contrastes simultâneos” ou das cores complementares, os neo-impressionistas instauraram a técnica do pontilhismo (pointillisme), que consiste na divisão dos tons nos seus componentes, isto é, em várias pequenas manchas de cores puras reunidas entre si de modo a recompor, na visão do observador, a unidade do tom (luz-cor)

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Cit. de COQUIOT, G., Georges Seurat, Paris, 1924, pp. 232-33.

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sem as inevitáveis impurezas do empaste que anula e confunde as cores.»1 As “cores primárias” são normalmente identificadas com o vermelho, ou magenta, o amarelo e o azul, embora até há poucas décadas ainda não se tivesse confirmado esta hipótese de Young-Helmhotz, como ainda dava a entender a obra de Charles Osgood (1953),2 actual noutros tópicos. Podia raciocinar-se mais ou menos desta maneira: se aceitarmos a ideia da produção das cores por combinação de comprimentos de onda, talvez não se possa especificar a primazia introspectiva destas ou daquelas cores, a sua determinação reduzindo-se ao serem intercalares no círculo cromático. Sendo assim, apesar de não se poderem decompor noutras, não seriam sinónimas das chamadas “cores puras”, como as expressões parecem sugerir, as ditas cores devendo antes ser caracterizadas como as que apresentam o grau mais elevado de saturação. A “pureza” da cor não sofreu com o avanço científico, mas os experimentos de Edward Mac-Nichol em 1960 estabeleceram a relação entre certos pigmentos da retina e as tradicionais cores primárias.3 Diga-se de passagem que, por sua vez, o branco, “luz imaculada”, como gostava de pensar o protofenomenólogo Goethe, na esteia de Aristóteles, é usado sobretudo para iluminar as cores ou para torná-las mais opacas. Mas, enquanto os pintores anteriores misturavam fisicamente (com espátula ou pincel) as primárias para

ARGAN, Carlo, Arte Moderna, trad. Denise Bottmann e Federico Carotti, Companhia das Letras, São Paulo, 1996, p. 82. 2 Cf. OSGOOD, Charles, Op. Cit., pp. 153-56. 3 MAC-NICHOL, Edward, “Three-pigment color vision”. Scientist American, vol. 211, pp. 48-56, December, 1964. 1

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formarem as chamadas secundárias, por exemplo um laranja, um verde, um violeta, técnica que os próprios impressionistas não abandonaram por completo, os neoimpressionistas teorizaram e puseram em prática a mistura óptica, na qual pequenas manchas ou pontos justapostos produziam fisiologicamente, no sistema receptor, calculando as proporções necessárias, as mesmas cores que antes eram fundidas na tela e apresentadas ao olho como «já existentes».1 Em discurso técnico, os pré-impressionistas usavam um processo subtractivo para produzirem as cores, enquanto a corrente impressionista o substituiu pelo método aditivo, o que é mais um exemplo da dialéctica análise/síntese. O que está aqui em causa, note-se, não é apenas uma maneira de se alcançar melhores resultados no brilho, na saturação ou nos cambiantes, enquanto definição das cores. É evidente que nos podemos referir a eles falando só do seu mecanismo operativo, para que, aliás, tais termos remetem. Mas desde logo não podemos excluir as suas correspondências fenoménicas, subjecti-

Rudolf Arnheim resume assim estes dois processos de formação de cores: «Na combinação aditiva, o olho recebe a soma das energias luminosas que se juntam num lugar, [...] As cores recebidas pelo sentido da visão são o resultado dum processo aditivo porque os três tipos de receptores de cor, colocados lado a lado na área central da superfície retinia, reúnem os estímulos que recebem. Portanto, a luz, estimulando os três tipos de receptores na proporção apropriada provocam a sensação do branco. /”A Subtracção produz as sensações de cor por aquilo que se deixa para trás após a absorção. [...] As cores locais dos objectos resultam da luz que reflectem depois das suas superfícies terem engolido a sua parte da iluminação; uma superfície vermelha engole tudo menos os comprimentos de onda correspondentes ao vermelho.» (ARNHEIM, Rudolf, Op. Cit., p. 341). 1

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vas. O processo subtractivo consiste na mistura de duas cores primárias (por exemplo, amarelo e azul). A explicação física é a seguinte: «O pigmento azul absorve a maioria dos comprimento de onda, excepto os azuis e os verdes. Mas, quando se misturam um pigmento azul e outro amarelo, o pigmento azul elimina (absorve) a luz amarela e o pigmento amarelo absorve a luz azul, deixando só ondas luminosas que produzem a sensação do verde. A mistura de pigmentos em que as cores se eliminam umas às outras [por interferência dos respectivos comprimentos e frequências de onda] é, pois, descrita adequadamente como subtractiva.»1 Inversamente, o método aditivo consiste na análise das cores nos seus componentes primários ou, no caso de cores mais compostas, pelo menos nos seus elementos de síntese imediatamente anteriores. Por exemplo, se o “amarelo” for decomposto nas suas cores básicas (verde e vermelho) e se estas forem separadas entre si como manchas por um fundo branco, o observador, colocado a uma distância suficiente, fundi-las-á na cor heterogénea.2

KENDLER, Henry, Introdução à Psicologia, I, 5ª ed., FCG, Lisboa, 1980, p. 177. 2 Este fenómeno consiste na interacção das cores, cuja identidade se perde no seu contexto. A lei fundamental que preside a este fenómeno é a do contraste simultâneo de cor, cuja formulação clássica iria ser dada pelo químico francês Michel Eugène Chevreul: «Se um indivíduo vê ao mesmo tempo duas áreas de brilho diferente mas com a mesma cor, ou com o mesmo brilho mas de cores diferentes, em justaposição, isto é, limitando-se reciprocamente, o olho observa (desde que as áreas não sejam demasiado largas) modificações que importam, no primeiro caso, na intensidade da cor e, no segundo, na composição óptica das duas cores justapostas.» (CHEVREUL, M., De la Loi du Contraste Simultané, Paris, 1899, cit. Arnheim, Op. Cit., p. 362. 1

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As investigações sobre a formação das cores foram, portanto, um dos factos que contribuíram para esta nova ideia de pintura. E, na medida em que se interessavam primordialmente pelo problema cromático, colocado numa perspectiva objectiva, funcional, “maquinal”, a sua atitude estética apresentava uma ambiguidade cujos sentidos opostos, mas ligados – o desejo do artista ser mero registador e a compreensão de que o ver tem uma estrutura que é preciso analisar –, foram destacados cada um à vez por dois autores que já foram objecto de citação neste artigo. Assim, Carlo Argan escreve: «É de importância fundamental: 1) que a análise da visão esteja presente no procedimento técnico; 2) que, decompondo a sensação visual [divisionismo], se reconheça que ela não é uma simples impressão, mas tem uma estrutura e se desenvolve através de um processo; 3) que o quadro seja construído com a matéria-cor e que esta tenha um carácter funcional, como os elementos de sustentação de uma arquitectura; 4) que o quadro não seja mais considerado como uma tela onde se projecta a imagem, e sim como um campo de forças em interacção que formam ou organizam a imagem.»1 Em compensação, Mário Dionísio vê uma linha de continuidade na atitude entre o Impressionismo original e a sua fase terminal e radical: «Na verdade, [os divisionistas] estão pertíssimo dos impressionistas com o seu quase exclusivo interesse por recriarem na tela o efeito luminoso e fugitivo da vibração atmosférica. [...] Inflamava-os a mesma sede de registar o fugitivo. Os seus quadros, como que num equilíbrio entre dois extremismos impressionistas – o da cor, de Monet, e o do dese1

ARGAN, Carlo, Op. Cit., p. 82.

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nho, de Degas –, conservam alguma coisa daquele ar de esboço que parecia inevitável na representação da natureza em movimento.»1 Fica, portanto, primeiro provado que os impressionistas pegaram num dos processos de formação da cores como se fosse o único verdadeiro: ora, na realidade, tanto a subtracção quanto a adição existem no acto de ver, por vezes sobrepostas, outras em ocasiões distintas, e relativas aos vários tipos de superfície dos objectos. Mas, mesmo juntos, tais processos constituem ainda uma abstracção do concreto do fenómeno perceptivo: a sua intencionalidade, a valoração, a síntese duma experiência de vida, a penetração no sentido e na razão dos factos, são “potências” subjectivas e possibilidades estéticas postas de lado, nem sempre na prática mas normalmente na doutrina, que defende, de maneira paradoxal, a intenção duma não-intenção e o sentido do não-sentido. O Impressionismo é de entendimento extremamente complexo quanto à sua postura face ao fenómeno da percepção, tanto quanto esta o é em si mesma, na sua ubiquidade psicológica e também gnosiológica, como se pertencesse simultaneamente ao sujeito e ao objecto e a nenhum deles em separado. Por isso, disputa a palma da ambiguidade à aventura do ser percebido/percebedor de Cézanne. Arnold Hauser atribui ao Impressionismo uma importância histórica na mutação da sensibilidade estética somente igualável ao Gótico e ao Romântico – descontando a presença com força sempre mais ou menos equilibradora do classicismo – e salienta a sua originalidade como a projecção artística vitoriosa do mundo contemporâneo, em que o movimento supera a imutabilidade, o 1

DIONÍSIO, Mário, Op. Cit., 3, p. 55.

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transitório o estável e a análise a hermenêutica: «O seu método é peculiar pelo seguinte: enquanto a arte préimpressionista baseia as suas representações numa cosmovisão aparentemente uniforme mas, de facto, comporta de maneira heterogénea, formada de elementos conceptuais e sensoriais, o impressionismo aspira à homogeneidade do puramente visual. Toda a arte anterior é o resultado de uma síntese, enquanto o impressionismo resulta de uma análise. Constrói o seu tema particular a partir dos dados dos sentidos; portanto, remonta ao mecanismo psíquico inconsciente 1 e fornece-nos, em certa medida, a matéria-prima da experiência, a qual está ainda mais distante da nossa concepção usual de realidade do que as impressões logicamente organizadas dos sentidos.2 [...] Antes do impressionismo, a arte reproduzia objectos mediante sinais; agora, representa-os através dos seus componentes, através de partes do material de que são compostos.»3 No entanto, como já tivemos oportunidade de frisar numa nota, podemos encontrar ambiguidades na sua ambiguidade, excepções, desvios, influências, que, por exemplo, se suspeitam numa epístola do maduro Monet a Clemenceau, na qual o credo impressionista, de certa e indirecta inspiração positivista, se abre a uma relação do homem com o mundo que aparentemente ultrapassa o horizonte fenoménico, sem cair, segundo me parece, numa ontologia e gnosiologia místicas, sugerindo, ao invés, uma intuição dialéctica destas: «Enquanto vocês procuram o mundo em si, [escreve Monet] eu dedico-me sim-

Os estímulos sensíveis visuais estão fenomenicamente supostos na percepção consciente. 2 Ou percepções. 3 HAUSER, Arnold, Op. Cit., p. 899. 1

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plesmente a um número tão grande quanto possível de formas sob as quais ele aparece, nas suas relações com realidades desconhecidas. Quando se está em harmonia com os fenómenos não se pode estar muito longe da realidade ou pelo menos não muito longe daquilo que somos capazes de conhecer dela. Observei sempre e apenas aquilo que o mundo me mostrou, para o testemunhar com a minha pintura. [...] O vosso erro é querer reduzir o mundo ao vosso nível, embora o autoconhecimento devesse aumentar com um conhecimento crescente das coisas.»1 Cézanne vai, entretanto, ao arrepio dos seus mestres e de modo solitário, retomar o que por eles fora subtraído do exame pictórico do ver, a definição do objecto por contornos, embora mais pela cor que pela linha, gradações de tons para modular ou sugerir volume, manchas cheias e cores saturadas, que era para os impressionistas uma tentativa frustrada, ultrapassada, de imitar, até ao limite técnico possível, uma realidade sob visão. Repudiava-lhes a espessura matérica que não passava, no seu subentendido juízo, de iludir a função do quadro com a magia da ilusão. Isto leva-nos ao segundo aspecto da ruptura relativa de Cézanne e que assume a forma de uma polémica de que não está ausente alguma incompreensão, facto que conduziu, com aparência paradoxal, o mestre de Aix por um caminho criativo que talvez de outro modo não ousasse. A história da arte é, como muitas outras, de um lado, história de incompreensões, do outro, de desmistifiMONET, Claude, cit. duma carta ao estadista Clemenceau in Sagner-Düchting, K., Monet, trad. port. Casa das Línguas, Taschen Verlag, Köln, 1998, s/ referência. 1

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cações e descobertas.1 Merleau-Ponty reafirma em Le Doute de Cézanne as características dessa frescura original que, ingénua e sábia ao mesmo tempo, efémera como uma flor de Primavera, nunca seria capaz de satisfazer esse mestre que iria recriar a arte num presente no qual a convivência conflituosa e produtiva de passado e futuro raramente se tinha manifestado com tanta autenticidade. «O impressionismo pretendia restituir na pintura a própria maneira pela qual os objectos ferem a nossa vista e atacam os nossos sentidos. Representava-os na atmosfera em que a percepção instantânea no-los oferece, sem contornos absolutos, ligados entre si pela luz e pelo ar. Com o fito de reproduzir este envoltório luminoso, era preciso excluir as terras, os ocres, os negros e só utilizar as sete cores do prisma.»2 Ora, Cézanne, que se esforçava por vencer os fantasmas morais e teológicos que oprimiam as suas pulsões juvenis, inflamadas por uma ruralidade ainda um pouco pagã, já em contraponto com uma modernidade industriosa, negociante e formal, necessitava de um solo seguro a que se apoiar. A sua subjectividade, de intenso temperamento emocional e feita de horror ao vazio, exigia preencher-se, não com ideias, sublimes como o vapor da metafísica e pesadas como a culpa que avalia cada acto, tamDiga-se de passagem, a modos de gracejo, que a incompreensão entre “pares” não é só apanágio da idiossincrasia dos artistas como também dos filósofos, tanto que Leibniz pôde afirmar, subentendendo ao mesmo tempo a sua intelecção harmoniosa do mundo, que todos os filósofos têm razão naquilo que afirmam e estão errados naquilo que negam, dito espirituoso que poderia ter sido contestado por Hegel, metafísico do devir, respondendo que todos os filósofos estão errados naquilo que afirmam e estão certos naquilo que negam. 2 MERLEAU-PONTY, Maurice, Sens et Non-Sens, p. 16. 1

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bém não com linhas desenhadas por uma inteligência abstracta, racionalista, geralmente resultando em composições artificiais e mistificadoras como as das inócuas, e por isso apreciadas, imagens pitorescas (nostálgicas, típicas), ou das civilizadoras cenas de género que, alegóricas, figuravam uma autoridade moral indiscutível e oculta. Também não se desejaria preencher, ao contrário do que seria de esperar, com o mundo impressionista da luz, constituído por reflexos cromáticos, cuja objectividade é, seguramente, apenas a da relação da decomposição prismática da luz com as leis psicológicas mas impessoais dos contrastes de cor e da mistura óptica, e não a do real, não reflectido mas em-si. Era, pelo contrário, na almejada realidade sensível, nessa identidade aquém de toda a metafísica e além de todo o sensismo subjectivo, nessa realidade que é no seu aparecer aparecendo na sua realidade, que Cézanne procurava a verdade de si-mesmo, o seu ser investindo-se todo na actividade sensível de se tornar visível na realidade e de tornar visível a realidade na sua actividade sensível. É por isso que Cézanne, não desprezando o melhor do legado impressionista – o seu estudo preciso das aparências, o trabalho sob natureza, o desinteresse pelo assunto, pitoresco ou exemplar, em proveito da preocupação com a essência, com as leis, da pintura –, afasta-se do seu propósito de reproduzir as impressões imprecisas e efémeras das coisas, sob o olhar afectado pela dinâmica dos contrastes que modificam as cores locais, não podendo portanto ser exactamente definidas como objectos duma afecção distinta, assim como do efeito atmosférico que distancia os dados na percepção instantânea. Cézanne, provocando uma contracorrente que arrastará a arte para um futuro ainda mais experimental,

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reintroduz técnicas tradicionais, como o modulado, e até a anti-cor (o negro), desaprendendo Pissarro, que lhe vão permitir recuperar para as coisas o “peso”, e a realidade própria com a sua cor, que o Impressionismo lhes retirara. Merleau-Ponty escreve, a este propósito, em Le Doute de Cézanne: «A composição da paleta de Cézanne faz presumir que ele se dá um outro objectivo: estão lá, não as sete cores do prisma, mas dezoito, seis vermelhos, cinco amarelos, três azuis, três verdes, um negro. O uso de cores quentes e do negro mostra que Cézanne quer representar o objecto, encontrá-lo por detrás da atmosfera. Em simultâneo, renuncia à divisão do tom e substitui-a por misturas graduadas por um desenrolamento de cambiantes cromáticas sobre o objecto, por uma modulação colorida que segue a forma e a luz recebida. A supressão de contornos precisos em certos casos, a prioridade da cor sobre o desenho não terão evidentemente o mesmo sentido em Cézanne e no impressionismo. O objecto não é mais coberto de reflexos, perdido nas suas relações com o ar e com os outros objectos, ele é como que iluminado secretamente do interior, a luz emana dele, resultando uma impressão de solidez e de materialidade.»1 Hajo Düchting complementa este esclarecimento das pretensões associadas à ruptura de Cézanne com o Impressionismo, mostrando como o supera, sintetizando os ideais “realistas” de Chardin, Daumier e Courbet no vincar a densidade, a personalidade, a permanência objectiva das coisas, com a redução impressionista das mesmas a uma tessitura de cores, que, na sua justaposição de planos, sem predomínio do efeito atmosférico, tanto as afastam, pelo efeito de solidez, quanto as apro1

Idem, Op. Cit., pp. 16-17.

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ximam pelo desrespeito, jamais levado ao nível do sistemático desde o Renascimento, à unidade da perspectiva. «Na técnica pictórica impressionista, Cézanne fica a conhecer um meio técnico para fundir e reconciliar os contrários. Na cor, descobre uma substância elementar que tem a força para ligar a proximidade e o longínquo, [...] O traço impressionista transforma o mundo objectivo num tecido homogéneo de partículas de cor e justapõe os objectos numa relação de passagens cromáticas. Cézanne retoma esta técnica da cor, mas transforma-lhe o sentido. Não a abandona à impressão de uma atmosfera vibrante, nem ao refinado jogo recíproco das mais subtis diferenças de cor,1 que a vista humana alguma vez possa distinguir na luz. Cézanne não quer dissolver inteiramente o mundo objectivo sob um véu colorido. Procura simplesmente o contacto entre as coisas, a comunidade das coisas no contexto da natureza, que lhe é negada como homem e pela qual se sente intimidado. As paisagens de Cézanne [...] são firmes e totalmente construídas [...]».2 Resumindo as diferenças, Düchting conclui: «As pinceladas de Cézanne retêm os dados de um outro conceito de natureza. Elas constituem uma estrutura de permanência e de profundidade; ligam e não se dissolvem. A partir dos aspectos variáveis da natureza, que inspiram os impressionistas, elas cristalizam uma outra imagem da natureza, uma imagem estável, duradoira, profunda, para apoiar e permanecer, não para desaparecer.»3

A cuja instabilidade, interferências e mutação os impressionistas foram extremamente sensíveis, a ponto de terem sido os primeiros a tematizá-las. 2 DÜCHTING, Hajo, Cézanne, Benedikt Taschen Verlag, Köln, trad. Casa das Línguas, 1999, p. 95. 3 Idem, Op. Cit., p. 95. 1

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É, de facto, esta a distinção mais aparente entre as duas atitudes. Aparente não quer dizer superficial: é a expressão imediata de maneiras afastadas de intuir e entender a complexidade da relação sujeito/objecto. Afigura-se, portanto, necessário começar por apreender com algum detalhe o procedimento pictórico pelo qual Cézanne procura fugir às dicotomias entre inteligência e sensibilidade (nas múltiplas definições, gnosiológicas e ônticas, assumidas no tempo) que, pelo menos até à sua época, marcaram a história da arte e da filosofia, 1 nas oposições da linha e da mancha, do determinado e do confuso,2 do a priori e do a posteriori.3 Pensar e ver devem ser restituídas a uma unidade primordial de que não pode também, segundo Cézanne, ser excluído o objecto dessas actividades abstractas do sujeito. Projecto que supõe uma reconstituição plástica do contacto do homem com o mundo a partir da sua “petite sensation”. O originário, o profundo, tem de ser trazido à superfície a partir dela, sem que, portanto, constitua um fenómeno distinto, ou desinteressado, mas constitutivo da “coisa-em-si”.

Merleau-Ponty, no pequeno ensaio Le Doute de Cézanne, diz que tais dicotomias «pertencem, entretanto, mais às tradições de escola do que aos seus fundadores [...]» (MERLEAU-PONTY, Maurice, Sens et Non-Sens, p. 18). Todavia, pode retorquir-se que, se alguns epígonos e “porta-bandeiras” académicos as vincaram (e por que esquecer o fenómeno inverso?), foi pela razão delas estarem pelo menos em germe nos mestres ou por estes não as terem conseguido resolver, conservando elementos de oposição nos seus sistemas. A menos que todos os epígonos sejam maus discípulos ou filósofos originais. 2 Nomeadamente com Leibniz e, segundo alguns, com Hegel. 3 Kant e as suas variantes metafísicas, estéticas e psicológicas. 1

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Numa resposta à pergunta de Émile Bernard, citada por Merleau-Ponty em Le Doute de Cézanne, sobre se a Natureza e a arte não seriam diferentes, Cézanne afirma peremptório: «Quero uni-las. A arte é uma apercepção pessoal. Eu coloco esta apercepção na sensação e encarrego a inteligência de a organizar como obra.»1 O modo frequentemente impreciso como o mestre de Aix se exprime em termos verbais é susceptível de levantar alguns equívocos a respeito da intenção subjacente à sua obra e de, portanto, conduzir a interpretações erradas. A inteligência não se apresenta em Cézanne no sentido duma estrutura prévia que, como em Kant, se poria à espera dos dados sensíveis para os organizar como percepção directa e projecção esquematizada na tela. É por isso que em todos os seus quadros: A unificação das formas e dos tons não é tentada a partir duma noção estrutural anterior ao acto de ver mas, segundo ele crê, de acordo com o seu projecto, pela própria, específica, unívoca, maneira pela qual os dados pessoalmente apercebidos se organizam, se equilibram, permanecem na mais perfeita síntese de perspectivas e momentos vários. Rivière informa-nos que Cézanne lhe disse: «Na pintura há duas coisas: o olho e o cérebro. Ambos devem interajudar-se. É preciso trabalhar para o seu desenvolvimento mútuo: o olho, pela sua visão sobre natureza, o cérebro pela lógica das sensações organizadas que fornecem os meios de expressão.»2

CÉZANNE, Paul, “Diálogo com Émile Bernard”, cit. por MerleauPonty, “Le Doute de Cézanne” in Sens et Non-Sens, p. 18. 2 CÉZANNE, Paul, cit. por René Huyghe, La Relève du Réel, Flammarion, Paris, 1974, p. 222. 1

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René Huyghe reforça esta ideia, apoiando-se nas palavras de Émile Bernard: «À sua óptica, como o diz excelentemente Bernard, a arte de Cézanne juntou uma lógica. O estádio da simples fidelidade à percepção, no qual se reteve o Impressionismo, foi superado. A ambição de Cézanne é mais vasta: penetrar “o que se tem diante de si e conseguir exprimir-se o mais logicamente possível” (Carta a Bernand, Junho de 1904).»1 É, com efeito, um objectivo monumental, nunca antes tentado – com a excepção de Leonardo, em contexto histórico diferente e por outras vias –, o de ligar a totalidade dos opostos e dos valores nos valores pictóricos, cuja solução reclama horizontes provavelmente intangíveis, o que se insinua na insatisfação estética e existencial que jamais deixou de o acicatar. O desafio do visto e do visível é eterno na medida dos instantes que passam e dos perfis que se rodeiam na superfície duma tela. Por isso, questiona-se Mário Dionísio: «Na verdade, como fixar o que permanece sem tentar uma síntese de momentos vários? E como chegar a essa síntese sem alterar a realidade visível que só o é em momentos contínuos dessa variedade, que, isolados, retractam mas não significam? O problema para Cézanne é, pois, “em vez de imobilizar a expressão dum instante, [...]”, restituir-nos “um rosto em toda a complexidade das suas metamorfoses possíveis.”2.»3 Eis nele um antecipador do cubismo. Contudo, o problema de Cézanne é mais complicado do que se poderia afigurar. Não se circunscreve ao de-

HUYGHE, René, La Relève du Réel, p. 222. GUERRY, Liliane-Brion, Cézanne et l’Expression de l’Espace, Paris, 1950, pp. 63-64. 3 DIONÍSIO, M., Op. Cit., 3, p. 130. 1

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sejo, desde logo desmesurado, de captar em todos os aspectos uma realidade que lhe seria exterior, objectiva, em relação à qual se situaria como espectador interessado, ou antes, como inquiridor. Segundo a interpretação fenomenológica de Merleau-Ponty, talvez não a única possível (entre outros, um seu estudioso, Erle Loran, tem uma concepção especialmente pragmática dos achados do pintor),1 a experiência primordial para Cézanne, anterior a qualquer dicotomia alma/corpo, classificação convencional ou funcionalização operatória do mundo, é aquela em que estas distinções ainda não fazem sentido. Diz-nos Merleau-Ponty, a partir desse seu prisma fenomenológico: «O espírito vê-se e lê-se nos olhares, que nada mais são, todavia, do que conjuntos coloridos. Os outros espíritos só se nos oferecem incarnados, aderentes a um ver e a gestos. De nada serve opor aqui as distinções entre alma e corpo, pensamento e visão, pois Cézanne retorna justamente à experiência primordial, de que essas noções são extraídas e nos são dadas como inseparáveis.»2 Tratar-se-ia, por exemplo, de pintar o pensamento projectando-o num rosto? Mas semelhante tarefa não seria nada original. A Gioconda de Leonardo da Vinci vemnos à memória como a demonstração exacta desse facto consumado. O trabalho do autor dos Jogadores de Cartas não teria passado, enfim, duma reacção, em todo o caso pode-

É duvidoso que alguma vez se compreenda, com fidelidade, as ideias, as intuições e os fins de Cézanne. Pela nossa parte, tentamos acompanhar a leitura de Merleau-Ponty, não sem nos privar-nos de comparações com argumentos de outros comentadores. 2 MERLEAU-PONTY, M., Op. Cit., p. 21. 1

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rosa, contra a aparente desumanização impressionista do olhar e, paralelamente, uma reinvenção muito imaginativa da unidade, ou interpenetração, do sentido (com todos os seus valores subjectivos) e do sensível (substância dos objectos enquanto vividos) que estivera sempre presente ao longo da história da arte. Essa correlação terá alcançado a sua plena realização humana e a sua expressão mais emblemática naquele sorriso ambíguo da Gioconda de Da Vinci aflorando na levíssima elevação dos lábios, que se reflecte numa ligeira contracção dos olhos, visando com malícia diagonal algo fora do nosso alcance. Tal correlação constitui uma consagração dessa senhora do mundo ao mundo construído pela relação do olhar contemplativo com o olhar da Gioconda que não se deixa reduzir à mera percepção subjectiva do espectador. Trata-se, com efeito, de uma essa complexidade comunicativa entre o interior (tanto dela quanto do espectador) e o exterior (na forma, nas cores e no sentido que todavia não se lhes reduz) e vice-versa. É uma comunicação feita entre forma e luz, entre a linha estruturante e os contornos tonais suaves dos corpos livres no espaço do seu lugar. E é um espaço que não constrange fisicamente, como se fosse feito mais para ela do que dela. E o mesmo acontece, neste aspecto, com A Virgem dos Rochedos, do mesmo autor, embora estejam albergadas por geologias ameaçadoras, aguçadas, cujos obstáculos ensombrados não impedem, contudo, a claridade do horizonte reencontrar-se com os rostos serenos do primeiro plano. A pintura de Cézanne do período médio, ou segundo, dito “construtivo”, se comparada nestes termos com a de Da Vinci, parece mais uma regressão que um progresso: a natureza e as figuras humanas dir-se-iam paralisadas, tanto do interior, como se quisessem repelir a curio-

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sidade opressiva do observador, mantendo-se tensas na sua vontade de independência ou de pura rejeição das pressões exteriores, quanto pela impossibilidade de movimento provocado pela justaposição das manchas que definem um espaço que com frequência tende para se contradizer a si próprio. O primeiro aspecto explica-se em parte pelo carácter do autor, pelos obstáculos que a sua vontade ao mesmo tempo persistente e insegura teve sempre de vencer, e pela repulsa, quase à Rousseau e retomando certos traços do seu romantismo naturalista, do progresso tecnológico, que todavia absorveu na sua técnica – como se a estrutura lógica da Natureza tivesse emergido através da civilização –, e do falso convencionalismo das relações humanas. Em compensação, nas imagens de Da Vinci, o que aparece em primeiro plano é normalmente uma carnação, uma morbideza irresistível, pura e sensual, que não se deixa assombrar ou ferir, numa indiferença suspeita, por esse fundo de natureza cristalizada. A razão (matemática e anatómica, proporcionada) não se dá a ver, no seu carácter abstracto, na pele dos seres animados. Estes estão, livres, no espaço, não são o espaço. O espaço é a dimensão física e simbólica da liberdade do indivíduo, liberdade cuja consciência começa a emergir no Renascimento. O segundo aspecto, contendo o anterior, manifesta, este sim, e por si, uma originalidade indiscutível, mas não oferece com facilidade a chave do seu génio. Antes, começa por nos afastar dele, como se, devido à ilusão provocada pela sua “cristalografia” colorida, interessasse a Cézanne a substancialidade das coisas, com indiferença a respeito do sujeito da percepção. Adiante elucidaremos o acento protofenomenológico do pintor.

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A modernidade intuitiva de Cézanne e o experimentalismo técnico de Leonardo distinguem-se, pois. Da Vinci desenha, em cenário teórico, a anatomia como “causa” dos gestos nas figuras de cor e luz, contra a mentira e a irracionalidade da sombra. Cézanne, em todo o caso, não parte duma teoria, mesmo sujeita à prova correctora da experiência, pressupondo um método, dois instrumentos mediadores entre o ver e o visto. Cézanne, de acordo com o prisma fenomenológico de Merleau-Ponty e reconheça-se que também nos termos do planeio intuitivo, portanto de algum modo protofenomenológico, que lançou no seu obrar, funda ver e visto um no outro como duas faces do Ser. A correlação do ver com o visto é uma ontologia, da qual eles são as duas faces indissolúveis, não constituem um mero fenómeno perceptivo. A cor de Cézanne, ou antes, para Cézanne, também não é reflexo da luz do espírito nas superfícies naturais, que entra pelos olhos da alma: é substância visível dada à visão dum ser vidente. E, se Leonardo já tem a perspicácia que o leva a evitar confundir o automovimento da Natureza com os efeitos causais provocados pela acção humana, 1 aí está um motivo para meditar sobre a aversão de Cézanne ao dualismo da modernidade racionalista, motor metódico do Ocidente e ideário de cobiça das riquezas delapidadas das O que, como muito bem lembra Mondolfo, não implica agnosticismo mas somente, o que já é bastante, levanta questões de ordem ética, designadamente ecológica, para usar um termo actual. O ecologismo de Cézanne parece-nos, aliás, evidente. No tocante ao tópico epistemológico, escreve Mondolfo: «Em Leonardo há um pressentimento germinal do princípio de Vico: verum ipsum factum; para conhecer a verdade, temos que produzir nós mesmos o objecto do nosso conhecimento.» (MONDOLFO, Rodolfo, Op. Cit., p. 27). 1

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paisagens sensíveis, verdadeiras e profundas como as da Provença.1 Leia-se, quanto aos relativos “limites” do referido método, o que escreve Da Vinci: «Oh! investigador das cousas, não te vanglories de conhecer as cousas que ordinariamente a natureza leva a cabo por si mesma; mas alegra-te de conhece o fim daquelas cousas que são delineadas pela tua mente.»2 Sem ignorar algumas importantes semelhanças éticas e ontológicas entre os dois génios, cumpre referir uma outra passagem do florentino, citada e interpretada por Mondolfo, que, apesar da sua parcialidade trair a epistemologia vinciana,3 também marca distintamente a separação de ambos: «A razão para Leonardo é uma faculdade distinta dos sentidos, pois segundo reza um aforismo do Códice Trivúlzio, discutido por Prantl, Ueberweg e Gentile, “os sentidos são terrestres, e a razão acha-se fora dele quando contempla” [Cod. Triv. 33 r.]. Por esta existência separada, precisamente, a razão consegue extrair da experiência sensível a ideia de causa; [...]»4 A experimentação, a manipulação racional da Natureza apresentava-se a Leonardo como a base condicional da verdade do ilusionismo artístico. Fernando Marías caracteriza assim a mudança de paradigma estético (sinal de passagem ao mundo moderno, industrioso e, no início, optimista) de que o florentino foi um dos primeiros e mais altos cumes: «Era necessária a refundação sobre Feria-se a terra nas pedreiras de Tholonet. «É preciso pintar, antes que tudo desapareça», desabafou um dia Cézanne. 2 LEONARDO DA VINCI, Códice G, fl. 46 r. 3 A que voltaremos. 4 MONDOLFO, Rudolfo, Figuras e Ideias da Filosofia da Renascença, trad. Lycurgo Motta, do original Figuras e Ideas de la Filosofía del Renacimiento, Editora Mestre Jou, São Paulo, 1967, p. 26. 1

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princípios científicos e conhecimentos – da perspectiva1 para a anatomia humana e animal, da meteorologia e geologia para a botânica – de que ela [a pintura] tinha de se servir, como actividades preparatórias da sua tarefa e objectos de imitação. Estes novos fundamentos eram os derivados da observação e da experimentação, de ter em conta – ainda que fosse apenas no papel de um gráfico que as reduzia a um esquema geométrico e a um cômputo aritmético – todas as possíveis variantes, combinações e permutações dos fenómenos naturais. A ciência e a pintura ficavam inextricavelmente entrelaçadas. A segunda dependia da primeira e das suas experiências.»2 Essa razão, descoberta e reproduzida pelo engenho, mesmo que coincidindo no efeito luminoso do aparecer, não é para Cézanne distinguível, mesmo que apenas intelectual e metodicamente, da profundidade visível das coisas. É do ver, e exclusivamente do ver assimilado no seu acto à lógica, às combinações universais e necessárias do visível – na pintura objectivado pela cor – que Cézanne vem para nos tornar presente a unidade do seu real. O sincretismo originário dessa substância visível compreende-se logo pela indistinção, apenas desejada e logo afastada em Leonardo, entre ver e tocar,3 o que não é certamente o caso do pintor provençal.4 No entanto de valor relativizado pelo próprio. MARÍAS, F., Leonardo da Vinci, trad. Eduardo Saló, do original espanhol homónimo, Editorial Estampa, Lisboa, 2000, p. 33. 3 Já posto em destaque pela citação feita atrás dum parágrafo de Sens et Non-Sens de Merleau-Ponty. 4 Seria de algum interesse cogitar associações nas obras dos dois autores com o pai ausente de Leonardo e o pai presente e autoritário de Cézanne, assim como com as posições opostas das respectivas mães. É, porém, sempre perigoso fazer sobressair os factores psicológicos, abstraindo-os dos contextos sociais e das situações 1

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O interessante, todavia – fazendo um parêntesis sociológico que creio pertinente –, é que, entre os quatrocentos anos que os afastam, o mesmo género de impulso social os aproxima, embora por motivos opostos. Arnold Hauser faz notar que a figura quatrocentista do “artista sábio”, atento, na teoria e na prática, às prodigiosas inovações do seu tempo, participando mesmo nelas, reaparece só no século XIX, reflexo da esperança renovada na ciência como instrumento da felicidade e progresso humanos, esperança de classe média contra as tempestades proletárias, compensadora dos fiascos políticos e da sua retórica.1 O próprio Cézanne, sem alienar a lúcida rejeição do mito cientista, sem deixar de exprimir a tensão física e intuitiva do indivíduo face aos constrangimentos sociais, 2 tendo experimentado em si o círculo-vicioso das fantasmagorias agitadas do individualismo romântico, absorve, conferindo-lhes um sentido adverso à sua instrumentalização burguesa, os valores clássicos, imanentes à ciência em si mesma, associados à racionalidade (que não ao “racionalismo”, dogmático, transcendente, unilateral, intelectualizador, dualista), ou à harmonia, ao equilíbrio das

históricas da estética, erro em que, não obstante as suas virtudes psicanalíticas, terá incorrido Freud, na interpretação do sorriso das figuras leonardianas, como sublimação do sorrir erotizado e transferido da mãe ao contacto com o corpo do filho, passível de grave censura. Cf. FREUD, Sigmund, Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci, IV. O entendimento da percepção do mundo natural e humano, com a sua semiótica e as necessidades e formas de se projectar, por sua vez dotadas duma eficácia retroactiva, dificilmente se esgota nos factores psicológicos. 1 Não é por acaso que Cézanne despreza e se isola de todo o assunto político e suas consequência militares. 2 Atente-se nos auto-retratos e nos da sua esposa.

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relações, entendida por Cézanne como a ordem viva de um todo em que o homem se integra e que precisa de compreender e projectar na arte. Merleau-Ponty, em Le Doute de Cézanne, frisa que o provençal não renega os saberes do passado, antes quer atribuir-lhes o devido lugar: «A sua pintura não nega a ciência e não nega a tradição. Em Paris Cézanne ia todos os dias ao Louvre. Pensava que se aprende a pintar, que o estudo geométrico dos planos e das formas é necessário. Ele informava-se sobre a estrutura geológica das paisagens.»1 Disse-se que a originalidade e modernidade de Cézanne residem, em grande parte, na negação do apriorismo, ou de qualquer forma de transcendentalismo da razão. É uma ideia já exposta neste ensaio e que as seguintes palavras de Merleau-Ponty, com algo da sua “ambiguidade” característica, reafirmam mais uma vez, chamando igualmente a atenção para o perigo inerente aos conhecimentos parciais, que acabam sempre por, ignorando os outros aspectos da realidade, ignorarem os seus próprios limites, ou, por desconhecerem os seus limites, distorcerem o conhecimento do real: «Essas relações abstractas deviam operar no acto do pintor, mas reguladas sobre o mundo visível. [...] O que motiva um gesto do pintor, jamais pode ser unicamente a perspectiva ou a geometria ou as leis da decomposição das cores [...] Tratava-se, esquecida toda a ciência, de recuperar, mediante essas ciências, a constituição da paisagem como organismo nascente. Era preciso ensurdecer umas às outras todas as vias parciais que o olhar tomava, reunir o que se

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MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., p. 22.

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dispersa pela versatilidade dos olhos, “juntar as mãos errantes da natureza”, diz Gasquet.»1 Eis como Hauser levanta um arco de ligação entre aquelas duas épocas, desmesuradamente concentradas na expansão da indústria, do comércio e da exploração dos recursos naturais mediante métodos científicos e invenções técnicas: «Nos valores espaciais de Hildebrand, no geometrismo de Cézanne, no interesse fisiológico dos impressionistas, nos interesses psicológicos de toda a literatura moderna, do romance ao teatro, para onde quer que nos voltemos, percebemos um esforço no sentido de encontrar o caminho no mundo da realidade empírica, de explicar o mundo tal como nos é apresentado pela natureza, de multiplicar, de introduzir ordem e estruturar num sistema racional os dados da experiência sensorial. Para o século XIX, a arte é um instrumento de conhecimento do mundo externo, uma forma de experiência de vida e de análise e interpretação do homem. Mas esse naturalismo dirigido para o conhecimento objectivo tem origem precisamente no século XV; foi quando a arte passou pelo seu primeiro curso de treinamento científico.»2 No entanto, o mesmo Hauser, de maneira algo simplificada, refere que entre os dois períodos de expansão multiforme europeia é notória, no capítulo cognitivo, uma dupla divergência de vulto, já aqui aludida por nós: no caso, duas distintas concepções do espaço e da percepção, as quais se tornam manifestas na arte dum Da Vinci e dum Cézanne, ressaltando a importância epistemológica, e não apenas ilusionista, da pintura.

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Idem, Op. Cit., pp. 22-23. HAUSER, Arnold, Op. Cit., p. 346.

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O “espaço agregado” – típico do românico medieval, segundo Panofsky,1 reunindo dois géneros, observáveis no regime iconográfico do São Marcos de Corbie (século XI), de planos de cores lisas sobrepostas, redutor do ilusionismo, dando o mote à planificação das figuras, sobreposição de planos e adjunção de objectos em espaços heterogéneos, e no ciclo de frescos narrativos da abóbada da nave de Saint Savin-sur-Gartempe (século XII), formados por uma sucessão de perspectivas incoerentes e de ordens simbólicas de grandeza, género extremado na picto-literatura sem relevo da Tapeçaria de Bayeux (c. 107383),2 ao ligar entre si imagens incidentais numa longa fita de ordem cronológica, produto duma oficina que não obedecia contudo aos cânones eclesiásticos3 –, o “espaço agregado”, dizíamos, dá lugar, depois do conflito e da procura de equilíbrio entre unidade e pluralidade4 no período Gótico (patente no inacabado das catedrais e no estilo cíclico, no sentido de “concentração”, da composição pictórica), ao “espaço sistemático” (estruturado segundo um sistema de princípios e regras homogeneizadoras), dominador na cosmovisão moderna e na ciência newtoniana.

Reintroduzido e recontextualizado no século XX. Confira-se, por exemplo, no que respeita a Portugal, o “primitivismo” de Rodrigo. A arte desinteressa-se da ilusão pura e investiga outros equilíbrios entre a forma e o símbolo. 2 E as ‘Biblia paupera’, ancestrais da banda-desenhada actual. 3 “Há, na arte primitiva, ausência de composição e impotência de organização dramática: é o justaposto, não o subordinado.” (BAYER, R., História da Estética, trad. José Saramago, do original Histoire de l’Esthétique, Armand Colin, Paris, Editorial Estampa, Lisboa, 1978, p. 104). 4 Não só a nível artístico como no social. 1

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Mas não se caia no equívoco de que o objecto artístico concebido neste novo quadro, ao formar um todo ordenado, reaproxima a arte do cosmo antigo, medieval (melhor projectado, quanto à ortodoxia teológica, na arquitectura bizantina), e até coperniciano. É que, num sofisticado jogo de harmonias e contrapontos com o desenvolvimento estético, o universo, de inspiração cusana e radicalizado por Giordano Bruno, é plural, indeterminado, relativista, mesmo sem fim,1 compartilhando-se aqui o infinito, ao suprimir o “centro”, como pressuposição da perspectiva,2 pressuposição ela mesma geometricamente paradoxal, devido ao “encontro” das paralelas do cubo espacial no ponto-de-fuga da pirâmide óptica, levando, bem ou mal, à suspeita de conflito entre a realidade e a ideia renascentista de percepção. Parece que um “cubo” físico, objectivo, cortado de acordo com as coordenadas ortogonais da geometria cartesiana, e o mesmo “cubo” “medido” em perspectiva dificilmente poderá convencer da “objectividade” da sua nova forma. É, pelo menos, certo que a geometria analítica, postulando zeros referenciais arbitrários mas pressupondo além disso uma isometria absoluta, não sujeita a qual-

Cf. KOYRÉ, Alexandre, Du Monde Clos à l’Univers Infini, Chap. 1, Gallimard, Paris, 1962. 2 «A passagem da visão cosmológica essencial da Idade Média para a modernidade [...] é apreciada, de forma particularmente lúcida, por Nicolau de Cusa. Para Cusa, o mundo não era ainda realmente “infinito” (infinitus), mas “ilimitado” (indefinitus). Ele tornou relativo o centro espacial desse mundo [...], ao explicar que qualquer ponto casual do espaço “pode ser considerado” o centro do universo, assim como a representação perspectiva consegue determinar, livremente, o “ponto de fuga” em que parece “centrar-se” o mundo representado.» (PANOFSKY, Erwin, Op. Cit., nota 64, p. 119). 1

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quer convergência angular que romperia a estrutura totalmente simples do espaço, como linguagem privilegiada das ciências físicas, se substituiu à chamada geometria sintética, mesmo à posterior versão projectiva de Desargues, embora esta já prescinda do ponto-de-vista ao trocar o “cone visual” de Euclides pelo “raio geométrico”, indiferente à “linha de visão”1.2 Hauser resume assim a revolução plástica quatrocentista: «Só a partir da Renascença a pintura se baseou no pressuposto de que o espaço em que as coisas existem é um elemento infinito, contínuo e homogéneo, e de que usualmente vemos as coisas de modo uniforme, ou seja, com um só e imóvel olhar. «O que realmente percebemos, entretanto, é um espaço limitado, descontínuo e heterogeneamente compactado. A nossa impressão de espaço é distorcida e enevoada nas bordas da realidade, o seu conteúdo é dividido em grupos e peças mais ou menos independentes, e, como o nosso campo de visão é esferóide, vemos, em certa medida, curvas em vez de linhas rectas. «A representação do espaço baseada na perspectiva planimétrica, tal como nos é apresentada pela arte renascentista, caracterizada pela igual clareza e pelo formato consistente de todas as partes, o ponto de fuga comum das paralelas e o módulo uniforme de medição da distância, o quadro que L. B. Alberti definiu como a secção transversal da pirâmide óptica, é uma audaciosa abstracção. A perspectiva central produz uma representação do espaço matematicamente exacta, mas impossível no aspecto psicofisiológico.»3 Cf. PANOFSKY, Erwin, Op. Cit., p. 65. Assunto a que teremos de voltar. 3 HAUSER, Arnold, Op. Cit., p. 347. 1

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Foi Cézanne o primeiro, na arte, a romper decisiva e sistematicamente com o domínio estruturante, não só da perspectiva piramidal, ou central, cujas ortogonais tendem para um único ponto evanescente, e da perspectiva de três pontos convergentes, mais diferenciada portanto, e que se lhe seguiu,1 assim como rompeu com a noção correlata do espaço continente, vazio, se bem que real e conformador dos objectos, gerada no Renascimento, elementos estéticos que Leonardo levara à mais alta perfeição2 e às máximas consequências, ou seja, à consciência dos erros que os sustentavam. Não os superou, no entanto, começando por assumir o ilusionismo perspectivo, jogando com as suas formas (lineares e atmosféricas) até ao limite, para depois lhes acrescentar artifícios compensadores, com o fito de tornar mais eficaz a sugestão, artifícios que, de acordo com Fernando Marías, permanecem, tal como a própria percepção, enigmas teóricos. 3 Leonardo, em defesa da visão geometrizada em perspectiva, disse que o desenho: «deu à luz a ciência da astronomia [...] Parte nenhuma existe na astronomia que não tenha a intervenção das linhas visuais e da perspectiva filha da pintura [...] dentro de cujas linhas se incluem todas as várias figuras dos corpos gerados pela natureza.»,4 mas, cada vez mais ciente das imperfeições visuais que provocava, acabou por considerar dever combiná-la com a perspectiva a que chamou de “natural”, aproximada da visão humana, esferoidal e atmosférica. Fê-lo, na tentativa de reduzir as aberrações laterais na percepção Cf. ARNHEIM, Rodolf, Op. Cit., p. 286. No “fresco” A Ceia (1495-98), Refeitório de Santa Maria delle Grazie, Milão. 3 Cf. MARÍAS, F., Op. Cit., p. 43. 4 LEONARDO DA VINCI, Trat. pint., §§ 6 e 17, cit. de Rodolfo Mondolfo, Op. Cit., p. 18. 1

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do plano, curvando-o, aproximando as margens, abrindo os ângulos rectos. Por isso escreveu: «Todos os elementos duma obra realizada de acordo com as suas regras advêm de combinar a perspectiva natural com a artificial.»1 Não é que seja provável Cézanne ter tido consciência, muito menos ao nível da precisão e da objectividade científicas destes problemas aparentemente insolúveis colocados pela geometria euclidiana, e nos seus termos, tanto à correspondência com o real como a respeito da fidelidade à percepção. Mas o certo é que a sua obra se seguiu ao aparecimento das novas geometrias (hiperbólicas e esféricas), com problemáticas originais, supressoras da noção de espaço simples e absoluto, newtoniano, e antecipou os conhecimentos da psicologia acerca da percepção como funcionando em perspectivas sucessivas, não colineares, e, dado imprevisto pela geometria, mentalmente “correctora” em função dum contexto composto de vários aspectos na relação do sujeito com o objecto. 2 Idem, cit. de Fernando Marías, Op. Cit., p. 45. Estas complexidades suspendem um estudioso da Filosofia numa constatação pertinente: posto que a realidade humana é multifacetada e interligada da tal modo que os seus elementos perdem nela a identidade, qualquer estética auto-suficiente, fechada em simesma, termina sempre por um fracasso patético. Foi o caso da monumental filosofia da arte de Hegel, mais preocupado com a filosofia do que com a arte. Hegel falhou redondamente por causa do seu enciclopedismo sintético e dogmático, impressionante mas estéril nas suas ideias gerais, sujeito a um conteudismo idealista que subsumia as formas e elementos plásticos predeterminados no seu finalismo, e julgava prescindir da abertura crítica à investigação empírica, histórica e analítica – o que não o impediu, ressalvese, de nos prendar com uma imensa riqueza e acutilância no estudo dos elementos estéticos e da sua história, a jamais desprezar, mas evidentemente com as limitações forçadas pelo seu sistema metafí1

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Afirma Hauser: «Só em tempos recentes é que readquirimos consciência do facto de que vemos a realidade, não na forma de um espaço coerentemente organizado e unificado, mas, antes, em grupos disseminados de diferentes centros visuais, e de que, quando o nosso olhar se desloca de um grupo para outro, somamos o panorama total de um complexo mais extenso a partir de vistas parciais do todo, tal como fez Lorenzetti nas suas grandes pinturas murais em Siena. De qualquer modo, a representação descontínua do espaço nesses afrescos causa hoje uma impressão mais convincente do que as pinturas desenhadas de acordo com as regras da perspectiva central pelos mestres do Quattrocento.»1 Voltemos, então, ao olhar de Cézanne sobre o espaço e ao seu modo original de o projectar na tela. Desconhecemos se o pintor estava ciente do erro crucial da identificação contraditória do “cubo perspectivo” ou “cubo cenógrafo”, como Pierre Francastel o designava, 2 com

sico. Ignorando o debate quadricentenário sobre a validade da perspectiva, permite-se ainda discorrer nas lições da década de 1820 com esta simplicidade cândida: «Na medida em que os objectos diminuem proporcionalmente à sua distância, e na medida em que esse encurtamento obedece desde logo, na natureza elamesma, a leis ópticas matematicamente determináveis, a pintura deve ela também seguir essas regras que, pelo facto de os objectos serem aqui transferidos numa superfície, recebem um modo específico de aplicação. Eis por que a pintura não poderia prescindir da perspectiva dita linear ou matemática, [...]» (HEGEL, G. W. F., Cours d’Esthétique, III, trad. Jean-Pierre Lefebvre e Veronika von Schenck, da ed. original Hotho, Vorlesungen über die Ästhetik, 1842, Aubier, Paris, 1997, p. 62). 1 HAUSER, Arnold, Op. Cit., p. 347. 2 Cf. para uma sua interpretação sociológica, FRANCASTEL, Pierre, Peinture et Societé, Audin, Lyon, 1951 e Idem, L’Image, la Visi-

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uma secção do mundo externo, pelo menos na concepção cartesiana e nas doutrinas realistas em geral. Este é indiferente ao sujeito e afastável da sua experiência, abrindo um espaço entre sujeito e objecto, a possibilidade dum distinto sentimento da subjectividade, que (subtil ironia) é fornecida mais do que nunca pela cenografia renascentista. Porém, esta, ou o “cubo perspectivo”, é visualmente tangível, no sentido de resultar da projecção do espaço exterior no mecanismo óptico-fisiológico e no seu reflexo mental. Não se trata do mesmo “espaço”.1 Em todo o caso, a ruptura de Cézanne com o espaço unitário da perspectiva uni, bi ou triconvergente, no qual os objectos se inserem e se in-formam, e mesmo, em grande medida, com a perspectiva aérea, que produz um efeito de subjectividade das cores pelo esbatimento dos tons e a mistura gradual de “um pouco mais de azul”, teve um efeito destroçador no olhar habituado ao apaziguamento oferecido pelo ilusionismo duma janela aberta. Em Cézanne, todos os planos se aproximam sem que todavia o espaço seja anulado, a atmosfera se rarefaça e as cores não se esbatam sequer um pouco, como serão mais tarde os casos do Fauvismo e do Abstraccionismo. Mas a atmosfera torna-se translúcida. As cores do horizonte são quase tão saturadas como as do primeiro plano. Por outro lado, a noção perceptiva do espaço é modificada. O espaço deixou de se confundir com qualquer das suas variantes tradicionais: com o não-ser ou o continente nada, com o “vazio” do cubo cenógrafo, com o

on et l’Imagination, Denoel Gonthier, Paris, s/d, de cujas teses trataremos mais tarde. 1 Cf. DORFLES, Gilles, A Evolução das Artes, trad. Baptista Bastos e David de Carvalho, do original Il Divenire delle Arti, Editora Arcádia, Lisboa, s/d, p. 120.

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absoluto indiferente, isotrópico (que apresenta as mesmas propriedades, relações e coerência de forma em todas as direcções). No período construtivista de Cézanne, já não é o espaço intangível, vazio e omnipenetrável de Newton1 nem é a “substância contínua” cartesiana, por onde as densificações visíveis circulam em vórtices estranhos.2 Com o pintor provençal, o espaço vai constituir-se, delimitar-se em contraponto, distorcer-se, ou formar-se, na estrutura e relação das coisas perceptíveis, perceptibilidade pela qual o espaço se dá a intuir nas suas formas, configurando com elas a própria substância. Deixa de haver continente e conteúdo mas a sua constituição essencialmente mútua. Por isso, doravante: A) não é um espaço métrico ortogonal, não é distinto da visão propriamente dita do volume transparente e do volume opaco: a visão é co-compositiva do espaço; B) não é um espaço de tendência unitariamente perspectivo, como o das convenções renascentistas: é identidade entre visão cinestésica e idealidade do visível. C) O espaço chega a ser anisotrópico, incoerente para os postulados e axiomas euclidianos, quebrado os-

No Scholium às definições dos Principia Mathematica Philosophia Naturalis, Newton é explícito na sua definição do «espaço absoluto, por sua natureza sem relação com nada de externo, permanece sempre igual e imóvel.» 2 É interessante notar como a caracterização cartesiana ontológica do espaço está, em alguns aspectos, mais próxima de Cézanne que a de Newton, mas, simultaneamente, é fácil de perceber a distância que entre eles se interpõe (malgrado a fraqueza patriótica de René Huyghe) quando a substancialidade do espaço é, em Descartes, deduzida a priori e reduzida à quantidade extensional, representada no cubo ortógono “indeterminado”. 1

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tensivamente em múltiplas perspectivas e composto pela intercombinação da forma e substância das coisas, equilibradas pela pluralidade simultânea dos pontos-de-vista instáveis: é a visão concreta do concreto, da análise abstractiva à síntese lógico-sensível, prefigurando o cubismo. Um dos mais belos e claros exemplos é, já no fim do período construtivista, o de Natureza Morta com Cesto de Fruta (V. 500), de 1893-94. Hajo Düchting descreve assim a impressão produzida: «é irritante a discrepância entre o espaço natural e o espaço pictórico, a perspectiva distorcida de alguns objectos e a ruptura das extremidades que, normalmente, deveriam ser rectilíneas.»1 Todo o saber, todos os valores e todas as ilusões humanas foram, pois, convocadas para o apresentar na sua arte como uma imagem do próprio espírito intuitivo. Parece que, tanto a intuição do erro da quantidade pura, o reconhecimento das dimensões subjectivas do olhar, a convicção da existência duma estrutura profunda do Ser e o “realismo” pré-galilaico, que coloca no plano da Natureza todas as qualidades sensíveis, se interligam para identificar num místico espelho de duas faces – correlativamente abrindo para o interior e para o exterior – o espaço em que se mostra o saber do Ser e o Ser do saber – motivos que, sob a radical diferença dos seus resultados plásticos, finalmente aparentam Cézanne a Leonardo quanto às respectivas ideias sobre a arte. Claro que a originalidade do pintor de Aix não fica abalada com esta comparação. Voltemos, pois, com Carlo Argan, um teórico da arte com ascendência fenomenológica e influência marxista, à tradução do seu génio: «A profundidade, portanto, não está no vazio em torno das coisas, e sim dentro da matéria da cor, e não é apenas 1

DÜCHTING, Hajo, Cézanne, p. 185.

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densidade, mas estrutura quase cristalina das massas cromáticas.»1 Cézanne quis assim mostrar no quadro, já não uma janela ilusionista, mas a superfície dos corpos enquanto manifestações de estruturas reais de cor, e também oferecer a simultânea presença da sua aparência e da sua profundidade. É no plano da própria cor, doadora de forma e volume, que o espaço se constitui no olhar e o olhar se constitui no espaço. Até o não-visto se dá a ver no visível. A arte tem que ser um duplo verdadeiro, que nos faz perceber o mundo como é e como o sentimos realmente. «Vemos, por exemplo, apenas uma parede da casa onde a luz se solidifica e forma uma camada; porém basta a cunha de sombra que a separa da construção vizinha para se sentir o volume, como um cubo do qual se vê apenas um lado.»2 O percurso do provençal não é, pois, o de definir as coisas pelas proporções belas e universais, caras aos renascentistas e contidas num palco planimétrico e piramidal, a priori. Estas proporções deixaram na História da arte uma influência duradoura. Mas agora o artista começa a ver na superfície colorida singular dada, desenhando mentalmente uma geometria de assentamentos geológicos ou de convexidades corporais, para, fundindo-a nas cores, oferecer à visão a qualidade material das coisas no espaço volumoso. As relações deste espaço são as das próprias coisas construtoras do mesmo, mas definindo neste a sua identidade. Veja-se a Pedreira de Bibémus, 1900, V. 767, já do período sintetista. Também contrariando os impressionistas, Cézanne quer, mediando de algum modo o cubismo, embora por 1 2

ARGAN, Carlo, Op. Cit., p. 111. Idem, Op. Cit., p. 111.

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um processo algo diferente, desdobrar no ver da superfície a dimensão da profundidade real. É assim que se compreende por que insiste – opondo-se ao renegar impressionista do passado – na percepção inteligente do mundo objectivo, em vez de se estreitar na análise subjectiva da visão, mas doravante fazendo-o de maneira original, pela apreensão, na experiência sensível, da geometria das cores modeladoras. Citemos uma das passagens mais líricas e exactas (longa como um devaneio rigoroso, a exuberância do rigor intuitivo) da sua conversa com Gasquet: «Nós somos um caos irisado. Chego diante do meu motivo, perco-me nele. Sonho, vagueio. O sol penetra-me surdamente, como um amigo distante, que aquece a minha preguiça, a fecunda. Germinamos. Parece-me, quando a noite volta a cair, que não pintarei e que jamais pintei. É preciso a noite para que possa separar os meus olhos da terra, deste pedaço de terra no qual me fundi. Uma bela manhã, no dia seguinte, lentamente as bases geológicas aparecemme, as camadas estabelecem-se, os grandes planos da minha tela, desenho-lhes mentalmente o esqueleto pedregoso. Vejo aflorar as rochas sobre a água, pesar o céu. Tudo fica equilibrado. Uma pálida palpitação envolve os aspectos lineares. As terras vermelhas emergem dum abismo. Começo a separar-me da paisagem, a vê-la. Afasto-me dela com este primeiro esboço, estas linhas geológicas. A geometria, medida da terra. Uma terna emoção toma conta de mim. As raízes desta emoção fazem subir a seiva, as cores. Uma espécie de libertação. A irradiação da alma, o olhar, o mistério exteriorizado, a troca entre a terra e o sol, o ideal e a realidade, as cores! Uma lógica aerífera, colorida, substitui bruscamente a sombra, a cabeçuda geometria. Tudo se organiza, as árvores, os campos, as casas. Vejo. Por manchas. O assentamento geoló-

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gico, o trabalho preparatório, o mundo do desenho afunda-se, desmoronou-se como numa catástrofe. Um cataclismo levou-a de vencida, regenerada. É chegado um novo período. O verdadeiro! Aquele em que nada me escapa, no qual tudo é denso e fluido ao mesmo tempo, natural. Não há mais nada do que cores, e nelas a claridade, o ser que as pensa, esta subida da terra para o sol, esta exalação das profundidades para o amor. O génio seria imobilizar esta ascensão num minuto de equilíbrio, sugerindo mesmo assim o seu impulso.»1 O lema de Cézanne poderia ser: nem logos sem sensibilidade nem sensibilidade sem logos. Portanto, o misticismo imanente, pagão sem deuses, de Cézanne, tal como, de outro modo, o de Leonardo, estabelece paradoxalmente um frutuoso diálogo estético com certos elementos da atitude científica e seus métodos objectivos, assim que através da arte se reconheça a sua origem no contacto com o mundo natural e que se deva regressar à experiência desse mesmo contacto, confrontando-a com a sua verdade pela noção dos seus erros.2 É esta a interpretação de Merleau-Ponty, num parágrafo do seu texto de 1948 La Doute de Cézanne, parágrafo que constitui, nem mais nem menos, a síntese do “programa fenomenológico” que começou a desenvolver em obras como La Structure du Comportement, de 1942, CÉZANNE, Paul, in GASQUET, Cézanne, Cynara, Dijon, 1988, pp. 136-37. 2 É uma espécie de regresso do “filho pródigo”. A racionalização das intuições de Cézanne transformam-nas em Merleau-Ponty numa oposição entre a ideia duma ciência operacionalista, pelo menos desde Galileu, e a ideia duma “ciência fenomenológica”, como “reflexão introspectiva” fundada no “vivido” da experiência subjectiva e tendo-o igualmente por “objecto” originário de todo o saber. Haveria talvez de considerar outros conceitos de ciência. 1

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e Phénoménologie de la Perception, de 1945: «Cézanne não acreditou dever escolher entre a sensação e o pensamento, [...] Ele não faz uma separação entre “os sentidos” e a “inteligência”, mas entre a ordem espontânea das coisas percebidas e a ordem humana das ideias e das ciências. Nós percebemos as coisas, ouvimo-nos nelas, estamos ancorados nelas e é sobre este alicerce de “natureza” que construímos as ciências. Foi este mundo primordial que Cézanne quis pintar, e eis por que os seus quadros dão a impressão da natureza na sua origem, ao passo que as fotografias das mesmas paisagens sugerem os trabalhos dos homens, as suas comodidades, a sua presença iminente. Cézanne jamais pretendeu “pintar como um bruto”, mas remeter a inteligência, as ideias, as ciências, a perspectiva, a tradição, ao contacto com o mundo natural que estão destinadas a compreender, a confrontar com a natureza, como ele diz, as ciências “que saíram dela”.»1 Por outro lado, espanta-nos como a obsessão pela estrutura e estabilidade de Cézanne se aproxima da mundividência relativista, essencialmente dinâmica mas contestada pela Fenomenologia, designadamente a de Merleau-Ponty, por definição enraizada na dita “experiência originária do vivido”. E, devido à suspeita de rebeldia da arte do autor das cristalinas Sainte-Victorie, irradiando cor própria, a ser por completo reduzida a esta ou àquela teoria, é difícil resistir a citar um excerto do livro de Dias Gomes, A Relatividade de Alberto Einstein, não ainda para cotejar a intuição do espaço de Cézanne com a concepção de estrutura não-intuitiva do mesmo na física relativista mas, por enquanto, apenas para mostrar como condutas mentais, procedimentos e meios na aparência opostos se encon1

MERLEAU PONTY, Maurice, Sens et Non-Sens, pp. 18-19.

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tram numa imagem similar do sujeito, do objecto e da relação entre ambos: «Nada nos impede de imaginar espaços sem objectos, milésimas de milésimas de mícrons, biliões de biliões de quilómetros ou anos-luz, mas nunca devemos esquecer de distinguir entre as nossas imaginações e as realidades. De resto somos impelidos nesta confusão entre imaginações e realidades pela própria Ciência que nos obriga a raciocinar sobre entidades sem realização possível. Quem será capaz de obter “um ponto” ou “uma linha” que realize as características das suas definições? A ideia destas entidades geométricas é o limite extremo a que chegaram as percepções separadas das realidades. Temos uma tendência de dar existência imaginária a entes irrealizáveis. E foi desta maneira, por jogo de imaginação ou abstracção, que criámos a existência de um espaço separado dos objectos. Em resumo: se existe um espaço diferente do nosso, nada podemos saber dele. O nosso espaço, por nós conhecido e com o qual trabalhamos nos nossos raciocínios, não é uma entidade absoluta, separada dos objectos, mas um produto de inteligência que deriva da existência simultânea de objectos distintos, à qual chegamos pelas nossas sensações nervosas.»1 Não é, pois, de admirar, retomando as intuições de Cézanne sobre o nascimento comum e simultâneo da inteligência e da percepção, às quais faz corresponder a unidade da linha e da mancha, que junto com a ideia segundo a qual «o desenho e a cor não são de modo algum distintos; à medida que se pinta, desenha-se; quanto mais se harmoniza a cor, tanto mais o desenho se precisa. Quando a cor atinge a sua riqueza, a forma atinge a pleniGOMES, Dias, A Relatividade de Alberto Einstein, Edição do Autor, Lisboa, s/d, p. 49. 1

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tude.»,1 também ele faça esta célebre afirmação: «tudo na natureza se modela como a esfera, o cone e o cilindro, é preciso aprender a pintar de acordo com estas figuras simples, poder-se-á em seguida pintar tudo o que se quiser.»2 Há, com efeito, na pintura de Cézanne, se a compararmos com a arte produzida desde a Renascença, uma “estranha” simplificação da paisagem, mais do que aquela que toda a pintura implica, nos infinitos pormenores que se nos oferecem, essa “estranheza” ou desconforto provocado no olhar funcional, orientado, objectivo, tecnicamente educado, por uma arte em que a própria visão é, segundo ele e a nossa surpresa, tratada como uma coisa que ao mesmo tempo pensa, uma visibilidade que vê.3

CÉZANNE, Paul, in BERNARD, Émile, Souvenis sur Paul Cézanne / Une Conversation avec Cézanne, Paris, 1926, p. 32. 2 Idem, Op. Cit., p. 31. 3 Quanto à “simplificação”, progressivamente geometrizadora, resulta daquilo que René Huyghe (e que se lhe perdoe a sua crença no latinismo) destaca no procedimento do nosso artista, reiterando o que fora dito por nós: «Após ter restabelecido o objecto no seu volume, que define à vez a sua realidade e a sua forma, Cézanne quis reconstituir o espaço em que ele se situa. Teve de recorrer ao princípio essencial da arte tradicional latina: a sensação controlada e trabalhada pelo espírito. É a inteligência do pintor, que, em vez de se abandonar passivamente às sensações, como no Impressionismo, as dirigirá e soltará a sua claridade, o seu sentido. É preciso, desde logo, escreve a Bernard em Abril de 1904, “tratar a natureza pelo cilindro, a esfera, o cone, o todo posto em perspectiva, ou seja: que cada lado de um objecto, de um plano, se dirija para um ponto central.” Os volumes, assim sublinhados, interpretados, tomarão uma existência melhor afirmada.» (HUYGHE, René, Op. Cit., pp. 212-13). 1

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Em resumo, e tendo em conta os elementos considerados na tela pelo artista, enunciemos os conspectos seguintes: Na percepção da cor – dirá o esteticismo fenomenológico – já há pensamento como dois aspectos da própria percepção, sem que haja, assim, precedência do cogitar sobre a imagem, ou vice-versa. O sujeito não se deixa mergulhar passivamente num espaço de vibrações, na medida em que é capaz de distinguir a estrutura que o estabiliza em volumes substanciais equilibrados em função do local, perspectiva e momento, ou seja, de maneiras diferentes em cada caso, numa actividade perceptiva que não obedece a regras a priori mas à situação sensível do sujeito (ser vidente, como diria Merleau-Ponty) na paisagem, na qual se define a forma da sua percepção, sujeito que projecta no visível real do seu ver as modalidades eternas da natureza humana, que residem no íntimo da Natureza em geral. É a presença do ser originário no ver anterior a preconceitos e juízos, no qual as categorias duais e as abstracções intelectuais não têm ainda cabimento. De qualquer modo, destacam-se dele, na “experiência primordial do olhar”, como formas universais, alusões geométricas, mas estas são, no serem ao mesmo tempo modeladas pelo visível, percepções percebidas na unidade sujeito-objecto. Essas percepções identificam-se com objectivos espaços de cor, sólidos e aéreos, cristalinos e opacos. Tais espaços são simultaneamente equilibrados, dotados de vitalidade própria e estabelecendo correspondências, constituindo realidades que não se diluem em reflexos mútuos. E é a partir daqui que Cézanne vai deixar espreitar um pouco do seu “mistério”.

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É este “mistério”, cujo desenvolvimento será guardado por nós para mais tarde, que Mário Dionísio entreolha ao dizer: «Quando a transcrição do objecto deixou de lhe oferecer dificuldades, [...] Sentia o que é para lá do que se vê, embora mergulhado no que se vê. A sua tarefa continuava a ser a de procurar uma nudez essencial que o dominava, a de atingir o íntimo das coisas, a sua força escondida.»1 Ora, o que se esconde para Cézanne, ele não vai descobri-lo na subjectividade condicionada pela cultura, e muito menos numa pseudo-objectividade matemática, cujo fracasso foi por demais evidente no caso da perspectiva linear e que, em termos metafísicos, foi denunciado pelos fenomenólogos. As palavras do autor de A Paleta e o Mundo, Mário Dionísio, conseguem tocar agora na mais íntima e talvez patética aspiração de Cézanne, a do equilíbrio perfeito entre a necessidade de se projectar reflexivamente no visível e a serenidade mística realizada na percepção primordial de uma participação primordial como Ser: «Lá, na zona sem data, anterior a toda a experiência histórica, na “virgindade do mundo” que Cézanne obstinadamente procurava, sem sombra de anedota, de referência precisa, de contacto, era ainda uma sede insaciável de contacto e de expressão desse contacto que o guiava.»2 Em suma, «A vida inteira, Cézanne interrogou a natureza e se interrogou diante dela.»3 É por isso que – insistimos – a destruição por Cézanne do espaço renascentista (a contemplação a partir dum ponto único do espaço isotrópico, cúbico e continenDIONÍSIO, Mário, Op. Cit., p. 135. Idem, Op. Cit., p. 139. 3 Idem, Op. Cit., p. 140. 1

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te indiferente aos objectos, por sua vez constrangidos à perspectiva linear desse ponto de observação objectivado, a que o sujeito, quando se coloca nesse ponto, se sujeita como a uma subjectividade exterior 1) deve ser entendido simultânea e correlativamente: A) enquanto reinvenção do espaço no sentido da combinação de equilíbrios entre os objectos e entre a multiplicidade de perspectivas que quebram a identidade “objectivista” do espaço em si mesmo, integrando um sistema de relações objectivas visíveis, numa dialéctica de presenças e ausências, condicionantes das e dadas às posturas da visão harmonizadora; e, B) enquanto é definido, nessa medida, como unidade de consciência e objecto ou o do ver e visível, isto é, da intencionalidade da percepção despertada pela aparência sensível dos objectos nos quais a visão se constitui, se molda e vê e pela qual, numa simultaneidade indiscriminável, os objectos se mostram tais quais são e tais quais são enquanto visados, unidade esta que C) possui uma biografia: a biografia do olhar e da interdependência com a sua projecção objectiva, onde se divisa o suceder consistente das correspondências entre as diversidades objectivas visíveis, com os seus valores, e o ver que as acompanha e se vivifica na percepção das suas perspectivas e valores possíveis, na dialéctica da sua presença e da sua ausência. A “percepção primordial”, em suma – no prisma fenomenológico, muito próximo do intuicionismo estético de Cézanne –, não se funda numa estrutura a priori mas

A perspectiva racional é uma projecção do cone, ou pirâmide, visual invertido sobre um plano físico, onde a imagem é fixada. Daí que constitua uma objectivação do subjectivo e não exprima a estrutura real do espaço. 1

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é o constituir-se da relação sujeito-objecto: o constituir-se do sujeito pela motivação dos caminhos propostos, prognosticáveis pelos vectores espácio-temporais em que se apresenta a matéria sensível na sugestão dos objectos possíveis; o constituir-se do objecto pelo visar prognóstico do sujeito. Nesta, o Ser torna-se sensível, expondo-se mesmo naquilo que oculta, e tal como é dado à percepção do sujeito na medida das perspectivas do contacto corporal que este estabelece com ele. E, nisso mesmo, o Ser torna-se expressão das condições de vida do sujeito, objecto percebido das suas necessidades e forma e conteúdo do movimento do sujeito reflectido na sua percepção. Visando representar a complexidade da situação vital, aquela redução das formas recolhe uma combinatória interminável de elementos vivos, combinatória que é o sujeito sensível a si mesmo pela sensibilidade ao mundo experimentado: o diálogo em que um se produz pelo outro. Esta “epifania” do Ser por si-mesmo através do sujeito – nas derradeiras Sainte-Victoire – é na verdade a harmonia conseguida entre o clássico e o sublime, porque essas composições foram elaboradas num equilíbrio dinâmico perfeito, levando as facetas cristalinas a reverberarem, transmitindo um impulso interior, e a relacionarem-se activamente entre si, sugerindo o sentido sensível, nascendo da vida que impera em tudo e transcende, no modo essencial de ser, a passagem do tempo e os seus destroços.1 Não se trata do “sublime” como categoria romântica, associada à representação angustiada do “desmesurado”, mas duma espécie de contacto místico, sereno, sólido e pleno. Será, portanto, o “sublime” da mais alta consciência do valor da Terra para o Homem, em vez do critério inefável da irrisão do mundo e da pequenez humana. Cézanne projecta, pelo contrário, na sua arte uma síntese da 1

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Até as pedras têm uma vitalidade interior, um princípio sensível parente do mais fundamental da alma humana.1 Escreve René Huyghe: «Desde 1880 vê-se destacar o acento geométrico das formas: o volume ovóide das cabeças nos seus auto-retratos (colecções Behrens, Museu de Moscovo, etc.), na do jovem Louis Guillaume; nas suas paisagens os contrastes nítidos dos planos conferem às casas, às rochas um relevo alucinante. O desenho de curvas espessas e apoiadas da sua juventude mudou-se em arestas rectilíneas, cortantes, que fazem fulgurar o revelo.»2 Merleau-Ponty fala desta inseparabilidade do sujeito e do objecto tal como, segundo ele, é tratada por Cézanne: «Se o pintor quer exprimir o mundo, é preciso que o arranjo das cores importe em si este Todo indivisível; [...] É por isso que cada pincelada dada deve satisfazer uma infinidade de condições, é por isso que Cézanne meditava de vez em quando durante uma hora antes de a pôr; ela deve, como diz Bernard, “conter o ar, a luz, o objecto, o plano, o carácter, o desenho, o estilo”. A expressão do que existe é uma tarefa infinita.

existência e da essência, mostra-nos a imanência do transcendente, faz-nos ver a liberdade na necessidade. Argan diz que Cézanne alcançou um “Classicismo integral”. Isto poderia ser interpretado como significando a realização imanente, viva, a posteriori, do ideal do belo, da harmonia, na arte enquanto unidade indissociável do sensível e do inteligível. 1 O que lembra aquilo a que alguns apelidam de “hilozoísmo” de Diderot. 2 HUYGHE, René, Op. Cit., p. 213.

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«Nunca Cézanne negligenciou a fisionomia dos objectos e dos rostos, ele pretendia captá-la somente quando emerge da cor.»1 Ao pretender recuar ao ver puro e, a partir dele, sintetizar nele a experiência humana, Cézanne, afirma Liliane Brion-Guerry, refaz todo o caminho histórico da intuição do espaço: «Exemplo muito raro, este pintor cultivado2 sabe preservar a pureza da sua sensação; ele recusa a escora demasiado fácil dos sistemas preconcebidos; ele não conhece o auxílio construtivo – essa armadura tranquilizante – que é a perspectiva clássica, graças à qual é realizada, a priori, o equilíbrio espacial duma composição. Ele submete-se a todas as experiências, como se fosse o primeiro a enfrentá-las. Refaz por si-mesmo, só, o caminho percorrido antes de si pelos seus percursores, [...] Através da sua obra, é pois a história inteira do sentimento espacial que é possível seguir, com avanços e recuos aparentemente inexplicáveis, mas na realidade perfeitamente lógicos.»3 Carlo Argan, após reiterar a constatação de Liliane Brion-Guerry da recusa por parte do pintor de Aix das fórmulas visuais rotineiras e esclerosadoras, académicas ou “ingénuas” – conservadoras dum período civilizacional que se desagrega –, considera, com Merleau-Ponty, que para Cézanne não há uma realidade em si definitivamente arredada do sujeito nem um entendimento em si, que construiria por esquemas o seu conteúdo, mas uma unidade primordial sensível, entre o corpo vivo e a Natu-

MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., pp. 20-21. Visitante assíduo do Louvre na sua juventude, leitor apaixonado dos clássicos. 3 BRION-GUERRY, Liliane, Cézanne et L’Expression de L’Espace, Éditions Albin Michel, Paris, 1966, p. 17. 1

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reza, unidade primordial à qual é inerente uma oposição de correspondências reciprocas, unidade ambígua, sem solução de continuidade, do em-si e do para-si, do visível e do ver, do objecto e do sujeito na qual e a partir da qual se vão, portanto, constituindo as diferenças que fazem nascer a consciência e as diferenças na consciência:1 «A pintura de Cézanne, enfim, não parte duma concepção espacial a priori, o espaço não é uma abstracção, é uma construção da consciência, ou melhor, o construir-se da consciência através da experiência viva da realidade (a sensação). O pintor, portanto, representa não a realidade como ela é, nem como a vemos sob o variado impulso dos sentimentos, mas a realidade na consciência ou no equilíbrio absoluto, finalmente alcançado, entre a totalidade do mundo e a totalidade do eu, entre a infinita variedade das aparências e a unidade formal do espaçoconsciência.»2 Esta interpretação é tão paradoxal quanto a pintura do mestre. Uma tentativa de desenredar semelhante paradoxo já insistentemente frisado mas, parece, ainda não resolvido com a lucidez plástica desejável, poderia começar com aquela oposição radical (pelo menos aparente), apresentada num quadro de 1870, a que terá chegado como a uma necessidade existencial de desafiar diante de si e dos outros a oposição, romântica ou positivista, entre sujeito e objecto e de mostrar nessa tensão insuportável, experi-

«Antes da expressão, não há senão uma febre vaga, e só a obra feita e compreendida provará que se devia encontrar lá alguma coisa mais do que nada.» (MERLEAU-PONTY, Maurice, Sens et Non-Sens, pp. 24-25). 2 ARGAN, Carlo, Op. Cit., p. 113. 1

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mentada por si desde 1859, a impossibilidade de compreender a verdade dos seus termos fora um do outro. O quadro A Trincheira – do início da 2ª fase (estando esta aproximadamente delimitada entre 1870, por aqui terminado, embora com recaídas, o “período sombrio”, romântico, alegórico e religioso, e 1895), fase construtivista a que não será completamente inexacto denominar de “período sintético”, mas bem diferente do “sintetismo” vivo posterior, o da correspondência da percepção integral com o objecto na multiplicidade dos seus modos de aparecimento, que é o do último período1 –, o quadro Trincheira, dizíamos, inaugura a singularidade daquele Cézanne que procurará tematizar, pela primeira vez, se bem que ainda de maneira paradoxal ou confrontadora, a aproximação recíproca do ver ao visível, na medida em que este é a substância real ou substânciaperceptível. Esta procura conduziu Cézanne a noções ambíguas de acto perceptivo e de objecto percebido, ou seja, nas quais se confundem propriedades semelhantes nos termos da relação, ainda que referidas aos dois momentos opostos. Não é por acaso que o pintor feitiço do fenomenólogo Maurice Merleau-Ponty é, como sabemos, Paul Cézanne. O labor pictórico deste e o seu pensamento condutor, posto em forma de meditações escritas e de entrevisÉ um parágrafo da obra já citada de Brion-Guerry que apoia esta sugestão. A referida segunda fase é um período de sínteses imperfeitas, sendo por enquanto incapaz de integrar continente e conteúdo, espaço e elementos nele figurados. Cf. Ibidem, pp. 149-50. Mas é preciso reconhecer que A Trincheira é uma obra única, a mais conseguida desse período, realizada logo no seu início e nunca mais repetida. No período final, observar-se-á nas suas telas a cristalização reverberante dos objectos formadores das estruturas do espaço. 1

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tas, foi, de facto, mais tarde tematizado e interpretado ou, talvez, assimilado, de uma maneira filosoficamente erudita por Merleau-Ponty, com as mudanças, ou adequações, a que essa mesma erudição conduziu. “Substância-perceptível” é, à luz da Fenomenologia de Merleau-Ponty, um termo composto para ser compreendido na sua ambiguidade de substância real e de imagem substancial. Esta ambiguidade reside na noção de que é impossível, simultaneamente, separar a percepção do percepcionado e de a confundir com este. A percepção visa um objecto cuja substância individual aparece como uma síntese de percepções possíveis, sob a qual, enquanto horizonte interminável, nenhum resíduo resta. Porém, na medida em que a percepção é um acto que visa, ela não se pode confundir com o elemento visado – caso em que deixaria de ser acto para se reduzir ao objecto, deixando de haver percepção –, objecto que, aliás, é visado sempre na forma indefinidamente constituinte de presenças e de ausências. No entanto, a percepção é um acto de visar, realiza-se como visão e nada mais do que como visão de um qualquer visível para o qual ela se dirige. O conteúdo da percepção é o objecto visado enquanto conteúdo percebido. Se o acto perceptivo é o polo subjectivo da percepção, não se deixa contudo de pensar, com Merleau-Ponty, que a substância do objecto é a sua perceptibilidade, que é, portanto, o polo objectivo da percepção. Ora, na medida em que o objecto desta é a perceptibilidade, fica a parecer que o objecto, na sua substância própria, é um elemento indissociável do acto perceptivo, como que estando contido nesse acto. Se, por sua vez, o acto perceptivo tem por conteúdo e forma o ser-percebido objectivo, fica a parecer que o próprio objecto é a substância do sujeito.

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A percepção parece residir no objecto percebido, na medida em que este é essencialmente imagem substancial, e parece, em simultâneo, de maneira paradoxal, ser um acto subjectivo. Já era um o filosofema desconcertante aquele de Merleau-Ponty segundo o qual “tenho na percepção a coisa mesma, e não uma representação”. 1 O filósofo vai acrescentar, no seu típico estilo metafórico, registo apropriado à expressão da ambiguidade e sincretismo dos termos de sujeito e de objecto, a noção de uma perceptibilidade objectiva, que existe em si: «O visível em volta de nós parece repousar em si-mesmo. É como se a nossa visão se formasse no seu coração [...].»2 Mas é claro que Merleau-Ponty também não pode deixar de escrever, no ensaio O entrelaço – o quiasma: «E, todavia, não é possível que nos fundamos nele, nem que ele passe para nós, porque então a visão desvanecerse-ia no momento de se fazer, por desaparecimento, seja do vidente, seja do visível. O que há, então, não são coisas idênticas a si-mesmas que, posteriormente, se ofereceriam ao vidente, e não é um vidente, vazio à partida, que, posteriormente, se abriria a elas, mas qualquer coisa de que só nos poderíamos aproximar palpando-as com o olhar, coisas que não poderíamos sonhar ver “todas nuas” porque o olhar mesmo as envolve, as veste com a sua carne».3 Voltaremos a esta questão da “ambiguidade” mais à frente. Essa essencial identidade não coincidente da percepção com o seu objecto, tematizada especulativamente

MERLEAU-PONTY, Maurice, Le Visible et i’Invisible (1964), Gallimard, Paris, 2001, p. 21. 2 Ibidem, p. 171. 3 Ibidem, p. 171. 1

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por Merleau-Ponty, consubstancia-se, na obra plástica amadurecida de Cézanne, na compenetração visual da paisagem vista, mais do que na sua representação, e é por esse meio que o pintor vai abandonar a violência subjectiva que fazia dos seus objectos reflexos agressivos duma revolta anti-convencionalista, anti-ritualista e antiburguesa, revolta contida e transposta, por exemplo, num certo olhar subjectivista e antropomórfico dos objectos, como se observa nos olhares acossados devolvidos pela natureza morta intitulada O Relógio de Mármore Preto, ainda de 1870.1 Também em quadros como O Eterno Feminino, se manifesta esse maniqueísmo inquieto e essa misoginia dolorosamente consciente. Estes quadros não fariam a glória de qualquer artista. Cézanne compreendeu-o não só da maneira mais íntima como na forma da intuição do anedótico que era a sua polémica sentimental com os fantasmas do corpo e com os valores sociais. A monumentalidade de A Trincheira parece manifestar o risível da subjectividade particular, autodestrutiva, e a consciência da impertinência humana perante a majestade do Ser e a solidez da Natureza, a factura custosa que a consciência paga às frivolidades do momento. Cézanne procura também algo para além do mito positivista, ou social-evolucionista, segundo ele, e de outras ilusões, também familiares ao positivismo, como o pragmatismo e o utilitarismo.2 O que atesta o facto do desenvolvimento não linear da sua obra e as dúvidas que sempre o assaltaram quanto à realização plástica da identidade entre os fundamentos da realidade dada e a consciência perceptiva, quanto o fim estético, eticamente motivado, da actividade do artista. 2 Estava na moda, entre os ideólogos das classes favorecidas, o “evolucionismo” de Herbert Spencer (1820-1903), teorizador do 1

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A partir daqui, Cézanne vai rejeitar decisivamente a tendencial atitude analítica, “cientista”, dos impressionistas, assim como o romantismo ressentido, na sua decadência pessimista, tragicómica, tão oposto à grandeza telúrica e revolucionária do romantismo de Delacroix, posturas unilaterais segundo a sua intuição – ambos transpondo os motivos em espaço pictóricos segregados do mundo vivido –, e dedica-se à síntese universalizada das composições singulares, à autenticidade do imediato. Mas a este, como sabemos, só podemos aceder mediante um trabalho de desconstrução das camadas culturais que o encobrem.1 “organicismo” ou “darwinismo social”: «Spencer considera que a lei da evolução é completamente aplicável aos fenómenos sociais. A sociedade burguesa, porque nela se encontra altamente desenvolvida a divisão do trabalho (a diferenciação) e grandes massas de homens se vêem subordinadas a uma só organização política (a integração), é apresentada por este sociólogo como um grau superior de desenvolvimento da humanidade, sob o qual se realiza um estável “equilíbrio móvel”.» (POKROVSKI, V., História das Ideologias, IV, trad. Luís Silva, Editorial Estampa, 1972, p. 106). Nada mais avesso a Cézanne que esta absurda glorificação naturalista da sociedade burguesa. 1 Permita-se-me esta consideração intempestiva: há nisso algo de semelhante à Totalidade hegeliana, ainda não “conseguida” nesta fase. A análise não está todavia fora das composições de Cézanne. Embora a estrutura destas não seja antepensada, a análise funciona precisamente como o reconhecimento das comunicações cromáticas entre os elementos e seus facetados e dos equilíbrios globais que sustentam a síntese, a sua harmonia singular, realizada nas Sainte-Victoire finais. Estamos, pois, diante de mais um elemento a acrescentar à complexidade da arte do mestre de Aix. Sem dúvida que Cézanne fugia do tecnicismo mas tal não impede que, nesse mesmo esforço, se imiscua o espírito do tempo, assim nos dá a entender Herbert Read: «Não se pode chamar com exactidão a Cézanne um espírito científico, no sentido de Seurat; nunca atraiçoou

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São, portanto, dois aspectos opostos os que Cézanne reúne nessa tela em que pela primeira vez aparece, com grande significado, a montanha Sainte-Victoire, em L’Estaque. Ouçamos Hajo Düchting: «A Trincheira apresenta duas novas componentes na obra de Cézanne: por um lado, a procura do duradoiro e do estável que se manifesta na composição, na unificação do traço e no simbolismo da montanha e, por outro lado, a invocação da natureza como força nova para unir os contrários, para ultrapassar a separação entre o homem e a natureza, que se completa mesmo no psiquismo humano, sob a forma da cisão entre o instintivo e o espiritual.»1 Mas onde procurar na tela a representação dessa unidade se, como o próprio título invoca, a paisagem está ferida pela civilização, o que faz com que ela fique separada de nós por um muro? Talvez que um começo de esclarecimento se produza no seguinte aspecto da tela. Em A Trincheira o nível do olhar, ou a linha do horizonte, está acima do muro, permitindo observar a paisagem na sua plenitude. Porém, os seus elementos surgem pintados sugerindo massas de qualquer interesse particular pela ciência enquanto tal, e a sua força de carácter vinha-lhe de uma certa ingenuidade de homem do povo. No entanto, Cézanne foi tocado pela atmosfera da época, e a sua atitude frente à Natureza, que é analítica, e à técnica de arte, que é experimental, resulta essencialmente científica. A análise constitui essencialmente a chave de todo o seu processo, e análise é uma palavra científica.» (READ, Herbert, Op. Cit., pp. 81-82). No entanto, devemos ter em consideração a suposta tese de MerleauPonty, de que a análise, em Cézanne, está ao serviço, não duma teoria da percepção, como em Seurat, mas duma ontologia, duma estrutura dada e compreendida do Ser, em que espaço, tempo e perspectiva se unificam nos lados objectivo e subjectivo. 1 DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., pp. 61-62.

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cores opacas, cuja materialidade é reforçada pelo uso do empaste e pela justaposição dos planos a impedir que a vista se prolongue livremente no espaço, em perspectiva, obrigando a que se agarre doridamente à rudeza da superfície, como um objecto oposto ao sujeito. É que essa pintura é das primeiras tentativas de representação do mundo originário perdido pelo homem, a partir do qual ele nasce, cria e renasce com a paisagem sensível, onde não havia pressupostos mas apenas a evidência simples da experiência imediata na verdade da sua correspondência, unidade em vias de ser recuperada, tentativas necessariamente conseguidas de modo imperfeito no aspecto da finalidade de expressão da ontologia procurada pelo mestre,1 telas que todavia são originais na medida em que constituem produções dum percurso único.2 Contudo, esta peça representa apenas o primeiro passo: a da supressão do homem do visível enquanto ser e, em simultâneo, a tensão resultante entre o homem que se afastou e a paisagem que o repele. Cézanne repele o sujeito, com as suas narrativas e posições axiológica subjectivas, para não contaminar o visível. Ainda não descobriu como ele poderá ver-se livre dessa poluição. Estamos ainda na fase em que Cézanne já não crê numa ideia e na sua projecção, pelo que a combate com uma nova verdade. Contudo, sendo ainda incapaz de a representar, ou objectivar, fazê-la existir para si, torná-la definida, consciente, precisa de atravessar estádios intermédios, nos quais a insatisfação é para ele o antecipar duma superior clarividência.

Compreende-se assim o “aforismo” marxiano de que o passado só se compreende pelos seus resultados futuros. 2 E será instrutivo compreender a razão que faz de fracassos estéticos, obviamente relativos, obras-primas da arte. 1

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Aqui retomaremos do desenvolvimento do percurso de Cézanne no atravessamento, após a sua fase romântica, dos três períodos, o quais deverem ser entendidos mais como tendências do que como sistemas completos e cumpridores escrupulosos dos seus princípios, que já vimos serem designados por: (1) romântico: subjectivo ou simbólico (mais ou menos até 1870, com recidivas até 1877): tortuoso, moralista; (2) construtivo ou estrutural (1870  1895) ou o período do “quadro-janela”: Caracteriza-se por dois processos correlacionados. O esforço por destacar o essencial, apagando o acessório ou cultural no objecto, retendo o característico do mesmo e separando-o da sua contaminação por um sujeito esbarrado por preconceitos morais. A transposição do motivo num plano perceptivo artificial, procurando um equilíbrio, todavia ainda não conseguido, entre a percepção concreta e a imaginação. Cézanne pretendia alcançar uma visão sintética do real através da criação de um espaço composto, embora não abstracto ou generalizado, como fora o cartesiano, mas em todo o caso estabilizador da multiplicidade dos elementos, sendo que esse espaço composto é o de uma substância constituída pela ligação entre os próprios elementos ou objectos, que se equilibram mutuamente. Ainda acontece, porém, por vezes, inconsistentemente com o projecto deste período, o artista construir o motivo, peça a peça, determinação a determinação, ligadas apenas por uma atmosfera única, que é uma massa imóvel a juntar elementos heterogéneos, em vez de o apreender como um todo original no qual os elementos se dão inicialmente, na sua unidade, uns através dos outros, numa unidade perfeita entre as matérias e o espaço, constituindo-se entre si na síntese originária e indissociável do objecto.

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O resultado é ainda uma imagem construída, estática, sem correspondências vivas, que se afasta da percepção ao mesmo tempo objectiva e vivida, lírica, de um objecto concreto, uma imagem que também não consegue dar a percepção da interdependência ou interdeterminação dinâmica dos elementos, na sua correlação com o espaço. A tela é ainda incapaz de exibir, na sua reciprocidade original, a multiplicidade integral das determinações do objecto enquanto vivido e visado pelo sujeito; (3) sintético ou sintetista ( 1895 – 1906), ou o período do “quadro-objecto”: Síntese dos elementos do quadro e entre este e o olhar. Deixa de haver duas operações sucessivas: visão analítica e reconstrução sintética, porque a impressão visual é já uma síntese visual imediata sensório-perceptiva. Qualquer impressão sensível é percepcionada como o elemento de uma ordem mais vasta e multidimensional nas suas correspondências dinâmicas. As telas passam a incitar a penetração no interior da Natureza num equilíbrio entre os elementos sensíveis e a integridade do real. A atmosfera, lírica e não densa, quando se correspondia com a opacidade dos objectos, faz corpo com os seus elementos através da fusão visual do espaço com os objectos, como se estes fossem translúcidos e como se o espaço fosse em simultâneo constituído pelos objectos. A síntese entre a parte e o todo parece não ser construída mas imediatamente vivida – alcançou-se, pois, a unidade do diverso, assim como da percepção e do percepcionado, de uma multiplicidade reciprocamente constituída e de elementos reciprocamente constituintes do todo em todos os seus aspectos, enquanto originalmente unidos e diferenciados: é a reconstituição de toda a riqueza perceptiva na sua originalidade prístina.

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Ora bem, se a crítica que se arriscará lançar à maioria das peças do período “construtivo” é o de que o pintor não alcançou conceber um espaço concreto, enquanto forma laboriosamente espontânea da combinação dos objectos,1 A Trincheira, na medida em que supera o romantismo do período anterior ou primeiro, é, portanto, a prova, no que respeita a este presumido desiderato compositivo, de uma certa evolução, ainda que grosseira, face ao período romântico, o inicial, e que não deixa, porém, de constituir uma ruptura.2 O período que inaugura caracteriza-se não só pelo abandono do sentimentalismo romântico mas também pelo aparecimento do tema formal, mas igualmente substancial, da interligação no continente (espacial) o conteúdo (coisal), num primeiro tentame, ainda imperfeito, de apreender dois aspectos indissociáveis duma mesma realidade.3 Cézanne abandona o assunto das paixões humanas para se entregar à questão ontognosiológica da relação entre ser e pensar na apreensão perceptiva do ser, assim como da conexão dos elementos por forma a fazerem É a censura feita por Liliane Brion-Guerry. Signo de insuficiência no estádio antes alcançado. 3 Na nossa opinião, até porque se refere às datas compreendidas entre 1872-79 (não há unanimidade a respeito da delimitação dos períodos), é difícil de aceitar a aplicação ao quadro A Trincheira a seguinte frase de Brion-Guerry: «Desde então, procurou uma constante no seio da diversidade. Ele tinha acreditado poder evocá-la pela criação de um espaço abstracto, estabilizador dos elementos concretos em movimento.» (BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., pp. 149-50). É que, se na verdade, o espaço de A Trincheira é abstracto em relação ao sentido experimentado da profundidade no mundo original, também não é menos verdade que essa abstracção não é a dum “continente” mas é formada pela combinação das cores que dão forma aos objectos da composição. 1

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uma paisagem, dando início à reflexão sobre como o sujeito participa activamente na sua apreensão sem que o objecto perca, com isso, a sua verdade. Precise-se igualmente que A Trincheira é o primeiro quadro em que Cézanne exorciza os dois grandes modelos estético-formais da “modernidade”: o modelo perspectivo renascentista, de aparência objectiva, com os seus desenvolvimentos, e o modelo sensorial, subjectivo, com todas as suas variantes. Trata-se duma tentativa de libertação histórica dos inatismos, “apriorismos” e dualismos ontológicos (matéria extensa/pensamento), transcendentais (espa1 ço/objecto ), cognitivos (sentir/pensar) e antropológicos (corpo/alma): o ponto de partida ambíguo de grande parte da arte contemporânea. Façamos agora um humilde tentame de descrição elucidativa dos valores estéticos, gnosiológicos, ontológicos e éticos desta tela, monumental tanto nas intenções quanto no tamanho.2 É curioso que A Trincheira ofereça uma panorâmica ao espectador, que é convidado a deslizar ao longo da linha de força dominante, paralela e quase justaposta ao plano do quadro – a da trincheira, cujo teor é assim tematizado pela forma –, estando diminuído o efeito de qualquer tipo de perspectiva. A impressão de espaço puro, entre os objectos, espaço em si, desvanece-se, sobretudo porque não existe filtro atmosférico, sendo que a sugestão do espaço é construída a partir dos planos justapostos, cuja sobreposição é determinada pela ideia dos objectos representados e pelo No sentido da distinção de Kant entre “intuição pura do espaço” e “constituição do objecto pelas categorias do entendimento”. 2 80 x 129 cm. 1

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azulado do plano de fundo, um espaço denso, matérico, que ao mesmo tempo parece consistir na substância física comum aos objectos, unindo-os entre si, fazendo com que a paisagem pareça uma única coisa sólida. Mantem-se entre os planos uma tensão, uma força de atracção ao plano dianteiro devido às cores homogeneamente saturadas, menos no plano de fundo, e motivos sem grandes diferenças no detalhe, definidos de modo grosseiro e matérico, e uma força de repulsão, menos intensa, entre o terceiro plano e os dois primeiros, pelo azulado daquele. Este é de um azul tão espesso, embora embranquecendo na aproximação ao horizonte, para dar distância, sem aumentar a transparência, que dá uma impressão de proximidade dinâmica dessa mesma distância, como se o ar fosse constituído do mesmo substrato que as terras, como se tivesse uma densidade material. É que a própria montanha Sainte-Victoire, apesar de parecer apenas uma condensação local do céu, não deixa por isso de conservar a sua firmeza, assentando na linha do horizonte a sua silhueta vivamente afirmada por pinceladas largas, espessas, espontâneas, ao mesmo tempo sólidas e sinuosas. 1 Esta montanha é uma pedra preciosa, de vidro opaco, de entalhe tosco, formando um acorde com o pequeno vulto da igreja e um contraponto com a casa, na extremidade oposta do panorama, constituindo uma síntese de contrários em níveis distintos e simultaneamente combiAs palavras de Carlo Argan dirigidas à tela A Casa do Enforcado em Auvers (1873) são igualmente apropriadas para A Trincheira: «[...] a profundidade não cria distância e nada se esfuma ou se dilui, tudo se aproxima e se adensa. Chama a atenção a espessura da camada de cores, [...] mesclada na cor, a luz torna-se matéria, não tem transparência nem brilho, [...]» (ARGAN, Carlo, Op. Cit., p. 111). Cézanne reafirma assim o sentido da realidade e a presença desta no pensamento humano, a partir do contacto sensível. 1

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nados: simbólico, ou espiritual, e objectivo, ou natural. Há a ligeira sugestão duma diagonal ascendente que vai da zona mais escura e húmida do quadro (inferior esquerda), em que jogam castanhos e verdes, ao cume cristalino da Sainte-Victoire (meia superior direita), feita em tons de azul. Não obstante, a paisagem está paralisada, dir-se-ia intemporal, e até morta. O homem deixou lá as suas marcas mas desapareceu. É como se tal presença na ausência, ou como ausência, fosse tudo o que contasse – a eterna condição humana da finitude e da ambição ali “petrificada” – e a vontade, o gesto, a figura, simples meios que pagam a factura do tempo. Mas há também um olhar que liga numa panorâmica, de maneira activa, uma harmonia de motivos reais que só nela podem ser vistos em conjunto. É o lado de cá da paisagem, que a faz ser paisagem, uma coisa que se vê e cujo ver dá sentido. É a atitude do homem na oposição a essa paisagem, que lhe dá um valor, embora negativo. Dir-se-ia, por um lado, que um milagre juntou os elementos, compondo com a sua massa um símbolo complexo mas que, por outro, impõe uma barreira dura, desafetada, ao homem; dir-se-ia que nos afasta agressivamente da sua majestosa, natural, serenidade. Este quadro manifesta apenas um desejo: o ver e o visível ainda não se absorveram mutuamente; o sujeito contempla-se como oposição à forma do objecto. Há, dum lado, solidão; do outro, desolação. O mundo é uma substância desabitada pelo homem e o homem uma mera consciência solitária desse mundo e da sua impotência para o inscrever num qualquer projecto onde se lhe prefigure um sentido. No entanto, escreve Hajo Düchting, «A Trincheira de Cézanne dá-nos uma nova visão do artista que apren-

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de a dominar os seus conflitos interiores a favor duma nova concepção da natureza. Mas isto não será o idílio puro, onde querem refugiar-se muitos impressionistas, e muito menos as margens mitológicas longínquas para as quais irão retirar-se os simbolistas e os neoclássicos. A imagem da natureza que nos é dada por Cézanne é atravessada por uma austeridade completamente diferente: pela procura duma verdade mais profunda por detrás da mudança dos fenómenos.»1 A procura foi dolorosa, insatisfeita e enraizada no seu carácter, condição pessoal e realidade social. O motor que lhe conduziu a arte combinou, pois, de forma simbiótica, uma filosofia intuitiva da existência e do Ser com a sua biografia, pouco mais que resumida aos dramas íntimos e privados relacionados com o quotidiano pudico, piedoso, egoísta e obcecado pela riqueza da burguesia provinciana que o rodeava. Tal estreiteza reflectiu-se no impulsivo e ao mesmo tempo retraído Cézanne, agravando a sua predisposição esquizóide.2 O acanhamento “congénito” e a escassez de peripécias na sua vida, condicionada inconscientemente pelos preconceitos da média burguesia, condicionou-o a uma necessidade de compensação: daí a procura de equilíbrio no refúgio da Natureza – em perigo tal como ele. DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 62. Segundo afirma Merleau-Ponty em “Le Doute de Cézanne”: «É certo que a vida não explica a obra, mas é igualmente certo que comunicam. A verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida. Desde o início, a vida de Cézanne só encontrava equilíbrio no apoio da obra ainda futura, ela era o seu projecto, e a obra anunciava-se nele por signos premonitórios, sobre os quais nos enganaríamos se os tomássemos por causas, mas que fazem da obra e da vida uma única aventura.» (MERLEAU-PONTY, Maurice, Sens et Non-Sens, p. 26) 1

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Em vez de se deleitar sensualmente nela, decidiu fixá-la projectando nas telas, com teimosia e um talento no início pouco prometedor, uma imaginação que desafiou os horizontes da época, no limite em que a razão do real e do possível e a loucura do infinito e da perfeição se tocam para desenharem os contornos intemporais da vida humana. Foi somente na série dos Banhistas – o contraponto, o elemento simétrico, a antítese, relativa por isso, de A Trincheira – que Cézanne conseguiu pôr a descoberto ou, pelo menos, expressar a possibilidade da harmonia do homem com a Natureza e, portanto, do homem consigo mesmo. Nunca na sua vida real Cézanne alcançou a felicidade plena mas foi nesse momento que, na arte, não na existência, resolveu os seus problemas éticos com as mulheres, com a sexualidade e o corpo. É então que na sua pintura: O homem entra na paisagem. O mundo entra no homem. O tema do banho colectivo em comunhão com a natureza, quer dizer, a série das(os) Banhistas, atravessa vários períodos, não surge de repente na forma duma evidência final. Por isso, pode observar-se nessas telas o percurso do artista na abordagem do corpo e da sua relação com o espaço envolvente, assim como os seus avanços e recuos, quase simultâneos. Esse percurso denota uma insatisfação de Cézanne consigo próprio que é impossível de solucionar. Cézanne balançou sempre entre dois registos pictóricos. Por um lado, o daquelas pinturas nas quais o constrangimento psíquico-postural, que se esforçava por vencer, é sublimado em alegorias subentendidas e em que as paisagens são transpostas no abstracto, apertadas em li-

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nhas de força geometrizadoras, diferenciadas do lugar do espectador, como se fossem imagens pagãs inacessíveis.1 Por outro lado, o daqueloutros quadros2 em que corpos e os restantes elementos se confundem numa atmosfera cromática aberta em todas direcções, e na qual as figuras são todavia surpreendidas, mas sem contradição, em atitudes arquetípicas, reunindo numa síntese um instante privilegiado do movimento vital e a intemporalidade da condição originária do homem. Liliane Brion-Guerry exemplifica o primeiro grupo de telas com a magnífica Les Grandes Baigneuses (18981905), do Museum of Art de Filadélfia, que, para além de apresentar uma estrutura atípica no contexto da criação cezanniana, é, contudo, por um paradoxo compreensível no universo mental do pintor de Aix, das mais altas realizações do motivo condutor da sua obra.3 Ela parece testemunhar a primitiva perplexidade do homem diante do mundo de que ao mesmo tempo faz parte mas que teme, funâmbulo entre duas zonas, e testamento, dir-se-ia inacabado a propósito, que endivida os modernos na busca da solução. Essa solução, Cézanne não a encontrou no plano pessoal, embora tenha redimido a nostalgia dos banhos de juventude, tomados em comum com Zola e outros amigos, em peças tais como Baigneurs, de 1890-1900.4 Nomeadamente encontradas nas da National Gallery, Londres, e no The Philadelphia Museum of Art. 2 Existentes no Musée d’Orsay, Paris, e no Art Institute of Chicago. 3 A tentativa de solucionar o conflito do espiritual com o natural, tema nada original mas que o conduziu a um percurso estético único e inovador. 4 Cézanne, tal como muitos outros artistas, trabalhava devagar e realizava várias obras em simultâneo, reflectindo em cada uma delas sentimentos por vezes contraditórios, de conclusão indecidível. 1

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Por isso, como escreveu Lilianne Brion-Guerry, «[...] Cézanne, quando aborda o nu, continua a transpô-lo no abstracto. [...] Não há medida comum entre o espaço no qual se move a personagem figurada e a do espectador. A transposição abstractiva é uma espécie de separador de vidro intransponível que desnatura o universo concreto.»1 Essa separação é produzida visualmente pela unidade geométrica triangular definida no quadro pela inclinação dos troncos das árvores em direcção ao eixo central, formando os corpos corpo com ela, não sendo, portanto, forçados por ela pois eles mesmos ajudam a compô-la mediante a sua gestualidade livre. Segundo a autora, o espectador observa de fora do espaço os movimentos livres dos nus, ainda que se agrupando, sobrepondo-se à mesma forma, mas espontaneamente, nesse volume de co-pertença. Entre quem olha e aquilo que é olhado não há medida comum senão a do sonho e do desejo, protegidos por esse enquadramento, sendo estes talvez personificados pelo homem que observa a cena do outro lado do rio, sugerindo, embora construído de modo diferente e com outro significado, o jogo de espelhos intrigante de Las Meninas de Velasquez. O espaço do quadro está estruturalmente defendido do espaço da vida real e constitui um mundo que é só seu e que deve ser consolidado por si mesmo. Esta abstracção protectora é uma evidência perceptiva resultante da unidade construtiva do quadro, do arranjo, mais ou menos explicitamente formal, dos elementos que o constituem. Mas, por isso mesmo, é um espaço condicionado pelo pensamento do pintor, que assim se distancia do mundo efectivamente vivido: «[...] um tal espaço, preci1

BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., pp. 179-80.

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samente porque é resultado duma vontade de abstracção, só pode ser um espaço circunscrito. Tem por limites os da própria ideia construtiva que os engendrou.»1 Se é verdade, em virtude do mesmo facto, que, segundo Liliane Brion-Guerry: «Neste universo transposto, também o nu é uma transposição. Ele move-se sem contrariedade num espaço que é da mesma natureza que ele. Desse modo, não há a mínima necessidade que se isole desse espaço por um cerne protector,2 pois a matéria espacial não lhe é estranha: ela é, tal como ele, pura elaboração intelectual;3 e, no domínio da livre criação, os entraves e contrariedades das estadias terrestres são impossíveis de imaginar. É por isso que o contorno, tendo deixado de ser uma necessidade de ordem física, 4 atenua-se na série das Baigneuses do tipo do quadro da colecção do barão Napoleão Gourgaud, Paris (V. 580), 5 [...]»,6 peças em que os elementos são, apesar de tudo, menos organizados; por outro lado, pelo facto de haver uma maior presença estrutural em Les Grandes Baigneuses, de Filadélfia, o contorno das figuras reafirma-se para sustentar a evidência da construção, para a estabilizar. Esta tendência construtiva, índice duma síncrise pudica, simbólica e afastadora, precisa de ser superada, se Cézanne tem a pretensão de conduzir a arte a um estado de comunicação íntima com o homem, fazendo da pinIdem, Op. Cit., p. 184. Por uma maior definição dos contornos. 3 É de surpreender esta atribuição a Cézanne. Parece pouco adequada. 4 Pois as figuras movem-se ou estão num espaço co-substancial, que não é o nosso. 5 As obras de Cézanne foram catalogadas por Lionello Venturi, numeradas de acordo com um código de que temos aqui um exemplo. 6 Idem, Op. Cit., p. 180. 1

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tura, não um mero espaço convencional e de escapatória, uma janela, mas o transplante artístico da forma de percepção mais autêntica, uma união do sujeito com o objecto. Les Grandes Baigneuses é uma composição que, escreve Brion-Guerry, «[...] se fecha sobre si mesma como uma arquitectura perfeita: nada há a acrescentar a esta construção sábia cuja elaboração severamente calculada atingiu a estabilidade. Qualquer adjunção exterior à concepção amadurecida pelo criador só acarretaria prejuízo a essa estabilidade.»1 Há nela uma certa falta de espontaneidade. O temperamento de Cézanne ter-se-á geometrizado aqui em excesso, no sentido da estrutura, o que impôs um modelado forte, que, de resto, é relevante designadamente na série das “Naturezas mortas”. Cézanne sabe que se “a geometria é a medida da Terra”, ela não se pode impor à Terra mas seguir-lhe os contornos através da sua “matéria”, isto é, da cor. É certo que a geometria é vivificada pelo temperamento do artista, mas por um temperamento educado nos valores sensíveis, de tal modo que a definição isolante dos contornos dá lugar ao valor cromático dos volumes. Isso, essa espontaneidade, há-de acontecer nos derradeiros anos da sua vida, quando se harmonizar nas suas telas a antinomia aparente da ordem estrutural e da livre associação de todos os elementos. Então, nesse espaço local habitado da sua última fase e definido por essa habitação, é que Cézanne vai conseguir concretizar a lógica da liberdade. Segundo Richard Shiff e um outro autor por ele citado, Roger Fry: «O artista “distorceu” as figuras para que formassem um motivo triangular central em combi1

Idem, Op. Cit., p. 191.

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nação com as árvores; estendeu igualmente sequências de manchas contrastantes ao longo de barreiras “naturais” – de figura a figura e entre figura e fundo. De acordo com Roger Fry, todavia, esta distorção, por causa da unificação (que Maurice Denis chamou de “falta de jeito Poussainesca”),1 foi levada demasiado longe e perseguida de maneira excessivamente deliberada. Em resultado, às Grandes Baigneuses falta a qualidade da imediatidade [...] e [...] fracassa na tonificação do que só poderia apresentar-se como uma invenção sem vida.»2 Les Grandes Baigneuses é, em todo o caso, um modelo de coerência entre tema e construção. Entendamo-nos quanto a esta discrepância na avaliação da tela, a qual resulta, por certo, do uso de critérios distintos. Para isso, temos de introduzir um parêntesis e recordar que Cézanne disse a Joaquim Gasquet: «Sou o primitivo da minha própria via.»,3 que terá o significado directo de realizar a sua “fórmula” através da “inabilidade” confessada, da “ingenuidade” superior ao pouco, ou falso, saber dum certo classicismo, “ofício abstracto” imitador de modelos de originais, quando o verdadeiro conhecimento o desmascara. Portanto, Cézanne dispõe-se a ser, segundo a paráfrase de Hajo Düchting4 que complementa a afirmação egotista do pintor, “o primitivo duma arte nova”, o que segue a sua personalidade e temperamento com soluções originais, evitando ser intimado por maneiras antigas. É a definição perfeita da sua obra. Uma graça à afirmação de Cézanne de que «é preciso restituir Poussin à Natureza». 2 SHIFF, Richard, Cézanne and the End of Impressionism, The University of Chicago Press. Chicago and London, 1984, p. 216. 3 CÉZANNE, Paul, in GASQUET, J., Op. Cit., p. 138. 4 DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 169. 1

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Não porque seja apenas uma referência aos “primitivos” italianos, que apreciava por, dizia ele, se terem feito a si mesmos,1 tendo-o também influenciado pela seriedade impessoal que punham no que faziam, mas por ser a síntese formulada de toda a sua obra. Cézanne não se considerava o “primitivo” da obra dos outros, ou até a suposta “ingenuidade” eterna donde todos, no seu tempo, teriam partido. Daí o tanto de arrogância da declaração lapidar recolhida por Gasquet. A “ingenuidade” dos outros não se assemelha à sua, pois esta não é a da inocência perante um saber preconcebido: é a sabedoria intuitiva fundamental que pretende resgatar à civilização, por mais elementar que seja, a “impressão” verdadeira, intocada, das coisas nas leis reais próprias, na essência da sua existência e na existência da sua essência, e não o saber funcional e operacionalista para onde caminha toda a inocência ignara do seu valor.2

Cf. CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 138. Retrovertamos esta tradução nas próprias palavras de Cézanne, aqui algo confusas, admita-se: «Actualmente não se pode deixar de saber, não se pode aprender por si mesmo. Respirar-se o ofício desde o nascimento. E mal. Seria preciso, pelo contrário, pôr em ordem tudo isso. De todo o lado, está-se banhado nesta vasta escola laica que é a sociedade. Sim, há um classicismo, aquele que corresponde a esses escolares, que abomino mais que tudo. Então, imagino que, tal como disse o outro a propósito de Deus, se um pouco de ciência nos afasta dela [da natureza], muita nos aproxima. Sim, muita ciência aproxima-nos da natureza.» (Idem, Op. Cit., p. 138). A noção que Cézanne talvez tivesse de ciência verdadeira (passe o pleonasmo) teria alguma semelhança com a da fenomenologia, mais com a de Merleau-Ponty do que com a de Husserl. Há, a este respeito, uma passagem sugestiva das suas conversas com Gasquet: «A matéria da nossa arte está aí, no que pensam os nossos olhos... A natureza desembrulha-se sempre, quando a respeitam, para dizer o que ela significa.» (Idem, Op. Cit., p. 144). 1

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Cézanne, no propósito de ilustrar esta ideia, a mais cara para si, disse a Gasquet: «Com os camponeses, repare, duvidei às vezes que soubessem o que é uma paisagem, uma árvore. Sim! Isto parece-vos bizarro. Fiz alguns passeios, acompanhei um rendeiro na sua carroça, que ia vender as batatas ao mercado. Ele nunca tinha visto Sainte-Victoire. Eles sabem o que está semeado, aqui, além, ao longo da estrada, o tempo que fará amanhã, se SainteVictoire tem o seu chapéu ou não, eles farejam-no à maneira dos animais, tal como um cão sabe o que é um bocado de pão, somente de acordo com as suas necessidades, mas que as árvores sejam verdes, e que este verde é uma árvore, que esta terra seja vermelha e que estes vermelhos desabados sejam colinas, não creio realmente que a maioria o sinta, que o saibam, para além do seu inconsciente utilitário.»1 Em contraste com este utilitarismo básico, Cézanne intui uma comunhão originária, primitiva, que crê desinteressada e que desvenda por si a verdade do homem e do mundo que o rodeia como uma veste natural sensível. É o que exprime admiravelmente numa das suas frases, tanto “lógicas” quanto impressivas e tão semelhantes, na reunião desses aspectos, à sua própria arte: «É preciso, sem perder nada de mim mesmo, que volte a juntar este instinto, e que estas cores nos campos divididos me sejam significativas duma ideia, tal como para eles o são duma recolha.»2 Para Cézanne, instinto e razão não constituem, mais uma vez, disposições antinómicas, pois a razão é a lógica do instinto e o instinto é o impulso da razão.

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Idem, Op. Cit., p. 145. Idem, Op. Cit., pp. 145-46.

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Essa “ideia”, portanto, nada tem de transcendente mas parece consistir no significado do encontro do ver com o visível, desse ver mundano, não a priori, não esquemático, cuja forma e conteúdo consiste no visível que visa, este que é simultaneamente sensível e com sentido. Tal coincidência, que faz a percepção, desencadeia um “instinto” ontológico, uma espontaneidade de origem não pragmática e operatória, mas originariamente indissociável, entre o sensorial e o racional, e que não é essencialmente diferente da dos camponeses, menos pelo facto da sua espontaneidade ter que ser reconquistada pela mediação da consciência reflexiva: «Eles sentem espontaneamente, diante dum amarelo, o gesto da ceifa que é preciso começar, assim como eu deveria, diante do mesmo câmbio maturador, saber por instinto colocar sobre a minha tela o tom correspondente que faria ondular um quadrado de trigo. De pincelada em pincelada, assim a terra reviveria. À força de laborar no meu campo, faria crescer nele uma bela paisagem...»1 Para alcançar a espontaneidade desse instinto sábio, é necessário um longo percurso, à vez individual, porque obrigatoriamente biográfico, e universal, na medida em que Cézanne visa recompensar-se da sua história de más circunstâncias e de inabilidades sociais funestas através da universalização catártica da arte. Nessa altura, ele projectava os sentimentos perturbados em objectos de prestígio colectivo. Posteriormente, conseguiu, de maneira exemplar, efectuar a transfiguração desses ressentimentos projectados no simbolismo religioso realizando-a nesse seu percurso em direcção ao “sintetismo”. Cézanne é a filosofia em estado vivo, a carne das ideias em ferida, que acabará por sarar na magia de al1

Idem, Op. Cit., p. 146.

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gumas imagens, não de todas, porque, note-se, Les Grandes Baigneuses é um dos últimos quadros por si pintados e deixados por concluir. Repare-se que a própria qualidade biográfica do percurso – feita de avanços e retrocessos, e de estádios contraditórios simultâneos que nos deixariam perplexos caso desconhecêssemos os meandros dramáticos da alma – resulta da subsunção das impressões vividas em experiências dotadas de sentidos universais. Ora, foi o encontro da sua biografia com a época, a História, as condições e os valores transversais (em suma, a experiência e a reflexão em torno da vida e da morte, que coloca problemas que têm um lado histórico e um lado eterno interligados), foi, dizíamos, este encontro complexo que motivou Cézanne a realizar, nos derradeiros anos da sua existência, a grande obra das Grandes Baigneuses. Elas são a explicitação plástica dum momento (não obrigatoriamente uma fase) necessário do percurso biográfico, condensado numa imagem íntegra, poderosa na unidade de composição e sentido, não um mero fracasso. Não seria sequer estranho, que Cézanne estivesse a viver duas fases ou estados de experiência na mesma época, num conflito angustiante, para mais tendo em conta o suposto diagnóstico esquizóide da sua personalidade. É, todavia, mais amável interpretar o facto dele pintar no fim da vida quadros evocativos de possíveis relações opostas com o mundo considerando a consciência serenada do artista da impossibilidade de redenção mundana, apesar de ter conseguido, nessa mesma altura, representar, melhor do que qualquer outro, a felicidade plena, na fusão do homem com a natureza e do pensar com a sua paisagem.

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E, no entanto, há sempre um preço a pagar por essa ofensa à hybris divina numa espécie de inversão trágica: nessa Arcádia sonhada, o contentamento na comunhão universal reclama o despojar da diferença, o indiferenciar dos rostos. Mas, por outro lado, as figuras não se incomodam com isso. E, para mais, As Banhistas questionam, no seu contraste com o mundo contemporâneo, o nosso quotidiano egocentrado. Na realidade, a biografia de Cézanne é consistente: ela decorre segundo uma lógica inteligível. Hajo Düchting toca no ponto quando escreve: «O rigor da composição coloca este quadro à parte de todas as obras da pintura contemporânea, [...] Deverá esta cena composta de forma tão rigorosa ser integrada na obra de juventude de Cézanne, onde já tinham aparecido confrontos semelhantes entre o homem (vestido) e mulheres nuas? A igreja, ao lado da figura masculina, faria então referência ao apoio espiritual que Cézanne deve ter tido em idade avançada, que constitui uma prestimosa barreira contra os impulsos dominadores que emanam das figuras femininas.»1 O quadro constrói um espaço simbólico, cuja intemporalidade conquista pela recusa de se modelar por uma fórmula e figurações antigas, assim como pela rejeição de incluir nele qualquer elemento contemporâneo. É a honestidade de evitar vestir o essencial duma composição arquétipo com roupagens contingentes que o faz aparecer ao mesmo tempo como primitivo e moderno, sem ambivalência pois sustenta-se na sua própria armação estrutural e simbólica, incomodando com a pergunta pela validade tanto do passado como do presente e do futuro.

1

DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., pp. 147-149.

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Fora do tempo, coloca-nos, espectadores, dentro do cálculo diferencial do tempo, do não-ser do seu ser, a que pertencemos inexoravelmente. A única solução é fundir-se com a corrente, deixar de lhe resistir ou de se lhe opor, mas sem abdicar nela, antes existir na eterna verdade do ser-no-mundo, como diria Heidegger. Este ser-no-mundo que se escoa deve ser vivido com a máxima “intensidade”, na cor viva da realidade, através do mais lúcido dos temperamentos. Mas isso já ele o sabia quando pintava as Grandes Baigneuses (1895-1905). Por esse motivo, Cézanne criava no mesmo período (o definitivo, designado por Lionello Venturi de “sintetista”: ≈ 1895 – 1906, termo que Liliane Brion-Guerry considera adequado) – no qual o “construtivismo” (≈ 1870 – ≈ 1895) vai ser superado pela espontaneidade conquistada, na qual se manifesta uma interpenetração dos objectos e do seu lugar numa única substância, omnipenetrante e translúcida, espontânea, coo-nascente com os elementos, organizada, segundo a estudiosa, sem evidência de construção –, quadros como La Montagne SainteVictoire, vue des Lauves (1902-04)1 e Baigneurs (18901900).2 Nestas telas, e nas contemporâneas Baigneuses do Art Institute of Chicago, por exemplo a de 1900-05 (V. 722), a síntese é total, de acordo com os critérios de Liliane Brion-Guerry, constituindo o acme da sua arte junto com as últimas Sainte-Victoires. São, segundo a mesma autora, o resultado supremo do período simbolista – já não no sentido da arte emblemática ou da que busca sugerir um mistério cósmico ou 1 2

Philadelphia Museum of Art (V. 798). Musée d’Orsay, Paris (V. 585).

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representar uma alegoria, na fase desesperada, juvenil e romântica que foi a dos primeiros trabalhos, mas no que chamamos de “sintetista”. Este termo significa, no vocabulário de Lionello Venturi, à contramão do seu significado habitual e daquele que lhe deu, entre outros, Hegel, a unidade imediata, conseguida através do conhecimento dos meios, entre sentimento e espaço.1 Nelas Cézanne superou a inconsistência construtivista do período anterior imposta pela progressiva análise minuciosa da sensação e a necessidade de reconstrução abstractiva do espaço.2 Esse período, insistimos, é designado de maneiras diferentes por Brion-Guerry. Ela denomina-o tanto “simbolista” como “abstractivo” – termo, quanto a nós, inadequado. É uma fase que se alongou aproximadamente de 1870 a 1895, e é aquela em que Cézanne se empenhou na consolidação do espaço. Fê-lo através da criação de uma substância aérea idêntica ao seu conteúdo cromático, estabilizadora dos elementos concretos por via, nas criações mais coerentes, da sua própria constituição pelas correlações equilibradas destes. O espaço, por efeito do jogo dos próprios elementos, era anisotrópico. Os objectos formavam um equilíbrio global como soma de todos os desequilíbrios parciais. Contudo, não se tratava ainda de um espaço lírico, no qual a subjectividade da percepção se funde com a objectividade do motivo percepcionado. Este lirismo manifestar-se-á quando no período sintético Cézanne conseguir a unidade da vibração atmosférica que anima, penetra e reflete o estremecimento da realidade interior das coisas. Cf. VENTURI, Lionello, Cézanne, trad., R. Skiva, Ed. Albert Skiva, Genève, 1978, p. 110. 2 Cf. BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., p. 144. 1

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Tal unidade sintética só poderia, contudo, ser levada a cabo, num tremendo esforço de anos, mediante o que poderíamos caracterizar por prática dialéctica da categoria antitética respectiva: «Porque é pela unidade abstractiva da composição, mais ainda que pela sua unidade de construção que Cézanne atingirá essa unificação do espaço [...]»1 Reside nisto o génio de Cézanne. Desenvolvendo uma suprema cristalografia do espaço, o pintor cria um dos mais célebres e certamente do mais belos quadros do período sintético, La Montagne Sainte-Victoire, vue des Lauves (1905, V. 803), Museu Puschkin, Moscovo. Outros artistas da época também o tentaram, e conseguiram-no à sua maneira, mas, na opinião desta autora, fracassaram num aspecto que terá divorciado, até certo ponto e decerta maneira, a arte da vida, afastando-a, sem o querem, para um mundo à parte, embora recebendo dela sinais críticos, miríficos ou perturbadores na sua ciência asséptica. Tais resultados não se podem, portanto, comparar com o pseudo-fracasso de A Trincheira. Como escreve Brion-Guerry, «Seurat e Gauguin procuram, também eles, alcançar uma síntese espacial, a fusão estreita entre o continente aéreo e o seu conteúdo. Ambos lá chegaram ao transporem a sua visão, recriando-a num mundo diferente do nosso: Gauguin no mundo hierático dos ídolos, Seurat num planeta em que o ar se tornou irrespirável porque o tempo está suspenso, ou pelo menos corre em movimento retardado. Mas um e outro alcançaram isto: que os seus personagens parecem per-

1

Idem, Op. Cit., p. 98.

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tencer a uma ordem temporal ou espacial sem contacto com as nossas.»1 A atitude de Cézanne não é a de se refugiar nos pretensos valores superiores duma civilização mais próxima do contacto com a Natureza, porque é sempre um contacto civilizado, fixado na ordem dos mitos, nem a de olhar de fora das coisas para dentro do olhar reificado em coisa, perto de noções atomistas e empiriocriticistas. A sua atitude é, pelo contrário, a de ligar a paisagem real e a visão do homem. «Em Cézanne [continua Brion-Guerry], a unificação entre continente e conteúdo está realizada, e de uma forma tão rigorosa quanto em Gauguin e Seurat, mas sem que os elementos da composição, quer se trate dum personagem, dum objecto ou dum acidente da paisagem, tenham que experimentar uma transposição numa ordem espacial ou temporal diferentes das nossas. Sem dúvida, existe sempre uma transposição, mas ela faz-se da ordem do concreto à ordem do abstracto. «Não se trata mais duma diferença de espécie, 2 [...]» mas duma identidade “ontológica”,3 interior a nós mesmos como espectadores, sem teorias a priori, sem esquemas prévios, e sempre dentro daquilo que os olhos do corpo distinguem e juntam na identidade constitutiva da própria realidade, cuja reconstrução no quadro implica a prévia decomposição gnosiológica das suas formas e elementos.

Idem, Op. Cit., p. 98. Idem, Op. Cit., p. 99. 3 Fazendo, pela nossa parte, a abstracção do facto de se tratar de pintura, ainda que duma pintura que almeja ser os olhos fiéis da essência “profunda” da realidade viva. 1

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É uma dialéctica do trabalho concreto do olhar, que se educa na prática da transposição plástica no quadro, por outro lado infelizmente convencional. A análise dos aspectos da composição produz-se no ver e nessa prática, nunca se separa desse terreno sensível e, por tal facto, apenas destaca a diversidade singularizadora das imagens objectivas da Natureza. Cézanne, que não possuía a formação filosófica que acaso lhe permitisse tornar inteligível esta dialéctica, levou a cabo a luta titânica de transportar para a tela a intuição estética do ideal da arte absoluta, na qual os aspectos universais são só os da síntese compositiva das paisagens particulares e são estas simultaneamente que constituem a realidade daqueles aspectos universais, que só existem na síntese particular. Ora, encontramos, segundo o maior interessado, um paralelismo sábio significativo entre a busca de Cézanne e a fenomenologia sincrética de Merleau-Ponty, que, no seu livro Fenomenologia da Percepção (1945), nos diz: «Retornar às coisas mesmas é regressar a esse mundo antes do conhecimento”1, de modo que «O real é para descrever e não para construir ou constituir. Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção às sínteses que são da ordem do juízo, dos actos ou da predicação [...] A percepção não é uma ciência do mundo, não é sequer um acto, uma tomada de posição deliberada, ela é o fundo sobre o qual todos os actos se destacam e é pressuposta por eles. O mundo não é um objecto do qual possuo diante de mim a lei da constituição, ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” soMERLEAU-PONTY, Maurice, Phénoménologie de la Perception (1945), Gallimard, Paris, 1985, p. III. 1

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mente o “homem interior”, ou antes, não há homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que se conhece»,1 o que, parecendo partir para uma recusa radical das doutrinas metafísicas tradicionais do racionalismo abstracto e do cogito autossuficiente, não é bem o caso. Mas é preciso notar que, na obra de Merleau-Ponty (perguntaremos: não menos do que nas telas de Cézanne?), nos encontramos perante um sincretismo místico, o qual não passa de avatar duma atitude não neutra (não há neutralidade nas questões da relação do homem com o mundo) mas idealista. Isto mesmo foi compreendido por José BarataMoura, que escreveu: «A pura interioridade de um Cogito auto-suficiente e auto-justificador é, sem dúvida, posta em causa por Merleau-Ponty, o mesmo acontecendo à determinação significativa por intermédio da operação de um puro Eu pensante ou representante. Só que a instância chamada a preceder à substituição [o corpo sensível como função de orientação prática e de percepção no mundo] continua ela própria a ser entendida e a movimentar-se dentro dos mesmos parâmetros (idealistas) fundamentais: a anteposição de um instrumento subjectivo como condição de possibilidade da existência, em geral.»2 As intuições de Cézanne não estarão muito afastadas da ambiguidade de Merleau-Ponty, que levou a Fenomenologia às últimas consequências. Não é certo, todavia, que a ambiguidade da metafísica imanente e o sincretismo de Merleau-Ponty sejam consequência filosófica necessária da declaração de Cézanne de acordo com a Ibidem, pp. IV-V. BARATA-MOURA, José, Da Representação à “Práxis”, Caminho, Lisboa, 1986, p. 90. 1

2

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qual «pintar segundo a natureza não é copiar o objectivo, é realizar as suas sensações», mas haverá com certeza um eco dela na concepção, não puramente ontológica mas ontopraxiológica, não contemplativa da relação sujeito objecto mas recíproca, de Merleau-Ponty, que aliás gosta de citar Cézanne e dialogou mesmo com ele no pequeno ensaio L’Oeil et L’Esprit. Esta concepção fenomenológica de Merleau-Ponty foi resumida por Barata-Moura desta maneira: «A “práxis” possibilitaria tanto o cumprimento do corpo próprio no desenvolvimento/afirmação da sua essencialidade, como [...] a emergência do próprio objecto/objectivo (but, Ziel, telos) do visar intencional “prático”. [...] O espaço corporal é o “fundo” de onde deriva, por intermédio da práxis, o aparecer do objecto.»1 É esta mística renovada, de tão antiga história – lembremo-nos, com Barata-Moura, do neoplatonismo da “profundeza” de pseudo-Diniz o Areopagita e do “abismo” de Meister Eckhart – que circula obscuramente na arte de Cézanne e, em tempos mais recentes, ainda que mundanizada, na filosofia de Merleau-Ponty. Ela constitui neste autor um esforço heróico e quase quixotesco, impelida pela nostalgia da identidade ética corrompida, de recusa da instrumentalização tanto do objecto quanto do sujeito, recusa levada a um poder e a uma sofisticação especulativa apenas igualados pelo mestre Martin Heidegger. O absoluto real e o subjectivo, que se conseguiu desprender dos elementos convencionais da cultura, correspondem-se, primeiro constitutivamente e depois sinteticamente, em Cézanne, e será talvez na ideia de que tudo se forma pela combinação das figuras perceptivas racionais mas imanentes ao diálogo do corpo sensível 1

Ibidem, pp. 78-79.

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com a sua experiência – a esfera, o cilindro, o cone – que se encontra a maior originalidade do pintor. Tal como para a Fenomenologia, o sujeito é a consciência perceptiva do objecto identificado com o invariante incompletamente visado pela percepção que o vai descobrindo na síntese temporal dos perfis apreendidos pelos padrões recorrentes ou novos das perspectivas. Do mesmo modo, o objecto é percepcionado e assim constituído como existente para a consciência – e só assim é objecto – nos termos da sua própria constituição. Não é possível nem concebível, sem contradição, um sujeito que se constitua sem objecto nem um objecto é perceptível e pensável enquanto objecto sem sujeito. Será provavelmente nessa constituição mútua, em que o sujeito procura nas coisas o que elas são de mais permanente na sua fugacidade e em que o objecto mostra ao sujeito a coordenação possível e necessária dos seus elementos fugidios, que a razão encarnada na síntese ambígua do sujeito/objecto nasce no sujeito apresentando-se a este como a sua lógica concreta. É por isso que Merleau-Ponty, em Le Visible et l’Invisible (1964), depois de escrever que «Nós vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que nós vermos», e de assumir a tese segundo a qual «É verdade simultaneamente que o mundo é o que nós vemos e que, portanto, é preciso aprender a vê-lo», retorque por fim: «Mas a filosofia não é um léxico, ela não se interessa pelas “significações das palavras”. São as coisas mesmas, do fundo do seu silêncio, que é preciso conduzir à expressão.»1 Pode ser que não estejamos a distorcer a fala de Cézanne, no seu diálogo com Gasquet, na qual uma outra MERLEAU-PONTY, Maurice, Le Visible et l’Invisible (1964), Gallimard, Paris, pp. 17-18. 1

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fenomenologia – a fenomenologia da contradição de Hegel – parece compor-se vagamente com esta: «Tudo o que nós vemos deixa de ser, dispersa-se, vai-se. A natureza é sempre a mesma, mas nada permanece dela, do que nos aparece. A nossa arte deve, ela mesma, dar a agitação da sua duração com os elementos, a aparência de todas as suas mudanças. Ela deve fazer saboreá-la como eterna. O que há sob ela? Nada, talvez. Talvez tudo. Tudo, compreende? Então, eu junto as suas mãos errantes... Tomo, à direita, à esquerda, aqui, lá, por todo o lado, os seus tons, as suas cores, as suas variações subtis, fixo-as, aproximoas... Formam linhas. Tornam-se objectos, rochedos, árvores, sem que antes tenha sequer sonhado com isso. Tomam um volume. Têm um valor. Se esses volumes, se esses valores correspondem na minha tela, na minha sensibilidade, aos planos, às manchas que disponho, que estão lá sob os nossos olhos, então está tudo bem!»1 Um artista contemplativo como Cézanne, fugido do utilitarismo burguês e das suas pragmáticas mãos sujas na paisagem da Provença, longe dos conflitos sociais e da actividade produtiva que transformava o mundo na objectivação das capacidades subjectivas do homem objectivamente constituídas pela prática sobre o real e no real, só podia conceber o trabalho com valor humano como a realização da imagem da contemplação do mundo, ainda que contemplação subjectivamente activa de um mundo todavia confundido com as possibilidades infinitas da sua própria actividade de apreensão. Mas, para Cézanne, que não seguia a desvalorização empirista e pragmática do conhecimento, o perseverar do ver restabelecia os objectos no seu volume, definindo uma pela outra a sua realidade na sua forma, reconstitu1

CÉZANNE, Paul, Op. Cit., pp. 130-31.

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indo no movimento perceptivo do sujeito no espaço o espaço em que se situa. É certo que a realidade não se dissolve na sensação nem a sensação é um elemento puramente subjectivo e formalmente distinto do volume substancial da realidade. A percepção é o próprio volume substancial enquanto visado pela consciência, que, de resto, é sempre uma consciência, uma percepção de qualquer coisa, para usar os termos de Edmund Husserl, o fundador da Fenomenologia, tendo portanto essa mesma coisa por seu único conteúdo imanente. Isto não quer dizer que Cézanne pudesse subscrever o que a Fenomenologia de Husserl haveria de postular: que nada há de real para além dos limites indeterminados e essencialmente incompletos da percepção, quer dizer, para além da indeterminação perceptiva, mas apenas que há semelhança entre a percepção na sua indeterminação e o real indeterminadamente percebido. Por outras palavras, Cézanne poderia não subscrever esta tese ontológica, pelo menos com consciência e precisão teórica, sem que todavia deixasse de exibir um paralelismo com a doutrina da identidade entre o conhecimento perceptivo e a natureza do mundo. E isto basta para compararmos de maneira pertinente Cézanne e a Fenomenologia. Escreve René Huyghe que, como Descartes, Cézanne, «Ele tem o culto exclusivo da verdade e quer encontrá-la mediante a exactidão dos dados sensoriais e pela justeza do pensamento.»1, prolongando o orgulho cartesiano da liberdade do sujeito diante da percepção e da razão estabelecidas, assim como a sua humildade expressa na “moral provisória” transfigurada em “pintura provisória”. 1

HUYGHE, René, Op. Cit., pp. 216-17.

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Retomemos as palavras de Cézanne: «Pintar o que se tem diante de si e perseverar até se exprimir o mais logicamente possível, uma lógica natural, entenda-se; jamais fiz outra coisa. Não imaginais as descobertas que então vos esperam. Vede, para os progressos não há mais do que a natureza, e o olho educa-se no seu contacto. Ele torna-se concêntrico à força de olhar e de trabalhar.»1 Portanto, o pintor de Aix-en-Provence tinha de esclarecer uma afirmação sua, já anteriormente citada, que, sem isso, seria capaz de levantar a absurda suspeita de se ocultar um certo platonismo nas suas opiniões estéticas: «Tudo o que vos conto, a esfera, o cone, o cilindro, a sombra côncava, a mim toda a coragem!, põem-me em acção, sobreexcitam-me. Esqueço-os depressa, desde o momento em que vejo.»2 «Eu, disse-vos esta manhã, tenho necessidade de conhecer a geologia, a maneira como Sainte-Victoire se enraíza, a cor geológica das terras, [...] Tenho necessidade de conhecer a geometria, os planos, tudo o que mantém a minha razão direita. A sombra é côncava?, interrogueime. De que é feito esse cone ali em cima?, reparai. De luz? Eu vi que a sombra sobre Sainte-Victoire é convexa, bojuda. Vós vede-la como eu. É incrível. É tal qual... Temme provocado uma grande excitação.»3 Frank Elgar esclarece que «A esta análise da morfologia do objecto, a essa vitória do espírito sobre a matéria, não creias que chegou graças ao pensamento especulativo [platónico, aristotélico] ou a um apriorismo conceptual [neokantiano]. Foi pelo caminho da sensação que reencontrou uma das leis constitutivas do mundo físico, como Ibidem, p. 146. Idem, Op. Cit., pp. 147-48. 3 Idem, Op. Cit., p. 150. 1

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foi graças à sua humildade que pôde entrar em comunicação com as coisas, e de forma tão profunda que não se sabe se lhes atribuiu a sua maneira humana de ser afim de as subjectivar ou se lhes atribuiu a sua maneira de ser afim de se objectivar a si-mesmo.»1 Com efeito, poderíamos parafrasear a tese de Merleau-Ponty em O Olho e o Espírito – um dos autores que melhor terá compreendido os motivos e os dilemas do pintor – dizendo que Cézanne procurou sempre escapar às alternativas que o seu tempo e a História lhe apresentou e que representam a aporia do dualismo ontológico ser-pensar e que se transfere, como modelo, para a antinomia aparente dos sentidos e da inteligência, para as duas atitudes opostas do pintor que vê e do pintor que pensa, para a impossível homogeneidade entre natureza e composição, entre primitivismo e tradição. Recompondo a ideia conclusiva de Merleau-Ponty acerca do pintor, poderá dizer-se que Cézanne não separa “os sentidos” e “a inteligência”, mas procura conciliar a “ordem espontânea das coisas percebidas” e a “ordem humana das ideias e das ciências”, fazendo-a reconduzir à vivência imediata daquelas. Nós fazemo-nos nascer, enquanto sujeitos, na percepção do visível e, nessa experiência primordial, nessa coincidência activa, viver a lógica substantiva, radical, do Ser. Detenhamo-nos agora no modo como, segundo Liliane Brion-Guerry, se dá, em Cézanne, a passagem do concreto ao abstracto e vice-versa? Ela não o explica aplicando a lógica dialéctica hegeliana nem a marxiana, nas quais a relação de categorias contraditórias se dá dentro dum quadro complexo de simultaneidade e devir, em que a oposição é constitutiva da 1

ELGAR, Frank, Cézanne, Payot, Paris, 1995 (1974), p. 79.

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própria diferença e a diferença, no contexto concreto do adveniente (consciência, ética, economia política, arte, ciência, tecnologia, formação social), determina um novo padrão e um novo conteúdo logicamente correspondente, em cuja base as categorias contraditórias (as universais e não históricas) se conservam. Tal lógica também se aplicaria eventualmente a uma certa dialéctica do “que se está apresentando” no dado completo duma pintura, constituível em método de teoria estética. Este suporia a unidade do mediato e do imediato dos pares categoriais: “abstracto / concreto”, “sensível / inteligível”, “figura / não-figura”, “linha / cor”, “plano / profundidade”, etc. Esta estudiosa prefere-lhe a noção duma “diferença de graus” sem a consideração dum momento “catastrófico”, estrutural ou temporal.1 Para ela, uma identidade “de espécie” é avessa à ideia de “corte” lógico-dialéctico: a passagem do concreto ao abstracto é ‘insensível’, ou antes, uma questão de grau leibniziano. Liliane Brion-Guerry sustenta a tese de que, pelo menos a respeito da unificação entre conteúdo e continente na obra de arte, que vai no sentido duma solução simultânea da tela consigo mesma e com o espaço exterior, se trata sempre duma passagem gradual, no caso de Cézanne, ao prosseguir do construtivo para a síntese derradeira, essa síntese que, depois da solidificação construtiva por redução do efeito atmosférico e da saturação cromática,, consiste na identidade sujeito-objecto no seio

Por exemplo, respectivamente na relação “figura / fundo” ou na sublimação “sólido / aéreo”. 1

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da tela, operada pela “rarefacção atmosférica” progressiva.1 Esta, porém, não deixa de se inserir numa dialéctica, pela qual a unificação – interna e externa – com o concreto tem de passar por um processo abstractivo. Esse processo constitui um período da produção de Cézanne, que ocorre entre 1870 e 1895, um período de “síntese abstractiva”, de síntese precedida da abstracção e construída a partir desta. Em primeiro lugar, dá-se uma unificação do quadro através duma “reconstrução especulativa”2 do espaço que envolve as figuras no interior da tela. Estas ficam assim encerradas num lugar enrarecido de efeito atmosférico (desse efeito realizado tradicionalmente através da perspectiva e da redução ou perca de saturação perspectiva dos tons) e distinto das coisas envolvidas em si mesmas. Pelo contrário, esse processo consiste, em contraponto à uniforme saturação das cores e à aproximação dos planos entre si, na permanência da terceira dimensão efectuada mediante a translucidez do espaço. Os vazios aéreos e a heterogeneidade espacial dos planos, efectuada por redução tonal, começam a ser desvalorizados pelo preenchimento por manchas-signo dos objectos, sem que haja protagonismo da menção à distância pela técnica da degradação tonal, embora esta não desapareça completamente. Tais valores volumétricos são determinados por intercombinação de graus de grandeza, chegando-se, deste modo, no culminar do trabalho plástico, à percepção – mais em profundidade que no plano – de que “figuras” e “fundo”, ou melhor, os elementos diversos, fazem espaço 1 2

Cf., BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., pp. 99-100. Cf. Idem, Op. Cit., p. 100.

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– um espaço único, um espaço “substância” – em si mesmos1 e no contacto recíproco, por acção recíproca entre si, espaço cuja definição já não está entregue na totalidade à relação abstracta entre perspectiva geométrica e degradação tonal: criam, pois, um espaço concreto especulativo. Com efeito, escreve Brion-Guerry, «nas obras escalonadas entre 1879 e 1895, opera-se uma fusão estreita de todos os elementos da composição, porque esses elementos, assim como o seu continente espacial, pertencem doravante ao domínio do abstracto. Não é, portanto, somente uma vontade de expressão construtiva do objecto que cria a unidade do espaço, mas é o facto de que o espaço, ele-mesmo, se torna parte integrante da construção, e que doravante indissociavelmente ligado ao seu conteúdo, pode evoluir do concreto ao abstracto sem se revelar para o conjunto da composição qualquer perigo de dissociação. Ela pode expandir-se na profundidade, ou, pelo contrário, reenviar-se ao plano – em ambos os casos continente e conteúdo formam um todo homogéneo.»2 Exemplos de alguma falta de unificação são-nos igualmente disponibilizados por Liliane Brion-Guerry. A autora apresenta-nos o quadro Vue de l’Estaque (V. 168), de 1879, no início do período também dito de “construtivo”, como ilustrativo de abstracção incompleta. O primeiro plano parece estar separado do segundo plano por um grau de detalhe impressionista incomensurável com a simplificação vagamente construtivista a que este foi sujeito. Ainda influenciado pelo Impressionismo de Pissarro, Cézanne «é solicitado pela diversidade do concreto, na 1 2

Os objectos nunca perdem a sua realidade visível. Idem, Op. Cit., p. 100.

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qual se detém, em vez de a sintetizar resolutamente na abstracção [unificadora], como o há-de fazer depois.»1 Os planos do quadro parecem integrar espaços distintos, reportando-se a diversos planos subjectivos da percepção, à incapacidade da percepção intuir todos os planos da paisagem com a mesma clareza e pormenor, conseguindo, apesar disso, manter a tridimensionalidade. Porém, ele faz opor percepção e objecto real. A diversidade infinita dos objectos sobreleva a sua homogeneidade geométrica essencial e efectiva. A unidade da tela também é comprometida. De facto, para Brion-Guerry abstracção não é mero sinónimo de análise. Esta resume-se, segundo ela, à distinção dos detalhes mas aquela consiste numa verdadeira actividade discriminante do essencial e do acessório, do necessário e do casual, do elemento estrutural e do que provoca confusão ou desordem na imagem. Tal desordem surge da diversidade imediata, agitada, sem a manifestação duma ordem descoberta. Dialecticamente, e pelo contrário, a síntese resulta de um trabalho sobre a decomposição analítica dos elementos percebidos como estruturantes. A abstracção produz-se desde o começo em função da síntese dos elementos estruturantes analisados. Aplicado este método à pintura por Cézanne, verifica-se que, no período “pré-abstractivo”, a minúcia realista do primeiro plano evoca o concreto sem o transpor num espaço dotado de um princípio de homogeneidade, e o plano de fundo, de maneira incongruente, apresenta-se na obediência a estes princípios, abstractamente reconstruído, composto à parte. É preciso dar o passo para a unificação abstractiva, ou abstracção unificadora, “sintética”, do quadro, superar 1

Idem, Op. Cit., p. 106.

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a exuberância circunstancial e insignificante, como “princípio geral” do concreto empírico, pelo descobrimento dos elementos equilibradores na paisagem vista. A sua estabilidade cristalina, de matéria cromática e dotada de ritmos e cadências produzidos por formas elementares assentes em si mesmas mas combinadas, equilibradas e estruturadas no espaço denso, espaço já não atmosférico mas sobretudo colorido, é condição inicial dum sintetismo que se abrirá virtualmente ao ambiente do espectador. O (1) “quadro-abstractivo” dá lugar ao (2) “quadroconstrutivo” que, por fim, será superado pelo (3) “quadro-síntese”, visão em corpo próprio, verdadeira, do Ser enquanto visível. A “barreira” à criação do espaço do quadro-síntese é franqueada, no entender de Brion-Guerry, nas telas Vue de Saint-Henri à l’Estaque (V. 398), La Mer à l’Estaque (V. 399) e Les Rochers à l’Estaque (V. 404). Nestas obras, desaparece a tradicional dicotomia “figura/fundo”, assim como a do “abstracto-concreto”. Duvidará o olhar embrutecido pela ausência moderna de preconceitos de se ter avançado um pouco que seja na integração do quadro? Todavia, a unificação do espaço não foi atingida à custa do esvaecer total da noção de profundidade e de degradação tonal, que não são suprimidas no sujeito como se fosse levado a ver apenas uma «carta de jogar».1 Porque a percepção da distância (e será preciso recordar a ênfase posta por Cézanne na intensidade do tom) não é dada pela combinação quase matemática da Uma expressão usada por Cézanne na carta a Pissarro de 2 de Julho de 1876, a qual refere a estranha impressão provocada pelo Sol forte do Sul duma “profundidade plana”. 1

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perspectiva artificial com o esbatimento, pela diminuição de grandeza acompanhada de redução da intensidade, do azulado e da perca de detalhe. Reside aqui em parte a sua oposição, quer ao Classicismo, quer ao Impressionismo. Qual é então o segredo da distância? O seu segredo está na relação estrutural e dinâmica da cor com as formas e a grandeza, assim como desta dinâmica com a percepção significante do sujeito. A composição deixa de estar redutoramente subordinada à geometria e ao traço, combinada com a degradação tonal, como na arte clássica, ou redutoramente à cor e à luz, como na impressionista. Dá-se uma síntese de todas estas dimensões (unidade correlativa da forma e da cor) correspondentes do ver e do visível. Ora, não há sentido sem cor nem a cor por si mesma tem sentido para o homem. E muito menos a cor tem sentido sem a inteligência natural, perceptiva, cinestésica, e não isoladamente teórica, nem meramente receptiva, da visão.1 Até porque se pode transformar o objecto em cor, como fez Monet e o Impressionismo em geral, ou, inversamente, a cor em objecto, como no caso de Cézanne. Eis um passo muito esclarecedor da fala de Cézanne acerca do diálogo, avesso a qualquer tese empirista ou até positivista, da recepção e da acção ou apropriação comÉ, porém, o “sentido da Terra”, como dizia Nietzsche, mas sem a “vontade de poder” deste. O visado por Cézanne é o valor puro das cores sensíveis e não o valor de troca ou de uso. Cézanne busca esta identificação activa sensível, que será tão cara à Fenomenologia francesa; e abomina a transformação material prática, que apenas consegue apreender nas formas de manifestação destruidora, degradante e mercantil, o que nos lembra Feuerbach, assim como o seu oposto, o racionalismo especulativo, por desqualificar o contacto directo com as coisas. 1

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posicional na actividade perceptiva que o pintor se esforçava por projectar na tela, jogo que não escapou à perspicácia de Rainer Maria Rilke numa das suas Cartas sobre Cézanne, em que também ajuíza sobre as “desavenças” não resolvidas pelo artista entre o aspecto receptivo e o apropriador, que não teria sido capaz de conciliar num único processo na evidência dos quadros, ao não corresponderem ao espaço normal da percepção. Mas o próprio passo que vamos citar mostra como o pintor não deseja imitar as aparências superficiais e passageiras das coisas nem imaginar composições escapadas da vivência sensível da paisagem mas a projecção recíproca da multiplicidade dos valores de si-mesmo e dos objectos, recuperando-se mutuamente, no mesmo gesto, na mesma nota cromática e na mesma relação entre os elementos, na tela. É isso que Cézanne exprime ao afirmar, num registo aparentemente nada metafísico mas cingido a uma correlação verificável de factos empíricos, contudo comprometido com a ideia da indissolubilidade entre o sujeito e o objecto: «Tenho-vos dito constantemente que o cérebro, livre, do artista deve ser como uma placa sensível, um aparelho registador simplesmente, no momento em que obra. Mas esta placa sensível, banhos sábios conduziramna ao ponto de receptividade a partir do qual se pode impregnar da imagem conscienciosa das coisas. Um longo trabalho, a meditação, o estudo, sofrimentos e alegrias, a vida prepararam-no. Uma meditação constante dos procedimentos dos mestres. E depois, o meio em que nos movemos habitualmente... este sol.»1 De facto, só o volume, só a profundidade é real, e a superfície de matéria cromática, cuja cor é a mesma da 1

CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 134.

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cor “biológica” da percepção, é a definição precisa dessa profundidade, tanto geológica e dura quanto aérea e penetrável, conferindo nessa identidade um sentido de realidade ao ver. Mas então a cor pura e a cor saturada são incapazes, na mera matéria do quadro, abstraída da experiência perceptiva real, de conferir distância, como o abstraccionismo haverá de provar.1 É preciso sugerir, já não uma perspectiva artificial, linear, mas concreta, partindo do jogo do receber e oferecer da composição cromática. Não é, todavia, a dificuldade da descoberta sensível da profundidade o que o pintor deseja evidenciar na generalidade dos quadros: é a possibilidade da consistência da construção cromática em alternativa ao sistema completo dos métodos antigos. A originalidade de Cézanne relativa ao modelo leonardiano, não é demais frisar, consiste no seguinte. Evitando a preconcepção de um modelo, chega à unificação dos planos por transposição abstractiva das formas e transparência atmosférica, com a respectiva tendência para a saturação uniforme das cores, conseguindo constituir, compondo-o – frequentemente e em especial nas “naturezas mortas”, que não nas contemporâneas Banhistas – com a perspectiva quebrada e múltipla, ligada na composição, um espaço plástico-cromático uno, concreto. A hierarquia tradicional dos itens, ordenados pelo simbolismo social ou alegórico, ou medidos pelo cruzamento geométrico das ortogonais e das paralelas, é abandonada como um factor estruturante. As modalidades diferentes de composição não provêm de ausência de “ideSerá interessante investigar as possíveis diferenças e semelhanças entre a percepção criativa, ou poiésis, e a percepção ambiental. 1

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al” mas do respeito constante pelos objectos no esforço de se apropriar da unidade da sua forma e sentido, sem trair a substância das coisas pelo sentido e sem abdicar de transpor na forma o sentido mais essencial das coisas. É este o seu “ideal” e a constância estética do seu trabalho: que há um valor axiológico na identificação do ver e do visível, com a sua lógica singenésica, a sua moral natural e as suas cinestesias sensíveis. O respeito pelas coisas não deve, portanto, ser entendido em Cézanne como uma pura passividade, apesar de algumas das afirmações se contradizerem ao se descontextualizarem da totalidade do seu pensamento fixado em texto. Quando se procede de tal maneira, uma declaração como esta falsifica por completo o que pintou e meditou: «- O artista é somente um receptáculo de sensações, um cérebro, um aparelho registador...»1 O que se diria, então, da conhecida, mas por vezes desprezada, passagem do diálogo com Gasquet?: 2 «parece-me que serei a consciência subjectiva desta paisagem, assim como a minha tela será a sua consciência objectiva.»3 A paisagem é transfigurada na tela por uma certa “lógica” viva do equilíbrio da composição e por uma moral que parece existir nela e nas cores. Na tela, identificase o essencial, o mais profundo e permanente, do sujeito e do objecto. Por isso, o sujeito “encontra” no objecto, na paisagem, um estado de si mesmo, sem que o objecto perca, por um instante que seja, a sua “substância”, pois ele não é somente um reflexo da percepção mas igual-

Idem, Op. Cit., p. 131. Expressamente influenciada pela menção de Kant num anterior diálogo com o médico. 3 Idem, Op. Cit., p. 132. 1

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mente um sentido de realidade: vê-se nas coisas visíveis aquilo que se é, enquanto ver, e aquilo que é, enquanto visto. Essa unidade é o real. E o quadro é uma imagem de tal unidade, fixada como resultado do labor de a manifestar. A Natureza é em si-mesma o livro aberto do homem: é preciso apenas saber lê-lo, aprender o seu léxico, a sua sintaxe, a sua gramática directa, motivada, que é a gramática de nós próprios. Procuramos descobrir na paisagem aquilo que somos. O resultado da procura é o quadro. Düchting compreendeu bem esta semiologia da paisagem e a sua transposição plástica, que pretende ser ao mesmo tempo fiel, serena e dramática. Cita uma passagem de Cézanne, num diálogo com Gasquet, muito esclarecedora desta sua atitude para com as “naturezas mortas”: «Agarrei-me escrupulosamente ao objecto... Copiei... Isto aqui, estão a ver, foram meses de trabalho. Choros, risos e ranger de dentes. Falávamos de retratos. Julga-se que um açucareiro não tem uma fisionomia, não tem alma. Mas isto também muda todos os dias. É preciso saber apanhá-los, a esses senhores... Esses copos, esses pratos, eles falam entre si... são confidências intermináveis.»1 Os objectos, ordenados pelo pintor, determinam simultaneamente as condições do seu arranjo, pela sua forma e cor, que lhes conferem uma vida cinestésica interior (o peso ou a leveza, o calor ou o frio, a timidez ou a arrogância, a estabilidade ou a insegurança, a alegria ou a tristeza). As coisas coabitam e dialogam num espaço que gera e se gera no diálogo da suas estruturas espaciais e

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CÉZANNE, Paul in DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 179.

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massas cromáticas. Forçam o artista a serem tratadas de acordo com a sua personalidade. O comentador Hajo Düchting escreve, então, esclarecendo o efeito desta prática: «Para além dessas condições formais, desse espaço da experiência, estes objectos que se tocam e se inclinam uns para os outros são uma metáfora dos conflitos de Cézanne com os homens, conflitos que ele procura ultrapassar através da contemplação agradável das suas naturezas-mortas. Cada fruto, cada garrafa, cada prega da toalha transforma-se no receptáculo de um aumento de vida, como personagem do conflito entre a superfície e o espaço. Cézanne formula, assim, uma angústia do espaço que faz parte das experiências típicas do século XX [...]»1 Hajo Düchting revela também uma outra faceta da arte do pintor de Aix, mostrando como uma dinâmica social e a ideologia subversiva que a sustenta – a do igualitarismo – se sublimam na criatividade de artistas burgueses biograficamente inadaptados à sua condição mas que temem o desenvolvimento comercial-industrial e as convulsões que transportam perigos para a sua subsistência e destroem os sonhos de uma harmonia imediata e sem custos, sublimando-a numa originalidade criadora representada em Cézanne no significado original da criação: «A unidade perdida entre o homem e a natureza, 2 como duplo aspecto do desconhecimento da natureza e da sua exploração, tinha já encontrado, nas últimas décadas do século XIX, a sua compensação no novo mito do “paraíso

DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 186. Terá alguma vez existido? Verdade é que sempre a ocorrência de importantes avanços tecnológicos se reflecte na consciência na forma de reacção contra o afastamento do paraíso perdido e cada vez mais impossível de reencontrar. 1

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terrestre”. As utopias socialistas alimentavam com sonhos as esperanças de uma transformação social. [...] O tema do “paraíso terrestre” transforma-se para os artistas no símbolo da originalidade criadora reencontrada.»1 Estará isto relacionado com o seu abandono do princípio hierárquico? É algo difícil de provar. Sem deixar de tomar em consideração a ideia de que a arte não é apenas o resultado como também o projecto, e de que o olhar ingénuo trai nas suas convenções subentendidas a ingenuidade mais recriada que reconquistada do olhar, é igualmente desgostoso desprezar a comparação entre aquele mito de comunidade imaginariamente primeva, “autêntica”, dos homens entre si e destes com a Natureza e a impressão de imediatidade sensível e de frescura produzida pelas melhores obras de Cézanne ao conseguir, como a escala na grande música,2 abstrair no contacto com os objectos um círculo elementar de cores e de manchas sobre a qual se formam harmonias e contrapontos que unem a paisagem casando-a criativamente com a sensibilidade humana, círculo que já não serve para acolher “importâncias” ou protagonismos de qualquer espécie, e onde a regras de composição não precedem o motivo mas salientam os seus valores múltiplos e igualitários no contacto sensível encontrado. Daí, nessa eliminação do acessório, da infinita variação superficial das coisas, que as banalizaria integrandoas no quotidiano, apagando-as nele, a tal frescura, a impressão construída, a síntese analítica, da espontaneidade.

Idem, Op. Cit., p. 146. Sobretudo a romântica, ou Cézanne não apreciasse Wagner, e pós-romântica. 1

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O lema de Picasso (“Não procuro, encontro”, com a duplicidade semântica da palavra “encontro”) aplica-se talvez melhor que a ninguém a Cézanne. Fora algumas obras, o trabalho de composição abstractiva de Cézanne consistiu paradoxalmente em evitar a impressão do construído e, ao mesmo tempo, da passividade receptiva. Este objectivo será alcançado, segundo Liliane Brion-Guerry, em várias telas de Banhistas entre as dos museus e colecções de Baltimore e de Chicago, nas quais desaparecem os constrangimentos estruturais para se destacarem a infinidade e a liberdade. Richard Shiff salienta, por seu lado, que até as obras mais aparentemente confeccionadas, como as da série das “naturezas mortas”, em particular as do período sintetista, manifestam a técnica de “realização do encontro”: «Cézanne empenhou-se em evitar a composição hierárquica convencional – de facto, transformou ou eliminou minuciosamente tudo o que poderia ser reconhecido como “composição” aos olhos dos seus contemporâneos. 1 A originalidade de Cézanne é mais difícil de apreender pela nossa visão “libertada” de preconceitos, que a leva paradoxalmente à banalização, à aceitação passiva e incompreendida do novo. No mundo contemporâneo o original torna-se vulgar, constitui o próprio motor imaginativo e tecnológico do processo produtivo que, em vez de emancipar, constrange o indivíduo à tirania do produtivismo, perseguindo-o como um meio necessário à aquisição de bens, num círculo no qual o meio, e não o conteúdo, a não ser o dos estereótipos reforçados e as fantasias semicultas incrementadas na sofisticação, se torna demasiado importante. Daí, por exemplo, a insistência pedagógica numa escola criativa, na qual a forma é mais importante do que o conteúdo, a função mais decisiva do que o sentido, o saber-fazer mais valioso do que a verdade humana daquilo que se faz. A subversão virou-se contra si própria. Cézanne não teria gostado desta criatividade operacionalista. 1

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Essencialmente, em termos de ligação duma parte articulada com outra, o artista estabelece correspondências para unificar a imagem e reforçar a uniformidade do efeito atmosférico.1 É muito por causa desta espécie de correspondência estrutural – repetição não hierárquica de motivos de cor, forma, ou linha direccional – que mais tarde bastantes observadores apelidaram as suas pinturas de “achatadas”; elas pareciam uniformes, não apenas em cor e no valor mas no grau de profundidade ilusionista estabelecida numa parte da pintura em relação a uma outra.»2 Eis como Richard Shiff elucida a técnica da unificação espacial sem prejuízo da frescura da imediatidade crua da cor, não envolvida em formas lineares, desenhadas, e da impressão de “encontro”, de não fabricado, pela simples correspondência das manchas cromáticas, valendo-se duma Natureza Morta (‘circa’ 1900) da National Gallery of Art, Washington, D. C.: «Exemplos de correspondências estruturais típicas que Cézanne criou na sua Natureza Morta incluem: 1) os acentos lineares da borda vertical direita da gaveta da mesa fazem eco da retribuição do lado direito do jarro e igualmente das pinceladas direccionais da parte inferior esquerda do prato; 2) a secção central do fundo corresponde cromaticamente ao primeiro plano da mesa; 3) o padrão de pinceladas de trincha do jarro corresponde ao padrão do lado adjacente do fundo (à direita do jarro); 4) as pinceladas de trincha que definem o copo de vinho estendem-se além dos limites representacionais do objecto

Ou talvez melhor, do espaço, regido pela semelhança da pincelada e da intensidade ou da sua gradação em profundidade mas sem separação de planos. 2 SHIFF, Richard, Op. Cit., p. 215. 1

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e correspondem às pinceladas do fundo adjacente; 5) o fundo drapejado parece, na secção superior direita, arranjado para formar pregas diagonais, definindo um ângulo reciprocamente relacionado ao da borda direita retrocedente da mesa do primeiro plano; 6) “sombras” horizontais junto às laranjas [não serão maçãs?] e ao limão à esquerda ecoam as bordas da mesa e da gaveta. Tais analogias reforçam o sentido de uma variação articulada mas repetida em toda superfície, que é dada também pelo uso insistente do artista de contrastes de cores quentes e frias: o prato é um padrão de azul, rosa e verde; a fruta vermelha, laranja, amarela e verde é bordejada por pinceladas lineares de azul e violeta avermelhado; os limites lineares da mesa consistem em segmentos de azul, violeta avermelhado, verde e castanho avermelhado com pinceladas de azul frio brilhante frequentemente flanqueadas por contrastantes castanhos alaranjados quentes; o plano da mesa varia de diversos castanhos quentes e frios até violetas pálidos, violetas, azuis e verdes.»1 2 Idem, Op. Cit., p. 215. Aproveitemos a oportunidade oferecida por este quadro para referir uma faceta da arte de Cézanne insuficientemente tratada até aqui e cujo reconhecimento reforça a ideia da complexidade multifacetada da sua obra. Pelo que vemos, Cézanne não escolhia só maçãs para representar os frutos. As maçãs são, todavia, o objecto orgânico por excelência do pintor, não só pela recorrência como pelo seu simbolismo. Escreve Hajo Düchting: «Paralelamente ao sucesso antecipado, numa cidade onde tinha sofrido tantas humilhações, ele funde este elemento pictórico, em princípio anódino, com a maçã mítica, dando-lhe assim um sentido muito pessoal, que não aponta apenas para o sonho de uma realização erótica, mas também, num plano mais geral, para as dificuldades da realização humana. Partindo do visível, Cézanne empenha todo o seu ser sensível na percepção paciente do objecto e associa à criação níveis de sentido simbólicos que acabam por ultrapassar o que é apenas visí1

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O “claro-escuro”, uma das maneiras de determinar a forma dos motivos e de harmonizar as tensões, usada desde o Renascimento e elevada, entre outros, por Leonardo à categoria duma significação metafísica, transfere em Cézanne o peso da sua “função” para as oposições correlativas das manchas intensas quentes e frias e das cores fundamentais ou pelo menos saturadas, opacas ou transparentes, que põem os acentos,1 assim como para as ligações promovidas pela partilha simultânea e equilibrada de notas complementares e adjacentes, pela mistura das primárias e pela adição de branco e de preto, mistura que, na combinação com as restantes técnicas – dando de barato que o puro jogo cromático na tela sem consciência e sem experiência não basta para percepcionar –,2 chega para criar um efeito atmosférico ou aéreo unificado, mas não unificando a priori, como acontecia pelo método da perspectiva linear renascentista, uma paradoxal caixa vazia à espera que pusessem lá as coisas que apetecessem. Cézanne utiliza, pois, uma grande variedade de procedimentos, alguns tradicionais, como as correspondências das massas cromáticas, dos pesos e contrapesos, das linhas-de-força subentendidas na disposição das figuras, que transportam tensões harmonizadas. Ele apreciava em particular a pintura veneziana da Renascença e do Mavel. [...] /Foi sobretudo na natureza-morta que Cézanne soube criar o seu próprio universo. É nas suas composições sempre renovadas a partir de objectos simples que se encontra o fundamento do mistério criador, que culminará na obra tardia: a fusão dos planos, a intensificação das cores, a ligação harmoniosa, mas ténue, de todos os objectos entre si, na base de uma essência comum, que contém toda a plenitude da vida.» (DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 188). 1 Aspecto este que não é novidade. 2 Pondo, portanto, neste momento, de lado qualquer dúvida sobre a verdade da ideia estética de Cézanne.

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neirismo, baseada na exuberância e na experimentação da cor, elevada a uma expressividade inigualável pelos seus admirados Veronese, Ticiano e Tintoretto, três dos grandes mestres do Segundo Renascimento. 1 Tal não nos deve fazer esquecer as diferenças notáveis, abertas pelos séculos, entre eles e o nosso pintor de Aix, nomeadamente a separação, embora não indiferença, entre figura e espaço, descontando, pois, as já exploradas ligações habitacionais, cósmicas e simbólicas dos elementos com as direcções espaciais, o efeito pronunciado de distância, a composição intelectualmente préconcebida e o frequente equívoco ilusionista da combinação evidente entre realidade e ficção. Mas não se cansava de elogiá-los, numa espécie de desafio a um certo misticismo do “claro-escuro” que, portanto, não se poderia generalizar como modelo “clássico” universal. «Eles! Eles possuíam uma tal vitalidade que, em todas as suas árvores mortas faziam circular a seiva, [...] As suas carnes têm um gosto de carícia, um calor de sangue... [...] Eles não tinham outra verdade. Era a sua natureza, esses corpos de deuses e deusas. Neles glorificavam o homem, em face das madonas e dos santos em que já não acreditavam. [...] Eles são verdadeiros pagãos. Há nessa renascença uma explosão de veracidade única, um amor da pintura e das formas que nunca mais se encontrou... Os jesuítas vieram. Tudo é afectado. Aprende-se, ensina-se tudo. É preciso a revolução para que se descubra a natureza, para que Delacroix pinte a sua praia de Entretat, [...]»2 O “claro-escuro”, tão convincente ao olho clássico de genealogia florentina, tendo em Da Vinci o seu máxi1 2

Fins do Século XV – princípios do Século XVI. CÉZANNE, Paul, Op. Cit., pp. 139-40.

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mo expoente,1 é na verdade um artifício associado a uma semiótica carregada de valores transcendentes, geralmente neoplatónicos, que tornam mais verosímil e estável o reconhecimento empírico no plano da sua integração num universo de sentido afirmado como ontologia. As formas de matéria escura emergem da negritude cósmica, desvendadas pela luz divina, que revela a serenidade sábia e sensível do homem e da mulher ideais tocados pelo sagrado. Seria, em contraponto, uma das várias manifestações da beleza sóbria, sublime e aristocrata da contraditória Florença contra a vitalidade faustosa, comercial e burguesa veneziana? 2 É evidente que a técnica do “claro-escuro”, aplicada ao ambiente diurno ao ar livre ou bem iluminado, é simbólica e pouco realista, assemelhando-se à representação de cenas nocturnas parcialmente atravessadas pela luz, apesar do com ela Da Vinci ter conseguido melhor que ninguém, até à altura, transmitir uma verosímil aparência do volume e suas relações, pelo abandono do corte linear entre as cores dos diversos elementos, acentuando ao mesmo tempo a qualidade onírica da imagem através do sfumato, tratar a expressão da mente pelo rictus, pelo gesto e fisionomia, traduzindo em simultâneo o mistério dos seus jogos de ocultamento e, de forma única, o carácter inefável da alma. Ironicamente cultivado na juventude católica romântica de Cézanne até 1870, cuja técnica então incipiente, associada aos desgostos da carne, deformava os corpos a ponto de fazer sentir repugnância ou pela carne original ou pelas telas, pondo-o a léguas de distância de Leonardo para quem a figura humana é a materialização harmoniosa dos sentimentos e do pensamento. 2 Evite-se levar demasiado a sério, por escassez de dados e insipiência teórica, a associação aqui feita. Até porque Da Vinci se transferiu aos trinta anos para Milão. 1

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O florentino é, decerto, o acume da atitude renascentista de procurar uma síntese entre ciência, humanismo e religião, a harmonia matemática e mística entre o homem e o cosmos. O acordo almejado por Cézanne é de outra espécie: orgânica, táctil,1 panteísta.2 Recordemos por H. W. Jason as características essenciais desta técnica. O historiador toma como exemplo a inacabada Adoração dos Reis Magos de Leonardo: «O aspecto mais surpreendente – e verdadeiramente revolucionário – deste painel é o modo como está pintado, embora Leonardo não tivesse sequer completado o “preparo”. [...] as formas parecem materializar-se de modo suave e gradual, nunca chegando a destacar-se completamente da penumbra envolvente. Leonardo, ao contrário de Pollaiullo ou Botticelli, não pensa em termos de contornos, mas sim de corpos tridimensionais tornados visíveis, em grau variável, pela incidência da luz. Nas sombras, estas formas permanecem incompletas, os seus contornos estão meramente implícitos. Neste método de modelar (chamado chiaroscuro, “claro-escuro”) as formas já não se erguem simplesmente justapostas, mas são parte

O ver em Cézanne acompanha o modelado e o facetar das coisas, como se os seus olhos tivessem dedos. Aproxima-se, mantendo contudo a primazia e originalidade da visão, do uso comum do termo ‘sentir’: tocar. 2 Muito embora a sua tardia conversão ao catolicismo, mais por causa da necessidade de segurança paternal, transferida no Papa, que pela crença num ser supremo distinto da Natureza. E já que tantos estabeleceram similitudes da sua arte com múltiplas e contraditórias filosofias, por que não dar uma achega com outra, a dum Espinosa desintelectualizado, mantendo a correspondência da ordem do espírito, agora sensível, e da ordem das coisas. 1

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duma nova unidade pictural, derrubadas parcialmente as várias separações entre umas e outras.»1 O maior “realismo” cinestésico de Cézanne é, porém, compensado pela simplificação das formas, pela exacerbação do contraste no uso das complementares e pela ausência de modelado suave, transpondo os motivos num espaço abstracto, evitando, portanto, por um meio diferente da dos venezianos – mais “naturalistas” no seu imaginário, dramáticos e esbatendo a delimitação precisa, florentina, das figuras (em si e do espaço envolvente),2 figuras em geral mitológicas, alegóricas e temáticas –, evitando, dizia, tanto a banalidade da imagem quanto o risco do sentimento do “já visto”, do convencional, que arriscaria suprimir a frescura duma impressão imediata, na verdade paradoxalmente transmitida ao mesmo tempo por uma composição gerada por si mesma e pelos jogos complexos que a percepção constitui em imagem, impondo aos espectadores o sentimento de presença de realidades que todos sabem não serem “realmente” assim mas que sintetizam numa acomodação dinâmica. O “naturalismo” esforçado denuncia-se logo como uma imitação que ilude bem, como a cópia virtuosista do “original”. Cézanne, ao fazer da pintura o próprio original entrega definitivamente à fotografia recém inventada a função ilusionista de representar a superfície objectiva das coisas, tomadas, como diriam Karl Marx e Friedrich Engels na primeira das fundacionais Teses sobre Feuerbach, JANSON, H. W., História da Arte, trad. Ferreira de Almeida do original ingles History of Art, 2nd ed., Harry Adams Inc., Publishers, New York, 1977, FCG, Lisboa, 2ª ed., p. 418. 2 Com a relativa excepção do Ticiano tardio, cujas figuras quase se fundem por osmose com a pigmentação informe do fundo, testemunho genial dos seus dedos quase cegos. 1

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«apenas sob a forma do objecto ou da contemplação, mas não como actividade sensível humana, práxis, não subjectivamente.»,1 isto é, mecanicamente, seguindo o modelo cartesiano, portanto não através da produção da própria realidade objectiva, mediante a qual o conhecimento se origina e se desenvolve, embora, por vezes, deve dizer-se, quando ela própria – a fotografia – procura superar essa sua origem imitativa, o faça de forma surpreendente e autenticamente inovadora, através da originalidade dos enquadramentos, das tomadas-de-vista, das segregações de figuras e das alterações de tom. Cézanne vai atribuir, assim, à pintura um papel mais amplo do que lhe fora reservado antes da invenção do daguerreótipo, o de projectar a globalidade da experiência humana pela imaginação produtiva de todas as formas possíveis, nas quais aquela se revive e se revê, o que implica jamais esquecer os liames, imprevisíveis, entre verdade e invenção, obrigando a arte a tomar consciência de si-mesma e do estatuto que deve conquistar no mundo moderno.2 A impressão de frescura e de imediatidade duma grande obra vai doravante proceder do facto da arte já não ter por função transpor o visível na tela ou a imaginação alegórica, literária, no visível, desenvolvendo ou descobrindo um estilo de representar, mas de transmitir uma qualquer verdade humana inseparável do objecto criado, existente nele.3 Relacionada com a unificação do “espaço”, MARX, Karl & ENGELS, Friedrich, Teses Sobre Feuerbach, in Marx Engels Obras Escolhidas, Tomo I, Edições Avante!, Lisboa, 2008, p. 13. 2 É provavelmente este o contributo mais perene de Cézanne. 3 A diferença entre Rafael e Courbet não equivale à diferença entre Picasso e Frank Stella. A arte moderna ter-se-á vingado de Platão. 1

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1º pelas já referidas articulações de correspondências, pela justaposição de cores altamente contrastantes no limite dos planos,1 para evitar a aparência da sua separação, portanto através da sobreposição dos planos na superfície ao desqualificar a gradação tonal, tantas vezes falsa, mas sem a fazer desaparecer completamente, dado que ela também pertence à percepção concreta, interrompendo entre si primárias e secundárias vivas; e 2º com o efeito de continuidade reforçado pela simultaneidade de um processo oposto, ou seja, pela comunicação entre cores adjacentes e tons secundários próximos, junto com enegrecimentos profundos do tom; 3º usando da ambiguidade rítmica opacotransparente que, a certa distância, faz parecer tudo o que preenche o espaço como sendo feito duma única matéria cristalina; 4º sendo o conjunto destes procedimentos combinados estruturalmente com diferenças angulares entre superfícies dadas por contornos escuros finos e grossos, regulares ou irregulares, por variações de cor e de tom ou mudanças de direcção das pinceladas; 5º transformando-se assim dialecticamente a unidade de plano na de espaço uno e consistente, convertendo-se continente e conteúdo, espaço atmosférico e elementos mais densos, numa substância extensa única (intraduzível pelas leis normais da física), aqui aérea e ali sólida, diversificada em si-mesma mas indissociável, sugerindo um espaço de cristal reverberante – aí está a forma como se gera a profundidade no quadro. É Liliane Brion-Guerry quem o indica: «Em Cézanne [...] o espaço é um continuum, um todo orgânico e, como tal, perfeitamente uno. Mas esta unificação não é 1

Como nas cartas de jogar.

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obtida por meio duma construção geométrica, como nos pintores da Renascença. Cézanne não se submete rigorosamente nem a uma perspectiva linear nem a uma perspectiva aérea. Nem sequer observa [...] a degradação tonal na profundidade. A ilusão perspectiva é obtida pelo facto de que o real, continente aéreo e conteúdo sólido, é tratado como uma massa plástica única. É pelo facto de que a paisagem inteira se comporta como um único volume1 que o contorno desse volume sugere a existência duma terceira dimensão.»2 Foi, voltando à cronologia pictográfica de Cézanne, uma nova maneira de sugerir o espaço, aquela que ele descobriu no início do período sintético, realizando uma unidade que simultaneamente faz do quadro um volume concreto virtual e um espaço abstracto, mais essencial e desafectado do que contingente e passageiro pela definição, no sentido duradouro, duma paisagem, duma coisa, dum rosto. Com as paisagens de l’Estaque, e outras da época, Cézanne conforma “espaços concretos” que se distinguem dos exteriores às suas telas, nos quais os espectadores vivem, não pelo forçado e artificioso duma composição de linhas-de-força exacerbadas e ostensivamente simbólicas, como era o caso das Les Grandes Baigneuses,3 mas por uma transposição do concreto exterior na síntese abstractiva dos dados mais elementares e permanentes do objecto.

E não por um qualquer artifício tradicional: sobreposição descontínua de planos, esbatimentos, perspectivas lineares, etc.. 2 BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., p. 114. 3 Características que em nada lhe fazem perder a grandeza, pois são elas que lhe determinam o valor específico. 1

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Repare-se, no entanto, e entretanto, que muitas das afirmações de Cézanne a Gasquet, a Bernard, a Denis e a outros tornam obscuros os valores semióticos da sua arte. Leia-se, para exemplo, esta declaração desesperante e ambígua do pintor a Gasquet: «Tudo o que nós vemos não é, dispersa-se, vai-se. A natureza é sempre a mesma, mas nada permanece dela, do que nos aparece. A nossa arte deve oferecer a agitação do seu durar com os elementos, a aparência de todas a suas mudanças. Ela deve fazer-nos saboreá-la como eterna.»1 Terá com isso – pergunta-se – realizado em arte a sua ideia de Natureza e da verdade da relação do homem com ela? Mas, para continuar a ser honesto, essa sua ideia é mais difícil de compreender do que aparenta a por vezes excessiva segurança destas páginas e, passe a presunção, de alguns dos seus comentadores. Não crendo ser heracliteana nem parmenídea, platónica e, apesar da inclinação de alguns importantes estudiosos,2 também não à maneira de Bergson, talvez se aproxime, sem uma identificação completa, da fenomenológica.3 Tendo já estabelecido uma similitude com Espinosa, pode-se verificar como um objecto de arte é polissémico e passível de várias interpretações, talvez algumas mais certas do que outras, o que, à partida, não a descredibiliza nem aos seus intérpretes mas pode ser sinal du-

CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 130. Entre eles, Lionello Venturi em Cézanne, p. 109, Lilianne BrionGuerry em Cézanne et l’Expression de l’Espace, nota 17 da p. 15, p. 232. René Huyghe aponta-lhe semelhanças com Descartes em La Relève du Réel, Flammarion, Paris, 1974, p. 216 e seg. 3 É a tese apresentada por Forrest Williams no Journal of Aesthetics and art criticism, 1954, nº 4, p. 418. 1

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ma desmultiplicação diacrónica e sincrónica de sentidos que a enriquece. É, aliás, de admitir, que a obra de Cézanne contenha um pouco de tudo. Um grande artista não precisa de ser sistemático e coerente em absoluto. Nos capítulos seguintes haverá oportunidade de reflectir sobre as possíveis metafísicas nela “encriptadas”, assim como acerca das contribuições das ciências psicológicas e de outras, susceptíveis de importarem, numa troca recíproca de saberes e criações plásticas, ao conhecimento da percepção humana. Podemos fazer, assim, neste momento um parêntesis para pôr a claro alguns prováveis excessos ou inexactidões na análise da “gramática” pictórica de Cézanne, nomeadamente quanto à “saturação uniforme das cores”, à idêntica intensidade de contrastes, ao abandono da mistura gradual de azuis, que realça a profundidade enfraquecendo os tons. Pode ser o caso do esforço de esquematização do percurso de Cézanne por Liliane BrionGuerry. Estes princípios cromáticos, unificadores do espaço, considerados unanimemente, ou quase,1 pelo menos desde Elie Faure, características do seu estilo amadurecido, devem, na minha opinião, tomar-se apenas como “tendências fortes” mas não como realizações efectivas na maioria das suas obras. E temos de notar ainda que o próprio Cézanne defendeu o uso do azul para sugerir a profundidade, sabendo-se que a sua mistura enfraquece as cores. Pois se Cézanne diz a Gasquet: «Quando a sensação está na sua plenitude, harmoniza-se com todo o ser.”,2 também afirma: «Ora, a natureza, para nós, ho1 2

Pois decerto não li tudo o que foi escrito sobre Cézanne. Idem, Op. Cit., p. 133.

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mens, está mais na profundidade que na superfície. 1 Daí a necessidade de introduzir nas nossas vibrações de luz, representadas pelos vermelhos e amarelos, uma soma suficiente de azulados para fazer sentir o ar.»2 A revolução estética de Cézanne é menos radical, em alguns aspectos, do que sustenta a vontade de clarificação e, diria mesmo, de classificação teórica por parte de comentadores como Rilke, Merleau-Ponty, Brion-Guerry e outros. Só o abstraccionismo levará ao extremo a equivalência dos valores cromáticos, anulando, em muitos casos, o sentido da extensão perpendicular, transformando decididamente o quadro em objecto. Cézanne abriu-lhes a entrada da aventura prodigiosa da tematização da cor, mas o seu legado próprio de modo nenhum se apouca com o ter conservado, de maneira parcimoniosa, técnicas clássicas como o esbatimento azulado e o aclarado gradativos, pois não nos podemos esquecer de que estão de harmonia com o propósito de restituição do realismo à arte, segundo ele perdido pela corrente impressionista, de cuja subjectividade positiva se apartou. Para ele, o conhecimento é sempre o acto de conhecer qualquer coisa, mas esse “realismo” é levado – a partir de mais ou menos 1890, no período sintetista – a um tal ponto que, por via do agenciamento do espaço envolvente pela unicidade do espaço da tela através da correspondências das formas substanciais e cromáticas dos objectos, conseguimento que assimilou e superou aquele que foi levado à unidade pela elaboração abstractiva, é realizada, no seu derradeiro período a identidade virtual, Por vezes, Cézanne confere ao termo “profundidade” um significado geológico, outras de distância perpendicular. 2 Idem, Op. Cit., p. 147. 1

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mas apenas virtual, entre a arte e o mundo perceptivo do homem. Ao mesmo tempo que pinta algumas das suas “naturezas mortas”, dominadas por uma vontade de abstracção, relativa ao meio exterior e que lhe permite unificar o espaço interior, Cézanne supera-se a si-mesmo nos últimos Banhistas e Sainte-Victoires, nos quais essa unificação, esse conjunto orgânico de correspondências entre as partes e o todo, é tão perfeitamente executada, que o próprio espectador se deixa penetrar em tal abstracção, fazendo dela o seu domínio concreto imaginário. Procuremos entender mais claramente como, sem que tenha precisado de recorrer à perspectiva rigorosa, se produz esta fusão virtual ou imaginária da projecção plástica com o espaço perceptivo do espectador. Já sabemos que, como afirma Hajo Düchting, comparando Cézanne com Monet, «Em Cézanne a cor também unifica, mas sem dissolver; unifica, transformando todas as coisas numa estrutura [espacial] transparente e firme ao mesmo tempo1.»1

Esclareça-se que a transparência não é nenhum mistério: é alcançada por diversas técnicas pictóricas explicáveis sem qualquer dificuldade. Consiste na mistura da tinta com um aglutinante aplicada sobre uma camada de cor já seca, ou seja, no sobrepor em veladura, produzindo o efeito duma cor profunda, ganhando vivacidade e saliência; pode ser produzida também pelo alternar de tons, próximos para certas situações, afastados noutras, pela indefinição dos limites, pelas correspondências reflexivas, na degradação tonal, na ambiguidade do jogo entre ressaltadoras e recessivas, fazendo irradiar as cores em diferentes profundidades aparentes, como se fosse um único cristal, cuja vida em constante mutação no olhar está assente nas “leis” materiais eternas assim “determinadas”. Cézanne usou a combinação destas técnicas, enfim em parte já anteriormente descritas, sobretudo na sua última fase, quando não quis trans1

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Ora, de acordo com Liliane Brion-Guerry, e como se referiu acima, a síntese abstractiva foi de tal modo bem sucedida que os elementos da composição se encontram perfeitamente ligados e, por isso, o quadro deixa de ser um enquadramento que firma a unidade da paisagem, fechando-a sobre si-mesma, para se tornar fragmento visível dum mundo vivo que se prolonga sob a ocultação da parede. No entanto, apesar disso (veja-se a Baigneuses (V. 722) de 1900-05, exposta no The Art Institute of Chicago), «o espaço da imagem, embora separado pela sua qualidade, não se distingue em natureza daquele do espectador.»,2 isto é, “em espécie” vivencial, no sentido de, virtualmente, se expandir na consciência do espectador. Na medida em que a composição não se limita a si própria por uma estrutura fechada – à semelhança das Les Grandes Baigneuses de Filadélfia –, em que todos os elementos dependem reciprocamente, a sua integridade impedindo qualquer saída ou entrada e qualquer abertura ou apertar do enquadramento, a imaginação de quem observa as Baigneuses de Chicago é, pelo contrário, conduzida ela mesma a envolver o observador na vivência criativa das possibilidades do desenvolvimento espacial consistentes com o quadro-fragmento. Também na tela Les Grandes Baigneuses (V. 721, 1900-05) da The National Gallery de Londres não há oportunidade para a invasão do espaço pictórico e, portanto, para a evasão do espaço real: são de “espécies” diferentes. De facto, pode-se dizer o mesmo dela que o

mitir apenas a impressão do opaco, que também entra na definição da sua pintura, pelo que juntava com frequência os dois efeitos. 1 DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 149. 2 BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., p. 187.

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afirmado da de Filadélfia por Brion-Guerry: «Uma composição como Les Grandes Baigneuses de Philadelphia fecha-se sobre si-mesma, tal como uma arquitectura perfeita: nada há a juntar a essa construção sábia cuja elaboração severamente calculada atingiu a estabilidade. Qualquer adjunção exterior à concepção amadurecida pelo criador só poderia prejudicar essa estabilidade.»1 Em contrapartida, obras do género das de Chicago e sobretudo das de Baltimore (V. 724)2 suprimem da síntese abstractiva o que pode haver nela de “racionalidade” arquitectónica. Mais do que isso, nestas últimas os nus são tão equilibrados reciprocamente através das suas densidades desiguais que o contorno deixa de ter razão de existir, ao mesmo tempo que persiste o seu valor pela justaposição viva das cores dos corpos e das do envoltório aéreo, que, transportando tonalidades frementes e esvoaçantes como reflexos entre as várias partes do espaço cristalino vivo, simultaneamente penetram a sua transparência. Não existe aqui nenhuma “construção geométrica do espaço”, no sentido de o conformar a um a priori. Os nus não estão limitados por nem limitam uma estrutura abstracta, cujas tensões eles criassem, e por elas, ou pela sua unidade, fossem atraídos. O espaço mantém-se consistente sem exibir ostensivamente qualquer forma de cálculo, tendo de superar a sua finitude pela própria necessidade de não se constringir, o que entraria em contradição com o fremir livre do ar e o movimento espontâneo dos corpos. «Se o espaço de Cézanne consegue ao mesmo tempo unificar-se ilimitando-se, é precisamente porque não é mais prisioneiro das redes duma construção racional e 1 2

Idem, Op. Cit., p. 191. Colecção de Miss Etta Cone.

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porque imita, da vida, o desembaraço e a liberdade. O acordo entre o homem e a paisagem não é a feliz solução dum problema perspectivo mas bem mais a rara harmonização do que se poderia chamar de “ritmo aéreo”. Dum lado ao outro do espaço figurado, uma impalpável agitação atmosférica une os elementos constitutivos da composição, banhando os seres e as coisas com essa subtil vibração e à qual Cézanne se esforçou por conferir a aparência do real: [...]»1 Esta síntese tão originalmente concreta, é, sabemolo já, produzida pela abstracção. Se, tal como foi dito, o volume integra os seus elementos na tridimensionalidade, que a aproximação dos planos não anula e o constitui qual objecto único, através da plenitude cromática precisa e congruente de cada detalhe na “conglomeração” cristalina e reverberante, ao mesmo tempo identitária, das formas, envolvidas por uma atmosfera transparente, veículo fiel e muitas vezes “substância” espacial das cores sólidas, pela qual se revela a construção e se vê sem perda de intensidade, é também sabido que Cézanne alcança esse desiderato à sua maneira, pela sistematização visual, consistindo na transposição da realidade num espaço abstracto. É a maneira pela qual Cézanne concretiza a tese estrutural de que «o mínimo detalhe da composição deve ser tratado ao mesmo tempo como uma parte de um todo e como um todo em si. Basta que num só ponto da tela tal contorno formal seja demasiado ou insuficientemente indicado, tal tom de valor demasiado fraco ou, pelo contrário, excessivamente saturado, para que o quadro inteiro se desacorde e o equilíbrio volumétrico se rompa.»2 1 2

BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., p. 185. Idem, Op. Cit., pp. 112-13.

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A criação desse espaço abstracto concretizador, segundo Liliane Brion-Guerry, opera-se (convém saber) em duas, mais simultâneas que sucessivas, operações sintéticas, ou recondução à totalidade pictórica da análise dos objectos e da paisagem nas suas formas e cores permanentes e estruturais. 1ª operação sintética através da análise: simplificação da percepção imediata; em Cézanne operação segunda, de retorno à visão simples e essencial, pois: «a percepção imediata, contrariamente à do primitivo, 1 é [...] infinitamente diversificada.»2 2ª operação sintética: recriação dum espaço abstracto, mas concreto na sua congruência: «transpõe deliberadamente no abstracto esse mundo do concreto já unificado.»3 De seguida, ou melhor, no mesmo processo orgânico, todos os elementos são envolvidos por um tecido atmosférico ténue, que confere a ilusão de espacialidade cristalina, a menos, talvez, quando não for o caso das cores saturadas, brilhantes, reentrantes e frias, ressaltadoras e quentes – paradoxalmente usadas por Cézanne –, preencherem a totalidade da tela, indicando a profundidade sobretudo com o jogo ilusionista dos seus valores: 4

Asserção polémica, no mínimo, o que nos obrigará a voltar a ela noutros capítulos. 2 Idem, Op. Cit., p. 113. 3 Idem, Op. Cit., p. 113. 4 A “educação do olhar” – já o sabia Cézanne – é tão complexa que é muito difícil evitar que a nossa percepção seja reinvadida por preconceitos, pelo hábito e pelas interpretações, relativamente diferenciadas, dos próprios especialistas lidos. Dá até, em certas alturas, a ideia de que se está a ler a imagem através dum código que a organiza mediante sentidos e valores que poderiam ser outros. Isto põe a questão do modo difuso, ambivalente, contextual, social e 1

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«A harmonia cromática simplifica-se à medida que se unifica o espaço. Nas últimas telas das Banhistas, ela não repousa mais que sobre o contraste fundamental único entre um tom quente e um tom frio: o laranja amarelado para as zonas de luz, o violeta azulado para a sombra. De um ao outro, revestindo todas as coisas, percorrendo o edifício espacial com as suas vibrações, estendese um subtil tecido aéreo, esses “azulados” de que fala Cézanne. Envoltório ténue, quase invisível, e todavia necessário ao ponto de que sem ele a composição se desligaria, se fragmentaria. É graças a este ritmo do ar, que mal vibra sendo contudo perceptível, que a construção do espaço figurado se mantém una e coerente, que os planos se ligam uns aos outros em vez de se isolarem como bastidores de teatro, que as massas se fundem sem por isso se esmagarem, que os volumes “vagueiam”, logrando evitar em simultâneo a dureza abstracta e a maleabilidade incerta.1 “É preciso ver os planos [dizia Cézanne]... Nitidamente... Mas agenciá-los, fundi-los. É preciso que isso contorne e se interponha ao mesmo tempo. Só os volumes importam. Ar entre os objectos para bem pintar. Como a sensação entre as ideias para bem pensar.”2»3

pessoal, como se articula o sensível e o inteligível, os estímulos e a semântica adquirida. 1 Escapando, pois, ao sensacionismo impressionista, a que Cézanne se referia quando declarou a Gasquet, comparando-as com a realidade das cores, que «as própria sensações são apenas desvios. [...] Só há uma via para restituir tudo, para tudo traduzir: a cor. A cor é biológica, se o posso dizer. A cor é viva, só ela restitui as coisas vivas.» (CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 145). 2 CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 152. Citação de L. B.-G. alterada por comparação com a edição utilizada da obra de Gasquet. 3 BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., pp. 185-86.

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É precisamente, na opinião de Liliane BrionGuerry, esse “tecido aéreo”, que relaciona, distingue, reflecte e atravessa as coisas que se sustentam nele e ao mesmo tempo o penetram, sendo livres e simultaneamente ligadas por essa harmonia, ou acordo de diferenças, a qual constitui, na verdade, a essência permanente e real da vida, a sua “solidez”, agora dinâmica e não mais estruturada de maneira ostensiva, evidente nas linhas de composição do quadro – é precisamente esse “tecido aéreo”, envolvendo a própria construção pictórica, conservando-a mas superando-a pelas suas possibilidades de unificação difundida, não exibindo, ou sequer subtendendo, jogos de forças equilibrados nos quais se fecharia a estrutura do quadro, que tem a “virtude” – por imitar a própria liberdade inerente ao espaço unificado, em que portanto os elementos podem manifestar a sua essência – de transcender os limites da tela, assimilando o espectador1 à verdade profunda e “imediata” duma paisagem subitamente descoberta, na qual realidade e representação se confundem, como se lá fosse o lugar da identidade do ver e do visível, da suprema essência do Ser. «Esta invisível vibração que une o personagem ao cenário da vida, liga-o igualmente ao prolongamento desse cenário, isto é, ao espaço concreto do espectador. O bordo inferior do quadro deixa de constituir, doravante, o limite da construção espacial figurada. Mais exactamente, não há mais construção figurada; esta torna-se – no mesmo título, aliás, que a porção de espaço na qual se move o espectador – fragmento duma suprema construção que engloba igualmente o mundo da imagem e o mundo do objecto. [...] Assim, [como já foi citado] o es-

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Como a um “quadro de projecção” panorâmico e transfigurador.

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paço da imagem, embora distinto pela sua qualidade, não se distingue em natureza da do espectador.»1 Liliane Brion-Guerry sustenta que esta imanência sublime – impondo-se como o “realismo” levado ao extremo, mas um “realismo” ilusionista que nos introduz numa verdade situada além dos problemas psicológicos, sociais, políticos, e económicos, desqualificados por Cézanne como contingentes, um “realismo” exemplo duma autenticidade impeditiva de distanciamento – realiza o poder quase mágico de emancipação da realidade quotidiana, apresentando-se como a forma emblemática da arte que liberta por um momento de transcendência em que o homem imerge como na sua própria verdade. Em todo o caso, e apesar destas contradições intrínsecas, poucas obras como a de Cézanne despertam em nós uma tão grande aspiração à liberdade e à plenitude da realização. É, sem dúvida, um enorme feito. Portanto, sensível à incomensurabilidade das derradeiras criações de Cézanne, Liliane Brion-Guerry repara: «Mas ele chega a este resultado paradoxal: a obra que se submete ao real, que “obedece à sensação”, para empregar os próprios termos de Cézanne, é também aquela que sugere as mais generosas possibilidades de evasão.»2 Esta comentadora exemplifica-o com a Baigneuses da colecção Bührle, que fecharia um arco na história da arte, unindo, na transgressão da geometria pura, acima das suas diferenças, o maior génio do Renascimento ao criador do Modernismo. «Nada de mais concreto, nada de mais “clássico” na aparência que a composição das Baigneuses da colecção Bührle. A paisagem desenvolvese segundo as leis que parecem obedecer às do Tratado 1 2

Idem, Op. Cit., pp. 186-87. Idem, Op. Cit., p. 191.

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da Pintura. Mas acontece, como ademais em Leonardo, que o poder mágico da luz abole as fronteiras do traçado geométrico, transcende-as, e ilimita o poder visual. O olhar, que deveria deter-se no grupo de álamos bordejando o lago, infiltra-se com o Sol através da folhagem, traspassa-os, supera-os e, tornado tão subtil quanto o vapor que se eleva da lagoa, como ele, penetra todas as coisas; com ele retarda-se no cimo das árvores, das nuvens, depois desaparece numa profundidade infinita. Para esta paisagem, em aparência pacificada, estabilizada numa construção clássica, não há limites, em qualquer direcção que seja.»1 Mas se a “pirâmide visível” de Alberti, e a semelhante de Dürer – mediante a simetria perpendicular das ortogonais do ponto-de-fuga, tacitamente infinito, da pirâmide imaginária, suposta imutável e homogénea, com o cone óptico em cujo vértice se situa a vista do observador, o seccionamento plano e transversal do cone, definindo a imagem, e o prolongamento virtual do corte para aquém da linha-de-terra – estabelece um laço com o espectador, este laço é criado por Cézanne duma forma inteiramente diferente: nenhuma arquitectura visual é préestabelecida: nele continente e conteúdo, tal como o “ver” e o “visível”, são coo extensivos, correlativos, simultâneos. O conteúdo não é constringido por qualquer Raumkasten, pelas linhas invisíveis duma geometria ‘a priori’ que o force a um enquadramento rígido. O espaço concreto apresenta-se como totalmente livre de teorias e oferece à liberdade primordial a sua habitação sem protocolos.2 Idem, Op. Cit., pp. 191-93. Além de que sem postulados de qualquer ordem e, cremos interpretar bem Cézanne, irredutível a qualquer articulação linguística. 1

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Assim, escreve mais à frente Liliane Brion-Guerry, «O espaço abriu-se ao infinito.»1 Há uma frase de Cézanne que resume esta perfeição consumada e onde todos têm permissão de aceder para respirar a sua atmosfera genesíaca, alimentando um sonho de paraíso na Terra, que só alguns, talvez, e por um breve tempo, podem saborear:2 «O génio seria fazer surgir a amizade entre todas as coisas ao ar livre, no mesmo impulso, no mesmo desejo.»3 Enfim, se na série dos Banhistas, Cézanne procurou definir a utopia da felicidade humana, utopia que jamais perderá o seu lugar no sonho e na vontade de transformação dos homens,4 é na série das Sainte-Victoire que a sua arte tentará desvendar os mistérios do Ser. Depois da dimensão antropológica, resta elevarmonos ao cume da dimensão ontológica da arte de Cézanne. Cite-se dele e desde já esta promissora declaração: «A cor é o lugar em que o nosso cérebro e o universo se encontram.»5 Será, portanto, só nas últimas Sainte-Victoire que Cézanne nos dará acesso à visão daquela verdade, à demonstração viva das suas palavras. “Ver para crer”, poderia ser o seu lema. É que o próprio Cézanne fala do pintor que sabe ver a Natureza: «Ele conhece bem a sua língua, o texto que decifra, os dois textos paralelos, a natureza vista, a natuIdem, Op. Cit., p. 193. Ironicamente a palavra “Paraíso” é de étimo hebraico e significa originalmente “ilha”. 3 CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 137. 4 Cézanne fugiu à guerra mas as suas telas idílicas não constituem para nós uma fuga à realidade, antes permitem-nos confrontarmonos com ela. 5 Idem, Op. Cit., p. 135. 1

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reza sentida, a que está ali fora e a que está aqui dentro (batia na testa), ambas têm de se amalgamar, para durar, para viver, a vida da arte... a vida de Deus. A paisagem reflecte-se, humaniza-se, é pensada dentro de mim. Eu objectivo-a, projecto-a, fixo-a na minha tela.»1 O supremo esforço de Cézanne foi sempre o de “ir às coisas mesmas” sem abandonar o espaço sensível da experiência, que não se fica pelo “caos irisado” das sensações, destituídas de sentido, expressão e emoção, elementos ilusórios coloridos que o platonismo das verdadeiras Ideias apagam decididamente com a intensidade reunificadora da luz branca, nem se retrai num a priori kantiano, definido segundo categorias de origem transcendental. E se há um deus, é Pã, naturando a Natureza enquanto vida objectivada da alma universal. A paisagem expõe a sua profundidade perpendicular e geológica. Por isso, a pintura de Cézanne não é uma cartografia, o registo dos acidentes do terreno, mas a reverberação dum cristal que mostra à superfície, e para lá dela, as suas cores existentes em profundidade. O quadro A Pedreira de Bibémus (V. 767, 18981900, Essen, Museum Volkwang) é um desses casos, mas sem a transparência doutros: os “assentamentos geológicos”, postos a nu pelo trabalho, que vai seguindo as linhas ideais de fractura das rochas, são massas de cor. Escavese e quebre-se até ao limite que o visível exposto, a profundidade, aqui opaca, tornada superfície, é sempre cor. As aguarelas dão-nos uma outra forma dessa existência e do olhar sobre ela, não a cor saturada, opaca, substância das coisas, mas a visão directa e não maciça da CÉZANNE, Paul, in Gasquet, Cézanne, Cynara, Dijon, 1988, cit. por Hajo Düchting, Op. Cit., p. 203 1

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profundidade, ao nos oferecerem a sua transparência cromática. A unidade da arte de Cézanne não se confunde com uniformidade: ela é a expressão das diversas possibilidades visíveis dadas pela realidade dos objectos, que não é meramente sensível, pois a visão é um olhar inteligente que penetra, diante deles, na sua essência. O óleo Rochers dans le Bois (V. 674, 1893, Kunsthaus, Zürich) é um prenúncio desse desejo – que não o impede de retornar tantas vezes à apresentação opaca dos entes – de espreitar imediatamente para dentro das coisas, olhar directamente a génese interior do visível, iluminada por si mesma, surpreender as cores antes de se tornarem densas ao mostrarem o seu lado exterior, respondendo à luz impudica do Sol que enche a atmosfera cristalina. A paisagem ora se dá a ver por dentro ora apenas por fora, o verso e o avesso de uma única realidade, das ideias vivas cuja existência são as cores. Há uma divindade por dentro das coisas, que, a partir duma matéria quase imponderável, transparente e subtil, mas firme, modulando o espaço aerífero, se vai consolidando em carne. O olhar é capaz de fixar esse aspecto do Ser como uma visão do sagrado, visível na Natureza profunda. Um dos mais belos exemplos é a aguarela e “crayon” La Montagne Sainte-Victoire, de 1902-06, pertencente ao The Museum of Modern Art, Nova Iorque. Observa-se nela uma “modulação” das formas por transparências, formas que, a princípio, não indicam valores precisos e que, portanto, obrigam o ver a compor o visível sem lhe acrescentar nada senão o que já está implícito nele: que só é porque é visível. E, inversamente, só é visto quando é. A realidade é potencialmente visível. A cor, sendo ver e visível, é a identidade imediata do Ser com o Pensar.

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O termo “modulação” («nova técnica de cor”1), ou modelar por sobreposição na tela, tendo em conta o conjunto, de camadas sucessivas de tons, deriva do latino modus, significando em música (simplificando) passagem dum tom a outro e em arquitectura a medida básica pela qual se correlacionam os elementos do edifício, convergindo entre si para um equilíbrio formal. Ambos os significados estão presentes. Foi esta uma das técnicas decisivas que lhe permitiu “realizar a sua sensação”, não recebê-la passivamente mas integrando os dados em diversas correspondências harmoniosas e em estruturas objectivas. O óleo, trabalhado em vários graus de opacidade, transparecido mesmo com aglutinantes, também o torna possível, como Cézanne o provou em muitas pinturas, e, apesar de conferir à imagem outra qualidade física, não obriga a gestos incorrigíveis, o que sucede na aguarela. Liliane Brion-Guerry lembra bem como a procura constante da expressão da liberdade por parte do artista é necessariamente o resultado duma harmonia conseguida, e encontrou uma das suas perfeitas realizações plásticas na aguarela: «A aguarela, em aparência a mais espontânea – e é-o, com efeito, pela sua técnica –, é, na realidade, uma obra de síntese. «Mais exactamente, não há duas operações sucessivas: visão analítica seguida de reconstituição sintética. A impressão sensorial é ela-mesma uma síntese visual. De sorte que esta pesquisa de equilíbrio espacial, duma constante estável, para a qual tendia Cézanne desde o período de Auvers, sem nunca lá o atingir, obtém-no de maneira perfeitamente natural nas suas obras derradeiras. Sem esforço, dir-se-ia; mas esse raro estado de graça é o fruto 1

DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 201.

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amadurecido por toda uma vida de labor insaciável. Foi pelo facto de que uma paciente análise do real, uma amante frequentação da natureza, o iniciaram nos segredos das coisas, que a mais fugitiva impressão, no fim da sua vida, será, por si-mesma, evocadora da estabilidade duma ordem oculta. É no momento em que a sua técnica se torna mais espontânea, reflexo da pura sensação, que ela exprime, na realidade, as correspondências mais misteriosas e menos imediatas.»1 A sensação é um resultado, um valor realizado pela presença atenta e analítica do olhar na Natureza, que evoca essa atenção e essa análise. É só assim que o homem descobre a verdade de si-mesmo nesse contacto, pois a sua verdade é a espontaneidade da vivência da Natureza, a que pertence. Contactar a profundidade da Natureza é contactarse a si-mesmo como seu elemento e enquanto espelho das leis eternas subjacentes às mudanças superficiais. Não passa, entretanto, em claro que o espiritualismo imanentista possui um importante papel nas intuições e nas pinturas de Cézanne. É ele próprio que, aliás, o manifesta em vária das suas declarações: «Por vezes, imagino as cores como grandes entidades numénicas, ideias vivas, seres da razão pura, com os quais poderíamos ter contactos. A natureza não está à superfície, existe em profundidade. As cores são, à superfície, a expressão desta profundidade, remontam às raízes do mundo, são a vida, a vida das ideias.»2 O mesmo pensamento é retomado, de maneira mais concisa, noutra passagem das conversas com Gasquet:

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BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., pp. 153-54. CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 214

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«As cores são a carne incontestável das ideias de Deus, a transparência do mistério, a irisação das leis.»1 Esta imagem do real projecta-se com evidência, mais ou menos acentuada pela interpretação, num quadro que contém quase todo o Cézanne – Le Rocher Rouge (V. 776, por volta de 1900, instalado em Paris, no Musée de l’Orangerie): um grande bloco rochoso, sólido, de ocre vivo e geometria simples, ocupando o canto superior direito da tela inclina-se, ao mesmo tempo sustentado por ela e respondendo-lhe, sobre uma mata espessa de árvores e arbustos, cujas cintilação e “irisação” rítmicas produzem uma tal luminosidade inquieta e intensa de tons verdes, intercalados pelas manchas comunicadas dos vermelhos térreos do rochedo e do solo e pela presença de ar ensombrecido nos lugares vagos entre as ramagens, que é impossível de observar nos objectos expostos à simples luz solar pelo olho quotidiano, sendo antes gerada e multiplicada pela totalidade da paisagem, pela vegetação, pelo ar que penetra o espaço, menos o terreno e a grande rocha – símbolos concretos e ostensivos da realidade –, ar no qual as matérias coloridas se formam, transmitindo através dele as cores numa forma de transparência que só não existe nas sombras, entretanto instáveis, como se os buracos negros fossem encerramentos ou então misteriosos ninhos do Ser, em que as ideias descansam. E se as cores do espectro visível são a “carne das ideias” reais, também não é menos certo para o pintor que nos pertencem e que lhes pertencemos: “o mundo olha-nos nos nossos olhos”. Diz Argan, expressando por outras palavras a identificação entre as cores e a existência das leis, assim como 1

Idem, Op. Cit., p. 214.

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a identidade delas com a percepção, que «Em Cézanne não há uma ruptura entre realidade interna e externa: a consciência está no mundo, e o mundo na consciência; o eu não conquista o mundo e não é por ele conquistado. Não há apenas um equilíbrio paralelo, há uma identidade.»1 Mas se olharmos os quadros numa atitude mais “técnica”, eles colocam-nos outras questões, relativas à percepção, em especial as “naturezas mortas” mas igualmente as outras séries do pintor de Aix, que se podem associar ou não ao alcance metafísico da sua arte. Hajo Düchting, como outros comentadores, interessa-se, entre outros aspectos, pelas diferenças entre a visão espacial normal e o espaço subjectivo da tela, assim como pela verdade que pode ou não assistir a ambos: «A disposição dos motivos continua a ser para Cézanne o primeiro ponto de partida da percepção, a partir da qual o espaço pictórico só então poderá ser construído. Este espaço pictórico está submetido a leis inteiramente diferentes das do espaço normal da percepção. Cézanne utiliza uma perspectiva quebrada e múltipla, que permite às coisas constituírem um espaço subjectivo, numa coabitação harmoniosamente equilibrada.»2 Merleau-Ponty, defendendo entretanto a sua posição fenomenológica, não contestaria esta passagem do comentador germânico, desde que seja interpretada no sentido de que a composição está longe de ser estilisticamente arbitrária, ou de corresponder à necessidade de sujeição a leis específicas e a priori de equilíbrio plástico, que isolariam o quadro do mundo exterior e imporiam

1 2

ARGAN, Carlo, Op. Cit., p. 113. DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 185.

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um modelo de percepção subjectiva sobre um espaço objectivo heterogéneo verdadeiro. Porém, a crença do olhar de Merleau-Ponty no resultado livre de tensões conseguido pelas pinturas do mestre de Aix parece ser excessivo; é difícil de concordar que na pintura de Cézanne, sobretudo no tocante às “naturezas mortas”, as deformações se tornam invisíveis ao deslocarmos a atenção visual das partes para o seu todo. O leitor pode fazer esse exercício por exemplo na emblemática Nature Morte ao Panier des Fruits (V. 594, sito Musée d’Orsay em Paris) e verificar se deixa de perceber as distorções existentes. Lembremos que a própria Liliane Brion-Guerry caracterizou o acto de percepcionar como uma “síntese visual” e, a menos que a análise – suposta na síntese – seja de todo inconsciente, desprovida de atenção, as distorções têm de se evidenciar na composição já elaborada. Se a visão – como mostra a comentadora – é um processo, por mais desapercebido e rápido que seja, a imagem vai nascendo diante de nós equilibrando-se, o que, porém não refuta decisivamente, quando há incongruências, a necessidade dum permanente esforço perceptivo de contrabalanço das mesmas.1 Como o fenomenólogo francês não considerou esta hipótese, defende a ideia de que Cézanne alcançou o feito, tacitamente em todas as telas, incluindo as “naturezas mortas”, de tornar invisíveis as deformações no conjunto ostensivo – o que não se nega para a generalidade das paisagens, para os Banhistas e as Sainte-Victoire, talvez porque não existam nesses quadros, enquanto objectos tomados em si –, embora sem dúvida considere tal feito como a resultante duma actividade perceptiva, não sendo 1

Assunto que terá de ser tratado com detalhe noutros capítulos.

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incoerente com a sua fenomenologia e estando cativado pela ideia de que o pintor a projecta de alguma maneira. Eis o que escreve quanto a isto Merleau-Ponty: «O génio de Cézanne é o de fazer com que as deformações perspectivas, pelo arranjo do conjunto do quadro, cessem de ser visíveis por si-mesmas quando se o olha na globalidade, contribuindo somente, como elas o fazem na visão natural, para dar a impressão de uma ordem nascente, dum objecto em vias de aparecer, em vias de se aglomerar diante dos nossos olhos.»1 Lionello Venturi, inclinando-se, por seu lado, para uma concepção bergsoniana do pintor, afirma acerca dum quadro semelhante: «Assim, ele subverte – na A Mesa de Cozinha, de que falámos em testemunho – a representação perspectiva tradicional, faz coexistir perspectivas diferentes a partir de múltiplos pontos de vista, identifica o espaço com uma sucessão visual de imagens, repercutidas na consciência, formando elas essa identidade espaço-tempo de que falava Bergson, quase na mesma época, sob o termo de “duração real”.»2 Venturi defende, pois, que Cézanne «analisa o espaço segundo o princípio da duração», integrando numa única imagem as suas transformações na sucessão temporal da relação ver-visível.3 Sendo assim, seria provavelmente lícito tirar uma conclusão oposta à dos outros autores referidos quanto a um dos aspecto fundamentais da arte consumada de Cézanne: se o próprio devir tem de ser visível para o quadro poder exprimi-lo, as incongruências devem permanecer notadas enquanto índices do devir. MERLEAU-PONTY, Marice, Sens et Non-Sens, pp. 19-20. VENTURI, Lionello, Cézanne, p. 111. 3 Cf. Idem, Op. Cit., p. 111. 1

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Mas será legitimo admitir que Cézanne pretendeu nas suas telas compreender ou, antes, projectar sinteticamente, porque a tela é plana, num único instante, compósito, e numa única imagem, compósita, a correlação espácio-temporal que determina a realidade enquanto unidade de ver-visível? É legítimo, sim, interpretá-las desta maneira, se apresentam elementos que o sustentem, mesmo que Cézanne não o tenha pensado. Diz Liliane Brion-Guerry que os seus quadros, nomeadamente os da Sainte-Victoire, não podem ser vistos como um instantâneo mas conduzem o olhar por um percurso espácio-temporal, até ao cume da montanha, e para lá dele até à fronteira indefinida do visível: «Uma tela como La Sainte-Victoire do Museu de Arte Moderna Ocidental de Moscovo (V. 663) implica uma visão de espaço estranhamente próxima, por exemplo, de certa paisagem chinesa em que duas figuras de sábios se perdem junto a uma montanha, numa ravina profunda onde cai uma cascata. Tanto numa quanto noutra pintura, o espectador não contempla a paisagem ao nível do solo, tem a impressão de ser guindado a uma eminência invisível. Também o seu olhar, em vez de atingir a extremidade do campo visual numa linha direita imediata, propaga-se como uma sinusóide ou, para retomar a expressão chinesa, como “as ondulações da cauda do dragão”. Poder-se-ia dizer que é uma perspectiva em tempos múltiplos. O raio visual mergulha no solo, escala o primeiro rochedo, volta a afundarse em direcção à próxima ravina, eleva-se de novo e assim sucessivamente até ao limite extremo da visibilidade.»1 Com esta descrição – e outras do seu livro – somos, todavia, levados a conjecturar se o Cézanne de Liliane Brion-Guerry é o mesmo de Lionello Venturi. Para este, 1

BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., pp. 157-58.

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uma tela de Cézanne é uma arrojada abstracção que sintetiza um espaço-tempo vivido; para ela, seria, supomos, arriscado considerar que é mais do que uma fixação da vivência analítica de um espaço num certo tempo. Segundo ela, há na experiência do quadro a repetição da experiência do pintor, como se fosse actual, e a duração da sua vivência, determinada pelos acidentes espaciais; segundo ele, os quadros de Cézanne, em particular os das “naturezas mortas”, representam a simultaneidade de diversas perspectivas, vividas numa “duração real” pretérita; subentende-se no pensamento dela que as “naturezas mortas” estão carregadas duma tensão latente, prisioneiras duma composição artificiosa que Cézanne há-de ultrapassar. Hajo Düchting acredita que elas são metáforas das relações tensas entre os homens. Haverá talvez mais interpretações complementares do que divergências entre estes comentadores. Enfim, o certo é que todos eles mostram que Cézanne não pinta o que vê, não pinta as aparência fugidias, as sensações separadas da “coisa-em-si”, ou modelos, idealizações duma realidade transcendente ao homem sensível e à Natureza visível. Na procura do estável, da essência constante, das formas firmes da realidade, a análise, “palavra-chave” dos tempos modernos,1 que usou contra as formas clássicas de mistificação – ilusionismo, imitação, ou, em contrapartida, o simbolismo, princípio do ideal moralista ou das proporções do belo –, dirigiu-o, ao decompor as formas nos seus elementos simples e essenciais, no caminho para a abstracção, como síntese ou harmonia do ver inteligente com o visível inteligível.

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Como disse Herbert Read a propósito deste mesmo pintor.

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A inteligência, que, segundo a Fenomenologia, nasce do contacto com as coisas, deu a ver o que verificou ser. René Huyghe cita o que Cézanne disse um dia a Larguier: «”Para o artista, ver é conceber e conceber é compor. Uma inteligência que organiza poderosamente é a colaboração mais preciosa da sensibilidade para a realização da obra de arte.”»1 Liliane Brion-Guerry escreve com igual razão que «O pintor não representou, pois, exactamente o que viu mas o que sabia ser.»2 Para Cézanne, a essência visível do Ser, a unidade concreta e viva, o que é, é o “mundo primordial”, imotivado, desumanizado, incivilizado, mas gerador constante de todas as categorias pela ordem espontânea do seu aparecer em forma, e no qual a própria inteligência se constitui, não se devendo separar da visão:3 o percepcionar e o percebido, a cor e a forma, a mancha e a linha, a opacidade e a transparência,4 a superfície e a profundidade, o plano e o espaço, o uno e o múltiplo, a diversidade e a estrutura, o equilíbrio e a tensão, a permanência e o movimento, a ordem e a mudança, o cristal e o organismo, o mineral e o pensamento, a fisicalidade e a espiritualidade, o vivo e o vivido, o objectivo e o subjectivo. E, claro, não teríamos de ficar por aqui. Só ao homem é permitido olhar o mundo com objectividade, sem o tornar imediatamente correlato dos seus motivos; só o homem, portanto, é capaz de ser um sujeito porque vê o mundo como um objecto, como algo

HUYGHE, René, Op. Cit., p. 223. BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., p. 158. 3 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice, Op. Cit., p. 22. 4 Que Cézanne vai introduzindo pouco a pouco sem diluir o quadro. 1

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visado, que é para si, e só assim pode olhar esteticamente o mundo projectando-se esteticamente nele. Ele revê-se na paisagem, numa profundidade recíproca. Na “inumanidade” do mundo primordial de todos e de cada um, representada pelas paisagens desabitadas, ou povoadas por nus, o homem reencontra-se precisamente com ele e nele. Evacua os traços das acções civilizadas, como se as próprias casas tivessem sido esculpidas pela Natureza ou os homens fizessem corpo com ela. É a partir dessa precessão sintetista que ele torna possível perspectivar radical e virginalmente a cultura, avaliá-la em retrospectiva e voltar a assentá-la na realidade visível, refundando-a na orientação da vida para a satisfação da sua unidade harmoniosa com a Natureza. Ele não deseja suprimir as ciências mas, um pouco à maneira da futura fenomenologia – só nesta intenção que não no método, pressupostos e idealismo subjectivo, em especial o de Husserl –, remetê-las ao seu autêntico lugar, derivado e distanciado da percepção originária, que nos quer dar a conhecer. As ciências são para Cézanne, que recusa o operacionalismo e o pragmatismo, o código das operações de domínio sobre as coisas e sobre os homens, criado por estes e que, devido a algum motivo pouco claro, acabou por se substituir, na consciência e modo de vida, à verdade da Natureza originária, tal como para Rousseau o “amor próprio”, a guerra, as normas e as convenções, pelo desenvolvimento do saber, da técnica e do consequente aumento de poder, se substituíram ao “amor de si”, à “compaixão”, à frugalidade e à sensualidade simples do contacto directo com o seu ser exterior. É preciso, pois, submeter a ciência, enquanto invenção humana, aos limites da satisfação dessas necessidades autênticas, em vez de se deixar dominar por ela,

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que julga o mundo pelos fins artificiais, alienantes, instrumentalizadores do indivíduo, que determinam os próprios critérios de verdade. A ciência, que labora com conceitos e fórmulas, é apenas – dirá esta vaga irracionalista, a que não se retira toda a razão, na qual deslizam nomes como Cézanne, Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty – um esquema e um conjunto de definições funcionais a partir dos quais podemos manipular as coisas, caracterizadas em termos dos efeitos pretendidos e identificadas pelos critérios “lógicos” de objectividade. Simplifica e reduz a complexidade espácio-temporal pluralmente vivida à homogeneidade pressuposta pela geometria e a álgebra, e o mundo das qualidades a corpos ideais ou equações de grandezas intelectuais que se definem umas pelas outras. Associada ao tecnicismo, leva a encarar-se a objectividade sob as categorias do cálculo, do uso e do rendimento, velando o sentido originário fundamental da realidade e, por isso, a possibilidade da sua vivência plena. Já o realista Balzac, crítico da sociedade burguesa e que se considerava, com legitimidade, o sociólogo da sua época, se interrogava sobre o valor dos esforços que tendem para uma qualquer misteriosa civilização e cujos resultados vividos são o poder estranho do dinheiro e as paixões fracassadas por uma razão que ultrapassa os motivos cultivados dos seus agentes. O homem afogou-se na cultura. O papel do artista, como o do herói do Chefd’Oeuvre Inconnu, é o de voltar a tornar inteligível, ou melhor, perceptível a Natureza, na qual a humana se inclui, compreendendo-a como o absoluto, em relação à qual a civilização é relativa. É esta que deve servir aquela e não o inverso.

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A arte é, portanto, um assunto muito sério. É um facto, afirma Merleau-Ponty: «Pode-se fabricar objectos que dão prazer ao ligarem duma maneira diferente ideias já prontas e ao apresentarem formas já vistas. Essa pintura, ou essa palavra segunda, é o que se entende geralmente por cultura. O artista, segundo Balzac ou Cézanne, não se contenta em ser um animal cultivado; ele assume a cultura desde o seu início e refunda-a, fala como o primeiro homem falou e pinta como se nunca se tivesse pintado. A expressão não pode ser, assim, a tradução dum pensamento à partida claro, pois os pensamentos claros são os que já foram ditos em nós-mesmos ou pelos outros. A “concepção” não pode preceder a “execução”.»1 O aparato cultural, em vez de revelar o homem, oculta-o sob máscaras estereotipadas devolvidas pelo espelho civilizador da consciência. O seu destino só poderá ser o de Narciso. A “tecnociência” converte o indivíduo num apátrida na sua própria pátria. Heidegger, muito depois de Cézanne, opondo manipulação calculada, constringente, às possibilidades indefinidas de ser em situação, partindo do comentário a um autor que considera ter desvendado a forma da alienação do homem contemporâneo mas – está ele convicto disso – a justificou pela solução por si mesmo apresentada,2 escreve em Carta sobre o Humanismo: «A apatridia converte-se em destino mundial. Por isso, é mister pensar este destino do ponto de vista do destino do ser. O que Marx – na continuação de Hegel – reconheceu no sentido essencial e significativo como alienação do homem, atinge nas raízes a de apatridia do homem moderno. Esta é suscitada – desde o destino do 1 2

Idem, Op. Cit., p. 24. Opinião discutível.

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ser – na figura de Metafísica,1 é robustecida por esta e simultaneamente encoberta por ela no seu carácter de apatridia.»2 Mas não será tudo isto iludir um dilema real? Ou, numa concepção oposta, reinstaurar um novo dualismo? Se, por um lado, a ciência artificializa a existência humana, como conciliá-la com o retorno ao modo de vida anterior a esse “pecado original”? E, por outro, não se estará a opor o homo naturalis ao homo artificialis, como se a essência do ser humano não fosse o produto duma totalidade histórica? Não poderá, enfim, haver um convívio harmonioso entre a teoria e o prazer da vida? Huyghe dá uma versão céptica da demanda cezanniana da síntese num texto que citaremos adiante. Mas com ela, Cézanne abriu, além dos problemas formais e epistemológicos doravante associados tematicamente à estética, os éticos, sociais e antropológicos do modernismo. Em suma, contrariando a atitude geral, o homem é, para o Cézanne revoltado contra a sua existência manipulada, e alcandorando-se a uma altura especulativa ridicularizada pelo comum dos mortais, que entretanto, irónica e desesperadamente crêem num deus à imagem do homem, este preciso homem é, dizia ele, a consciência, não sobre a Natureza mas da Natureza, assim como a NatureCuja origem vê em Sócrates e no seu dualismo entre a alma racional, que tem por destino reencontrar-se com uma verdade transcendente, e o corpo afectivo animado que, daí por diante, poderá ser vítima justificada das manipulações da objectividade, à qual pertence. 2 HEIDEGGER, Martin, Doctrina de la Verdad según Platón y Carta sobre el Humanismo, trad. Wagner de Reina, Univ. de Chile, p. 197. 1

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za é o objecto das suas próprias ideias como essências que vivem nela.1 Não é esta síntese prodigiosa que Cézanne invoca ao dizer a Gasquet?: «Há dias em que me parece que o Universo não é mais do que uma única corrente, um rio aéreo de reflexos, de reflexos dançantes em volta das ideias do homem. [...] O prisma das cores é a nossa primeira aproximação de Deus, as nossas sete bemaventuranças, a geografia celeste do Branco, grande e eterno, as zonas de diamante de Deus.»2 Aproveitemos um belo parágrafo de Carlo Argan para apresentar, em sinopse, o sentido integral da obra de Cézanne. Ele fá-lo numa interpretação bastante próxima da fenomenologia, pegando no quadro derradeiro do “motivo” mais emblemático do mestre – La Montagne Sainte-Victoire, de 1904-06 (V. 801, Zurich, Kunsthaus), não superior à de Moscovo, 1805, Museu Puschkin, V. 803 –, cume vitorioso da sua arte: «Numa das obras mais tardias e grandiosas, a última das várias imagens do Monte Sainte-Victoire, vê-se o grau de lucidez estrutural a que chegou o mestre. Impossível imaginar uma sensação mais fresca, imediata e, ao mesmo tempo, definitiva que no ponto em que os azuis e cinzas do céu invadem a montanha e a planície, assim como o verde das árvores colora as nuvens. Porém, note-se como o ritmo, a frequência das pinceladas largas e transparentes preenche todo o quadro, decompõe a imagem num contínuo facetado de prismas refringentes, e como a luz, mesmo não chegando a tons elevados, adquire uma incrível intensidade de movimento, torna sensível o dinamismo univerTal discurso – espero – faz pelo menos sentido para os fenomenólogos. 2 CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 208. 1

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sal do espaço, ou melhor, o dinamismo da consciência que, no próprio acto de receber a realidade e identificarse com ela, converte-a em espaço. É esta, sem dúvida, uma das obras mais “especulativas” ou “ontológicas” de Cézanne, ponto de chegada da sua pesquisa dirigida à compreensão global do ser e da sua estrutura vital: mas pode negar-se que esta “filosofia” pura seja pura pintura?»1 Assim, Cézanne, no entender de Argan, empenhouse «a demonstrar que, se o contacto directo com o mundo é pensamento, o pensamento também é contacto directo com o mundo, [...]»2 “Contacto directo com o mundo” e pensamento enquanto percepção constituem, com efeito, para Cézanne o mesmo. Mas se as obras de Cézanne iniciam o trajecto do abstraccionismo, esse “contacto directo” não se pode confundir com o imediato. O pintor teve de percorrer um processo de análises e de sínteses que evitou ocultar no resultado. Ao invés, exibiu-o como antídoto e em contraposição quer à superficialidade sensível, quer à imaginação irracional, forjadora de miragens que oferecem, em inócuo contraponto ao “racionalismo” operacionalista, um refúgio do mundo que não tarda a revela-se como fuga do homem de si-mesmo. Procurando uma alternativa a essas duas formas de alienação, Cézanne persiste na sua atitude experimental e torna-se o primeiro artista a tematizar a relação entre os processos perceptivos e o objecto assumido na sua realidade. Assim, não se refugia da ciência, entendida de forma lata, para se esquecer na dissipação do imediato ou na 1 2

ARGAN, Carlo, Op. Cit., p. 116. Idem, Op. Cit., p. 116.

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falsa verosimilhança de idílios mitológicos mas obriga-a a justificar a sua existência perante a essência humana e a reorientar-se para ela. Na tematização desse aspecto, é o primeiro personagem do modernismo. Lionello Venturi escreve que «cada pintura é o fruto duma rigorosa organização formal, mesmo se esta tende para a abstracção e se distancia de toda a reprodução realista. [...] Nos últimos anos da sua vida, Cézanne está, pois, consciente de que a aparência da realidade não lhe basta para exprimir a sensação e que lhe é preciso, pelo contrário, forjar um meio abstracto, o qual nada mais é do que o estilo.»1 A sua noção de verdade é de uma fusão entre lógica e sensibilidade, a percepção gerada pela convivência directa do ver subjectivo com o visível objectivo e da qual nasce tanto um quanto o outro. Não é que a realidade não exista antes da consciência individual, mas ela é da mesma natureza desta, emergindo para o olhar inteligente do corpo carnal humano com a nudez da sua substância, unindo entre si as suas correspondências sensórioemocionais. Haverá, pois, delírio ou clarividência nesta chamada de atenção de Cézanne a Gasquet?: «Olhe para esta Sainte-Victoire. Que entusiasmo, que sede imperiosa de Sol e que melancolia, à tarde, quando desaparece toda esta vivacidade. Estes blocos eram fogo; ainda há fogo dentro deles. A sombra, o dia, parecem recuar, arrepiados, com medo deles. Lá no alto, há a “caverna de Platão”; repare bem, quando passam nuvens grandes, a sombra delas cai, a tremer, sobre as rochas, como se esti-

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VENTURI, Lionello, Op. Cit., p. 111.

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vesse queimada e fosse, ao mesmo tempo, tragada por uma boca de fogo.»1 Cézanne não se poderia, portanto, contentar nem com a lógica clássica de composição, capaz de forjar um mundo verosímil fictício pela sua unidade e coerência, nem com a entrega pura e simples à aparente imediatidade da sensação com o seu aspecto positivo, de pura exterioridade sem sentido, com a qual a razão – pura e prática, industriosa e moralista – constituída noutra instância, lidaria prepotentemente, instrumentalizando a sensibilidade e o corpo para os seus fim próprios, arrogados superiores. Esta fractura do homem em si-mesmo, assim como o seu afastamento da Natureza, que também é a sua, evidencia a unilateralidade estética, tanto da idealização clássica quanto do positivismo impressionista, a impotência de ambos para representar a verdade humana e indicar a meta da sua realização plena. René Huyghe, tirando as suas conclusões das palavras de Cézanne e de Émile Bernard, explica, céptico quando à resolução da disparidade suposta entre sensível e inteligível, o beco-sem-saída da estética clássica: «Na arte há o olho e o cérebro, dizia ele, uma óptica e uma lógica, precisou Émile Bernard. A óptica, formada pelo impressionismo, visava a verdade; a lógica, inspirada pelas tradições dos mestres, aspirava a uma harmonia. Apoiada no olho, por um lado, no espírito, por outro, a arte clássica tinha unificado este duplo princípio através de concessões mútuas: a realidade consentiu em disciplinar-se, a idealizar-se para agradar ao espírito; a procura das harmonias, por sua vez, submetia-se à exigência de não sair dos limites do real, a não transformar a imagem para 1

CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 198.

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além do reconhecível. Nem realista nem abstracta, a arte clássica viveu sob este compromisso: a verdade idealizada.»1 Merleau-Ponty, por seu lado, em Le Doute de Cézanne, quer reconhecer na obra do pintor uma linhagem directa com a Fenomenologia, que considera ser a solução, agnóstica mas “verdadeira”, do dilema: «A paisagem, dizia ele, pensa-se em mim e eu sou a sua consciência. Nada está mais distante do naturalismo que esta ciência intuitiva. A arte não é nem uma imitação nem, por outro lado, uma fabricação orientada pelos votos do instinto ou do bom gosto. É uma operação de expressão.»2 Mas precisamente por ser uma “operação de expressão” e nunca de mera representação independente do sujeito que projecta, como se ele fosse um emissário espiritual dum poder transcendente, Cézanne permanece na dúvida sobre a verdade da sua arte até ao fim da vida: «Jamais podemos abandonar a nossa vida. Não vemos a ideia nem a liberdade face a face.»3 Não é só o facto de que a pintura de Cézanne não passa de pura pintura: é por que está envolvido inteiro no projecto que se deu e ao qual nem sequer os outros podem dar definitivamente a palavra da verdade, ainda que presuntiva: dar a ver a ideia perfazendo-se, a visibilidade profunda das coisas, a maneira pela qual realidade e percepção se confundem. É algo completamente distinto da demonstração dum teorema diante dos que têm por certos os axiomas. Junto com o resultado estético, define o seus fundamentos, mas não pode lançar os foguetes e fazer a festa soziHUYGHE, René, Op. Cit., p. 223. MERLEAU-PONTY, Maurice, Sens et Non-Sens, p. 23. 3 Idem, Op. Cit., p. 33. 1

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nho, porque precisa de ver nos olhos dos outros, em todos os olhos videntes já educados numa cultura consolidada, justificada pela evidência de si-mesma, a confirmação da autenticidade de um começo com o qual nunca tiveram contactos e de presenças resultantes jamais suspeitadas. É este o paradoxo em que se enreda o chamamento de Cézanne: «Ele apela da razão já constituída, onde os “homens cultivados” se encerram, a uma razão que envolveria as suas próprias origens.»1 Se precisa da asseveração dos outros, da intersubjectividade, é porque não é omnipotente, não está à partida acima do fundo existencial comum dos seus semelhantes, e se mesmo assim crê alcançá-la é porque julga ser capaz, pela arte, de fazer experimentar às outras consciências o que está aquém das suas certezas, que estas encobrem mas a partir do qual se constituíram. Entregue à sua própria evidência, à verdade estabelecida pela biografia que o fez desconfiar das convicções alheias, Cézanne, porém, apenas exprimiu o que as coisas exprimiam para si. A sua necessidade livre, a sua liberdade motivada, conflituosa, dialogante, resolutiva das situações de facto, não se pode sobrepor à dos outros. Assim, Merleau-Ponty acaba por chegar à conclusão de que a verdade de Cézanne é indecidível, para si e para todos, a menos que se presuma que o “primitivismo” da sua biografia a fundamente.2 René Huyghe, em termos mais “racionalistas” e aceitando um dualismo irresolúvel que o pintor de Aix não admitiria, embora escusando-se da certeza cartesia-

Idem, Op. Cit., p. 25. Mas não estará com isto o próprio Merleau-Ponty a pôr em causa a validação intersubjectiva das suas especulações filosóficas, a assumi-las como má poesia? 1

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na, apresenta uma outra versão, ontológica, da “dúvida” de Cézanne: «O carácter inteiro, escrupuloso, atormentado de Cézanne não se podia satisfazer com a seguinte solução: às suas sensações queria deixar a sua absoluta veracidade, às suas concepções o seu rigor abstracto. Toda a sua carreira desenrolou-se a enfrentar estas duas tarefas e a tentar incessantemente operar a sua junção, [...]»1 Mas, para Huyghe, tratava-se duma tarefa impossível: «Era, pois, fatal que a sua obra oferecesse uma evolução dupla e, com frequência, concorrente: por um lado, uma arte cada vez mais “sensualista”, que, por respeito fanático ao dado visual, o conduzia a essas imagens excessivas de submissão, nas quais, ao sabor dos acidentes de visão, os objectos, os personagens, as linhas basculam e reviram-se, e, por outro lado, uma arte exclusivamente construtiva, em que, de cenas compostas de harmonias imaginadas, chega à ordenação por completo arbitrária das Grandes Baigneuses. Ele perseguiu duas tentativas – iria dizer duas tentações – que aspiram a religar-se mas que, como as paralelas, só encontram o seu ponto de junção no infinito...»2 Isto faz lembrar a derivação assimptótica dos fins da razão e dos objectivos empíricos por Kant para o “futuro imperfeito”. Huyghe, porém, não parte de ideias a priori, medindo declarada e dedutivamente os factos a partir dos princípios, mas da comparação das ideias com os quadros. E o que acredita encontrar neles é a incapacidade de Cézanne resolver a contradição, que contudo adia numa esperança obsidiante, recusando-se a aceitar a dualidade do ver e do saber. 1 2

HUYGHE, René, Op. Cit., p. 224. Idem, Op. Cit., pp. 223-25.

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Melhor dizendo, o que Huyghe faz sobretudo é diferenciar os quadros duma mesma época, e o que verifica é a sua fixação em dois grupos que mutuamente se respondem acerca da verdade, distintos no estilo de composição, denunciando duas imagens opostas do real e da sua relação com o sujeito, mas que o pintor lutará até ao fim por conciliar. De um lado, temos o caso emblemático das Grandes Baigneuses, terminada em 1905, e dos Joueurs de Cartes, cujo ciclo só é encerrado no ano da sua morte, em 1906; do outro, temos as “naturezas mortas”, as “aguarelas”, as últimas Sainte-Victoires (por exemplo V. 801 e V. 803) e as derradeiras Banhistas, nomeadamente as Baigneuses (V. 722). As telas do primeiro grupo obedecem ao princípio arquitectural, formalmente planeado, tendo um dos melhores representantes em Les Joueurs de Cartes (V. 558), de 1890-95, uma pintura quase simétrica em que a firmeza sólida e opaca da mesa e de todos os objectos constitui uma massa comum com a substância da seriedade impessoal, com a compenetração ao jogo dos personagens de gerações diferentes, desafiando a sorte um do outro como se tivessem nas mãos o seu destino, imprevisível como muito do inelutável. Há um fatalismo interno naquele lance, cujo único remédio provisório é a resposta condicionada pela do outro. Mas dir-se-ia que, expressa na serenidade intemporal, petrificada, de ambos, não haverá desfecho naquela acção, acção imemorial, pois o baralho, na posse completa dos dois, dividido entre aquelas mãos intimamente ligadas pela sua oposição, é interminável, na medida em que todos os homens continuarão a jogar as mesmas cartas, e eles representam a tensão eterna entre todos. Todavia, o tempo decretará a derrota do mais velho, desfazen-

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do a simetria, enunciando um facto consolidado no tempo. São o arquétipo da suprema seriedade da vida, jogada à sorte num sentido imutável. Poucas obras há mais ambíguas do que esta, pacífica e desoladora, conformada e decidida pelo gesto irrecuperável da liberdade de cada um dos indivíduos em situação. Esta suprema consciência da condição humana é a fronteira que é preciso saltar para o homem se reconciliar consigo mesmo e com o mundo. Hajo Düchting tem razão a respeito desta face da obra de Cézanne, quando diz: «Cézanne simplifica e dispõe o mundo dos objectos de modo a dar às suas composições um rigor monumental, semelhante à simetria de construção da antiga pintura italiana, como, por exemplo, a de um Giotto. Com estes retratos, Cézanne eleva-se acima da realidade quotidiana, para lhe dar um profundo sentido simbólico, que nada tem a ver com os objectivos impressionistas, [...]»1 Mas tal reconciliação só pode ser uma espécie de renúncia associada a uma forma de existência demasiado arquitectada, demasiado humana e, talvez por isso, com défice de humanidade. Contudo, esse excesso é, fazendo contraponto com o outro de que falaremos adiante, o sentido mais autêntico do homem. O homem não pode fugir de si próprio. E manifesta-se tanto no inesgotável da meditação, do sofrimento e da paixão introvertida dos retratos, em cujas fisionomias emerge toda a força da gravidade interna – por não se desviar o mínimo que seja em direcção à singularidade insignificativa –, quanto na procura do absoluto fora da profundidade infindável, sem princípio, sem apoio, do seu ser, ao ser arrebatado pelo tempo. 1

DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 159.

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Poucos exprimem melhor que René Huyghe a necessidade de redimir o aguilhão das horas pela esperança do absoluto: «O Homem, esse fugitivo perseguido pelo Tempo, esse ser transformado por cada segundo e que do nascimento até à morte é arrastado numa evolução incessante dos seus sentimentos, das suas ideias, do seu ser físico e moral, esse Judeu errante que a vida não deixa parar por coisa alguma, só vive para se criar a ilusão do definitivo, do imutável: trabalha sem descanso para estabelecer o sólido: crenças ou monumentos; ele, esse transitório, só visa a eternidade; ele, esse relativo, só sonha o absoluto; no irremediável escoamento do mundo, só sonha “deixar traços”, legar uma obra para a qual transfere a miragem da morte vencida.»1 Todavia, esse absoluto não é, de modo algum, para o Cézanne artista, de ordem transcendente. Não há um único deus na sua arte madura, nenhum espiritualismo abstracto nem refúgio da liberdade humana numa suposta instância transcendental, prisioneira das condições internas, do conteúdo sensível do próprio corpo e das dependências contraídas para lhe satisfazer os apetites. A verdade humana para Cézanne é de “ser (existir)”, não a de “dever”. Já se frisou bastante, aliás, o particular hilozoísmo das suas paisagens, habitadas por corpos nus ou pelo olhar habitado por elas, que Diderot teria provavelmente admirado. Quem sabe se o faria abandonar a doutrina compósita da imitação e da idealização?: o paradigmático e desconfortável compromisso da estética clássica. Cézanne pretendeu pôr em acordo o ver e o pensar. Talvez o tenha verdadeiramente conseguido, com certeza em apenas numa fracção dos seus quadros, porque ele 1

HUYGHE, René, Op. Cit., p. 228.

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bem sabia, e por experiência própria, que não se vive sempre ligado à paisagem mas o mais das vezes separado dela, consumindo-a e sendo consumido por ela, no campo, na fábrica, no comércio de si mesmo e dos outros, na Natureza cultivada para um jogo de trocas, que troca, redefine e confunde o vector da vida. O feitiço vira-se contra o feiticeiro. E quanto mais o homem se deixa dominar pela sua criação, menos crê ter sido ele a criar-se a si mesmo. Cézanne expressou-o bem no estilo “claro-escuro” do bestiário humano durante o seu primeiro período. Como não acertou contas com o mundo, creditou-as no “além”, que, na sua arte pós-romântica, se volta a insinuar no abismo branco transcrito nas fisionomias que, estando real, visivelmente integradas nela, perderam o “sentido da Terra”, desencontrando-se da comunicação sensível entre todas as coisas, ou aparece na síntese cósmica das Grandes Baigneuses (V. 719) de Filadélfia, em que um homem está de pé, 1 no limbo de dois mundos, entre o chão seguro e o rio escuro, que o separa dos mistérios líquidos da realidade nua das mulheres, em harmonia carnal com a formação gótica e sagrada das árvores, indiferentes ao homem de pé, guardando as suas roupas, proibido de se iniciar no rito natural da outra margem, quer por esses seres femininos que fazem dela a sua propriedade, quer pela força da torre sineira da igreja que o vigia pelas costas. Funâmbulo entre o espírito e a carne, alienado pela civilização, é incapaz de ver que a Natureza é, na sua verdade infinita, a síntese imanente de ambos e que a angústia humana, amplificada pela cultura, nada mais é do que

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Talvez o próprio Cézanne.

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o vazio inesgotável deixado pelo afastamento da Natureza. Aliás, não só se perde dela como se perde nela. Apenas O Jardineiro Vallier (V. 718), de 1906, tem o rosto sereno de quem possui os sentidos ligados à vida da terra, de quem intui as leis do espaço-tempo, do princípio eterno pelo qual o tempo é o devir do espaço e de que tudo o que é finito existe pelas leis do seu formar-se, da comunicação sensível entre os seres e do desaparecer destes no Todo. Mas não há antinomia entre o fim inevitável do singular e a eternidade: a Terra, o real, as leis irisantes – por outras palavras, essência, substância, estruturas elementares –, têm em seu poder, por uma qualquer lógica imperscrutável, a vida e a morte das coisas, com a sólida Sainte-Victoire sublinhando o absoluto da Natureza, e os “retratos”, expondo, nas diversas modalidades das suas fisionomias, o insidioso sentimento da futilidade da existência. Nos “retratos” de Cézanne há uma espécie de angústia biográfica e cultural schopenhaueriana, o peso duma gravidade metafísica, à qual ele reage de imediato nas “paisagens” e nos “nus”, reencontrando nestas telas a equanimidade positiva dos elementos, transparecendo nelas as formas e as relações eternas nas quais o homem pode repousar, identificando-se-lhes e recuperando a dignidade de nelas existir, participando da unidade orgânica do mundo. Hajo Düchting, considerando que o velho, mas artisticamente bem sucedido, Cézanne se podia agora projectar na sábia resignação do jardineiro decrépito, escreve: «Muito mais do que na série das Banhistas, Cézanne encontrou nos seus retratos da fase tardia a unidade tão desejada com a natureza. O jardineiro Vallier é a última personagem com quem Cézanne se identifica. Nele Céza-

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nne parece ter finalmente encontrado a paz consigo mesmo e com o mundo, expressa pelo êxito artístico que eleva a sua obra para lá dos modelos temporais, e que faz dela o modelo da contemplação de uma existência profunda e assente em si mesma.»1 Houve sempre em Cézanne, segundo Huyghe, um “vai-e-vem” irresolúvel entre a exigência de fidelidade à sensação e a necessidade de transmitir a “essência durável” da Natureza. O Huyghe racionalista crítico considera essa tentativa destinada ao fracasso, talvez em parte equivocado com a “petitte sensation” do pintor, que não é a da recepção imediata mas a que participa, recriada, na expressão das coisas pela cor substancial – como o homem na Natureza – em relações e acordos que formam as suas leis essenciais, a razão sensível, vista pela percepção. Porém, Huyghe presta uma grande homenagem ao mestre de Aix ao defini-lo como o último dos resistentes à sociedade das aparências, e à ideia duma Natureza concebida de maneira fenomenista,2 neokantiana, sem profundidade, reduzida a ser pensada como um dado subjectivo, ou seja, em função da experiência possível, aparente e lógica, dum sujeito consciente, que vê na “coisa-em-si” um mero enunciado especulativo, ou então 3 entendida, na sua essência, como um conjunto de fluxos vitais e energéticos, em simultâneo ininteligíveis e invisíveis, sem cor, sem forma ou geometria real, sendo, a fortiori, as estruturas e leis, supostamente fundamentais para alguns, associações abstractas de origem misteriosa, cultu-

DÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 169. John Stuart-Mill foi um dos arautos desta filosofia, posteriormente seguido por Bertrand Russell. 3 Na doutrina de Oswald Spengler, entre outros. 1

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ral ou pragmática projectadas pelo sujeito. O “fluxo vital” de Bergson, ao contrário do defendido por Lionello Venturi, não pode caracterizar a sua arte. Até o atomismo o irrita porque resume a realidade a combinações de massas regidas por formas de movimento distintas da percepção, ou seja, da identidade real sensível entre homem e mundo. Não será talvez incompreensão quando René Huyghe sugere o insucesso relativo da arte de Cézanne, pois assistir-lhe-á uma certa razão do ponto-de-vista gnosiológico, na medida em que situa com rigor o significado da sua pintura no período artístico a que pertenceu, reconhecendo-lhe em simultâneo uma importância incomparável: «Nunca na História da Arte um homem se agarrou com mais aspereza ao imutável do que Cézanne. Sobre as ruínas do grande sonho de estabilidade do pensamento clássico, a ciência estabeleceu a noção da eterna transformação de tudo. O Impressionismo, no termo desse século científico, aceita esta revelação: abdica, abandona-se à desaparição universal, ao reino das aparências e à sua mobilidade sem fim. Cézanne resiste. Ele é o derradeiro sobressalto latino, tenta recuperar essa segurança subvertida desde o século XVII. Pacientemente, apaixonadamente, busca o sólido, o durável, o permanente: a forma, as substruturas, as bases eternas do real e do pensamento, da vida exterior e da vida interior.»1 Hajo Düchting, apoiando a tese dum Cézanne nem racionalista nem irracionalista, demasiado complexo para ser classificado rigorosamente em qualquer “ismo”, exceptuando alguma proximidade com a fenomenologia de Merleau-Ponty, reafirma o que acabou de dizer Huyghe: «Enquanto Monet se entrega ao fluxo da natureza e aos 1

HUYGHE, René, Op. Cit., p. 228.

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seus ritmos orgânicos (e ao simbolismo do inconsciente a isso ligado), Cézanne esforça-se por encontrar na natureza uma força ordenadora superior e duradoira, que, apesar das transformações permanentes das suas manifestações exteriores, repousa indestrutivelmente em si mesma. Esta aspiração manifesta-se na substância da cor: ela é ao mesmo tempo cristalina e sólida, mas também fluida e transparente, revelando, assim, todos os aspectos da sua concepção da natureza.»1 Düchting acrescenta ainda, a propósito duma tela pintada por Cézanne (V. 803) representando o motivo dilecto com cores aparentemente irreais, ou seja, para a visão imediata, que o artista, desde o abandono do romantismo, acreditou não só na constância das formas naturais elementares, como no facto de que estas estão intimamente ligadas, pela sua própria visibilidade, às formas do pensamento: «A dureza pura e cristalina da montanha, que irradia cores belas e irreais, corresponde à ideia que Cézanne tem de uma existência definitivamente duradoira, pura e estável, enquanto fundamento e vector de toda a existência que pensa.»2 Finalmente, indo além do aspecto gnosiológico referido, integrando-o numa ontologia intuitiva, Cézanne (é já sabido por nós), na última fase, bem depois de ter inventado o “quadro-objecto”, enquanto abstracção analítica, não ilusionista mas ver crítico que, por uma imediatidade segunda, leva ao ver do visível essencial,3 transfeDÜCHTING, Hajo, Op. Cit., p. 216. Idem, Op. Cit., p. 216. 3 Outra coisa é reflectir sobre os meios, os fins e a maneira de exprimir a relação entre o sensível e o inteligível numa superfície plana, que os artistas sempre fizeram em momentos de crise ideológica e estética, momentos esses senão os mais criativos, em quantidade e em qualidade, pelo menos os mais significativos. 1

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rindo para a fotografia e, posteriormente, para o cinema,1 a função antes ocupada pelo “quadro-janela” (aberta a um espaço mítico, a uma profundidade imitativa, mais ou menos idealizada, ou a um retracto), que, desde a revolução renascentista, não tematizava explicita, provocadoramente, o ver e a sua relação com o real representado2 mas, assumidos os cânones, só o sensível e o transcendente, acabou, de acordo com Liliane Brion-Guerry, por superar essa sua criação – que nem por isso deixará de fecundar a arte moderna –, transfigurando o quadro no objecto visível do sujeito, um objecto mais real que a pura sensação dada, refundando, em termos mais radicais do Que depressa tomaram consciência da sua especificidade, revelada nas obras em que mais e melhor se assumiram. 2 O Impressionismo constituiu, de facto, o primeiro movimento, desde o Renascimento, a tematizar a “visão”, mas foi Cézanne quem uniu, na obra de arte, essa problemática à da expressão duma possível realidade em si, fazendo do quadro um objecto suscitado por e suscitador da meditação acerca da totalidade real da vida humana em situação, das relações entre as formas perceptivas e a realidade das formas percepcionadas, entre as necessidades do corpo concreto, não metafórico, e os abismos inconclusivos do pensamento, entre a Natureza e a civilização, entre a cor dos objectos e a visão da cor, entre o sólido e o aéreo e o opaco e o transparente na sua unidade substancial, entre as transformações permanentes e a permanência das formas estruturais elementares, entre a cor e a sua substancialidade. É fácil, pois, de notar que Cézanne, junto com problemas próprios duma concepção moderna, pós-galilaica do mundo, fazendo com isso avançar a arte, retorna, como uma reacção às exigências urbanas, cada vez mais complexas e incapaz de satisfazer e, nessa medida, de o satisfazer, a um olhar “primitivo” para o qual o “progresso” (grande lenda do século XIX) não tem sentido, olhar que, sem ironia, também contribuiu, com o mesmo impulso, numa associação mais ou menos crítica com as ciências e as técnicas, para uma das maiores revoluções estéticas a que a Humanidade assistiu. 1

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que Monet, o quadro-assimilador, equivalente a um espaço aparentemente desconstruído, tendo assim realizado, no domínio estético, a sua expressão da liberdade. Comparando uma peça da fase construtiva com outra da fase sintetista, segundo a periodização de Lionello Venturi, aproximamo-nos do termo deste ensaio voltando a oferecer a palavra a Lilianne Brion-Guerry, proporcionando-lhe reafirmar a tese do modo como Cézanne preparou, por projecções frescas e imediatas, quase instintivas na sua sublime franqueza, pela qual o adulto se confunde com a criança, a representação vivida do ideal humano nas Banhistas finais: «A paisagem da Barnes Foudation [La SainteVictoire (V. 457, 1886), tomada de Bellevue] é um sistema rigorosamente coerente de volumes plásticos que se encaixam uns nos outros, não há margem, não há jogo na imbricação implacável dos elementos paisagísticos. Pelo contrário, uma tela como a da colecção Tannahill (V. 764), da Kunsthaus de Zurich (V. 801) ou da colecção Etta Cone (V. 776), é urdida de aragens caprichosas, em movimento perpétuo, a tal ponto que a construção espacial jamais surge como fixa, parada, mas parece, pelo contrário, transformar-se ao capricho dos acasos atmosféricos. É esta impressão de precariedade, e ao mesmo tempo de diversidade, na medida em que a obra contém nela uma infinidade de possíveis, que confere a tais paisagens o encanto duma expectativa miraculosa, [...]»1 Uma vez que as manchas deixam de se limitar mutuamente por justaposições simples, é preciso, para não se diluírem em vagos fluidos luminosos e para não se perder a unidade do espaço, que os elementos se liguem por correspondências invisíveis, as quais só a visão do es1

BRION-GUERRY, Liliane, Op. Cit., p. 162.

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pectador, numa combinação igualmente aberta e motivada,1 pode completar, na medida em que o visível sugere o invisível, o não-dado, através de relações visíveis, antecipando o quadro-assimilador, objecto em que o ver viverá a sua liberdade: «Uma composição acabada, exprimida até aos seus mais ínfimos detalhes, na tensão duma elaboração que não admite o acaso, não sofre a mínima desobediência às leis austeras da estática. Não pode haver nela jogo entre os diversos elementos que a constituem; 2 a própria ilusão de movimento de almofadas de ar compromete o equilíbrio do edifício espacial. Mas se esse edifício é somente sugerido por algumas indicações de planos e de massas, de tal modo que é o espectador a terminá-lo e não o artista, a diversidade mesma dos devires possíveis implica mobilidade e flexibilidade das combinações volumétricas. Entre a notação construtiva duma rocha, duma casa, duma massa de árvores, e a harmonia definitiva cuja elaboração é deixada à imaginação, há lugar para muitas soluções intermediárias, cada qual reclamando o seu próprio equilíbrio. É a passagem entre uma e outra destas sucessivas precariedades, prelúdio da harmonia final, que cria o milagre duma mobilidade espacial que não é instabilidade.»3 Será possível atribuir a Cézanne, sem cair num absurdo filosófico, o epíteto de monista racional-sensitivo, Posto que a liberdade em Cézanne não é existencialista. Jogo é um sistema de combinações possíveis em que a acção de cada elemento depende da acção dos outros elementos e vice-versa, permitindo a determinação de probabilidades em função dos valores em causa, neste caso dos do sujeito e do objecto, combinados de certa maneira no espaço e no tempo. A percepção no último Cézanne é um jogo, uma vez que a combinatória ver/visível implica um grau de liberdade na construção do ver. 3 Idem, Op. Cit., p. 165. 1

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de primitivo anterior e superior ao primitivismo histórico? O que há, sem dúvida, na obra de Cézanne é a mistura do tratamento analítico mas pré-científico, da percepção e da Natureza com a intuição religiosa destas, ou melhor, uma procura do liame místico fundamental anterior a todos os nomes, a todas as personificações divinas e mesmo a todos os simbolismos, de que haverá de falar Antonin Artaud, de maneira muito menos inocente e denotando um pessimismo extremo que não se encontra no artista da Provença. Cézanne cria em deus, mas num deus das cores, ou seja, numa unidade de ideias substanciais da natureza cuja existência são cores, que, por definição, se vêm e são visíveis. Transcreveremos finalmente de Merleau-Ponty duas passagens de L’Oeil et L’Esprit, no intuito de mostrar como este filósofo sustenta o parentesco intuitivo entre si e Cézanne. Merleau-Ponty faz preceder, com ambiguidade, o Ser em geral em relação ao homem como parte desse Ser, mas entende que o homem é a visão reclamada pela essência visível do Ser, sem a qual esta, que se lhe dá para ser, não é. O homem existe como a consciência perceptiva do Ser. Sendo assim, como evitar pensar que este Ser de Merleau-Ponty é um Espírito, o Espírito das cores, o Espírito-Cor? Pois se até a linha não é uma coisa, ou a existência do seu limite, mas o limite da sua existência, o limite espacial da cor? As falas de Cézanne talvez não se prestem a tão conclusiva metafísica mas também não apontam para nada que a refute decisivamente.1 Declarações suas indiCézanne tem afirmações que podem passar por incongruentes: «as cores como grandes entidades numénicas, ideias vivas, seres da 1

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cam que as cores são para ele substanciais – “a irisação (a realidade imediata?) das ideias de Deus”, “a vida das ideias” –, e todavia pode falar-se em cor sem visão? E as cores não serão a visão das ideias, talvez uma espécie de figuras geométricas elementares e sentimentais, mas que, como essencialmente visíveis, são cores? Resulta daqui que o ver e o visível são o mesmo sob dois aspectos diferentes, a consciência como consciência de qualquer coisa e qualquer coisa como qualquer coisa da consciência? Na primeira passagem citada de Merleau-Ponty, em que o quadro-objecto é definido de maneira fenomenológica tal que se transfigura na própria realidade, pode lerse: «A visão do pintor deixa de ser o olhar sobre um exterior, mera relação “físico-óptica”, com o mundo. O mundo deixa de estar à sua frente por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas, como por concentração e vinda a si do visível, e o quadro, finalmente, não se reporta ao que quer que seja entre as coisas empíricas se não for em primeiro lugar “autofigurativo”: ele só é espectáculo de qualquer coisa sendo “espectáculo de nada”, rompendo “a pele das coisas” para mostrar como as coisas se tornam coisas e o mundo se torna mundo.»1

razão pura»; «As cores são a expressão, a essa superfície, [da natureza profunda] dessa profundidade. Elas elevam-se das raízes do mundo.» (CÉZANNE, Paul, Op. Cit., p. 151); «As cores, escutai um pouco, são a carne cintilante das ideias e de Deus.» (Idem, Op. Cit., p. 153). Enquanto a primeira frase indica que as cores são a própria “essência” do real, as outras são susceptíveis de serem interpretadas como sendo as cores fenómenos superficiais duma essência espiritual. 1 MERLEAU-PONTY, Maurice, O Olho e o Espírito, trad. Luís Bernardo da ed. original L’Oeil et L’Esprit, Éditions Gallimard, Paris, s/d, Vega, Lisboa, 1997, p. 56.

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Na segunda passagem, Merleau-Ponty revela, subentendendo acompanhar Cézanne, o seu misticismo da visão. Para ele a visão (unidade do ver e do visível) é a essência do Ser: «No fundo imemorial do visível algo se mexeu, se acendeu e, invadindo-lhe o corpo, tudo o que ele pinta é uma resposta a esta suscitação, a sua mão “nada mais do que o instrumento de uma vontade longínqua”. A visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser. [...] Neste circuito não há nenhuma ruptura, é impossível dizer que aqui acaba a natureza e começa o homem ou a expressão. É, portanto, o próprio Ser mudo que manifesta o seu sentido silencioso.»1 Reconhecendo as dificuldades de compreensão inerente a todo o visível, é todavia inegável que a arte de Cézanne se impõe logo pela infinita vontade de autenticidade num mundo em que a retórica e a pragmática campeiam como instrumentos de ocultação e autojustificação dos crimes sociais e de manipulação das consciências ingénuas num tempo demasiado complexo para confiarmos. A sua arte é simultaneamente apelo dramático ao religar, ao enriquecer mútuo de todos os aspectos da vida humana, e a expressão mais perfeita dessa unidade que não esquece no homem o liame indissociável do corpo e da inteligência. Há um ditado na Índia que ficaria bem a Cézanne: “Deus deu a verdade aos homens; veio o Diabo e transformou-a em Religião.”

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Idem, Op. Cit., p. 68.

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APÊNDICE FENOMENOLOGIA OU O ÚLTIMO AVATAR METAFÍSICO DO OLHAR SOBRE CÉZANNE A arte é uma actividade prática, um género de transformação do mundo pelo ser humano, representando vários aspectos e funções de ordem psicológica, moral e social, de que os agentes e os receptores possuem mais ou menos consciência. Há muito tempo que as metodologias e dados científicos apontam para o facto de se ter de prescindir de uma vez por todas da tentação de se pisar e repisar o tema metafísico do Belo, argumentando e contraargumentando especulativamente acerca da sua transcendência ou não, da sua naturalidade ou não, de ser ou não de instância transcendental ou um mero nome conveniente para significar, com grande dose de arbitrariedade cultural ou idiossincrática, uma classe de estados mentais que ocorreriam na presença de certos estímulos. 1 Parece, na actualidade, absurdo – fora da inércia do círculo filosófico académico, que assim pretende justificar a rotina de escrever sobre o que se escreveu a propósito das meditações de um grande metafísico e das suas célebres disputas com outros, tratado de acordo com a reverência prestada às “vacas sagradas” –, reflectir sobre a significação do termo Belo abstraindo-se dos, ou qualificando a priori, os objectos pertencentes à História da Ar-

Esta tese, nominalista, é, entre as designadas – exceptuando, pois, as potencialidades ainda não cumpridas da quantas vezes ignorada teoria estética do materialismo dialéctico –, a mais cautelosa mas não necessariamente a mais frutuosa como ponto de partida para o prosseguimento da investigação estética. 1

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te, e desdenhando das observações e experimentos feitos ou a fazer, sob a proposta de hipóteses teóricas controladas, a respeito dos fenómenos que diversas teorias, provisórias como todas, caracterizam como belos ou com qualquer outra designação menos conotada com a metafísica. Tal como a arte é uma actividade prática que, portanto, só se forma, se justifica e se comprova no seu valor pela prática, também qualquer declaração verbal obedece ao mesmo critério. O pensamento objectivo acerca de toda a actividade prática, inserido no processo global da existência humana social, reflecte a actividade prática objectiva. A não ser assim, o pensamento nada mais seria do que projecção ideológica: apenas “medita”, encerra-se no círculo de si-mesmo com as suas ideias feitas, ficando voluntariamente, por ressentimento1 ou por auto-fascínio, 2 de fora da realidade. A fortiori, esta tese materialista implica que o pensamento objectivo é um elemento reflexivo da actividade prática, orientando o e orientado pelo executar objectivamente efectivo. Muito depois de Leonardo, Galileu e Vico,3 Marx reforçou e aprofundou – na esfera “filosófica”, posto que nas ciências naturais há bastante acontecia4 – esse prinCf. Nietzsche. Cf. Feuerbach, Marx, Freud. 3 É dele a frase “verum factum” (“o verdadeiro e o feito são o mesmo”). 4 A libertação da metafísica começou por autores que paradoxalmente se mantiveram fascinados pela ideia de “causa primeira” (simétrica da aristotélico-medieval “causa final”), ou Deus, e que foram incapazes de pôr de lado a crença em poderes animistas, em virtudes naturais, compensando a impossibilidade do mecanicismo fundamentar os princípios do movimento e das forças actuantes. 1

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cípio básico do conhecimento objectivo, cunhando-o na 2ª Tese sobre Feuerbach: «A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na práxis

Foi o caso de Newton, que, no entanto, soube separar e conservar independentes a atitude e a metodologia científicas face à sua curiosidade pela alquimia e à necessidade moral e ôntica, aprendida quase desde o berço, de Deus, para ele, cientista feito, uma espécie de pura ideia de razão. Esta ambivalência intelectual, tão incómoda para as consciências dos séculos XVII e XVIII, seria racionalizada e sistematizada por Immanuel Kant, na sua delimitação recíproca do conhecimento e da crença. O que ainda funciona para muitos. Assim, o célebre aforismo de Newton, “hypotheses non fingo” (“não ponho hipóteses”) é uma expressão daquela mesma ambivalência: significa a adesão e implementação da imagem machina mundi, cujos objectos e movimentos nos são dados a conhecer pela vista e pelo entendimento experimentador, que apreende a ordem desses fenómenos, analisando-os e sintetizando-os nas suas relações constantes, ou leis, pelo que a ciência não precisa nem deve exceder o seu âmbito – o das realidades naturais –, edificando grandes sistemas dedutivos; significa, por outro lado, descobrir em vez de construir, porque Deus já o fez, penetrar nas leis do mundo em vez de interpretar os seus desígnios, porque para isso temos a palavra da Bíblia. Maravilhado pela “estética” da realidade, se acredita ter de circunscrever a sua investigação à descrição das relações matemáticas dos elementos universais, pois toda a explicação teria de ser metafísica, não consegue evitar embrenhar-se na procura dos fundamentos explicativos do mundo, dividido entre a alquimia e a teologia, porque o estético, como a gravidade, só atrai quando faz sentido. Por isso, o mesmo Newton, ao escrever “físico foge da metafísica”, terá razão, mas não se deve confundir metafísica com a filosofia em geral, a menos que não importe recair na alquimia, na teologia, ou até numa metafísica inconsciente, já que nem tudo o que fundamenta o pensar (supostos, preconceitos, evidências, motivos) está no domínio da consciência. Em todo o caso, esta ambivalência converteu-se em dualidade que garantiu uma independência cada vez maior ao conhecimento objectivo, ou seja, científico.

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que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.»1 Marx rematou-a com a diversamente traduzida e tão mal compreendida, por descontextualizada, 11ª Tese: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; o que importa depois disso [«es kömmt drauf an”] é transformá-lo.»2 Isto não quer dizer que a especulação – visto que ela própria exprime, quer duma maneira “real” quer ilusória (ambas reflexos das condições sociais e históricas de vida), “intuições”, imaginações ou inferências de experiências directas, por um lado e, por outro,3 formas de relação ideológica e subjectiva com o mundo objectivo, que é possível deduzir daquelas4 – não tenha podido ou possa contribuir com reflexões pertinentes para o avanço do conhecimento objectivo: o que não se lhe permite é eximir-se à prova da práxis, ela-mesma, por se situar na história social, condicionada tecnologicamente e invadida por supostos ideológicos. Mas, precisamente pelo facto de ser práxis, de condicionar as próprias teses a hipóteses submetidas ao critério da prova empírica e, sobretudo, da acção transformadora, não se deixa aprisionar por elas, e estabelece asMARX, K., Thesen über Feuerbach (1845), in MARX ENGELS Ausgewählt Werke, Band I, Dietz Verlag, Berlin, 1987 p. 196. 2 Idem, Op. Cit., p. 200. 3 O que se encontra misturado com frequência. 4 Por exemplo, uma determinada forma de concepção do “útil” só poderia ter surgido e se transformado numa categoria fundamental da filosofia e da ideologia de vanguarda nas condições de ascensão duma certa classe social em dada época. 1

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sim a sua autoridade de última instância crítica em constante autoteste.1 Daí a importância de obras como as de MerleauPonty, de Sartre e de outros, que, não fornecendo um conhecimento dos tópicos e dos factos por eles tratados, exprimem, ao nível da reflexão,2 as vivências, as preocupações, as perplexidades sociais, existenciais, estéticas, epistemológicas e ônticas da sua época, proporcionam aos homens em geral e aos estudiosos em particular uma noção menos pragmática, conformista, egotista, privativa, estreitada de algum modo, e uma ideia mais consciente, ainda que não necessariamente verdadeira, das grandes questões que os envolvem. O seu estudo, assumido como facto social, permitenos aprofundar o conhecimento da vida humana, aprendendo sobre a necessidade de emancipação dos indivíduos face aos constrangimentos históricos, expressa no poder da mente de se elevar, em termos relativos, acima das imposições “substanciais” da existência.3 Aprendemos a maneira como estas ideologias se formam nos intelectuais enquanto reflexos, social e culturalmente filtrados, das condições “substanciais”, imediatas, dadas, de vida (Estado, Direito, costumes, estruturas civis e militares, Igreja, relações e meios de produção, etc.)4

Não é que se possa afirmar categoricamente que algumas das teses das transformações económicas enunciadas por Marx se viram refutadas pela prática social. A expressão “ortodoxia marxista” é, portanto, uma interpretação errada do próprio marxismo. 2 A filosofia dum período histórico, segundo Hegel. 3 Parafraseando Hegel. 4 Aquilo a que Hegel chamava, de modo genérico, “espírito objectivo”. 1

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Merleau-Ponty, por exemplo, exprime a revalorização contemporânea do corpo, a importância dos sentidos na constituição da personalidade,1 e o facto de que nem a espécie humana nem os indivíduos surgem predestinados por uma essência providencial histórica, de base sobrenatural,2 nem a sua existência está precedida por uma natureza originária determinando, em termos de espécie, de sexo, de raça ou de classe, o seu ser no mundo. Descobre que alguém já se lhe havia antecipado, ao nível da projecção estética e através duma ideia ainda pouco reflectida mas profunda da realidade. Esse alguém fora Cézanne, e o filósofo francês, cultivado nas leituras do mais intelectualista Husserl, tratou de promover a sua arte ao estatuto de figuração desse novo e pertinente movimento filosófico denominado Fenomenologia. Há no filósofo Merleau-Ponty, tal como no pintor Cézanne, uma vontade de imanência sensível, de mundanidade, mas ao mesmo tempo, em contrapartida, a tendência para uma nova forma de espiritualização do corpo, o corpo como vidente e auto-visível que se revê, não manipulado de fora, para além de toda a razão constrangedora, na originalidade duma Natureza muda, não subme-

Interpretando, à sua maneira, o abalo sofrido pelo poder da Igreja, a laicização do Estado, da economia, a renaturalização do corpo e as investigações duma ciência recente, a Psicologia. 2 A noção cristã do homem e do universo viu os seus dogmas abalados pela ascensão da burguesia e só se pôde conservar, adaptando-se aos novos tempos, por causa das contradições capitalistas entre a promessa da felicidade terrena pelo consumo e os aspectos alienantes duma existência dedicada tanto à produção desse consumo quanto ao consumo dessa produção, frustrante por o sentido geral da vida se ter orientado para o sentido limitado da apropriação de bens “materiais”. Todas as sociedades criam as suas frustrações e, portanto, a sua religião. 1

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tida ainda às categorias da morfologia moral e económica nem à sintaxe de um universo de coisas que o homem tem por função manter. Descobre-se, pois, neles a nostalgia duma Natureza ainda intocada pelo utilitarismo da civilização, que fez do homem um seu instrumento e o terá afastado de tudo aquilo que ele é “antes da reflexão”, do “berço das significações”. É evidente que não se trata ainda de explicar a realidade, de penetrar nas suas leis através da transformação social e experimental e da “observação razoada e seguida”, como dizia Buffon no Prefácio da sua Histoire Naturelle de 1749, mas de a interpretar em função do desejo, no seu caso duma bela nostalgia, a qual, porém, se apresenta como uma maneira de contrapor a uma razão estreita – tornada “utensílio” de exploração humana e de guerra, portanto, segundo nós, razão irracional e não ciência mas manipulação ideológica e política das conquistas da Física, da Biologia, da Psicologia – uma significação humanista do conhecimento, obtida por um retorno espiritual à identidade originária, nascente e correlacionadora, do homem com a Natureza, da qual aqueles saberes operacionais teriam surgido e para a qual teriam de se manter virados. Escreve, pois, Merleau-Ponty que a Fenomenologia «É o ensaio duma descrição directa da nossa experiência tal qual é, não dizendo respeito à sua génese psicológica e às explicações causais [...]»,1 para mais à frente enunciar, num registo “quase” egotista, a tese radical da sua filosofia, que se destina a descrever o mundo percebido e não a dar uma explicação da percepção do mundo, explicação que é já uma relação segunda, esquematizadora e instruMERLEAU-PONTY, Maurice, Phénoménologie de la Perception, Gallimard, Paris, 1945, p. I. 1

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mental, com esse mundo, e não a experiência vivida: «Eu não sou um “ser vivo” ou mesmo um “homem”, ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história – eu sou a fonte absoluta, a minha existência não vem dos meus antecedentes, do meu ambiente físico e social; ela vai para eles e sustenta-os, porque sou eu que faz ser para mim (e portanto “ser” no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, esse horizonte cuja distância em relação a mim se cavaria, pois que a fonte absoluta não lhe pertence como uma propriedade, se não estivesse lá para a percorrer pelo olhar.»1 Em suma, para a Fenomenologia de Merleau-Ponty, que vê no conhecimento um obstáculo à experiência da verdade das coisas ou das coisas de verdade, «Voltar às coisas mesmas é regressar a esse mundo anterior ao conhecimento e de que o conhecimento sempre fala, e a respeito do qual toda a determinação científica é abstracta, significativa e dependente, tal como a geografia a propósito da paisagem em que aprendemos antes de tudo o que é uma floresta, uma pradaria ou uma ribeira.»2 Quisemos dar aqui um exemplo3 da ambivalência da metafísica: por um lado denunciadora e problematizante e, por outro, mistificadora e dada com facilidade ao irracionalismo. Idem, Op. Cit., p. III. Idem, Op. Cit., p. III. 3 De teoria “paracientífica”, de acordo com a classificação de Piaget. A Fenomenologia intenta alcançar um modo distinto do conhecimento científico, que o fundamenta e desmistifica, atribuindo-lhe um carácter operacional e não cognitivo, emergido da “experiência primordial”, sua verdade e limitação. 1

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Por isso, precisámos de desvalorizar o suposto alcance gnosiológico não só da vetusta mas persistente atitude escolástica como das aventuras contemporâneas da pura especulação, ainda que tenham partido duma crítica da ciência. Mas a ciência, enquanto tal, não pode ser criticada do exterior, se a entendermos como obra aberta, pelos seus próprios princípios e métodos, que incluem a consideração ponderada das interpretações especulativas e o uso das mais extravagantes hipóteses, sujeitas ao escrutínio da experiência, apoiada nos recursos técnicos e teóricos disponíveis, ou, no limite, à espera do aperfeiçoamento dialéctico dos meios. Com certeza – já o dissemos – que não devemos desqualificar por completo a especulação, como o faz o positivismo radical, pois esta pode ser estimulante e levar mesmo a investigação a reorientar-se por vias fecundas até então insuspeitas e à exigência de criar novos métodos e instrumentos de prova. Não existem critérios a priori que definam se um problema é científico ou não. 1 ToÀ excepção, talvez, das tautologias e dos seus opostos, os paradoxos, das questões que implicam a sua própria resposta, afirmativa ou negativa. Karl Popper (Cf. Logik der Forschung, 1934) invoca a regra da “falsificabilidade” (a probabilidade prática duma teoria ser desmentida por um facto) contra a clássica “corroboração das hipóteses”. Mas esta regra “alternativa” aplica-se apenas a enunciados que desde logo já se sabe não terem solução teórica, por serem falsos problemas. Por exemplo: “Deus existe ou não?” é um falso problema porque quem o enuncia define à partida Deus como uma entidade que não é passível de observação directa ou material, instrumentalmente controlada. “Deus” só pode ser caracterizado pela sua própria definição, como aliás mostram as supostas “provas da existência de Deus”, desmontadas por Kant com justeza, mas usando doutro critério, lógico, por exemplo, de que a “existência” não é atributo “real” do sujeito dum juízo. Ou seja, não se pode ti1

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davia, é a ciência, enquanto processo de racionalização dos problemas da existência humana e das possibilidades da sua solução – sempre imperfeita e insatisfeita consigo mesma –, que tem a última e provisória palavra no âmbito do conhecimento. Repare-se, contudo, que, se ela é a senhora do saber, é também a servidora dos sonhos e necessidades de realização dos homens e depende, em interacção, para singrar, do seu poder, prático e ideológico, sobre o mundo que se vai modificando.

rar, à maneira escolástica, a existência da essência, o definiens (a definição, de que a “existência” faria parte) do definiendum (o definido), pois os nossos juízos não se fundam num conhecimento verdadeiro da essência, dado que não temos acesso racional, nem intuitivo, à coisa-em-si: o que “é por definição” “não é necessariamente pela sua realidade”. Cf. KANT, Immanuel, Kritik der Reinen Vernunft, B 622. Só por curiosidade, é de notar que a Escolástica medieval esteve longe de ser monolítica, tanto que, enquanto Anselmo, no seguimento da definição de Boécio, defende o argumento ontológico, ou o acesso do entendimento à realidade, Gaunilo contra-argumenta com a possibilidade dele autorizar a elevação de toda a imaginação à realidade e Tomás de Aquino identifica, em Deus (“acto puro”) essência e existência, sem que todavia possamos definir a sua essência, o que ele é em-si mas, desqualificando o pensamento humano, apenas temos a oportunidade de conhecer o que ele próprio, por analogias, dá a ver de si. É “quase” como a assunção tácita do não-ser de Deus, ou, talvez melhor, da pura intencionalidade de Deus, tendo o mundo e os acontecimentos como seus ob-jectos, cuidando assim da “criação”. A dita prova de Anselmo foi, entretanto, ressuscitada por Descartes, tão atacado, pelo seu dualismo e substancialismo racionalista, por Merleau-Ponty, este mesmo devedor, via Brentano e Husserl, da noção escolástica de intencionalidade, na qual, doravante segundo o Existencialismo, invertendo os valores ontológicos, essência e existência se refundem na existência, no acto mental sensível, na múltipla ecceidade das coisas, que é essencialmente “visão”.

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A mundividência de Merleau-Ponty fornece argumentos fortes para a distinção de Jean Piaget entre ciência e filosofia. Escreve este em Lógica e Conhecimento Científico, I: «A característica própria do conhecimento científico é a de conseguir uma certa objectividade, no sentido de que mediante o emprego de certos métodos, quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre todos os sujeitos sobre um determinado sector de conhecimentos.»,1 procedendo de seguida à sua diferenciação do pensamento filosófico: «Um sistema filosófico, em troca, tende a fornecer a totalidade da experiência vivida, o que é bastante legítimo mas põe um problema bem diferente, que é talvez menos um problema de conhecimento do que de atitude geral e de vida. Assim, ele reflectirá, mais cedo o mais tarde, a personalidade do seu autor, bem como a ideologia do seu grupo social, de que esta personalidade é solidária. Além dos elementos do conhecimento objectivo, no sentido há pouco esboçado, comportará portanto necessariamente juízos de valor traduzindo o comprometimento do eu na sua sociedade e no seu universo. Em suma, tendendo a abraçar um conteúdo mais rico que o conhecimento científico, perderá correlativamente em objectividade, [...]»2 Sendo assim, a Filosofia não deve ser encarada de um ponto-de-vista meramente negativo. Ela exprime, ao mais alto nível da reflexão, as preocupações éticas, os problemas gnosiológicos e ônticos, os graves comprometimentos axiológicos do homem investido, à vez, numa certa situação, época, cultura e classe. É devido a esta

PIAGET, Jean, Lógica e Conhecimento Científico, I, trad. Sousa Dias do original Logique et Connaissance Scientifique, Gallimard, Paris, 1967, Livraria Civilização Editora, Porto, 1980, p. 25. 2 Idem, Op. Cit., p. 26. 1

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complexa interferência recíproca de aspectos objectivos que todas as eras são lugares de confronto de metafísicas contraditórias, assim como de percepções opostas do seu mundo. Os artistas elevaram tais percepções ao nível da representação transfigurada da vida, com os seus medos e esperanças, fantasmas e encantamentos, glorificando ou denunciando o seu tempo. Os filósofos vêem na arte um sinal do indivíduo criador na sucessão dos aqui e agora que lhe cabem, e interpretam, à medida do convívio com os temores e desejos próprios, as obras de arte como palcos do seu enredo pessoal e social. Tanto os artistas quanto os filósofos não fogem de si mesmos ao “refazerem” nos seus produtos a realidade e ao interpretarem-se mutuamente: pelo contrário, exprimem, mesmo indirectamente, reprimindo-as sublimando, as relações objectivas (costumes, obrigações, ideologias, necessidades económicas e biológicas) de que dependem e a actividade subjectiva pessoal (ideias, sentimentos, desejos, projectos) condicionada pelo curso mais ou menos sistemático dos acontecimentos exteriores. O segredo da Filosofia não é, portanto, ou todavia, o do sentido das coisas. O sentido objectivo da relação do homem com as coisas é que é o segredo da Filosofia. Mas é um sentido que a Filosofia não está em condições de disponibilizar de forma consciente, pois ela, exercida por intelectuais que têm por material de trabalho, meio de subsistência e de reconhecimento, a linguagem natural,1 procura o fundamento da existência humaO que, reconheça-se, não é exclusivo dos filósofos. Em boa verdade, todos os homens compreendem o mundo mediante a linguagem, mas só os filósofos fazem dela, sobretudo das suas significa1

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na, ou a sua essência, na própria linguagem, na sua semântica e sintaxe reificadas,1 a qual, na verdade, comunica e oculta simultaneamente as condições de vida: o homem não subsiste com palavras nem se alegra com tristezas. Já Francis Bacon, no Novum Organum (1620) denunciava, como “Ídolos do Foro”, o atractivo mágico da linguagem, não só para o metafísico como para o comum dos mortais, atractivo de que Cézanne decidiu fugir, ainda que não se tivesse conseguido calar, orientando-nos, com isso, nos mistérios do que deveria ser uma relação perceptiva directa: «as palavras podem virar e reflectir o seu poder contra o entendimento, efeito esse que tornou sofísticas e inactivas as ciências e a filosofia. É que as palavras são frequentemente impostas a partir da apreensão do homem comum e dissecam as coisas segundo as linhas mais perceptíveis ao entendimento comum. O que acontece é que quando um entendimento mais penetrante, uma observação mais atenta pretende deslocar essas linhas, a fim de as tornar mais conformes à natureza, as palavras [quais “primeiro-motor”, “destino”, “elementos substanciais”, “pesado” ou “leve”] opõem-se a esse intento com grande alarido.»2 O sábio chanceler do rei Jaime I põe-nos igualmente de sobreaviso, talvez por experiência própria, contra os enredos teóricos e as falácias pseudo-demonstrativas, ções hipostasiadas, ou a realidade em si ou a fronteira que separa o homem não sabem bem de quê. 1 Desde a escolástica à filosofia analítica. 2 BACON, Francis, Novum Organum, Livro I, § 59, trad. António Magalhães, Rés-Editora, Porto, s/d, p. 43, do original latino estabelecido por J. Spelding, R. Ellis e D. D. Heath em The Works of Francis Bacon, Vol. I, Ed. Friedrich Fromman, Gunther Holzboog Verlag, Stuttgard-Bad, 1963.

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que, ambos, ligando as palavras umas às outras, concluem pelo ponto donde a vontade humana partiu. Juiz em causa própria, nada pode provar, mas satisfaz a autoestima e convence quem aceita tais regras do jogo sem saber de que se trata dum jogo viciado. Advertindo de tais ilusões, denominadas por ele de “Ídolos do Teatro”, escreve: «As fábulas deste tipo de teatro têm isso em comum com aquilo que é usual no teatro dos poetas: as narrações imaginadas para a cena são mais harmoniosas, mais elegantes e mais conformes àquilo que pretendemos que elas sejam do que as narrações verídicas extraídas da História.»1 Em suma, Francis Bacon afirmava no século XVII, muito antes do aparecimento dos Ideólogos (séc. XIX), que as ilusões não são só fábulas inventadas mas expressão da própria natureza humana, tornando possível conhecê-la melhor: «Os Ídolos da Tribo têm o seu fundamento na própria natureza humana, na raça, na espécie humana. [...] O entendimento humano assemelha-se a um espelho imperfeito que, exposto aos raios das coisas, mistura a sua própria natureza com a natureza das coisas, falseando-as e distorcendo-as.»2 O reconhecimento desta inversão do sentido serpensar permite3 compreender a Filosofia, já não como elucidação do Ser, mas como sintoma de um estado de coisas no universo humano, revalorizando-a enquanto facto resultante do desenvolvimento dos processos objectivos de existência, que leva ao surgir do trabalho espiritual abstracto, o qual contribui para determinar cada estádio social como uma específica, rica e contraditória acIdem, Op. Cit., Livro I, § 62, p. 46. Idem, Op. Cit., Livro I, § 41, p. 35. 3 Ou vai permitir mais tarde, a partir do século XIX. 1

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tividade retroactiva entre as forças e relações produtivas, a organização política, as formas espirituais objectivas e hipostasiadas da moral, do direito e da religião, reguladoras do comportamento, estádio cuja cúpula, nas sociedades democráticas, além da ciência e da arte, é constituída pela Filosofia, a qual, reificação das reificações, tende a inverter todo o processo social. Se ela julga a dor como causa da doença, o sofrimento espiritual como patologia do espírito puro, cabe ao cientista verificar que distúrbios objectivos estão na base dos padecimentos metafísicos. 1 Exemplifiquemos. Marx, em A Sagrada Família, comenta jocosamente a crítica indignada do neohegeliano Edgar Bauer a um livro do comissário da polícia Béraud em Paris sobre a prostituição tratada como um problema de ordem pública. Embora as “mulheres da rua”, assim como os bordéis e as(os) amantes, sejam um efeito das necessidades humanas insatisfeitas pela estrutura da família numa dada ordem social, Bauer julga a prostituição como resultado do “sofrimento do Amor”, mostrando apenas com isso a importância e o facto, não explicado, da perversão, numa certa sociedade, do amor enquanto necessidade humana, demasiado humana para ele, além do facto subjectivo de auto-repressão por sublimação filosófica.2 Primeiro Marx cita um estrato patético do texto de Edgar Bauer: «O amor... é um deus cruel que, como todas as divindades, quer possuir o homem inteiro e só tem Entendemos aqui por “filosofia” só a que é metafísica, virando as costas à ciência ou tentando fundamentá-la por princípios transcendentes ou transcendentais. 2 Chegando a exclamar que “o amado não interessa ao seu amante senão na medida em que é um objecto exterior”, um pouco à maneira do psicanalista Jacques Lacan que numa aula da Sorbonne proferiu a ideia de que “não existe relação sexual”. 1

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descanso quando o homem lhe tiver sacrificado não só a alma mas ainda o seu Eu físico. O culto do amor é o sofrimento, e o apogeu deste culto é o sacrifício de si mesmo, o suicídio.»1 Depois, mostra o processo pelo qual o amor é sublimado por Bauer, mas não à maneira kantiana, que dessa maneira poderia ter evitado as variadas desilusões da paixão, entre as quais elegeu o sacrifício, em vez de outras estratégias possíveis, designadamente a pseudodesmistificação mitológica dos encantos do sexo, satirizada por Jonathan Swift na descoberta do personagem Cassino de que as belas formas femininas também evacuam:2 «O Sr. Edgar faz do amor “um deus”, e ainda por BAUER, E., “Hurenverhältnisse”, in MARX ENGELS, Die Heilige Familie, in MEW, Band 2, P. 21, pela trad. port. de Fiama Hasse Pais Brandão, Editorial Presença, Lisboa, 1974 p. 30. 2 Cf. SWIFT, Jonathan, “Cassino e Pedro – Elegia Trágica” (1733). Se Cassino fosse filósofo, provavelmente teria aceite a advertência de Aristóteles contra a desmesurada paixão: «O sábio não procura alcançar o prazer mas evitar a dor.» (ARISTÓTELES, Ethique, ed. russa, S. Petersburg, 1908, p. 12, cit., Théodore Oïzermann, Problemas de História da Filosofia, trad. Antonieta Azevedo, Livros Horizonte, Lisboa, 1976, p. 25, da ed. fr., Editions du Progrès, 1973). Apesar deste prenúncio estóico, Aristóteles inclinava-se contudo para um entendimento mais equilibrado do Bem, manifestando-se de acordo com o dístico por si citado, e inscrito, apolineamente, em Delos de que «“A Justiça é a mais nobre, e a saúde o melhor, / Mas o desejo do coração é o mais agradável.”» (Idem, Nicomachean Ethics, I, viii, 14-15, trad. H. Rackham, ed. bilingual, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1994, p. 43). Aristóteles procurou unir no Bem a Felicidade e a Justiça. Para ele o “fim político”, a justiça na acção social, era o “bem supremo”; Cézanne vivia numa sociedade em que o indivíduo civil estava separado do cidadão e o cidadão separado do homem: via nela uma impostura e desejava encontrar a felicidade e a justiça para o homem na unidade com a Natureza, que não era para ele um retorno mas a 1

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cima “um deus cruel”, substituindo ao homem que ama, ao amor do homem, o homem do amor, destacando do homem o “Amor”, do qual faz um ser particular e a quem confere uma existência independente. Por este simples processo, por esta metamorfose do atributo em sujeito, pode-se criticamente transformar todas as determinações essenciais do homem em monstros e alienações do ser.»1 Portanto, ao exprimir através das palavras as questões da subsistência, da vontade de persistir, da realização humana, da infelicidade, da auto-estima, da convivência e da natureza das coisas, interpretando o mundo à medida das suas frustrações, contentamento ou conformismo, o filósofo, zangado o mais das vezes com a resistência da objectividade, numa linguagem cujo esoterismo constitui uma riqueza que é sua propriedade (por suposto vedada às forças sociais, acessível apenas aos bons livros e às almas omniscientes) e também a porta de acesso à “verdade”, faz corresponder, de forma mediata, por não se distinguir real mas apenas idealmente2 do mundo real, as provações dos mais elevados ou mais considerados valores humanos às próprias condições de vida. Hipótese a reconsiderar será a de que é a própria realidade social a inverter-se objectivamente: ao alienar o homem, ou no facto do homem se alienar a si mesmo na criação da sociedade, a sociedade converte o “amor” num poder estranho diante do homem, que o eleva a um estatuto mitológico ou metafísico, a um deus ou a uma ideia. O “amor” torna-se num ideal dificilmente alcançável e

demonstração estética de que a verdade humana é pré-política, o lugar em que a necessidade encontra a sua liberdade. 1 MARX, Karl, Op. Cit., Band 2, p. 21, trad. port. p. 31. 2 Por transposição na esfera das Ideias e das idealizações e não na efectividade.

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uma entidade abstracta que “é” por si, fazendo do homem um seu predicado e de si próprio uma essência humana situada acima do homem. Portanto, o homem pode, a partir de então, viver para o “amor”, assim como para a “natureza”, para a “liberdade”, para a “economia”, para “Deus”, produzindo e alcandorando as categorias metafísicas a fim terminal da existência humana. É possível que resida nesse processo grande parte da “verdade” da filosofia e da arte. E, no entanto, do mesmo modo que não se pode deduzir a Revolução Francesa da Fenomenologia do Espírito de Hegel, também o regime da IIIª República de França não é explicável a partir das pinturas de Cézanne, relativamente independentes das relações de produção e das estruturas sociais objectivas. Não modelando nem reflectindo a época de maneira directa, as filosofias e as artes constituem uma tradução, mediante as suas formas expressivas (semânticas e perceptivas), da experiência de vida, pertencendo-lhe como um elemento que a permite elucidar melhor – até por via das suas oposições. Além do mais, as grandes obras, sobretudo as artísticas, não se ficam por aí, manifestando uma certa continuidade de aspectos da vida humana durante as transformações históricas que os condicionam, habilitando a que elas renasçam integradas no espírito duma nova era, adquirindo o sentido e o valor que o contexto modificado torna possível. Assevera Theodore Oïzerman: «A filosofia (assim como as artes e a herança cultural) conserva um maior ou menor valor para além da época de que foi a emanação; é isso que cria a ilusão, no caso de uma tentativa idealista, da sua independência em relação à sua época. Mas esta ilusão desaparece desde que comecemos a analisar o con-

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teúdo social, o alcance cognitivo e também a conexão histórica das épocas, no campo do progresso da sociedade.»1 O mesmo autor enuncia um princípio, baseado numa determinada concepção do mundo, que se pretende sociológico mas que pode ser alargado, mutatis mutandis, ao tópico da percepção na psicologia da arte, o qual não pode, de facto, separar-se – segundo a nossa tese – das condições sociais vividas pelos indivíduos, nomeadamente os artistas, nem da especificidade, também de certo modo condicionada, do processo estético. Esse princípio é, na expressão de Oïzerman «o imperativo categórico da sociologia marxista, a saber: a partir das percepções, das ideias relativas às coisas, voltar às próprias coisas, para conhecer por meio da análise científica as relações reais para elucidar o mecanismo do seu reflexo na consciência humana, substituir essas imagens deformadas da realidade por um sistema de conceitos científicos.»2 Isso não quer dizer que a filosofia e, em especial, a arte sejam substituíveis na sua existência real e social. Oïzerman refere-se sobretudo à Filosofia, da qual quer extrair o significado verdadeiro dado no contexto da época, por exemplo o sentido burguês da concepção “utilitarista” da felicidade humana nos philosophes do século XVIII, aumentando assim a compreensão tanto dos progressos e conflitos daquela sociedade quanto da sua filosofia. É do mesmo modo claro que a arte também deforma a realidade, e, no entanto, deforma-a, através das análises e das sínteses da imaginação, para melhor tentar

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OÏZERMAN, Theodore, Op. Cit., p. 283. Idem, Op. Cit., p. 292.

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entender, sentir e recriar a existência, mas, neste caso, a sua substituição teórica é impossível. A arte é um produto social material que, portanto, não pode sublimar-se em conceitos.1 É, todavia, analisável por estes, na função de conhecerem os motivos dos seus produtos e os mecanismos da sua recepção, de preferência quando se compreende que a deformação artística da realidade é um reflexo da vivência de agentes da realidade condicionados por esta, reflectindo portanto um fenómeno social real. O que fazem os filósofos é o que igualmente acabam por fazer os artistas, com os seus distintos meios específicos. Não admira, pois, que haja coincidências entre o significado de certas pinturas e certos textos filosóficos, podendo até influenciar-se mutuamente na sua concepção e interpretação. Daí Merleau-Ponty ter olhado para Cézanne como para o seu próprio espelho, um tanto deformado talvez, mas de algum modo o espelho do seu mundo. E é provável que Cézanne – que só passou a ver apenas cores depois de ter pensado muito – concordasse em determinados aspectos com o filósofo, como se, por antecipação, nos seus quadros estivessem irisadas as ideias deste. No entanto, a evidência de verdade que cada um deles procurou transmitir aos seus frequentadores possui na verdade pouca evidência para aqueles (a maioria) que vêem as coisas com olhos mais ou menos técnicocientíficos, as ideias como produtos imponderáveis do espírito, enquanto entidade, ou do psiquismo, reflexo fisiológico ou fisiológico-social, e os factos como absolutamente independentes das ideias, não sem um pouco de

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Para grande pesar de Hegel.

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superstição à mistura e fé terapêutica e inexistencial no além. Vê-se, pois, que a Filosofia, tal como a arte, nos pode ensinar muito sobre o homem, embora de maneira indirecta, precisando de ser explicada. A nossa tese não incide, porém, sobre a mundividência cúmplice de Merleau-Ponty e de Cézanne, apesar do nosso ensaio ter sublinhado e insistido sobre tal proximidade, apertada pela própria dúvida do artista, que é legível neste excerto de O Olho e o Espírito sobre a cor que não é espectáculo mas cor visível na experiência indissociável da subjectividade “vidente”: «Ela é o “lugar onde o nosso cérebro e o universo se reúnem”, dizia ele, nessa admirável linguagem de artesão do Ser que Klee gostava de citar. É para seu benefício que é necessário fazer estalar a forma-espectáculo. Não se trata, portanto, das cores “simulacro das cores da natureza”, trata-se da dimensão da cor, daquela que cria de si para si identidades, diferenças, uma textura, uma materialidade, algo... No entanto, decididamente, não há receita para o visível, e a cor isolada, tal como o espaço, não é uma delas. [...] O Retracto de Vallier interpõe entre as cores brancos que têm, doravante, como função, talhar, recortar um ser mais geral que o ser-amarelo ou o ser-verde ou o ser-azul – como nas aguarelas dos últimos anos, o espaço, que se acreditava ser a evidência mesma e em relação ao qual a pergunta pelo onde não se punha, resplandece em torno de planos que não se encontram em nenhum lugar designável, [...]»1 Este ensaio, por o ser, também não procurou desvendar o segredo da arte em geral nem sequer teve a mais humilde pretensão de esclarecer um pouco melhor algum 1

MERLEAU-PONTY, Maurice, O Olho e o Espírito, pp. 55-56.

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aspecto ambíguo da pintura, tão misteriosa, do mestre de Aix-en-Provence. Cézanne, ponte no desfiladeiro aberto fazendo a passagem entre os dois tempos estéticos da era moderna, será exemplo recorrente, mas de modo nenhum o único, nas questões que vão continuar por muitos anos a ser postas sobre o significado e o valor da arte para o conhecimento, assim como para o conhecimento desse conhecimento, se acaso ainda tem sentido uma epistemologia exterior à actividade prática, social, tecnológica, científica. É certo que os fenomenólogos, entre os quais Merleau-Ponty, desqualificam o conhecimento científico, privilegiando os valores imanentes aos projectos existenciais. Os seus livros são mais interpelações aos limites da ciência e ao seu valor existencial do que proposições de leis dos fenómenos estéticos e cognitivos. À ciência cabe responder: dirão. Mas o filósofo fenomenológico nega-o, porque – di-lo ele – nada pode ser conhecido duma posição neutra, exterior, puramente objectiva: o sujeito é, por “definição”, a percepção enquanto experiência consciente perspectiva e aberta, na qual o corpo e os fenómenos são indissociáveis na sua significação real: «As coisas e os instantes só podem articular-se conjuntamente para formar um mundo através desse ser ambíguo chamado subjectividade, só se podem tornar copresentes de um certo ponto-de-vista e segundo uma dada intenção.»1 O paradoxal carácter absoluto da experiência fenomenológica e existencial teria pretensamente arruinado o relativismo determinista de toda a ciência que considera Idem, Phénoménologie de la Perception, Gallimard, Paris, 1945, p. 384. 1

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que o vivido, talvez melhor, o visar não tem competência para além daquilo que vê quem vê. Seria uma ilusão crer que «a experiência do mundo percepcionado com as suas evidências não passa dum balbuciar anterior à palavra clara da ciência.”1 Merleau-Ponty escreveu no Prefácio à Fenomenologia da Percepção: «Trata-se de descrever e não de explicar nem de analisar.»2 E a descrição seria, todavia, parcial, situada nesse campo de experiências em que a consciência e o seu objecto são inseparáveis. Mas nós dizemos que nós os pensadores racionalistas precisamos de continuar o esforço de explicar e analisar os processos da percepção, penetrando nos conteúdos, bem vistas as coisas, do tema central deste ensaio – a complexidade prática da constituição perceptiva. Iremos continuar a falar, pois, por muito tempo, de marxismo, de psicanálise, de teoria da Forma, de análises geométricas, para entendermos melhor a complexidade que envolve a sua abordagem científica, procurando, ao mesmo tempo, e por mais obstáculos que os detratores maliciosos da verdade ponham à nossa frente, reconhecer nos princípios do materialismo histórico-dialéctico hipóteses críticas e reunificadoras de uma estética aberta e antidogmática. Teríamos de dedicar também um capítulo extenso ao criador da Fenomenologia, com o fito de, conhecendo este paracientismo, se desconfiar das sereias pseudohumanistas de Heidegger, das angústias constitutivas de Sartre e das ambiguidades da percepção de MerleauPonty, que aliás o cientismo incrementa com reducionis1 2

Idem, Signes, Gallimard, Paris, 1960, p. 248. Idem, Phénoménologie de la Perception, p. II.

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mo arrogante: a ciência não é a física de Rutherford contra colecções de selos e não se pode substituir à experiência viva da percepção. A teoria, muito menos qualquer intuição que almeje uma suposta identidade com o “ser”, não toma os lugares da experiência e da prática, nem estas, numa compreensão total do humano, dispensam a luz da razão.

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