Sumário A Extraordinária Vida do Ordinário Maicon .....................
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Veja Quem é Maicon ............................................
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Diagrama do Herói, a Jornada Mitológica de Maicon ............. 10
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A Extraordinária Vida do Ordinário Maicon A história a seguir narra a vida de
intervalos de anos, a família pegava um
uma pessoa anônima como a maioria de
avião em Santarém que os levava ao meio
todos nós. Uma história recheada de
da selva, e lá mesmo passava algum tempo
elementos da vida cotidiana, de fatos que
junta. E foi numa dessas viagens que
são comuns e familiares a todos nós, e que
Maicon e sua mãe se depararam com um
nos fazem perceber como cada um, como
dos terríveis males da vida selvagem: a
cada ser humano, traz consigo aquela
malária. Infectados ambos, a má sorte da
inexplicável e extraordinária maravilha
mãe foi ainda mais cruel, além da malária
que é o dom maior que todos nós
contraiu a fatal hepatite preta, morrendo
possuímos, o dom da vida. Quem é Maicon,
em poucos dias ao lado do filho em um
o que ele faz e onde vive são questões
hospital em Santarém. Embora gravemente
difíceis de se responder. Maicon é o típico
enfermo, Maicon sobreviveu, mas, aos oito
ser humano nômade, está sempre em
anos de idade definitivamente o rumo de
algum
sua vida mudou para sempre.
lugar
diferente,
fazendo
algo
diferente, com pessoas diferentes. Sua vida
Sem condições psicológicas de
foi sempre assim, de lá pra cá, de cá pra lá
cuidar dos filhos, agora órfãos de mãe, o
desde que sua mãe – uma hippie, como ele
pai de Maicon enterrou a esposa e voltou
mesmo diz – saiu de São Paulo para ir
ao garimpo. Além de mãe, Maicon e sua
morar em Belém do Pará, a sua cidade
irmã, então, passaram a ser também órfãos
natal, aonde tudo começou, à beira do Rio
de pai, pois nunca mais o encontraram no
Tapajós. Foi lá que ela conheceu o futuro
decorrer de suas vidas. Foram acolhidos
pai de seus filhos, um garimpeiro, com
por parentes dele, Maicon pela madrinha
quem se casou e teve uma prole de dois:
de batismo que o encontrara ainda no
uma menina e Maicon, o caçula. Esposa e
hospital quando ele se recuperava da
filhos conviveram muito pouco com o pai,
malária, e sua irmã por uma tia, uma das
na maior parte do tempo ele se encontrava
irmãs de seu pai. Maicon passou a viver em
longe de casa, em algum lugar no meio da
cima de um açougue no centro comercial
selva
ouro.
de Santarém, aonde trabalhava para ajudar
Quando achava quantia suficiente do
sua nova “mãe de criação” – sua primeira
valioso minério para bancar a viagem ao
profissão: ajudante de açougueiro. No
amazônica,
cavando
por
garimpo, algo que só acontecia em
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tempo livre, brincava com os filhos dela,
o recebeu com muito mau trato. Tinha que
crianças como ele, seus novos irmãos.
disputar a comida com seus primos,
Cerca de um ano depois, já feliz e
brigando por sobras e com a própria tia
readaptado à nova vida, em um belo dia de
que escondia os alimentos. Fome era o
sol, caminhava na rua quando ouviu uma
prato que sobrava na mesa para Maicon, de
voz chamando seu nome: “Maicon” – era
forma que logo cedo foi obrigado a
um de seus tios que vinha para buscá-lo, e
trabalhar por seu próprio pão, assim, antes
sua irmã também, para morarem com
de completar onze anos já estava na lida.
parentes de sua falecida mãe em São Paulo.
Conseguiu um bico de ajudante numa
O tio estava há dias procurando pelo
fábrica de tratores da região, na qual
pequeno Maicon que há anos não havia
recebia café e almoço, além de faturar
visto mais, que ninguém sabia onde se
“algum” com gorjetas. Nos fins-de-semana
encontrava ou para que lugar teria ido
vendia sorvete na cidade, às vezes, nem
quando saiu do hospital após a morte da
voltava pra casa, dormindo em qualquer
mãe e que havia sido adotado pela
lugar: na praça, no mato, no frio do relento
madrinha,
como
mas longe da frieza de sua tia. Cansado dos
desaparecido pela família que vivia em São
maus-tratos dela, conseguiu um cantinho
Paulo. Antes, talvez, não tivesse sido
na casa de sua avó, que lhe permitiu
encontrado, afinal já tinha o carinho de sua
construir um pequeno barraco de madeira
mãe de criação e a companhia dos novos
adjacente à sua moradia. Foi quando,
irmãos, em suma, já tinha uma nova
finalmente, Maicon conseguiu um pouco de
família. Depois de deixarem Santarém,
sossego, aonde nas noites frias se aquecia
Maicon
inclusive
e
irmã
dado
nunca
mais
com um pouco de madeira e carvão que
amoroso
como
queimava num velho tambor de óleo.
durante esse período. Os órfãos eram
Solidão? Jamais. Se a infância e a vida de
vistos como um estorvo para a família,
Maicon são marcadas por dificuldades e o
representavam apenas mais bocas para se
abandono da família, isso jamais lhe afetou.
alimentar. Sua irmã foi com o tio para a
Sem parentes amorosos, cercou-se de
grande
muito
amigos, criou sua própria família, deixou a
contragosto, acabou na pequena cidade de
solidão passar distante de sua porta.
Reginópolis em pleno sertão paulista – a
Sempre foi comunicativo, carismático, bem
mais de quatrocentos quilômetros de
humorado,
distância de sua irmã – aonde outra tia sua
empreendedor e prestativo, de forma que
encontraram
sua
já
um
capital
lar
e
Maicon,
a
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dono
de
em
espírito
logo já era conhecido por todos na cidade,
muitos obstáculos que precisou driblar. Em
na escola, era amigo de todos os colegas.
um colégio interno, aonde estudava e
Na adolescência, Maicon trabalhou
trabalhava – era auxiliar de cozinha e
em diversas firmas, lojas e bares da cidade,
cultivava uma pequena horta de verduras –
além de algumas fazendas da região.
completou
Realizava qualquer tipo de serviço manual,
maioridade legal, e esta trouxe algo a mais
de modo que, ainda criança, já conquistou
para Maicon, a liberdade. Em posse dela,
sua
sustentava
conseguiu um emprego numa grande firma
sozinho. Além do trabalho, brincava no
multinacional, a Leroy Merlin, mudou-se da
mato, praticava esportes, nadava no rio da
casa de sua irmã e foi morar sozinho no
cidade e, como não poderia deixar de ser
Jardim Bonfiglinoli, à beira da rodovia
no país do futebol, adorava jogar bola, era
Raposo Tavares, bairro que até hoje reside,
forte, com catorze anos de idade já
embora tenha passado por uma dúzia de
“carregava piano”. Sempre gostou de
diferentes casas, ora vivendo sozinho, ora
música também, reggae e black são seus
dividindo a moradia com amigos da
estilos prediletos. Antes de terminar o
vizinhança. Sem rio para nadar, encontrou
ginásio, Maicon já se mudara da casa de
nas artes marciais um novo esporte para
sua avó, morava no centro da cidade com
praticar, para aliviar o stress da big city,
alguns amigos em uma casa em que
dedicou-se à arte do Morganti.
independência,
já
se
organizava os bailes da escola. Foi nessa
o
colegial
e
alcançou
a
Trabalhou quatro anos na Leroy, de
época que sua virgindade também passou
simples
ajudante
ascendeu
a ser parte do passado. Até completar
encarregado de setor – de “peão” a
dezesseis anos, Maicon já tinha algumas
“patrão” – aprendeu de tudo um pouco, de
ex-namoradas, a bola e o estilingue ficavam
operar
pra traz, o interesse era a vida que tinha
computador, além de lidar com toda
pela frente.
burocracia de uma grande empresa. Foi na
empilhadeiras
ao
a
chefe-
uso
do
Veio para São Paulo e reencontrou
Leroy que Maicon reencontrou um velho
sua irmã que já se casara. Para a cidade
amigo de Reginópolis: Alê, o surfista, que
grande
já
lhe apresentou aquela que seria a sua nova
conquistara em sua vida: seu carisma e o
paixão, o surf. Após algumas viagens com o
espírito empreendedor, em posse disso,
velho amigo, Maicon já se tornara um
trilhar
metrópole
apaixonado pela prática e o espírito de
paulistana não foi muito difícil, apesar dos
vida dos surfistas, já tinha sua prancha e
trouxe
seu
duas
caminho
coisas
na
que
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todo equipamento necessário para prática
registrar a sua. É apaixonado por tudo que
do esporte, além do visual característico da
faz, busca cumprir com perfeição todas as
tribo do surf, tatoos, bermudas e óculos
tarefas que se propõe, é extremamente
escuros. Sempre que tinha uma folga ia
profissional. Está sempre disposto a ajudar
para a praia com os trutas1 curtir as ondas.
o próximo, com um pouco de inocência até,
Por coincidência, Alê era meu amigo
como diriam alguns. Vi com meus próprios
também, um antigo companheiro das
olhos, ao meio da multidão, em uma praia
ondas, e foi justamente numa dessas surf
apenas iluminada pelos fogos de artifício
trips2 que fizemos ao Guarujá, que eu
da noite de Reveillon, salvar uma menina
conheci Maicon, há quatro anos atrás,
da morte, desacordada em coma alcoólico,
quando ele tinha 21 anos. De lá para cá
abandonada, à mercê da sorte. Enquanto a
fizemos várias viagens e, como não poderia
multidão sequer percebia o que se passava,
deixar de ser com alguém que se dispõe a
lá estava Maicon carregando a guria nos
ser amigo de todos que cruzam seu
ombros em busca de ajuda como autêntico
caminho, desenvolvemos um forte laço de
herói. Ele é assim, sempre com a mão
amizade. Foi assim que, aos poucos, fui
estendida, pronto para ajudar, tem um
conhecendo a inigualável personalidade e
espírito irrequieto, sempre agitando algo
sua fantástica história que hoje tento, de
novo. Quem vai à sua casa, logo percebe
forma resumida, registrar nessas palavras,
isso, o bom anfitrião, os amigos batendo à
com a humildade de saber que seria
porta. Além do calor humano tem poucas
necessário ao registro dela, um extenso
coisas em seu cantinho particular, a
livro para detalhá-la com sua verdadeira
cozinha – indispensável – alguns armários,
riqueza, mesmo se tratando de um jovem
enfeites,
com uma vida inteira pela frente. Como
computador para ouvir música, assistir
amigo,
algumas
filmes e entrar no Orkut, nada que dê
características a esta figura. Acima de tudo,
muito trabalho para se mudar. O que mais
Maicon é uma pessoa muito humilde, trata
dizer sobre ele? É deixar sua história falar
todos com muito respeito e igualdade, é
por si mesma.
posso
acrescentar
roupas,
uma
cama
e
um
muito tranqüilo e receptivo, adora um bom
Sem espaço mais para crescer na
papo e é um excelente contador de
Leroy, Maicon se afastou da empresa,
histórias – daí também o desejo de se
forçou sua demissão e aproveitou a boa indenização que recebeu para investir em
1
Amigos que praticam surfe juntos. N. do A. 2 Viagem para a praia com objetivo de surfar. N. do A.
diversos cursos, tais como de gastronomia,
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someliê3
e
gerenciamento
de
bares,
sempre o interessou, sentia saudades do
restaurantes e hotéis. Conseguiu alguns
mar e percebeu que ali estava o seu
trabalhos temporários com organização de
destino, viver próximo as ondas, ao surf,
eventos, festas e buffets, até mesmo como
onde encontraria paz para o corpo e o
segurança. De bar em bar e festa em festa,
espírito.
conseguiu um bom emprego de comim4 em
O tempo passou e Maicon se
um famoso sushi-bar na zona sul da cidade,
recuperou completamente, vendeu o que
o Jam Warehouse. Como voltava tarde da
restava da moto, voltou ao trabalho no
noite do serviço, comprou uma moto para
Sushi-Bar, alugou um novo cantinho,
cumprir o trajeto casa-trabalho, foi quando
voltou ao surf e até mesmo ao Morganti.
se deparou com um dos grandes males da
Pouco tempo depois, se transferiu para
cidade grande: a violência do trânsito.
outro bar, no qual foi gerente. Sua
Trafegando com sua moto ao farol verde
personalidade
em frente ao Shopping Iguatemi, foi
combinava muito com a postura mais fria
abalroado por um automóvel que se esvaiu
necessária a tal profissional, de modo que
pela
coxa
não se identificou com a nova profissão,
esquerda. Acordou em um leito de hospital
demitiu-se e foi buscar novas alternativas.
com muita dor, mas feliz por estar vivo. Foi
Enquanto não encontrava algo “novo” para
operado, o osso da perna reconstituído
fazer, fez o que sempre costumava fazer:
com titânio, e meses de recuperação no
bicos. Continuou trabalhando com festas
hospital aonde recebia poucas visitas –
buffets,
algumas minhas, quando até assistimos
habilidades
pela TV o Corinthians ser campeão em
mesmo um filme de cinema ajudou a
2005, outras de sua irmã – e mais meses e
produzir, um curta-metragem de terror em
meses
estilo trash chamado “Goethia”. Com um
cidade,
esmagando-lhe
fazendo
remédios
lhe
custaram
tomando toda
amigável
inclusive com pirofagia
não
desenvolvendo circense. Até
a
celular na mão, fez vários contatos, acabou
poupança, andando de muletas, morando
reencontrando um velho amigo, músico,
na casa de sua tia que o amparou, a mesma
que tocava em uma banda de reggae, este,
que acolhera sua irmã anos antes. O tempo
por sua vez, lhe apresentou para outro
parado serviu para repensar a sua vida,
amigo, que era DJ. O DJ convidou Maicon
aproveitou o chá de cama para a leitura de
pra trabalhar na produção de eventos em
livros sobre a filosofia de vida oriental que
festas rave. Numa dessas festas, fez novos
3
contatos que o levaram para um novo
4
que
fisioterapia,
a
muito
Degustação de vinhos. Ajudante de garçom.
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ramo: o mundo da moda. Abriu uma firma,
novamente, não desanimou, em pouco
a “Progresso Modas” e passou a revender
tempo recuperou o valor perdido e agora
roupas estilo jovem, jeans e surfware, em
pensa em investir em um terreno. Aonde?
diferentes lojas e cidades, algo muito fácil
Está buscando um “bom negócio”, “um
para alguém simpático e comunicativo
lugar tranqüilo”, um local em que possa
como Maicon, trabalhando por conta
prosperar, quem sabe casar e ter alguns
própria e lidando diretamente com o
bambinos.
público.
e
Florianópolis ou na Bahia, montar o seu
fornecedor ambulante, estilo caixeiro-
próprio restaurante, que até nome já tem:
viajante, seguindo diversos eventos, raves,
Buffet “Restaura do Surf”. Para o futuro,
shows, festas de peão e campeonatos de
tudo que deseja é viver em algum lugar em
surf, sempre trabalhando com roupas ou
que possa ver o mar “todos os dias”.
organizando festas, como promoter ou
Acredita que “quem sobrevive neste ninho
barman, com um quê de figurinista
de cobras que é São Paulo, sobrevive em
também. Hoje viaja bastante para o litoral
qualquer lugar”. Seja qual for o seu
paulista, aonde, além dos campeonatos,
objetivo, seu destino, ou destinos, com
fornece
lojas
certeza ele os alcançará, o que com toda a
praianas e aproveita o tempo que sobra
simplicidade e olhando a Deus, é o próprio
para surfar e tomar uma cervejinha com os
Maicon quem nos diz: “Com a fé nele, você
amigos caiçaras.
conquista tudo”.
Tornou-se
roupas
O
nome
um
para
de
vendedor
diversas
sua
Seu
sonho
é
morar
em
empresa,
Parte de seu desejo, Maicon já
“Progresso”, não parece ser mero acaso,
cumpriu, enquanto completávamos essa
com mais de dezessete mil quilômetros
mini-biografia,
rodados vendendo roupas pelo estado de
personagem adotou Florianópolis como
São Paulo, Maicon comprou um Fusca, um
novo lar, a princípio dividindo moradia
investimento para a firma, para aumentar
com alguns amigos na praia do Campeche,
mais e mais ainda a sua quilometragem.
surfando e trabalhando como sushiman em
Infelizmente,
outro
festas e eventos privados pela cidade. O
problema característico da megalópole
início de uma nova etapa em sua vida que
paulistana: os ladrões de veículos. A pé
um dia ainda será contada.
deparou-se
com
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nosso
extraordinário
Veja Quem é Maicon
Maicon e uma de suas paixões, a culinária, e uma de suas especialidades, a peixada (ao lado e abaixo).
Com sua tia, quando se recuperava do acidente de moto (ao lado). Em Balneário Camburiú - SC, Praia Brava, resgatando uma guria em apuros (abaixo).
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Diagrama do Herói, a Jornada Mitológica de Maicon Apenas para uma pequena reflexão em cima da história narrada, identificamos os aspectos mitológicos da vida de Maicon, relacionando-os com a análise do herói mitológico de Joseph Campbell (através do roteiro proposto por Christopher Vogler – RINCÓN, Luiz Eduardo. A Jornada do Herói Mitológico in II Simpósio de RPG & Educação. São Paulo: Uninove, 22 à 24/09/2006), reproduzida no quadro abaixo.
1º Ato – Apresentação Mundo Comum Chamado à aventura Recusa ao chamado
Encontro com mentor
Travessia do primeiro limiar
A família Morte da mãe, abandono do pai, separação da irmã Não queria deixar sua madrinha em Santarém para viver em Reginópolis longe de sua irmã Seus amigos
Morte da mãe; vinda à Reginópolis; vinda à São Paulo
Belém do Pará
Irmã (durante o colegial); Alê, mentor do surf; DJ, mundo da moda e outros amigos Arma mágica: prestatividade, amigabilidade Elixir: independência
2º Ato – Conflito Aliados e inimigos Testes Aproximação da caverna oculta Provação suprema Recompensa
Inimigos: Indiferença da família Fome, necessidade de subsistência Encarar a vida sozinho em São Paulo Acidente de moto Chance para um recomeço; pausa para refletir sobre o destino
3º Ato – Resolução
(futuro)
Caminho de volta Ressurreição
Mundo da culinária Sonho de morar na praia, Florianópolis Prosperidade, paz interior
Retorno com o elixir
10
Aliados: Seus amigos; Irmã (em SP); perseverança Busca por trabalho, sustento Maioridade
Buffet “Restaura do Surf” Casamento, filhos Liberdade
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