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Conexão oceânica

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Força vital

Força vital

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Figura 1: “Conexão oceânica.” Fonte: Teaser I da Mostra 68 e depois. Frames dos flme ABC da greve (1991), de Leon Hirszman, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha. Montamos as imagens coladas uma na outra aqui para indicar a fusão do vídeo.

ABERTURA

I

Conexão oceânica

A infinita interconexão de todas as coisas. É a aproximação do ser lançado no real, em que tudo é excesso, porque não há nada que não seja inteiramente entranhado de tudo, onde as coisas não estão separadas hierarquicamente, portanto algo atravessa tudo que é.

José Miguel Wisnik

Foi no Cine Humberto Mauro. Antes de cada sessão começar, depois das notas fortes tocadas no piano, seguidas pelos golpes agitados dos instrumentos de sopro, escutávamos a voz de Edu Lobo cantar: “Mas o tempo muda e do temporal/ Surge o vento bravo, o vento bravo./ Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não vai se acalmar.” Nas imagens, a multidão se tornava oceano.1 ABC da greve se fundia com Terra em transe (fig. 1).2 Eram filmes que apresentavam tempestades, levantes, revoltas, resistências. Vivíamos um tempo sombrio. O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva acabara de ser preso injustamente pela Lava Jato; o impostor Michel Temer estava no poder; o país estava paralisado por conta da greve dos caminhoneiros; o bolsonarismo e os discursos de ressentimento e ódio se amplificavam a cada dia. Neste contexto, entre os dias 30 de maio e 3 de junho de 2018, reunimos 40 pensadores/as e cineastas para discutirmos juntos o legado dos 50 anos de Maio de 68. A mostra, intitulada 68 e depois, organizada por mim e Natacha Rena, fazia um percurso das revoltas que eclodiram na França em 1968, passando pela resistência tropicalista e a ditadura no Brasil, até chegar nas manifestações de 2013, nos levantes recentes dos secundaristas brasileiros e no Golpe de 2016, que depôs violentamente a presidenta Dilma Rousseff do governo.

Naqueles cinco dias, nos propomos a tarefa de estar junto. Guiados pela necessidade do encontro, refletimos juntos sobre esse período circunscrito em 50 anos, entre a história violenta da repressão e a construção incessante da resistência. Se o vento é bravo, o fundo do ar é vermelho:

A pessoa que lhe diz “o fundo do ar é vermelho” sem dúvida dá a entender que uma tempestade — uma tempestade “vermelha”, comunista — vai se erguer e sublevar tudo, carregar tudo. [...] os levantes pressupõem uma solidariedade

1 Teaser II da Mostra 68 e depois. Montagem: Pedro Rena. Música: “Vento bravo” (1973), Edu Lobo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ip_Q3Md4l8g&feature=emb_title. Acesso em 06. jan. 2022. 2 ABC da greve (1991), de Leon Hirszman, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha.

Figura 2: Levantes. Fonte: Teaser II da Mostra 68 e depois. Frames dos flme O fundo do ar é vermelho (1977), de Chris Marker, e Escolas em luta (2017), de Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques, Tiago Tambelli.

bastante profunda que conecta os sujeitos com seus lutos e seus desejos, mas que também faz os próprios tempos se fundirem por imagens interpostas.3

O livro Levantes (2017), de Georges Didi-Huberman, era uma referência para a concepção da mostra. Em primeiro lugar, porque, como na Exposição do pensador francês, reunimos e colocamos lado a lado filmes que abordavam levantes e resistências. Em segundo lugar, pelo gesto de montagem, pelo ato da curadoria que colocava imagens de épocas diferentes em justaposição e, também, contraposição: no contraste, por exemplo, que se dava ao assistirmos imagens de revoltas de estudantes de classe média na França em 1968 ao lado dos levantes dos secundaristas em São Paulo em 2016. Se tratavam de montagens que conectavam e criavam fricções entre diversos tempos e espaços (fig. 2). Era um momento em que precisávamos nos conectar uns com os outros, reunir forças, fazer o luto do país que víamos desaparecer, mas também vislumbrar possibilidades de recomeço. Tentávamos buscar nas revoltas do passado fontes para a compreensão do presente e para construção da resistência no futuro. A música da outra vinheta da mostra, composta por Alemar Rena, se chamava Requiem (2018) e nos devolvia, no presente, um discurso de Fidel Castro pronunciado em 1979: “hablo en nombre de aquellos a los que se les ha negado el derecho a la vida y la dignidad humana. ”4 A música era um requiem em homenagem ao líder comunista que morrera um ano e meio antes do evento e, ao mesmo tempo, um requiem ao Brasil que observávamos, abruptamente, desaparecer. Um país que se via, naquele momento, tomado por forças reacionárias, na iminência da eleição de um presidente genocida. Fazíamos o luto pelo país que nas primeiras décadas do século XXI havia saído do mapa da fome. Um país em que as políticas de inclusão dos governos petistas haviam reduzido drasticamente a desigualdade e a miséria; colocado os jovens na universidade através das políticas afirmativas e das cotas; emancipado as mulheres através do Bolsa Família. Um país em que o povo conquistara, aos poucos, o direito à vida e à dignidade. No debate de encerramento da mostra, comentando o filme Escolas em luta (2017),5 Moara Saboia, primeira presidenta negra da UNE e atual vereadora na cidade de Contagem (MG), esboçava uma conjuntura do tempo que estava por vir:

A gente vai viver um período de austeridade e de exclusão da classe trabalhadora muito grande, porque um povo que tá muito sofrido, que não tem trabalho, não tem alimentação adequada, que não tem educação, ele também tem muita dificuldade de lutar, porque ele tem que lutar pra sobreviver. E a gente tá começando a chegar nesse limite onde as pessoas vão ter que se dedicar novamente à luta pela sobrevivência, porque eu acho que todo esse processo [das ocupações] é possível porque a gente tem uma juventude que pôde ser jovem. Uma juventude negra,

3 DIDI-HUBERMAN, Georges. Levantes. 2017, p. 290. 4 “Falo em nome daqueles a que se negaram o direito à vida e à dignidade humana”, tradução nossa. “Teaser I - Mostra 68 e depois”. Montagem: Pedro Rena. Música: “Requiem” (2017), LowMonotone. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xCqJ5EuBX6U. Acesso em 06 jan. 2022. 5 Dirigido por Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques, Tiago Tambelli.

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