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Centelha que não se apaga nunca
No primeiro dia do seminário, João Salles falava sobre o sentido da vida e sobre a “máquina do mundo”. Dois dias depois, Luiz Dulci comparava os filmes Abc da greve (1991), de Leon Hirszman, com Arábia (2017), de João Dumans e Affonso Uchôa, que também estava presente no debate, falando sobre o sentido do trabalho e sobre a relação dos trabalhadores com a máquina (fig. 4). Em seu comentário, Luiz Dulci fazia uma homenagem ao ex-presidente Lula, rememorando o tempo em que ambos participavam das greves do ABC Paulista. Dulci atualizava o legado das greves a da história do movimento trabalhista para refletir sobre o contexto atual dos trabalhadores no Brasil. Neste trecho a seguir, vemos como a rememoração do passado era um método de análise do presente:
Tem uma questão clássica que pra mim sempre foi muito importante — a contracultura dava muita importância à essa questão, com outro vocabulário mas dava — que é a questão do sentido do trabalho pra pessoa, que é um conceito que se usava de alienação do trabalho — a perda do sentido do trabalho pra quem o realiza — ou, a possibilidade de que o trabalho seja também um espaço de expressão, e não só de execução de tarefas. [...] Pro movimento sindical da nossa época [em 1979], porque eu fui sindicalista nessa época, [a questão] não estava pautada dessa maneira. As questões das condições do trabalho não era o principal; era estabilidade no emprego, salário, direito de organização por local de trabalho, não era tanto o sentido do trabalho em si mesmo. [...] [No ABC da Greve havia] uma relação com a máquina que não é uma relação de expressão.10
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A falta de sentido, o suicídio e o “desgosto de viver” apareciam em diversos filmes da mostra: para além do suicídio de Elisa Gonçalves, mãe de João Salles, o suicídio de Torquato Neto. Em Retratos de identificação (2014), o suicídio político de Dora, militante da luta armada sufocada e exilada pela ditadura brasileira. No filme O bravo guerreiro (1968), o suicídio ficcional do deputado Miguel Horta. Em Morrer aos 30 (1982), uma homenagem ao amigo Michel Recanati, que cometeu suicídio no desalento pós-Maio de 1968. Em outro debate da mostra, no entanto, a música de Negro Leo ressoava: “Não morrer numa máquina/ re-existir numa máquina”.11 Como diria Drummond, atento às resistências e aos gestos mínimos da vida:
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada em sua forma irredutível. [...] vida que aspiramos como paz no cansaço (não a morte), vida mínima, essencial: um início, um sono.12
em torno do filme na mostra e a citação do poema “A máquina do mundo” ocupam um lugar central para a elaboração e a origem do projeto desta pesquisa. 10 DULCI, Luiz. “Luiz Dulci comenta Arábia e ABC da Greve - Mostra 68 e Depois”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SRkcuKv83gA. Acesso em: 06 de jan. 2022. 11 LEO, Negro. Action Lekking A (2017), clipe dirigido por Gregorio Gananian. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DXxRdqgmuSs. Acesso: 12 de jan. 2022. 12 ANDRADE, Carlos Drummond de. “Vida menor”, A rosa do povo. [1945]. 2015, p. 129. Optamos por colocar na citação o nome do poema e o livro em que ele está presente, indicando também, entre colchetes, a data da publicação original, para que o leitor tenha a referência da época em que os livros originais foram lançados. Adotamos essa data da publicação original em colchetes nos demais livros citados ao longo da dissertação. O ano fora do parêntese indica a edição que estamos.
Figura 5: Força vital. Fonte: Fotografa de Augusto Barros na Mostra 68 e depois (2018).