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II Força vital
No começo da minha graduação na Faculdade de Letras da UFMG, me matriculei em uma disciplina sobre Teatro do Absurdo com a professora Leda Maria Martins. Nas aulas, Leda nos falava sobre a ausência de sentido da vida no mundo no pós-Guerra; nos falava sobre a desesperança, ou sobre a espera por aquilo que nunca chegaria. Nas peças analisadas, Leda comentava sobre a encenação da repetição dos dias, marcados pelo sufoco, pelo aprisionamento. E, no entanto, Leda dizia, Samuel Beckett ainda assim escrevia. Durante o primeiro ano da pandemia, escrevi uma carta para Leda relembrando essas aulas, comparando o que discutíamos naquela época com o período que estávamos vivendo na pandemia, em 2020, assim como o debate sobre Torquato Neto na Mostra 68 e depois, em que ela leu um texto ainda inédito de Glauber Rocha sobre o poeta piauiense (fig. 5). É interessante notar que no livro Verdade tropical, Caetano Veloso comenta a admiração de Torquato Neto por Drummond, poeta que é citado em alguns poemas do letrista piauiense, como em “Let’s play that”, gravada por Jards Macalé (1972), que faz referência ao “Poema de sete faces” (1930): “quando eu nasci/ um anjo louco muito louco/ veio ler a minha mão [...] era um anjo muito louco, torto”, ou na música “Todo dia é dia D”, em que Gilberto Gil canta “há urubus no telhado”. Torquato incorporava a linhagem do “outro modernismo” de Drummond, um modernismo gauche, no coração Tropicalismo, que, pela parte de Caetano, buscava na Antropofagia de Oswald de Andrade sua principal referência. A própria presença de Torquato no Tropicalismo se fazia por vias tortas, se recusando, como dizia Leda Martins no debate, em transformar suas obras em commodites da Indústria Cultural. Assim como Drummond se recusava a seguir os dogmas dos movimentos políticos de esquerda que homogeneizavam o pensamento, deixando pouco espaço para as liberdades individuais, Torquato se recusava a seguir as normas do movimento Tropicalista, em direção à sua institucionalização. No dia seguinte ao envio da carta, recebi uma resposta de Leda por email, em que ela me enviava seu número me pedindo para lhe telefonar. Conversamos, então, ao longo de meia hora. Ela me disse que a angústia que vivíamos era enorme, mas que precisávamos nos conectar a uma “força vital”, a um movimento que nos mantivesse vivos, apesar de todas as catástrofes. Para Leda, o tempo histórico não é linear, catastrófico e unívoco, mas espiralar, com suas inúmeras idas e vindas. Na leitura do texto na mostra, uma luz nos iluminava em meio a toda escuridão. A vida vibrava na voz de Leda. Ela convocava Machado de Assis para falar sobre a complexa temporalidade daquele momento