Obscuridade: capítulo 3

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Obscuridade


_______________________________________ Kathleen

Depois do meu encontro com o Expurgador, ando até o meio-fio, sento-me e desenho na neve branca e imaculada aos meus pés. A princípio, desenho formas desconhecidas inclusive a mim: rostos desfigurados, cabelos retorcidos, olhos esbugalhados, lábios curvados em desespero. Desenho dois narizes. Quatro orelhas. Desenho as curvas das sobrancelhas, o alongamento dos cílios. Quando distingo o que minhas mãos delineiam involuntariamente, lá estão elas, prontas, como retratos de um pesadelo: minha mãe e Lisa, seus traços impressos em um pano de fundo maculado; não como eram, mas como foram no instante de suas mortes - assustadas, arrasadas. Sinto a pressão em meu peito aumentar ferozmente, as batidas em crescente aceleração, em crescente desespero. A dor umedece meus olhos de lágrimas que não caem, enche minha mente de imagens que não cessam,


bombardeia meus ouvidos com gritos que não emudecem jamais. A dor me faz ver como sou de verdade agora, no que me tornei: um espelho estilhaçado em mil pedaços, cujos cacos são pequenos demais para serem emendados outra vez. Tomo uma respiração profunda, o oxigênio fazendo força em meus pulmões, e mantenho-a sufocada, tentando aliviar a pressão que se constrói em meu peito. Mesmo que tenham passado quatro dias, mesmo que os corpos delas estejam apodrecidos agora, jogados em alguma vala dentro das Cercanias... Nada parece real para mim. Quando exalo, a pressão continua ali, insistente. Eu laço minhas mãos à neve e apago o desenho sem cerimônia, revolvendo-o até que os rostos de Lisa e minha mãe desapareçam de uma vez por todas - se extingam como se nunca tivessem existido. Inconsciente, desenho os Expurgadores, desenho suas máscaras, desenho olhos sem piedade, desenho suas armas. E eu os apago também, porém com mais força, com mais raiva, meus dedos revirando a neve até que as gravuras sejam aniquiladas, até que cada um dos Expurgadores seja destruído. Eu estou destruída. Mas descobri que também sou capaz de destruir.


Porque quando se perde tudo o que se tem, quando o que você é se confunde com o que você foi e com quem você seria, quando tudo o que lhe resta é tomado para sempre, você é capaz de fazer coisas que não imaginaria fazendo. Você é capaz de morrer lutando por uma causa. Ou matar por ela. Enxugo as lágrimas que restam em meus olhos e então me viro de costas para o desenho arruinado, para Lisa, para minha mãe, para suas mortes, para seus assassinos; me viro para a realidade e para o plano de vingança que começa a surgir em minha mente, pronto para ser colocado em prática à menor chance. *** À minha frente, há pelo menos quatrocentos corpos na estrada – a maioria deitados. Algumas idosas estão sentadas juntas, com os cabelos grisalhos salpicados de neve. Seus olhos estão abatidos e círculos roxos de olheiras rodeiam as pálpebras enrugadas, e elas cochicham entre si; param de vez em quando, para verificarem se estão sendo observadas, e então prosseguem ao constatarem que não. Elas estão amontoadas em um semicírculo imperfeito, mas as demais pessoas não se aproximam tanto; não querem chamar tanta atenção assim.


Há poucas crianças. Conto oito, no máximo, deitadas nos colos das mães ou dos pais, ou de quem quer que lhes tenha sobrado no mundo. Não posso dizer que estejam dormindo, mas se estão acordadas não se movem, ou falam, ou riem, ou perguntam, ou fazem qualquer coisa que uma criança normalmente faria. Três Expurgadores, empunhando chicotes elétricos que emanam uma constante luz azulada, vigiam-nos. Estão encostados sobre um carro enferrujado, velho e coberto de neve. Eles olham para as pessoas deitadas na estrada, atentos a alguma quebra na calma; percebo que ignoram propositalmente o grupo das idosas. Eles me parecem mais quietos e relaxados que nos primeiros dias da viagem, e, a julgar pela curvatura dos ombros, eu diria que também um pouco cansados. Nenhum está prestando atenção em mim. Não agora, pelo menos. A luz do Sol que chega até nós é precária e gris, boa parte recolhida pelas espessas camadas de nuvens carregadas de neve que se acomodam no céu invernal. O Sol se esconde por trás delas, quieto, ainda que, algumas vezes, quando olhamos para cima, é possível avistá-lo se insinuando entre uma ou outra abertura que as nuvens formam. Aqui há árvores em maior abundância que antes, formando pontos cegos em que alguém poderia


conseguir se ocultar quase completamente, escondendo-se atrás de algum tronco. De todos os locais em que paramos desde que fomos capturados, este é, sem dúvidas, o mais propício para a fuga. As árvores dispõem de folhas secas firmes que se prendem aos galhos finos, e os troncos são mais robustos e sólidos. No chão, é possível distinguir ocasionalmente um punhado de grama verde remanescente contrastando com o branco da neve. Algumas cabanas foram armadas para os Expurgadores. Elas são todas assimétricas, e, pelo que eu posso perceber, comportam de três a quatro homens de uma vez só. Não me parecem muito confortáveis, mas, com certeza, são saídas melhores que ficar exposta à neve, à chuva e ao frio. Minha atenção, porém, está direcionada à maior de todas. Ela é verde musgo, com a parte da frente ocultada por um carro cheio de ferrugem. Atrás, e à esquerda, há dois outros carros envelhecidos e cobertos de uma densa camada de pó branco circundando-a, projetando uma espécie de isolamento. Eu havia visto apenas uma pequena parcela do seu teto antes, quando o Expurgador de olhos verde havia se dirigido a ela, mas agora que estou ao seu lado me parece mais grandiosa, especial – um pequeno oásis em meio ao deserto. E é.


Eu sei que essa cabana é do Coronel. Eu sei também que é ele o líder da missão de morte que sentenciou o fim das pessoas que eu amo. E que é ele, afinal, quem eu devo culpar. Eu me aproximo da cabana pela direita – a única parte negligenciada e sem um carro como sentinela. Não há nenhum Expurgador nos arredores, o que é um bom sinal. Eu passo um tempo tentando avaliar se é prudente andar até cabana, ou se alguém está me olhando. Quando sinto que estou segura, caminho silenciosamente, dando uma volta até estar atrás dela. Estou sendo imprudente, me arriscando de um jeito que pode não ter voltas. Mas é o que preciso fazer. É o que farei. Encosto minha cabeça sobre o tecido da cabana, meu ouvido tentando captar o som de alguma coisa. A princípio penso que me enganei. Não consigo ouvir nada, exceto a miríade de sons do exterior; pisadas, tosse, espirro, choro. Quando finalmente penso em desistir, escuto. A voz que fala é ríspida. Só alcanço um trecho dissidente da conversa, mas o suficiente para fazer meu coração bater mais rápido, dolorosamente mais rápido. “... ouvido falar sobre a Floresta de Sangue.” “Já, Senhor” – responde outra voz. É menos firme e afiada que a anterior, um pouco mais calma, um pouco assustada. – “A Floresta de Sangue. Por onde caminham


aqueles cujas mentes perderam a humanidade, cujos corações batem mais rápidos e inflexíveis, cujos olhos já não veem mais” - ele faz uma pausa, mas não precisa que continue para que eu saiba quais serão suas próximas palavras. Eu sei exatamente como esse texto termina. Fui criada ouvindo-o, recitando-o. Por isso, quando o Expurgador volta a falar, eu sussurro em uníssono com ele:

- “E cujas almas, sedentas, clamam por carne e sangue, querendo sempre mais, mas sem nunca possuilos.” – nós dois finalizamos ao mesmo tempo, como se tivéssemos ensaiado várias vezes antes. “Alguém prestava atenção às aulas”, disse a voz do Coronel. Não pude deixar de notar a ironia por trás de suas palavras, da maneira como ele parecia rir do Expurgador secretamente. “É o meu trabalho, Senhor”, responde ele. Ouço uma risada. “Não”, diz. “Você está enganado, completamente enganado. Seu trabalho não é recitar bobagens ensinadas para assustar criancinhas, Soldado. Seu trabalho é cumprir ordens e adentrar em missões, não importam quão perigosas elas sejam. Seu trabalho é servir à Cúpula, e curva-se perante suas ordens. Você está me entendendo, Soldado?”


“Sim, Senhor”, o Expurgador responde, automaticamente. “Soldado, você pode ter conseguido galgar um patamar acima na hierarquia, mas todo presente vem com uma divida, e é o momento de...”. Eu me viro exatamente quando uma mão se aperta com firmeza em meu ombro, mas não olho para cima, não olho para o Expurgador que me flagra espionando o Coronel. Sinto o grito se formando em minha garganta, porém o sufoco – não posso ser irracional, não agora, não quando ainda tenho uma chance. Esperneio, mas as mãos me prendem com tamanha força que é impossível me desvencilhar delas. O Expurgador me arrasta com empenho pela neve, através do mesmo caminho que eu tinha feito até a cabana. Meus olhos se enchem de lágrimas por causa do contato direto com o frio, que queima como uma chapa quente, mas eu não grito. Preciso fugir antes que seja tarde demais. Ofereço menos oposição a ele, meu corpo cedendo. Tenho que fazer com que ele acredite que estou desistindo. Essa é a única maneira – a única em que eu consigo pensar. O Expurgador diminui a pressão em meus pulsos quando percebe que minha resistência está minguando, e aproveito esse momento para atacar.


Eu giro e chuto sua perna esquerda com força, acertando sua canela e fazendo-o cambalear. Ele me solta por um instante, e eu quase consigo fugir quando percebo suas mãos se prendendo novamente sobre meu corpo, agarrando-me. Ele me joga no chão com força, aterrissando sobre mim. Eu grito com o impacto, mas o som é abafado por seu corpo sobre o meu. Fico sentindo a respiração acelerada do Expurgador em meu ouvido, até que ele fala: - Merda, Kath. É assim que você recepciona os amigos? Caramba, e desde quando você sabe lutar? Eu rio de verdade pela primeira vez em dias. E relaxo.


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